Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1583/16.9T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO ESTRADAL
IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DO INFRACTOR
PRAZO
ILIDIR A PRESUNÇÃO
Data do Acordão: 04/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA (J L CRIMINAL)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 135.º E 171.º DO CE; ART. 75.º DO RGCOC
Sumário: I -Incide sobre o proprietário do veículo a presunção da responsabilidade pela infracção decorrente da condução de um veículo, nos casos em que o real condutor não pôde ser identificado pelo agente autuante.

II -Presunção que, contudo, é ilidível e pode ser ilidida pelo visado ou onerado mediante prova em contrário, ou seja, mediante prova de quem tenha sido a real pessoa do condutor.

III - Porém, ao titular do documento de identificação do veículo que pretenda ilidir aquela presunção impõe-se o dever de o fazer no prazo concedido para a defesa, não sendo possível afastar a presunção uma vez decorrido aquele prazo, sob pena de não ter qualquer utilidade o disposto no art. 171.º, do CE.

III - Nos processos de contraordenação e, sem prejuízo do disposto no art 410.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, o recurso aqui em causa [Relação] restringe-se à matéria de direito, atento o que dispõe o art. 75.º, n.º 1, do DL 433/82, de 27/10.

Decisão Texto Integral:



Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.

A... , por decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária foi-lhe aplicada a sanção acessória de inibição de condução pelo período de 30 dias que se suspendeu pelo período de 180 dias, não condicionada a prestação de boa conduta, pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos artsº 27º, nº 2, al a)-2, , artº 28º nº 5 e 138º e 145º, al c) todos do Código da Estrada.

Impugnou tal decisão junto do Tribunal Judicial da Guarda.

Recebidos os autos no Tribunal Judicial da Guarda e proferido despacho ao abrigo do disposto no artº 64º nº 1 e 2 do DL nº 433/82 de 27/10 foi proferida sentença que julgou improcedente o recurso e, em consequência, manteve na íntegra a decisão administrativa recorrida.

Inconformado, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação:
1. A decisão administrativa de fls. aplicou ao Recorrente uma sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução por um período de 180 dias, tendo o MM. Juiz “A QUO”, proferido despacho a fls., mantendo a decisão administrativa nos seus exactos termos.
2. Decisão que ora se impugna, já que se considera que i) a sentença padece de erro notório na apreciação da prova; ii) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; iii) a sentença viola o princípio da pessoalidade das penas.
3. Do erro notório na apreciação da prova:  Considerou o MM. Juiz “A QUO” não se ter dado como provado que: “a) o condutor do veículo nas circunstâncias descritas acima não era o Recorrente/Arguido; b) à data dos factos o Recorrente/Arguido se encontrava nos Estados Unidos da América; c) o Recorrente/Arguido tenha viajado para o Estados Unidos da América no dia 13 de Janeiro de 2014 e apenas tenha regressado a Portugal no dia 1 de Maio de 2014.”
Consideramos que da leitura e observação da prova documental junta, i.e. do passaporte em conjugação com os bilhetes de avião resulta indubitavelmente que o Recorrido A... foi para os EUA em 13/01/2014 (data constante do carimbo de entrada nos EUA aposto no passaporte), apenas tendo regressado a Portugal no dia 1 de Maio de 2014, pelo que, não poderia estar no dia 24 de Março de 2014, na cidade da Guarda. Pelo que, deveria ter sido dado como provado que: “c) o Recorrente/Arguido tenha viajado para o Estados Unidos da América no dia 13 de Janeiro de 2014 e apenas tenha regressado a Portugal no dia 1 de Maio de 2014.” E, consequentemente que, “a) o condutor do veículo nas circunstâncias descritas acima não era o Recorrente/Arguido; b) à data dos factos o Recorrente/Arguido se encontrava nos Estados Unidos da América..
4. Existe assim, segundo cremos, um erro notório na apreciação da prova, conducente às alterações dos factos provados sendo certo que o passaporte é elemento essencial para um cidadão português, como é o caso do Recorrente, entrar legalmente em território dos Estados Unidos da América.
5. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada: Não resultou provado que o condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) 62, no dia 24 de Março de 2014, pelas 8:26, na VIGEC, na cidade da Guarda, fosse o Recorrente, sendo certo que apenas foi dado como provado que era o Recorrente o proprietário do veículo.
6. Face ao exposto, consideramos não serem insuficientes os factos provados para que se possa concluir pela manutenção da decisão da autoridade administrativa, designadamente na condenação do Arguido/Recorrente sendo claro que da sentença recorrida não é possível recolher elementos que permitam formular um juízo seguro de condenação.
7. . Da violação do princípio da pessoalidade das penas:  Considerou o MM.º Juiz “A Quo” que “ainda que o Recorrente tivesse provado que não foi ele o condutor do veículo no momento dos factos, ainda assim a decisão de recurso seria exactamente a mesma, no sentido da sua improcedência.” Acrescentando que, “(…) neste tipo de casos impõe-se que o recorrente alegue e prove não só que não foi o próprio que conduziu o veículo no momento dos factos, como também impõe que se alegue e prove que o real condutor foi outra determinada pessoa que seja concretamente identificada. (…)” e ainda que “esta mera ausência de identificação por parte do recorrente da pessoa que tinha sido o alegado e real condutor, por si só, logo levaria (como leva) à improcedência do presente recurso”. Tal afigura-se-nos como uma clara violação do princípio da pessoalidade das penas pois o n.º 2, do art. 171.º do Código da Estrada, não pretende mais do que consagrar um pressuposto processual de legitimidade passiva do proprietário do veículo, baseando-se na presunção natural de que se o proprietário não indica quem conduzia o veículo no momento da prática da contraordenação é porque era ele mesmo a conduzi-lo. Todavia, parece-nos ilegítimo partir-se daí para se derrogar o princípio da pessoalidade das penas. Pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 27/04/2009, proc. 897/08-1 que, “apesar de se aceitar que o direito contraordenacional e o direito penal constituem ramos de direito autónomos e que há entre eles uma diferente natureza, também é certo que, por ora, é no direito penal que o direito contraordenacional tem encontrado as bases de onde a sua própria autonomia se tem vindo e continuará a ir-se progressivamente afirmando. É assim que os artigos 32.º e 41.º, ambos do Decreto-Lei n.º433/82, de 27 de Outubro (DL 433/82), estabelecem, respectivamente, que o Código Penal e Código de Processo Penal são diplomas de aplicação subsidiária ao Regime Geral da Contraordenações. Pode, sem receio, afirmar-se que o direito de mera ordenação social é, como o direito penal, um direito do facto – do facto e do seu autor – assente, além do mais, nos princípios da tipicidade, da ilicitude e da culpa. Só pode ser punido quem praticar um facto legalmente tipificado, com dolo ou, no caso especialmente previstos, com culpa. (…)”
8. Também Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, em nota ao art. 7.º do DL 433/82, consignam o seguinte: 2- A legislação penal portuguesa consagra o princípio da individualidade da responsabilidade criminal (art. 11.° do Código Penal), o qual, aliado ao princípio da intransmissibilidade (art. 30.º, n.º 3 da Constituição e 127.° do Código Penal), conforma o princípio da pessoalidade das penas.”
9. Acresce que, como consta dos autos, o Recorrente não indicou a pessoa que no dia, hora e local dos factos conduzia efetivamente o veículo uma vez que estando o Recorrente ausente nos EUA e o seu veículo em Portugal, não lhe é possível saber quem de facto era o condutor.
10. Ao não se dar como provado que quem conduzia o automóvel era o Recorrente, está inviabilizada a possibilidade de ao mesmo ser aplicada uma sanção acessória de inibição de conduzir, uma vez que isso corresponderia a responsabilizar objectivamente o Recorrente por uma conduta que não cometeu, mediante um nexo de imputação do facto ao agente que a lei não contempla nem permite.

Nestes termos e nos demais de direito e com o sempre mui douto suprimento deve revogar-se o douto despacho nos termos constantes nestas conclusões.

Assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!


            Respondeu o Digno Procurador Adjunto, manifestando-se pela improcedência do recurso.

 Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela improcedência do recurso.
 
Colhidos os vistos legais cumpre agora decidir.

Dos autos resultam provados os seguintes factos:
A) No dia 24 de Março de 2014, pelas 8:26, na VICEG, na cidade da Guarda, circulava o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula (...) 62, pelo menos à velocidade de 107km/h, correspondente à velocidade de 113km/h que foi registada pelo aparelho Radar Multanova MR-6FD n.º 01-97-1496, aprovado pela ANSR e verificado pelo IPQ em 8 de Março de 2013, deduzido que foi o erro máximo admissível associado a tal aparelho de medição.
B) A velocidade máxima legalmente permitida naquele local era de 80km/h.
C) À data dos factos, a propriedade do veículo em causa encontrava-se registada a favor do aqui recorrente A... .
D) A pessoa que conduziu o veículo em causa não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz.
E) O recorrente A... procedeu ao pagamento voluntário da coima mínima aplicável, pelo valor de €120,00.
F) Ao recorrente A... não são conhecidos quaisquer antecedentes contra-ordenacionais ou criminais.
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Com relevância para a decisão da causa, e com base nos factos constantes da decisão administrativa e na petição de recurso, o tribunal julga como não provados os seguintes factos:
1) O condutor do veículo nas circunstâncias que se referem em A) não fosse o aqui recorrente A... .
2) À data dos factos referidos em A) o aqui recorrente se encontrasse nos Estados Unidos da América.
3) O recorrente tenha viajado para os Estados Unidos da América no dia 13 de Janeiro de 2014 e apenas tenha regressado a Portugal no dia 1 de Maio de 2014.
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MOTIVAÇÃO:
Quanto a todos os factos que se deram como provados, dir-se-á que não existiu qualquer controvérsia quanto aos mesmos, sendo a sua prova pacífica, quer porque constam do auto de notícia (que faz fé em juízo quanto aos factos que hajam sido presenciados pelo autuante até prova em sentido diverso, como consta do artigo 170º, n.º 1, 3 e 4 do Cód. da Estrada), quer porque constam dos autos e não foram minimamente colocados em causa pelo recorrente, tendo sido até, de qualquer modo, confessados expressa ou tacitamente pelo mesmo na sua petição de recurso.
Na verdade, a única questão ao nível da matéria de facto que foi levantada no presente recurso disse respeito a saber quem fosse a pessoa que conduzia o veículo em causa no local e momento da infracção, designadamente se teria sido ou não o aqui recorrente, tendo este invocado que não era o próprio e que nem sequer se encontrava em Portugal à data dos factos, antes se encontrando nos Estados Unidos da América.
Ora, quanto a estas circunstâncias, é de referir antes do mais que bem andou a decisão administrativa ao imputar o acto da condução ao aqui recorrente, mesmo que tal facto não haja sido presenciado pelo autuante nem constado por isso no auto de notícia que foi consequentemente levantado, tudo na medida em que o aqui recorrente é o proprietário do veículo.
Na verdade, diz-nos o artigo 135º, n.º 3, al. b), do Cód. da Estrada, que “A responsabilidade pelas infracções previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no titular do documento de identificação do veículo relativamente às infracções que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infracções referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor” (sublinhado nosso).
Por seu turno, a aludida “alínea anterior” (alínea a) do mesmo preceito legal) refere-se por sua vez a “infracções que respeitem ao exercício da condução”.
E mais nos diz ainda o artigo 171º, n.º 2, do Cód. da Estrada que “Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infracção, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.”. Foi o que justamente sucedeu no presente caso.
Neste quadro, tem-se entendido a este respeito que se trata de uma presunção que incide sobre o proprietário do veículo a respeito da responsabilidade pela infracção decorrente da condução de um veículo, nos casos em que o real condutor não pôde ser identificado pelo agente autuante, presunção esta que, contudo, é ilidível e pode ser ilidida pelo visado ou onerado mediante prova em contrário, ou seja, mediante prova de quem tenha sido a real pessoa do condutor.
Tal presunção pode ser ilidida ainda na fase administrativa por via dos procedimentos previstos no artigo 171º do Cód. da Estrada, ou pelo menos (de acordo no mínimo com a orientação jurisprudencial que julgamos ser a dominante) em sede de recurso judicial da decisão administrativa condenatória. Pelo menos da nossa parte é esta última a posição que adoptamos.
É de realçar que quanto a este concreto facto já o auto de notícia levantado neste caso não faz qualquer fé em juízo, uma vez que dele não consta a identidade do condutor, por a mesma não ter sido apurada pelo sr. agente da autoridade autuante, tudo conforme consta do próprio auto.
Revertendo ao nosso caso concreto, não se tendo realizado audiência de julgamento com o consentimento expresso do Ministério Público e o consentimento tácito do recorrente, a única prova que foi produzida quanto ao alegado no presente recurso e acima referido foi a que resulta das cópias do passaporte do recorrente e de passagens aéreas que o mesmo juntou a fls. 20 a 25 dos autos.
Perante estes elementos, da nossa parte, parece-nos que os carimbos que são visíveis no passaporte em causa não são suficientemente claros no sentido de que o recorrente tenha necessariamente saído do país e entrado nos Estados Unidos da América especificamente no dia 13 de Janeiro de 2014 e apenas tenha entrado novamente em Portugal especificamente no dia 1 de Maio de 2014.
Por seu turno, quanto às cópias das passagens aéreas que foram juntas, elas não são suficientes para demonstrar por si só que o recorrente tenha efectivamente efectuado tais viagens e que tenha forçosamente permanecido sempre nos Estados Unidos da América entre ambas as datas acabadas de referir.
Enfim, são estes os motivos pelos quais decidimos dar como não suficientemente provado que o condutor do veículo no momento dos factos não fosse o aqui recorrente A... , que à data dos factos o aqui recorrente se encontrasse nos Estados Unidos da América, e que o recorrente tenha viajado para os Estados Unidos da América no dia 13 de Janeiro de 2014 e apenas tenha regressado a Portugal no dia 1 de Maio de 2014, tudo embora se conceda que existe alguma probabilidade (mas não suficiente segurança) de tal ter sucedido.

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Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

Sem prejuízo do disposto no art 410 nº 2 e 3 do CPP, o recurso aqui em causa restringe-se à matéria de direito, atento o que dispõe o art 75 nº 1 do DL 433/82 de 27/10.

Sustenta o recorrente que a sentença padece de erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada na medida em que o Sr. juiz considerou não se ter provado que: “ a) o condutor do veículo nas circunstâncias descritas acima não era o Recorrente/Arguido; b) à data dos factos o Recorrente/Arguido se encontrava nos Estados Unidos da América; c) o Recorrente/Arguido tenha viajado para o Estados Unidos da América no dia 13 de Janeiro de 2014 e apenas tenha regressado a Portugal no dia 1 de Maio de 2014.” e que não resultou provado que “o condutor do veículo ligeiro de passageiros de matrícula (...) 62, no dia 24 de Março de 2014, pelas 8:26, na VIGEC, na cidade da Guarda, fosse o Recorrente, sendo certo que apenas foi dado como provado que era o Recorrente o proprietário do veículo”.
Erro notório na apreciação da prova é “o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta” (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pg 341).
Ora, no caso vertente, não se verifica a existência de tal vício, que se traduz em patologia exclusiva da decisão de facto.
Também, ao contrário do sustentado pelo recorrente, não se vislumbra, a existência de insuficiência que, como se vem entendendo, o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a decisão de direito.
E só existe quando o tribunal deixe de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir.
Sendo que tal insuficiência resultado tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial; no cumprimento do dever da descoberta da verdade material, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiriam alcançar a solução legal e justa (Ver Acs. S.T.J., de 18.11. 1998, no processo n.º855/98 e de 14.11.1998, no processo n.º588/98).
Alega o recorrente que não conduzia o veículo no momento dos factos, na medida em que não se encontrava em Portugal e para tal junta os documentos de fls 18 a 25 dos quais não se retira que no dia 24/03/2013 o recorrente não estivesse em Portugal. De qualquer forma, e como bem é referido na sentença recorrida também nas basta alegar que não era o condutor do veículo. Necessário seria que alegasse e provasse não só que não conduzia o veículo mas, também, que identificasse de forma concreta quem era o condutor do veículo no momento dos factos.
De qualquer forma temos que nos debruçar sobre esta questão sobre a qual se tem perfilado dois entendimentos.
Na verdade, por um lado, encontram-se os que defendem que caso não seja possível identificar o autor da contraordenação, levantado o correspondente auto ao titular do documento de identificação do veículo, contra quem passa a correr o respetivo processo, se, na fase administrativa, no prazo concedido para a defesa, notificado que seja para o efeito, não identificar, nos termos da lei, pessoa distinta como autora da contraordenação, a presunção juris tantum, decorrente do regime estabelecido no artigo 171.º do Código da Estrada, de ser ele o seu autor não pode vir a ser ilidida em sede de impugnação judicial.
De outro lado, surge a posição que encara o n.º 2 do artigo 171º do Código da Estrada como estabelecendo, tão só, uma presunção tendente a assegurar a legitimidade passiva do procedimento.
Orientação que mereceu acolhimento no acórdão do TRG de 27.04.2009, [proc. n.º 897/08.1], disponível em www.dgsi.pt, donde se extrata: “Assim, pensamos que o referido n.º 2, quando estabelece que o processo correrá contra o titular do documento de identificação do veículo se o agente de autoridade não puder identificar o autor da infração, ressalvada a situação de esse titular vir, no prazo que a lei assinala …para tal fim, indicar outra pessoa como a que, realmente, tenha cometido a infração, não pretende mais do que consagrar um pressuposto processual de legitimidade passiva do titular inscrito do “veículo infrator”, baseada na presunção natural de que se o mesmo titular não indica quem conduzia o veículo aquando da prática da contraordenação, é porque era ele mesmo a conduzi-lo, que é a situação mais comum.”
A admitir a elisão da presunção em causa na fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, surgem, ainda, os acórdãos do TRC de 05.07.2006, [proc. n.º 1511/06], de 20.09.2006, [proc. n.º 1302/06], disponíveis em www.dgsi.pt.
Aderimos à primeira das mencionadas teses, já defendida no acórdão desta Relação de 18/09/2013 proferido no processo 664/13.5TBVIS, e no acórdão  86/15.3T8VIS, ambos relatados pela Exma Des. Isabel Valongo e que aqui seguimos e, ainda, o acórdão de 12/12/2007 relatado pelo Exmo Des. Inácio Monteiro, em que eu própria fui adjunta, sobre a questão da oportunidade de identificação do condutor nos termos do art. 171.º do CE.
Aliás em conformidade com o entendimento sobre tal questão já plasmado no Ac Rel de Coimbra, de 12-12-2007 (Relator Des Inácio Monteiro acima cit) que por economia de meios e eficácia prática, transcrevemos no essencial, seguros de que, de outra forma, a solução legislativa - que não afronta os princípios constitucionais - não faria qualquer sentido.
”Informa o disposto no art. 171.º, n.º 3, do CE o seguinte:
«Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora».
E comina ainda a lei no art. 171.º, n.º 4, do CE:
«O processo referido no n.º 2 será arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo».
Das normas atrás referidas concluímos que, encontrando-se o veículo em circulação no momento da contra-ordenação, se presume a responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo, isto é, uma presunção juris tantum que apenas pode ser ilidida quando se provar a utilização abusiva do veículo ou for identificado um terceiro no prazo legal.
Ora, sobre o arguido, enquanto titular do documento de identificação do veículo, recai o dever de identificação do condutor e não sobre o terceiro.
Porém, este dever imposto legalmente deve ser cumprido no prazo concedido para a defesa, não sendo possível afastar a presunção uma vez decorrido aquele prazo, sob pena de não ter qualquer utilidade o disposto no art. 171.º, do CE.
E compreende-se que assim seja, pois as sanções contra-ordenacionais não constituem penas, mas medidas sancionatórias de carácter não penal, não repugnando que possam recair sobre quem não cometeu o facto ilícito típico, mas sobre quem, em determinadas circunstâncias, o podia e devia evitar.”
Aliás, dispõe o Artigo 135.º do C. Estrada, sob a epígrafe “ Responsabilidade pelas infracções” que:
“1 - São responsáveis pelas contra-ordenações rodoviárias os agentes que pratiquem os factos constitutivos das mesmas, designados em cada diploma legal, sem prejuízo das excepções e presunções expressamente previstas naqueles diplomas.
2 - As pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis nos termos da lei geral.
3 - A responsabilidade pelas infracções previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:
a) Condutor do veículo, relativamente às infracções que respeitem ao exercício da condução;
b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infracções que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infracções referidas na alínea anterior, quando não for possível identificar o condutor;
c) Peão, relativamente às infracções que respeitem ao trânsito de peões.
4 - Se o titular do documento de identificação do veículo provar que o condutor o utilizou abusivamente ou infringiu as ordens, as instruções ou os termos da autorização concedida cessa a sua responsabilidade, sendo responsável, neste caso, o condutor.”
No caso dos autos, verifica-se que o arguido/recorrente foi devidamente notificado e advertido de que poderia identificar pessoa distinta como autor da contra­ ordenação, no prazo concedido para a defesa, devendo-o fazer junto da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, e que, não obstante, o arguido não se dirigiu àquela entidade a fim de identificar outra pessoa como o autor da infracção.
Foram assim assegurados ao arguido os direitos de audiência e de defesa em contra-ordenação constitucionalmente assegurados no art. 32.º, n.º 10 da Constituição da República Portuguesa.
Não tendo identificado o condutor no prazo que lhe foi concedido, não pode depois o recorrente vir discutir a autoria da prática da contra-ordenação.
Por decorrência dos mencionados preceitos, afigura-se-nos certo:
- Na impossibilidade de identificar o autor da infração responsável é o titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente procedimento;
- Caso, este, no prazo concedido para a defesa, venha a identificar, pela forma legalmente prevista, outra pessoa como sendo a autora da infração, o procedimento que lhe foi movido é suspenso, tendo lugar a instauração de novo processo contra o identificado infrator;
- A responsabilidade do titular do documento de identificação do veículo assenta na presunção legal, juris tantum, que encontra fundamento na circunstância de coincidindo, em princípio, na mesma pessoa a titularidade do documento de identificação do veículo e a titularidade do correspondente direito ser razoável – não excessivo, nomeadamente em face dos princípios da culpa e da proporcionalidade - exigir-lhe que saiba quem, com o mesmo, por ocasião da prática da infração, circulava na via pública.
Presunção que, tal como afirmado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 276/04 – ainda que com referência ao artigo 152.º, n.º 1 do Código da Estrada, na redação do D.L. n.º 2/98, de 3 de Janeiro -, é constitucionalmente admissível, pois o que está em causa é uma mera presunção, sempre ilidível, de responsabilidade do efetivo proprietário ou possuidor e este sentido é conforme à Constituiçãonão viola[ndo] o princípio da culpa (…).
Mas, se relativamente ao que se acaba de dizer não se detectam divergências relevantes, permanece - como vimos - a dissidência relativamente à fase processual em que ao titular do documento de identificação do veículo é permitida a elisão da presunção, mais concretamente se o pode fazer ultrapassada que seja a fase administrativa do procedimento, o que vale por dizer se o pode fazer em sede de impugnação judicial.
E aqui, reconhecendo a valia, pelo menos, em parte dos argumentos utilizados na defesa da posição contrária, entendemos que o ónus de elisão da presunção se restringe à fase administrativa, sendo que na fase judicial, o tema do objecto do processo já vem tematicamente vinculado pela decisão administrativa, incluindo o autor da contraordenação, salvo no caso de justo impedimento, devidamente comprovado, ou na falta da notificação tempestivamente alegada e provada. Como é sabido, não há regra sem excepção, sendo portanto de realçar a responsabilidade de arguir em tempo a invalidade de uma notificação ou a sua falta.
Além do mais, o direito à presunção de inocência passa pelo entendimento de que o princípio ou direito de audiência do transgressor se opera através da oportunidade que lhe é conferida de influir através da sua audição no decurso do processo. O que foi cumprido aquando da dita notificação.
Na base do princípio da audiência reside o respeito pela dignidade pessoal do homem, através da exigência de que este não se torne em objecto das decisões, o que demanda considerá-lo como sujeito activo e participante eficaz no desenvolvimento do processo.
Por isso a consequência da omissão do dever de esclarecer a identidade do condutor de um veículo que lhe pertence e pelo qual é responsável, no prazo que a lei lhe assinala, não atenta contra qualquer princípio constitucional. O seu direito de audiência/defesa foi-lhe assegurado
Por outro lado, não se trata de um direito à não auto-inculpação, pelo contrário. Acresce que mesmo se de direito à não auto inculpação se tratasse, sempre seria de ponderar que em processo meramente contra-ordenacional este direito não é absoluto. Recorde-se que no ordenamento jurídico estradal o condutor é obrigado a entregar documentos e a prestar informações que podem vir a ser utilizadas para comprovar uma infracção.
Citando o Prof Faria Costa (Noções Fundamentais de Direito Penal) “Entre o direito penal e o direito de mera ordenação social intercede uma diferença qualitativa e não meramente quantitativa.
… Na verdade, o fundamento que encontrámos para o direito penal e as funções que lhe vão conexas não podem, sem erro de perspectiva, ser coincidentes com o que fundamenta e sustenta, ainda que só funcionalmente, o direito de mera ordenação social” - pags 35 e 36.
Não ignoramos que por força das grandes modificações sociais, tecnológicas, industriais e culturais, a sociedade mundial actual abrange novos espaços de danosidade que importa prevenir e eliminar. A implicar uma reforma e adaptação do clássico direito penal que vem sendo considerado ineficiente para enfrentar as novas realidades delitivas.
Uma possível resposta por parte do legislador, visando a proteção dos direitos sociais, seria alcançar a prevenção através do Direito Penal Secundário, com o consequente perigo de pulverização do princípio da subsidiariedade, defendido pelos movimentos político criminais contemporâneos focados num Direito Penal mínimo, garantista, com os seus princípios fundamentais, freios do poder e do arbítrio do Estado.
Amplificados pelos meios de comunicação, os argumentos alarmistas do risco de catástrofes, provocaram nos operadores jurídicos o fomento de um alargamento do Direito Penal com o claro objetivo de tentar impedir a nova criminalidade, e assim prevenir a exposição da coletividade a perigos irreparáveis.
Correndo o risco de sermos apelidados de conservadores nesta matéria, e certos de que existe uma urgente necessidade de adaptação do direito penal aos novos espaços de vida, de forma a responder aos anseios da sociedade de risco, afigura-se-nos imprescindível obstar à abundante utilização de tipos penais de perigo abstracto, assim como às normas penais em branco.
O que implica reflectir sobre a autonomia e estrutura do chamado Direito Penal Secundário e sobretudo impedir que o Direito Penal assuma indiscriminadamente nos seus domínios a responsabilidade de atuar como norma de reforço num domínio característico do Direito Administrativo.
O direito de mera ordenação social é dotado de característica diversa daquela para a qual sempre foi estruturado e pensado o Direito Penal, já pela diferente relevância das condutas tipificadas, pautadas por distintos níveis de dignidade ético-jurídica, a justificar que as regras que visam promover a defesa do arguido no processo penal, sejam interpretadas de forma menos exigente quando sejam aplicadas no processo contra-ordenacional.
Conclui-se, em conformidade com o exposto que:
- está vedado ao titular do documento de identificação do veículo, a elisão da presunção (que decorre do supra referido preceito do Código da Estrada) em sede de impugnação judicial.
- não se verifica a inconstitucionalidade do art 171º, nº 2 do Código da Estrada, nem a violação do n.º 1 do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
- nem se verifica a violação do n.º 10 do artigo 32.º da CRP
Termos em que se julga improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
                                  
Coimbra, 26 de abril de 2017
(Alice Santos - relatora)
(Abílio Ramalho - adjunto)