Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
231/11.8JAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO VALÉRIO
Descritores: DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
TRÁFICO DE ARMAS
FABRICO DE ARMA PROIBIDA
ARMA DISSIMULADA
CARTÃO EUROPEU DE ARMAS DE FOGO
VISTOS
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA (3.º JUÍZO)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 3.º, N.º 2, ALS. D) E M), 70.º, 71.º, 86.º, N.º 1, AL. C), E 87.º, DA LEI N.º 5/2006, DE 23-02
Sumário: I - Perante o disposto nos artigos 70.º, n.º 1, e 71.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, a simples posse de um cartão europeu de armas de fogo, habilitando o seu titular a deter uma ou mais armas daquela natureza, não dispensa aquele - salvo no caso de exercício de prática venatória ou desportiva, desde que comprovado o motivo da deslocação (n.º 2 do último dos dois artigos referidos) - de uma autorização (visto prévio) concedida no Estado de destino (Portugal, no caso concreto).

II - Trata-se de uma exigência ligada à necessidade de garantir controlo quantitativo e qualitativo das armas que circulam no espaço europeu.

III - A arma de fogo curto, de fabrico artesanal, imitando um instrumento de marcenaria, insusceptível de legalização - integrada por três partes distintas; a primeira, um cabo em madeira, em forma de pêra, tendo acoplada uma segunda, em tubo, onde funciona um mecanismo de percussão anelar lateral; a última, substanciando o cano de enroscar, no qual se introduzem as munições - carregada mediante a introdução manual da munição na câmara, apta a utilizar munições de calibre 6mm “Flobert”, podendo também disparar munições 22 “short” e 22 “Long Rifles”, sendo classificável como arma da classe A) - als. d) e m) do n.º 2 do artigo 3.º, da Lei n.º 5/2006, cabe na previsão da al. c) do n.º 1 do artigo 86.º do mesmo diploma legal.

Decisão Texto Integral: Em conferência na 2.ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

RELATÓRIO

1- No 3.º juízo do Tribunal Judicial da Guarda, no processo acima referido, foram  os arguidos abaixo referidos julgados em processo singular, tendo sido a final proferida a decisão seguinte:

- condenado  o arguido A...:

pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de armas, p. e p. pelo artigo 87º, n.º 1, com referência às als. d) e m) do n.º 2 do artigo 3º, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena parcelar de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão;

- pela prática de um crime de detenção ilegal de armas, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena parcelar de 2 (dois) anos de prisão.

Após cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, com a condição de o arguido entregar a uma instituição de solidariedade social à sua escolha a quantia de €3.500,00 (três mil e quinhentos euros) no prazo de 60 (sessenta) dias após o trânsito em julgado da presente sentença, devendo comprová-lo nos autos.

Absolver o arguido A... da prática, em autoria material e na forma consumada, de uma contra-ordenação p. e p. no artigo 97º, com referência à al. aae), n.º 1, do artigo 2º, todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

- Condenado o arguido B... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção ilegal de armas, p. e p. pelo artigo 86º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 200 (duzentos) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), num total de €1.200,00 (mil e duzentos euros).

- Julgado extinto o procedimento criminal que nestes autos impendia contra o arguido B..., na parte que dizia respeito à prática de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º, n.º 1, do Cód. Penal.

- Condenado o arguido C... pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de armas, p. e p. pelo artigo 87º, n.º 1, com referência às als. d) e m) do n.º 2 do artigo 3º, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período de 2 (dois) anos.

Quanto aos objectos apreendidos nos autos, determina-se o seguinte:

- a carabina de marca “Browning”, modelo “Bar”, com o n.º de série 137PW10800, deverá ser devolvida ao arguido A... após o trânsito em julgado da presente sentença, sendo o mesmo nessa altura notificado para que proceda ao seu levantamento no prazo de 90 dias, sob pena de passar a ser responsável pelos custos do respectivo depósito e de, passado um ano, ser tal objecto considerado perdido a favor do Estado;

- a caneta de sinais, de cor vermelha, com as inscrições “Erma SG67E Made in Germany”, a pistola da marca “Carl Walther”, modelo TPH, n.º 275635, as 127 armas de fogo de fabrico artesanal (manufactura) que imitam um instrumento de marcenaria (e respectivas caixas), bem como todas as munições apreendidas nos autos, vão todas declaradas perdidas a favor do Estado, devendo ser entregues à PSP após trânsito, a qual promoverá o seu destino.

- quanto à pistola de marca “Record” deverão ser cumpridos os procedimentos a que se refere o artigo 186º do Código de Processo Penal, notificando-se por éditos, após trânsito, qualquer pessoa que se apresente a levantar tal arma e a provar que a mesma lhe pertence e que se encontra legalmente habilitado a detê-la, no prazo de 90 dias, e sendo certo que, não sendo levantada, considerar-se-á então perdida a favor do Estado decorrido que seja um ano a contar da notificação, sendo então igualmente entregue à PSP que promoverá o seu destino.

2- Inconformado, recorreu o arguido A..., tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte :
Existe manifesto erro na apreciação da prova quando se diz que a carabina Browning não se encontrava registada no nosso país nem o arguido possuía autorização para deter tal arma, pois que qualquer arma registada no Cartão Europeu de Armas de Fogo (facto provado, alínea AD), é factual e formalmente uma arma "Manifestada", ou seja registada no espaço da União Europeia e dos demais países que fazem parte do Espaço Schegen, como é o caso do Estado Suíço. Não é uma arma "pirata" ou "selvagem".
Apesar deste ponto se encontrar elencado como um facto, trata-se, efectivamente, de uma questão de análise e interpretação jurídica, sobre a qual já supra expendemos argumentos bastantes para abalar tal interpretação, pelo menos no que se refere à carabina "Browning" a qual se encontrava, legalmente, na posse do arguido.
Refira-se, a este propósito, que, em nosso entender, a lei das armas não permite a interpretação efectuada na sentença. Mas ainda que tal sucedesse, qualquer norma constante da lei ordinária que tal determinasse, seria inconstitucional dado violar o tratado internacional que institui o cartão europeu de armas de fogo, nos termos do disposto no artigo 8°, n°2 da Constituição da Republica.
Os factos constantes das alíneas J) e L) dos factos provados também se encontram erradamente julgados No que se refere às chamadas "Armas de Fabrico Artesanal", a sentença incorre numa flagrante e manifesta contradição de termos e de conceitos, porque, na motivação da sentença, é expressamente afirmado terem "sido construídas com maquinaria específica, com alguma precisão e especificidade, feitas com materiais de qualidade e com muito bom acabamento", simplesmente porque são de produção industrial, inclusive publicitadas em sites da Internet, podendo ser adquiridas on-line, em qualquer país europeu, como se pode constatar pelos links que se deixam referenciados no corpo destas alegações.
O julgamento deste facto e, tendo em conta o que consta documentalmente dos autos e o que foi afirmado pelo arguido carece de outro rigor e concretização.
No tocante ao facto dado como provado em M da sentença, ao invés do que consta neste ponto e no ponto 2 dos factos não provados, pelo arguido foi concretizado em sede de audiência de discussão e julgamento que tais objectos (que o julgador apenas define como "armas"), foram por ele adquiridos numa liquidação de uma empresa de artigos de caça e pesca desportiva, que os exportou da Suiça para Portugal e que foram manifestados / declarados na Alfândega de Vilar Formoso.
Não é verdade que da prova produzida se possa concluir, como consta do facto N), que os objectos em causa se encontravam em local acessível aos funcionários, se destinassem a venda e que apenas se destinavam a servir de arma de agressão. Pelo contrário, da prova produzida resulta que estes objectos se encontravam num reservado onde apenas acedia o arguido ou quem ele autorizasse e não qualquer pessoa do público que se dirigisse as suas instalações.
Apesar do ponto 0) se encontrar elencado como um facto, trata-se, efectivamente, de uma questão de análise e interpretação jurídica, sobre a qual já expendemos argumentos bastantes para abalar tal interpretação, pelo menos no que se refere a carabina "Browning" a qual se encontrava, legalmente, na posse do arguido.
Ao contrário das conclusões dadas como provadas em AB e AC da sentença, não se pode dar como provado que o arguido A... agiu com intenção de deter na sua posse armas de fogo com as características acima referidas, assim como as munições e sabia que as mesmas, depois de municiadas, podiam ser utilizadas e eram aptas a ferir ou a matar alguém e que as detinham fora das condições legais.
A factualidade considerada não provada nos pontos 1 a 4 mostra-se, claramente, direcionada para culpabilizar o arguido A.... A sentença, no modo como descreve a factualidade provada e não provada,  parte da presunção da culpa e não da presunção da inocência do arguido.
Em relação à pistola de marca "Record", “que foi dado como não suficientemente provado que a mesma fosse propriedade do arguido A... ",ao contrário do que consta do ponto 1 dos factos não provados, é de elementar justiça que a redacção de tal arma que foi apreendida como se refere em H), a sentença fizesse constar que resultou provado que tal arma nunca foi propriedade do arguido A... nem por ele foi detida.
Quanto ao ponto 2 dos factos não provados, impunha-se, também, considerar que os objectos constantes das fotos 1 e 2 de fls. 91 dos autos, com a dupla função de abate de animais domésticos e lança very lights foram adquiridos pelo arguido no ano de 1994 / 1995, numa liquidação de uma firma de material para barcos e armas desportivas para pesca e caça e que tal firma tinha a denominação de "Petitpierre et Grisel, SA". Esta foi a realidade factual que o arguido, desde a primeira hora, trouxe aos autos e clarificou de forma absolutamente exímia e verdadeira ao longo da audiência de discussão e julgamento.
Em relação ao ponto 4 dos factos não provados, analisada toda a prova e ouvidas as gravações, impossível não concluir que o arguido A...  não tenha estado sempre convencido de que a detenção dos objectos (armas e munições apreendidas) não fosse perfeitamente legal.
Não se mostram preenchidos os elementos típicos do crime de trafico de armas p.p. pelo artigo 87°, n°1 com referência às als. d) e m) do n.° 2 do artigo 3°, ambos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
É caso para perguntar, não existindo qualquer prova concreta da venda de quaisquer armas, é lícito concluir que as mesmas se destinavam a ser vendidas e que as declarações de todas as testemunhas não devem ter qualquer valoração porque não pretenderam prejudicar o arguido  ?! ; de que factos é possível extrair tais ilações?!; a partir de que facto concreto é possível encontrar os elementos típicos do artigo 87°, n°1 do RJAM, citado na sentença?; que facto ou factos permitem concluir que o arguido vendeu, cedeu ou distribuiu qualquer arma?
Também o crime de detenção ilegal não se encontra provado, nem permite a sua consideração em conformidade com o que vem vertido na sentença.
A sentença recorrida incorre em erro de julgamento, violando as normas constantes do artigo 86°, n° 1, al. c) da Lei 5/2006, de 23/02, invocando tal norma e aplicando-a, com base na consideração de factos inexistentes, sendo mais flagrante no que se refere à carabina Browning.
No que se refere à arma "Carl Walther", a sua detenção não preenche o tipo legal de crime, mas sim de contra ordenação, dado que a mesma foi adquirida de forma legal, por herança, mas a mesma não se encontrava devidamente manifestada e licenciada.
A "caneta de sinais", denominação expressamente utilizada na própria sentença, é exacta e precisamente isso e nada mais, uma simples caneta de sinais. Também este objecto, tal como os outros 127 objectos acima referenciados, não pode ser considerado arma de fogo, dado não ter como fim a utilização como arma de agressão, mas sim para outros fins, perfeitamente lícitos e legais, sendo a sua venda livre e publicitada nos sites da internet, no espaço Schegen.
No entanto, sem prescindir e por mera cautela, nunca as condições objectivas e subjectivas do arguido seriam compatíveis com as medidas da pena que lhe foram aplicadas.
Ao decidir como decidiu, em relação às penas aplicadas, violou o Mmo. Juiz a quo as normas constantes dos arts. 40.°, arts. 70.° e 71.° do Código Penal, bem como as disposições contidas nos arts. 1.0 e 18.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa.

3- Recorreu também o arguido C..., concluindo:
O recorrente foi indiciado, acusado, pela prática de um crime de tráfico de arma proibida, exclusivamente com base no depoimento do possuidor da arma.
Trata-se tal arma proibida (?) de um objeto em madeira com cerca de 10 cm com um orifício e tubo e com um cano de enroscar, igual a uma das 127 amas apreendidas ao co-arguido A..., que se declarou seu proprietário.
Ora, num dia do ano 2011, uma destas pegas ou armas foi encontrada na posse do Sr. D... - detenção de arma proibida - e, em vez de ser constituído arguido, passou a testemunha e disse que quem lha vendera fora o recorrente.
Não sabemos quando - minuto 12:23 do depoimento da testemunha D.... Não sabemos onde, como, nem em que circunstâncias - minutos 05:51, 07:22 e 11:43 do depoimento da testemunha D....
No meio de desconhecidos - na P.J. - identificou o arguido - que já conhecia.
E, no julgamento - por videoconferência da prisão - identificou o único conhecido - que já conhecia.
Identificou-o sem convicção e não esclareceu minimamente - com um mínimo de credibilidade - as circunstâncias - minuto 12:12 do depoimento da testemunha D....
Poderia ter escolhido um outro arguido ou quem lhe aprouvesse.
0 arguido, que disse desconhecer a testemunha pelo nome, ficou numa posição indefensável, sem poder sequer provar a falsidade da imputação. Naquele ano e mês estaria o arguido na Guarda ? Naquele dia teria estado o arguido perto da testemunha ? Sem se saber minimamente a data e o local, como poderia o arguido defender-se ?
0 Tribunal escreve "é certo que não se pode excluir liminarmente a possibilidade de a testemunha D... ter faltado à  verdade no seu depoimento". Perante tal expressão, como é possível condenar-se o arguido sem qualquer outra prova ? A prova produzida sobre a hipotética atuação do arguido recorrente resulta do depoimento do Sr. D..., exclusivamente.
Foi desrespeitado in totum o princípio constitucional do in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção de inocência (art°. 32°, n° 2 da CRP).
Existe erro notório na apreciação da prova - 4100, n° 2, al. c) do CPP.
O Tribunal ao pôr a hipótese de a "testemunha" ter mentido, deixa manchada a sua justificação.
A prova é mais do que insuficiente para a decisão da matéria de facto - 410°, n° 2, al. E existe mesmo contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando o Tribunal deixa como possível a única testemunha poder estar a mentir - 4100, n°2, al. b) do CPP.
Há, pois, vícios graves na sentença, por si ou conjugados com as regras da experiência comum e preenchem - infelizmente, para a sentença - as alíneas a), b) e c) do no 2 do artigo 410° do CPP.
A solução é única: absolver o arguido-recorrente.

4- Nesta Relação, o Exmo PGA emitiu douto parecer em que, acompanhando o MP da 1.ª instância, se pronuncia pela improcedência dos recursos. 

5- Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência .

                                                

6- Na 1.ª instância deram-se como provados os seguintes factos :

A) O arguido A... tem residência no nosso país na morada acima indicada, e também na Suíça, tendo desenvolvido a sua actividade profissional nos dois países.

B) Ao longo dos últimos anos, o aludido arguido dedicou-se à importação da Suíça para Portugal de pneus, peças de automóveis para venda em duas empresas de que foi sócio, com a designação “ X..., Lda.” e “ Y..., Lda.” ambas com sede em (...) , Guarda.

C) No dia 14 de Outubro de 2011, foi recepcionada na Polícia Judiciária uma arma de fogo, de fabrico artesanal, mono tiro, apreendida a fls. 9, fotografada a fls. 13 e examinada a fls. 129 a 133 e 151 e 152, acompanhada de um escrito, junto a fls. 11, no qual se refere que na oficina de Y..., do arguido A... (segundo os dizeres do escrito), estariam a ser vendidas armas idênticas.

D) No dia 22 de Fevereiro de 2012, pela Polícia Judiciária foi realizada uma busca na residência, em Portugal, do arguido A..., sita na (...) , s/n, (...) , (...) , Guarda, e aí foram encontrados e apreendidos, em poder do arguido A..., os seguintes objetos:

- No salão/escritório, no interior de um armário próprio para guardar armas, uma carabina, de marca “Browning”, modelo “Bar”, com o n.º de série 137PW10800, e uma espingarda semi-automática, da marca “Remington”, modelo 1100, com o n.º de série M626238V;

- Na mesma divisão, dentro de um armário baixo, inúmeras munições, sendo que não ultrapassam as 1.000 unidades para a classe C e as 5.000 unidades para a classe D, e ainda uma caixa com 50 munições de calibre 22 “flobert”;

- Na gaveta do expositor de armas no salão/escritório foi apreendida uma caneta de sinais, de cor vermelha, com as inscrições “Erma SG67E Made in Germany”, que pode ser adaptada a funcionar como arma de fogo - examinada a fls. 199 e 349 a 351;

- No quarto de dormir, numa estante superior junto da porta de entrada, uma pistola da marca “Carl Walther”, modelo TPH, n.º 275635, de calibre 6,35mm ou .25 ACP, em metal preto (fosfatado) com platinas de cor preta e com as inscrições “Walter” e “Made in Germany” com dois carregadores, que continham 13 munições de calibre 22 long – examinada a fls. 197;

- Na mesma prateleira foi encontrada e apreendida uma caixa plástica própria para munições, da marca “Remington”, contendo oitenta e cinco munições de calibre 22 “long” e uma outra caixa em cartão e alvéolos plásticos, contendo dezasseis munições de calibre 22 “long rifles” e uma outra caixa com dezasseis munições de calibre 22 “long rifles” – examinadas a fls. 196 a 199.

E) A pistola marca “Carl Walther” e a carabina marca “Browning” acima referidas não se encontravam à data dos factos registadas nem manifestadas no nosso país e o arguido A... não possuía nessa data autorização para deter estas armas nem as munições, detendo-as fora das condições legais.

F) A espingarda de marca “Remington” acima referida está registada em nome do arguido A..., e foi posteriormente entregue ao mesmo arguido.

G) Na mesma data de 22 de Fevereiro de 2012, pela Polícia Judiciária foi realizada também uma busca nas instalações das empresas que giram com o nome “ Y..., Lda.” e “ X..., Lda.”, sitas no mesmo edifício, na Estrada Nacional n.º 233, sita em (...) , Guarda.

H) Percorridas as diversas divisões do armazém, onde funciona a empresa “ Y..., Lda.” foi encontrado e apreendido no interior de uma gaveta num escritório, do bloco de gavetas situado mais à esquerda, uma pistola da marca “Record”, tratando-se esta de um objeto com a configuração de uma arma de fogo curta, destinada exclusivamente a produzir um efeito sonoro - arma de “starter”.

I) Por sua vez, ainda na mesma data, percorridas as divisões do armazém, na parte onde funciona a empresa “ X..., Lda.”, foram encontradas e apreendidas, em poder do arguido A..., no primeiro piso do edifício, três caixas em madeira contendo no seu interior, respetivamente, quarenta e sete; quarenta e seis e trinta e quatro armas de fogo de manufatura, fotografadas as fls. 91, examinadas a fls. 196, 130 a 133, 151 e 152.

J) Estes objetos constituem 127 armas de fogo curto, de fabrico artesanal, produzidas sem autorização, dificilmente individualizáveis, imitando um instrumento de marcenaria, constituídas por três partes distintas; a primeira como sendo um cabo em madeira com forma de pera, que tem acoplada uma segunda parte, em tubo, onde funciona um mecanismo de percussão anelar lateral, mecânica/manual, e finalmente uma terceira parte como sendo o cano de enroscar onde se introduzem as munições.

L) Cada um desses objetos constitui uma arma de fogo curta de um cano, tiro a tiro, sem carregador ou depósito, que é carregada mediante a introdução manual da munição na câmara, apta a utilizar munições de calibre 6mm “Flobert”, podendo também disparar munições .22 “Short” e .22 “Long Rifles”. Denotam ter sido construídas com maquinaria específica, com alguma precisão e especificidade, feitas em materiais de qualidade e com muito bom acabamento, construídos exclusivamente com o fim de serem utilizadas como arma de agressão e são insuscetíveis de serem legalizadas. Cada uma tem o comprimento de 17,1cm, e apresentam-se todas em bom estado de funcionamento, todas percutindo em seco – examinadas a fls. 199 e 151 a 152.

M) Tais armas artesanais foram adquiridas pelo arguido A... na Suíça e por ele trazidas para o nosso o país, juntamente com outras idênticas que completavam as caixas onde as mesmas foram encontradas, em data não concretamente apurada.

N) O arguido A... detinha estas armas no interior da referida oficina em local acessível aos funcionários da empresa e mesmo ao público em geral e destinava-as à venda a quem se mostrasse interessado na sua aquisição, sabendo que as mesmas são armas de fogo dissimuladas num instrumento utilizado na marcenaria, produzidas sem autorização, insuscetíveis de serem legalizadas e destinadas exclusivamente a servirem como arma de agressão.

O) À data dos factos, o arguido A... não tinha autorização para deter as armas que lhe foram apreendidas e acima referidas, pelo menos em Portugal excepção da espingarda de marca “Remington”), sabendo que as detinha fora das condições legais; conhecia as características das mesmas e que lhe não estava autorizada a detenção das mesmas no nosso país.

P) Por forma não concretamente apurada, o arguido C... entrou na posse de uma arma de fogo, mono tiro, idêntica e com as mesmas características das armas artesanais acima referidas, que foram apreendidas ao arguido A... - fotografada a fls. 209 (fotografia da parte inferior).

Q) Em data não concretamente apurada, o arguido C... vendeu e entregou à testemunha D... a referida arma, pelo valor de €60,00 ou €70,00.

R) Tal arma foi apreendida pela Polícia de Segurança Pública, em poder da testemunha D..., no dia 30 de Maio de 2012, no Parque Municipal da Guarda, nas circunstâncias descritas nos autos de notícia por detenção de fls. 204 a 209.

S) O arguido C... conhecia as características da arma que vendeu à testemunha D..., designadamente que se trata de uma arma de fogo produzida sem autorização, destinada exclusivamente a servir como instrumento de agressão e insuscetível de ser legalizada, e sabia perfeitamente que não lhe era permitida a venda de quaisquer armas de fogo.

T) O arguido B... trabalhou para o arguido A..., na empresa “ Y..., Lda.”, desde Outubro de 2011 até finais de 2012.

U) Durante o tempo em que trabalhou nessa empresa, apercebeu-se da existência das caixas de madeira acima referidas, contendo armas de fabrico artesanal.

V) Em data não concretamente apurada, mas situada no período acima referido, o arguido B... retirou duas armas do interior de uma caixa, apoderou-se das mesmas, como se lhe pertencessem, e levou-as para a sua casa, onde as guardou até ao momento em que, no Verão de 2012, as devolveu ao arguido A....

X) Estas armas foram posteriormente entregues pelo arguido A... na Polícia Judiciária no dia 16 de Novembro de 2012, tendo sido apreendidas à ordem destes autos (cfr. fls. 304).

Z) O arguido B... tinha perfeito conhecimento de que as referidas armas não lhe pertenciam e que, ao apropriar-se das mesmas, actuava contra a vontade e sem o conhecimento do dono das armas, o arguido A....

AA) O arguido B... quis deter, como deteve, em seu poder as armas acima referidas, conhecendo as características das mesmas, designadamente que se tratava de armas de fogo produzidas sem autorização, destinadas exclusivamente a servir como instrumento de agressão e insuscetíveis de ser legalizadas, sabendo ainda que as detinha fora das condições legais e que não tinha autorização para as conservar em seu poder.

AB) Todos os arguidos agiram com intenção de deter na sua posse armas de fogo com as características acima referidas, assim como as munições, e sabiam que as mesmas, depois de municiadas, podiam ser utilizadas e eram aptas a ferir ou matar alguém e que as detinham fora das condições legais.

AC) Ao agir da forma acima descrita, todos os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que as respetivas condutas eram ilícitas e puníveis por lei.

AD) O arguido A... é portador de um cartão europeu de armas de fogo emitido pelo Estado Suíço a 29 de Junho de 2010 e válido até 28 de Junho de 2015, onde consta averbada a carabina de marca “Browning”, modelo “Bar”, com o n.º de série 137PW10800, supra referida em D), e é portador de um cartão europeu de armas de fogo emitido pelo Estado Português a 4 de Junho de 2012 e válido até 3 de Junho de 2017, onde consta averbada a mesma carabina.

AE) O mesmo arguido A... é coleccionador de armas e um estudioso sobre as suas qualidades e modos de utilização, bem como um amante da caça, sendo associado de várias associações de caça.

AF) A carabina de marca “Browning”, modelo “Bar”, com o n.º de série 137PW10800, supra referida em D), é habitualmente utilizada pelo arguido A... para fins cinegéticos.

AG) O arguido A... adquiriu a pistola da marca “Carl Walther”, modelo TPH, n.º 275635, que se refere em D), por via de uma herança deixada por um seu familiar, tendo-a guardado por valores sentimentais.

AH) O arguido A... é um empresário e um cidadão de um modo geral respeitado e considerado, quer em Portugal, quer na Suíça, que deu emprego a dezenas de trabalhadores, nomeadamente naquele último país, tendo sido reconhecido com a Condecoração de Grande Oficial da Ordem de Mérito em 10 de Junho de 1992. Neste momento é director comercial reformado, auferindo pelo menos uma reforma no valor de 1.960 francos suíços e rendimentos provenientes de rendas em valores compreendido entre €5.000,00 a €6.000,00 por mês. Vive com a esposa e não tem quaisquer encargos fixos para além da sua subsistência.

AI) O arguido B... encontra-se actualmente desempregado, vive com a mãe, e não aufere quaisquer rendimentos. Não tem filhos nem encargos fixos para além da sua própria subsistência.

AJ) O arguido C... encontra-se actualmente desempregado, estando inscrito em centro de emprego, auferindo subsídio de desemprego no valor de €412,00 por mês. Vive com a esposa, que se encontra desempregada, e têm ambos a seu cargo uma filha com 8 anos de idade, sendo é bem visto na comunidade em que se insere.

AL) O arguido A... não tem quaisquer antecedentes criminais.

AM) O arguido B... foi já condenado no âmbito do processo n.º 39/04.7GTGRD, do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, pela prática a 4 de Abril de 2004 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de €3,00, num total de €225,00. Tal decisão transitou em julgado a 5 de Maio de 2004 e a respectiva pena foi já declarada extinta.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 119/08.0GBALD, do Tribunal Judicial de Almeida, pela prática a 30 de Dezembro de 2008 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena principal de 90 dias de multa à taxa diária de €7,00, num total de €630,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 3 meses. Tal decisão transitou em julgado a 2 de Fevereiro de 2009 e as respectivas penas foram já declaradas extintas.

Foi também condenado no âmbito do processo n.º 15/09.3TAALD, do Tribunal Judicial de Almeida, pela prática a 30 de Dezembro de 2008 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 180 dias de multa à taxa diária de €6,00, num total de €1.080,00. Tal decisão transitou em julgado a 4 de Novembro de 2011 e a respectiva pena foi já declarada extinta.

AN) O arguido C... foi já condenado no âmbito do processo n.º 116/08.5GCGRD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Guarda, pela prática a 8 de Abril de 2008 de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €5,00, num total de €600,00. Tal decisão transitou em julgado a 6 de Fevereiro de 2009 e a respectiva pena foi já declarada extinta.

E deu-se como não provado que:

1) A pistola de marca “Record” que foi apreendida como se refere em H) fosse propriedade do arguido A... ou fosse por este detida, ou que este soubesse que não lhe era permitida a respectiva detenção.

2) O transporte das armas artesanais pelo arguido A... da Suíça para Portugal como se refere em M) tenha ocorrido no ano de 2009.

3) A data em que o arguido C... vendeu a arma como se refere em Q) tenha sido no Verão de 2011.

4) O arguido A... sempre tenha estado convencido que podia deter todas as armas e munições que foram apreendidas na sua posse de forma legal.

                                            +

FUNDAMENTAÇÃO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, extraídas da motivação apresentada, cabe agora conhecer das questões ali suscitadas.

Porque em ambos os recursos vem questionada a matéria de facto e o juízo que levou à respectiva fixação, importa começar por deixar expostos os meios de prova e as razões de convicção do tribunal convicção, em resumo e com interesse :

« (...)  - denúncia anónima de fls. 11 e 12, como se refere em C);

- registos fotográficos de fls. 13 e 14 da arma de fogo de fabrico artesanal inicialmente entregue na Polícia Judiciária e apreendida como se refere igualmente em C);

- auto de apreensão de fls. 43 relativo à mesma arma de fogo artesanal referida em C);

- auto de busca e apreensão de fls. 80, efectuadas nas instalações da empresa “ Y...” como se refere em G) e H);

- auto de busca e apreensão de fls. 81, efectuadas nas instalações da empresa “ X...” como se refere em G) e I);

- auto de busca e apreensão de fls. 84 e 85, efectuadas na residência do arguido A... conforme se refere em D);

- auto de reportagem fotográfica de fls. 86 a 96, colhida no âmbito das buscas efectuadas e já referidas;

- cópias do livrete e licença de uso e porte de arma de fls. 101, referentes à espingarda de marca “Remington” que se refere em D) e F);

- cópias dos cartões europeus de armas de fogo pertencentes ao arguido A..., de fls. 102, 103, 308 a 311, 432 e 433, e 440 a 442, como se refere em AD);

- relatórios periciais de fls. 129 a 133 (efectuado pela Polícia Judiciária) e de fls. 151 e 152 (efectuado pela PSP), contendo exames às armas de fogo de fabrico artesanal referidas em I) a L);

- auto de exame directo de fls. 196 a 199, relativo às caixas de madeira, às munições, à pistola “Carl Walther”, à pistola “Record”, à carabina “Browning”, à caneta de sinais com as inscrições “Erma SG67E”, à espingarda “Remington”, e às armas de fogo de fabrico artesanal, todas que se referem em D), H) e I) a L);

- despacho de fls. 225 e 226, proferido pelo Ministério Público, em que se determinou o levantamento da apreensão e a entrega ao arguido A... da espingarda de marca “Remington” que havia sido apreendida, com o correspondente auto de entrega a fls. 303, tudo como se refere em F);

- auto de apreensão de fls. 207 e 208, efectuada à testemunha D... e relativamente a arma de fogo artesanal semelhante às que foram apreendidas ao arguido A..., como se refere em R);

- auto de reconhecimento pessoal de fls. 287 a 289, em que a testemunha D... reconheceu sem qualquer dúvida o arguido C... como tendo sido a pessoa que lhe vendeu a arma de fogo de fabrico artesanal como se refere em Q);

- auto de apreensão de fls. 304 e 305, relativo às armas de fogo de fabrico artesanal que o arguido A... entregou voluntariamente na Polícia Judiciária no dia 16 de Novembro de 2012 e que anteriormente tinham estado na posse do arguido B..., tudo como se refere em X);

- auto de exame directo de fls. 312 e 313, relativo às armas de fogo de fabrico artesanal entregues voluntariamente pelo arguido A... na Polícia Judiciária como se acaba de referir;

- relatórios periciais de fls. 349 a 351 (efectuado pela Polícia Judiciária) e de fls. 357 e 358 (efectuado pela PSP), relativo à caneta de sinais com as inscrições “Erma SG67E” que se refere em D);

- documentos de fls. 544 a 547, relativos aos factos alegados pelo arguido A... na respectiva contestação e que se dão como provados em AE), AF) e AH).

(...) o arguido A... confirmou que tem residência e actividade profissional como empresário em Portugal e na Suíça, afirmando contudo que à data dos factos e das apreensões efectuadas já nada tinha a ver com a empresa “ Y...”, a qual era gerida apenas pelo seu ex-sócio E... após o aqui arguido lhe haver vendido as respectivas quotas, embora as instalações deste empresa e da “ X...” sejam essencialmente no mesmo local, embora fisicamente separadas. Por seu turno, confirmou também o arguido A... que à data dos factos era o gerente da aludida empresa “ X...”, e que por isso era obviamente o responsável pelos objectos que lá se encontravam nas respectivas instalações, assim como o era quanto aos objectos que foram obviamente apreendidos na sua residência em Portugal, sita no (...) , (...) , Guarda.

Também confirmou o arguido aqui em causa que as armas de fogo de fabrico artesanal que foram apreendidas foram por si adquiridas na Suíça e por si trazidas para o nosso país, juntamente com outras idênticas que completavam as caixas onde as mesmas foram encontradas, o que teria sucedido no ano de 1994. Quanto a esta última data, a mesma não nos parece muito razoável face ao elevado número de anos entretanto já decorrido, sendo certo contudo que não existiu qualquer outra prova quanto à mesma, nem qualquer prova quanto ao ano de 2009 que foi alegado na acusação e que por isso se deu como não provado.

Por seu turno, confessou o arguido A... que sabia que não lhe era permitido deter a pistola de marca “Carl Walther” que lhe foi apreendida, sendo certo que a detinha apenas por motivos sentimentais e por lhe haver advindo de herança, tal como aliás se dá como provado por não ser descabido e por ausência de prova em sentido diverso.

(...) grande parte da defesa do arguido A... (com excepção daquilo que diz respeito à pistola da marca “Record”) se baseou sobretudo na sua propalada convicção de que a carabina “Browning”, a caneta de sinais, e as armas de fabrico artesanal que lhe foram apreendidas se encontravam em situação legal e que por isso lhe era permitido detê-las. Quanto à primeira de tais armas, justificou-se com a posse dos cartões europeus de armas de fogo que se referem na matéria provada e com o facto de já anteriormente ter trazido tal arma ao nosso país e passado pelas autoridades sem qualquer problema ; quanto à segunda justificou-se no sentido de que se destina a ser usada apenas para lançamento de “very-lights” a partir de embarcações; e as terceiras e últimas são habitualmente usadas por agricultores para matar animais apenas.

Ora, independentemente das considerações que se haverão de fazer a respeito das características, classificação e requisitos de legalidade destas armas e que, como se disse, não é este ainda o momento próprio por se tratar de matéria de direito, diremos desde já que estas justificações não nos convenceram, essencialmente por duas ordens de razões.

A primeira é a de que, como em parte se dá como provado, e o arguido A... disso faz gala e faz questão de sobejamente o afirmar, o próprio é um estudioso e um aficionado de armas, não são de caça, mas em geral, sendo ainda um amante e um praticante assíduo de caça, tendo ainda um curso e uma habilitação específica como coleccionador de armas. Ora, perante tais factos e circunstâncias, o arguido A... não pode afirmar de modo suficientemente credível que desconheça as características e requisitos de legalidade das armas que livremente optou por ter na sua posse, assim tendo nós dado como claramente provados os factos alegados na acusação a respeito deste conhecimento.

A segunda razão é a de que decorre do próprio senso comum (mesmo sem os conhecimentos específicos de que o arguido A... é portador) que a caneta de sinais e as armas de fabrico artesanal que foram apreendidas visam claramente um certo grau de dissimulação como sendo apenas outros objectos aparentemente inofensivos, e só por isso já não haverão de ser permitidas, atendendo à sua perigosidade latente.

Finalmente, dir-se-á ainda a este respeito que não se ignora o facto (que aliás se dá como provado) no sentido de que o próprio arguido A... efectuou participação criminal pelo alegado furto e entregou voluntariamente na Polícia Judiciária duas das armas de fabrico artesanal que se referem nestes autos, algo que nos poderia levar a considerar que estaria assim genuinamente convencido da legalidade da sua detenção.

No entanto, é necessário ter presente que tanto a referida queixa criminal como a aludida entrega na Polícia Judiciária surgem já após a busca e apreensão das restantes armas semelhantes que estão em causa nestes autos. Estando nós na presença de um arguido cuja inteligência e preparação nos parecem ser pelo menos ligeiramente superiores à mediania dos restantes arguidos que habitualmente respondem em processos de natureza semelhante ao dos presentes autos, é perfeitamente plausível que o arguido A... assim tenha agido não só porque já nada mais tinha a perder (a busca e apreensão das restantes armas semelhantes já lhe havia sido efectuada), como também para de alguma forma dispor por esta via de um argumento para vir justamente agora alegar a sua “ignorância”, a qual, como já dissemos, de todo não nos convence. Foi aliás clara a forma absolutamente desprendida, peremptória e sem qualquer espécie de contrapartida mediante a qual em audiência pura e simplesmente desistiu dessa queixa que havia apresentado, entre o mais, contra o aqui co-arguido B..., assim também nos dando a entender que tal queixa não seria totalmente sentida nem sincera, pelo menos nesta parte.

Revertendo agora à pistola de marca “Record” apreendida nos autos, como se viu, foi dado como não suficientemente provado que a mesma fosse propriedade do arguido A... ou fosse por este detida, ou que este soubesse que não lhe era permitida a respectiva detenção.

Na verdade, tal arguido declarou a este respeito que tal pistola não lhe pertencia nem tinha sequer conhecimento da sua existência, podendo pertencer eventualmente ao seu ex-sócio E..., ao qual o arguido já anteriormente tinha cedido a sua participação social na empresa “ Y...”.

Ora, a este respeito, diremos desde logo que, como resulta do respectivo auto de apreensão, a aludida pistola de marca “Record” foi apreendida nas instalações da empresa “ Y...”, as quais são contíguas mas não se confundem com as da empresa “ X...”. Mais concretamente, a arma encontrava-se numa gaveta num escritório, o qual, segundo a testemunha F... (que na altura era ajudante de mecânico na empresa “ X...”) era habitualmente utilizado justamente pelo aludido E.... Por seu turno, a testemunha G...., como sendo o inspector da Polícia Judiciária que procedeu à busca e apreensão, referiu que na altura se encontrava presente o referido E..., o qual se apresentou como sendo o responsável único pela empresa “ Y...” já na altura, e como sendo o detentor da pistola de marca “Record” aqui em apreço. Refira-se ainda que as testemunhas que foram inquiridas e que referiram ter trabalhado ao serviço do arguido A..., afirmaram sempre que o fizeram no âmbito da empresa “ X...”, e não no âmbito da empresa “ Y...”.

Assim, em face do que se acaba de dizer, e embora não se possa excluir esta possibilidade, pensamos que os elementos de prova que foram produzidos e que constam dos autos não são suficientes para que se possa afirmar com suficiente segurança que a pistola de marca “Record” que foi apreendida pertencesse ao arguido A... ou que estivesse sequer na posse, detenção ou domínio deste.

Prosseguindo ainda quanto à defesa que foi apresentada pelo arguido A... no que diz respeito aos factos, alegou este arguido que as armas de fabrico artesanal e semelhantes a objectos de marcenaria que lhe foram apreendidas nas instalações da empresa “ X...” não se destinavam à venda a terceiros. Embora sempre tenha confessado que pelo menos o desiderato inicial era esse, afirmou este arguido que posteriormente tinha decidido não as vender, na medida em que algumas tinham desaparecido e se “apercebeu” que eram perigosas.

No entanto, todas as circunstâncias em que estas armas aqui em causa se encontravam no momento em que foram apreendidas depõem claramente contra esta tese apresentada pelo arguido A.... Todas as testemunhas inquiridas na qualidade de ex-funcionários ao serviço da empresa “ X...” e que tiveram o arguido A... como patrão, desde que disso tivessem conhecimento, declararam que, apesar do que a designação e o objecto desta empresa pudessem sugerir, a verdade é que ali se vendiam os mais variadíssimos objectos e materiais, mesmo muitos que nada tinham a ver com automóveis, e todos os quais se encontravam expostos e acessíveis ao público, e que eram vendidos a quem os pretendia, conforme os preços que caso a caso ou antecipadamente eram acertados e definidos por e com o arguido A.... Estas armas de fabrico artesanal encontravam-se no armazém da empresa, ao pleno alcance de qualquer cliente e funcionário, entre todos os aludidos restantes objectos das mais variadas proveniências e natureza, e a nosso ver destinavam-se claramente também a ser vendidas, tal como tudo o resto que ali se encontrava, não se vislumbrando qualquer outra hipótese plausível que não fosse esta. Aliás, tal como se dá como provado, as caixas onde tais armas se encontravam já se estavam longe da sua plena capacidade, o que nos sugere claramente que muitas das armas em causa já teriam sido vendidas, ou pelo menos em parte feitas desaparecer por clientes ou até funcionários da empresa.

É certo que nenhuma das testemunhas inquiridas declarou ter conhecimento de alguma vez ter sido vendida em concreto qualquer espécime das armas aqui em causa, mas tal não nos surpreende, não só porque é natural que tais vendas fossem rodeadas de algum secretismo, como também nos parece que as testemunhas em causa não pretenderão neste momento prejudicar o arguido A..., na medida em que esta é uma pessoa que já lhes deu emprego, e a qual é ainda das suas relações.

Revertendo agora aos factos relativos ao arguido B..., os mesmos foram dados como provados na medida em que tal arguido os confessou e assumiu, ainda que referindo que, quanto ao seu conhecimento sobre a ilegalidade e proibição de detenção das armas em causa, afirmou que “nem pensou nisso”. Embora, com se vê, o arguido agora em causa não tenha negado esses factos, dir-se-á ainda assim o que já em parte se disse quanto ao arguido A..., ou seja, decorre do próprio senso comum que e as armas de fabrico artesanal aqui em causa visam claramente um certo grau de dissimulação como sendo apenas outros objectos aparentemente inofensivos, e só por isso já se torna suficientemente aparente não haverão de ser permitidas.

(...) aos factos relativos ao arguido C..., e que no essencial foram dados como provados tal como constavam da acusação (com excepção da sua data), é de referir que este arguido os negou na totalidade, afirmando que nem sequer conhece de todo a pessoa de D....

No entanto, a verdade é que o referido D... depôs claramente no sentido de que adquiriu a arma em causa a este arguido C..., o local e o motivo pelos quais o fez, afirmou que este arguido lha ofereceu para compra, reconheceu a arma em causa como sendo aquela que lhe foi vendida, e afirmou que o preço foi de “€60,00 ou €70,00”. Apenas não soube de todo afirmar a data desses factos, nem por referência à data em que a arma lhe foi apreendida, apenas afirmando vagamente que a teria adquirido há cerca de um ano ou meio ano atrás.

Para além disso, conforme já foi anteriormente referenciado, existe ainda o auto de reconhecimento de fls. 287 a 289 dos autos, em que a testemunha D... reconheceu claramente e sem qualquer dúvida o aqui arguido C... como sendo aquele que lhe vendeu a arma conforme se refere na acusação, reconhecimento este que de certo modo reiterou em sede de audiência de julgamento, ao identificar a pessoa deste arguido entre os restantes arguidos e mesmo algum público que se encontrava na sala de audiências.

Ora, aqui chegados, é certo que não se pode excluir liminarmente a possibilidade de a testemunha D... ter faltado à verdade no seu depoimento. No entanto, também é verdade que não se vislumbra nem nos foi fornecido qualquer espécie de motivo pelo qual isso pudesse ter sucedido, nem nos parece que a testemunha em causa tivesse algum motivo aparente para tanto nem qualquer interesse nisso. A ser totalmente falsa esta imputação por parte da testemunha à pessoa concreta do aqui arguido C..., então o aludido depoimento testemunhal surgiria como perfeitamente aleatório e racionalmente inexplicável, na medida em que não pareceria existir então qualquer motivo para que isso sucedesse (...) ».

Recurso do arguido A...

Começa o recorrente por dizer que o tribunal recorrido fez uma errada interpretação das norma relativas ao manifesto europeu  de armas e sua posse, pois a carabina Browning estava registada no espaço da União Europeia e dos demais países que fazem parte do Espaço Schegen, como é o caso do Estado Suíço; não carecia por isso de estar registada no nosso país nem o arguido precisava de ter  autorização para deter tal arma.

A este propósito a decisão recorrida disse o seguinte, em resumo e com interesse :

  « (...) lançando mão dos relatórios periciais e autos de exame directo constantes dos autos a seu respeito, trata-se de uma arma de fogo longa, de tiro a tiro, com cano de alma estriada, classificável como arma de classe C, tudo por via do disposto no artigo 2º, n.º 1, al. s), e no artigo 3º, n.º 5, al. a), ambos da já aludida Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

(...) à data dos factos e da apreensão ( 22 de Fevereiro de 2012), o arguido A... era apenas portador de um cartão europeu de armas de fogo emitido pelo Estado Suíço, de onde constava a carabina aqui em apreço. Já posteriormente aos factos, mais concretamente a 4 de Junho de 2012, o arguido veio a adquirir também um cartão semelhante, agora emitido pelo Estado Português. Ambos se encontram actualmente dentro do respectivo período de validade.

Desta forma, tendo isto presente, é necessário lançar mão designadamente do estabelecido nos artigos 70º e 71º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, estabelecendo a primeira dessas normas o seguinte: “1 - O cartão europeu de arma de fogo é o documento que habilita o seu titular a deter uma ou mais armas de fogo em qualquer Estado membro da União Europeia desde que autorizado pelo Estado membro de destino.

2 - O cartão europeu de arma de fogo é concedido pelo director nacional da PSP e é válido pelo período de cinco anos, prorrogável por iguais períodos, desde que se verifiquem os requisitos que levaram à sua emissão.

(...) 4 - O director nacional da PSP pode determinar a todo o tempo a apreensão do cartão europeu de arma de fogo por motivos de segurança e ordem pública de especial relevo.

5 - São averbadas as armas de propriedade do requerente e aquelas de que é legítimo detentor e utilizador, bem como o seu extravio ou furto.”

Por seu turno, a segunda das aludidas normas estatui o que se segue: “1 - A autorização referida no n.º 1 do artigo anterior reveste a forma de visto prévio e deve ser requerida à PSP quando Portugal for o Estado de destino.

2 - O visto prévio a que se refere o número anterior não é exigido para o exercício de prática venatória ou desportiva, desde que comprovado o motivo da deslocação, nomeadamente mediante a apresentação de um convite ou de outro documento que prove a prática das actividades de caça ou de tiro desportivo no Estado membro de destino.”.

(...) pensamos que dos factos e das normas legais acabadas de citar resulta o seguinte: à data dos factos, a carabina de marca “Browning” que aqui nos ocupa encontrava-se licenciada apenas no Estado Suíço, tendo sido transportada pelo arguido para Portugal, onde se encontrava à data em que foi apreendida, sendo este último por isso o “Estado de destino” para efeitos das normas legais que acabámos de citar. Neste enquadramento, para que esse transporte da arma da Suíça para Portugal e sua detenção no nosso país tivesse sido legal, teria sido necessário em princípio que o arguido tivesse obtido autorização do Estado Português para esse efeito, nomeadamente através de visto prévio a requerer à PSP, o que no caso não se verificou.

Quando muito, e como já se viu, esse visto prévio não é exigido quando o transporte se destine a um específico exercício de prática venatória ou desportiva, desde que comprovado o motivo da deslocação, nomeadamente mediante a apresentação de um convite ou de outro documento que prove a prática das actividades de caça ou de tiro desportivo no Estado membro de destino.

No nosso caso, embora a arma em causa se destine habitualmente à caça e o arguido seja um praticante habitual desse tipo de actividades, a verdade é que não apresentou nem dispunha de qualquer dos aludidos convites ou documentos que comprovassem a prática concreta desse tipo de actividade e que tenha por isso justificado a concreta deslocação da arma da Suíça para Portugal. Resulta manifesto que a arma em apreço foi apreendida sem mais na residência do arguido A..., sem que conste que tenha sido trazido da Suíça para Portugal para qualquer evento específico de caça ou de tiro desportivo, conforme nos parece que exigiriam os preceitos legais aqui citados para que a arma se pudesse considerar em situação legal no momento dos factos, ou seja, a 22 de Fevereiro de 2012 (...) ».

Acompanhamos inteiramente o tribunal recorrido. Das normas por este citadas resulta claramente que a simples posse de um cartão europeu de armas de fogo não é suficiente para dispensar o seu portador de uma autorização de posse de arma emitida pelo estado de destino 8 Portuga, neste caso ). De outro modo não se compreenderia que a lei faça expressa exigência da emissão de tal autorização pelo director nacional da PSP. Trata-se de uma exigência ligada à necessidade de garantir a traçabilidade das armas que circulam no espaço europeu, isto é, da necessidade de saber onde e a cada momento se encontra uma determinada arma registada num determinado país, enfim para que seja possível identificar em qualquer momento todas as armas e fogo e os respectivos proprietários. Necessidade que obviamente não pode ser realizada apenas pela obrigação de os Estados membros manterem um ficheiro informatizado de dados.

Disposições aquelas conformes com as demais disposições da lei das armas cita com referência à importação de armas, vg. os arts. 67.º e 68.º, que estabelecem a autorização prévia da PSP para tais actividades.

Em suma, a lei é inequívoca quando prescreve no n.º 1 do art. 71.º que  « A autorização referida no n.º 1 do artigo anterior reveste a forma de visto prévio e deve ser requerida à PSP quando Portugal for o Estado de destino ».

E a lei das armas não é inconstitucional nesta parte, como pretende o recorrente, por alegada violação do tratado internacional que institui o cartão europeu de armas de fogo, nos termos do disposto no artigo 8°, n°2 da Constituição da Republica, pois que o próprio tratado deixa aos estados membros a elaboração de normas que efectivem as disposições do tratado, designadamente as ligadas à segurança pública, que necessariamente passa pelo controle da circulação das armas .

Pretende o recorrente que os factos constantes das alíneas J) e L) dos factos provados se encontram erradamente julgados, porquanto as chamadas "Armas de Fabrico Artesanal" são de produção industrial, inclusive publicitadas em sites da Internet, podendo ser adquiridas on-line, em qualquer país europeu.

Neste particular refere a decisão recorrida :

«(...) Está provado que esses objetos constituem 127 armas de fogo curto, de fabrico artesanal, produzidas sem autorização, dificilmente individualizáveis, imitando um instrumento de marcenaria, constituídas por três partes distintas; a primeira como sendo um cabo em madeira com forma de pera, que tem acoplada uma segunda parte, em tubo, onde funciona um mecanismo de percussão anelar lateral, mecânica/manual, e finalmente uma terceira parte como sendo o cano de enroscar onde se introduzem as munições. Cada um desses objetos constitui uma de arma de fogo curta de um cano, tiro a tiro, sem carregador ou depósito, que é carregada mediante a introdução manual da munição na câmara, apta a utilizar munições de calibre 6mm “Flobert”, podendo também disparar munições .22 “Short” e 22 “Long Rifles”. Denotam ter sido construídas com maquinaria específica, com alguma precisão e especificidade, feitas em materiais de qualidade e com muito bom acabamento, construídos exclusivamente com o fim de serem utilizadas como arma de agressão e são insuscetíveis de serem legalizadas. Cada uma tem o comprimento de 17,1cm, e apresentam-se todas em bom estado de funcionamento, todas percutindo em seco.

Ora, conforme os exames directos e perícias efectuadas nos autos aos objectos aqui em causa e em face das suas características, aí se concluiu (e nós também concluímos) que se trata de armas de fogo curtas e de tiro a tiro, sendo legalmente classificáveis como armas da classe A, na medida em que se encontram dissimuladas sob a forma de outro objecto (de aparente marcenaria) e foram fabricadas sem autorização. É o que a nosso ver resulta de forma suficiente do disposto no artigo 2º, n.º 1, als. q) e aj), e artigo 3º, n.º 2, als. d) e m), ambos da já aludida Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

(...) verifica-se que as armas aqui em causa são de fogo e são classificadas como armas da classe A por via das alíneas d) e m) do artigo 3º, n.º 2, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, sendo por isso dissimuladas sob a forma de outro objecto, e cabendo assim na alínea c) do n.º 1 do artigo 86º da Lei n.º 5/2006. A partir deste momento estão então em condições de caber também no artigo 87º, n.º 1, da mesma Lei (...) ».

Sendo incontestáveis e incontestadas as características físicas daqueles objectos, os mesmos têm realmente de caber na previsão do art. 86.º, n.º 1-c) da lei das armas, pois que se trata de armas de fogo dissimuladas sob a forma de outro objecto, ou seja, armas de fogo curto ( alínea p) do art. 2.º da Lei n.º 572006 ), e para a sua detenção é necessária autorização.

E pelas regras da experiência, o número de armas ( 127 ), e com aquelas caraterísticas, legitima ( impõe ) a conclusão de que se tratava de armas destinadas ao comércio ilegal, ou seja, ao tráfico de armas do art. 87. da lei das armas a que temos feito referência.   

            
É verdade, como diz o recorrente, que da prova produzida em julgamento não resulta tais armas em causa se encontravam em local acessível aos funcionários ou a qualquer outra pessoa, pois da audição das testemunhas ouvidas deve concluir-se que tais armas estavam em caixas recatadas e não acessíveis a qualquer pessoa.
Já quanto ao facto de tais armas não se destinarem ao tráfico, basta o que acima dissemos a propósito.

O dolo ( a  consciência de deter arma ilegais ) e a consciência da ilicitude ( o saber que tais armas eram proibidas ) resulta das regras da experiência : armas que podem causar a morte, ou ferir alguém, só podem ser tidas como ilegais se não fosse a sua posse ilegal. O que o recorrente não podia deixar se saber, visto que é um entendido em armas, e isso é do conhecimento geral.

Sendo a culpa um conceito material que se não esgota em cumprir o juízo de censura, mas inclui a razão da censura e com ela aquilo que se censura ao agente, torna-se desde logo possível a consideração, através dela, dos elementos do tipo de ilícito: não existe uma culpa jurídico-penal em si, mas só tipos de culpa concretamente referidos a singulares tipos de ilícitos (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, "As Consequências Jurídicas do Crime", Vol. I, pág. 218).

Sobre a estrutura do dolo, é ponto indiscutível que o mesmo é composto por um elemento cognitivo ou intelectual e por um elemento volitivo.
«Basicamente… dolo corresponde ao conhecimento e à vontade de praticar um certo acto que é tipificado na lei como crime»
[10]. Para se poder afirmar que o agente actuou dolosamente, tem, em primeiro lugar, que se poder dizer que o agente conhecia os elementos essenciais do tipo que a sua conduta objectivamente preenche. Não um conhecimento vivo, nítido, reflectivo acerca dos elementos objectos do tipo, mas unicamente um conhecimento que possibilite a percepção das coordenadas básicas da realidade objectiva. A representação intelectual relevante relativa aos elementos normativos do tipo não tem de consistir numa exacta apreciação ou conhecimento técnico-jurídicos, mas tão-só numa “valoração paralela na esfera do leigo”[11]. Por sua vez, o elemento volitivo do dolo consubstancia-se na vontade de realizar um certo comportamento e/ou de obter um determinado resultado. É comum distinguir três modalidades de dolo, assentando a distinção entre elas sobretudo - mas não exclusivamente -, em diversas configurações do referido elemento volitivo. De acordo com a previsão do artigo 14.º do Código Penal, o dolo apresenta-se sob as formas de directo, necessário ou eventual. No dolo directo, o agente actua com intenção de realizar o facto típico, ou seja, com vontade de praticar o facto previsto num determinado tipo-norma penal. Daí que, tradicionalmente, se identifique esta espécie de dolo com o termo “intenção”. No dolo necessário, o desiderato do agente, ao agir, não é a realização do facto que preenche um tipo de crime, mas outro facto. Simplesmente, ao querer este segundo facto, o agente representa como consequência necessária da sua conduta o facto típico, aceitando, ao actuar, tal consequência. Por fim, o dolo eventual, onde o elemento intelectual é definido pela possibilidade de produção do facto típico, caracterizando-se o elemento volitivo pela aceitação da produção do facto típico, representado como possível em consequência da conduta do agente. Como refere Cavaleiro Ferreira ( Curso de Processo Penal, v. II, 1981, p. 292 ) « existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptiveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica », o que é corroborado por N. F. Malatesta quando diz que « exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se a concluir pela sua existência afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material . .. o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim. » ( A Lógica das provas em matéria Criminal, p. 172 ss).

No mesmo sentido se pronunciam os Acs da RP, de 23-1-1985 e de 16-1-2005 ( BMJ, 343-376 e 343-377 ) quando referem que a prova do dolo pode fazer-se através das próprias regras da experiência comum.

Tal como se refere no acórdão da R.P., de 23 de Fevereiro de 1993, publicado in BMJ, 324, pág. 620 «(...) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência».

(...)”.
        Como bem se prolatou no Acórdão do STJ, de 23-11-2006 (
in www.dgsi.pt, Proc. 06P4096): « As normas dos artigos 126° e 127° do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo.

Essa interpretação não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no art.º 32.°, n.º 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria facto para efectivo controlo da decisão». ( Ainda naquele mesmo sentido : ac RelPorto, de 13-42005, proc. 0540750, www.dgsi.pt

É assim que Hegel estabelece uma distinção entre o homem e as outras realidades naturais : as coisas da natureza não existem senão imediatamente e de uma só maneira (“ser-em-si”), enquanto que o homem, porque ele é espírito e tem uma dupla existência, existe como as coisas naturais, mas de outro parte existe para si, ele contempla-se a si mesmo, representa-se a si mesmo, e não é espírito senão por esta actividade que constitui um «ser-para-si» ( G. W F. Hegel, Esthétique (1835), Trad. S. Jankélévitch, Textes choisis, PUF, p. 21-22 ).

Depois, como se diz no Ac. da R.P. de 23/02/93, B.M.J. 324/620, “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”. No mesmo sentido : Ac. da R.P. 0140379, 03/10/2001, Ac. R.G. 1559/05.1, de 14/12/2005, ambos em www.jurisprudencia.vlex.pt. ;

Quanto à consciência da ilicitude, ela só poderá ser excluída em circunstâncias excepcionais, quando for não censurável ( Figueiredo Dias, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, p. 287 ss ). A lei não exige o conhecimento do preceito legal, ipsis verbis, nem a sua pena em concreto. Basta que o agente saiba que o seu comportamento viola as exigências da vida em comunidade, que é proibido pelo direito (Hans Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, parte general, vol.1 pág. 624).

Neste contexto, estando em causa uma conduta violadora de um direito fundamental clássico, quase tão velho quanto a humanidade, não releva, nem pode relevar, o erro sobre a proibição, art. 17° do Código Penal. Mesmo a relevar, o resultado não pode ser a impunibilidade da conduta.

Ou o Ac RP, de 18-4-2007, proc. 0646052 ( www.dgsi.pt ) quando refere que não é necessário constar da acusação o conhecimento da ilicitude : «Com efeito, ter consciência da ilicitude é um estado de espírito que terá de resultar e resulta, segundo as fórmulas de normalidade, da compreensão de toda a acção criminosa, objectivada em outros factos de onde a mesma se retira, com a naturalidade que ela representa (... ) Quase se poderia dizer que a normalidade é a consciência da ilicitude, sendo a sua falta a excepção; e assim, desnecessário se torna fixar tal facto (deste modo tido como conclusivo) no acervo, sobretudo quando outros levam à conclusão da sua verificação».

E no Ac RP de 2.2.2005, (nº JTRP00037657), decidiu-se que não é indispensável alegar na acusação o elemento emocional do dolo ( precisamente o conhecimento da ilicitude ), se está em causa um facto que todos sabem constituir um crime. E não se alegue que é aplicável a "consciência da ilicitude do facto" referida no artigo 16.° in fine do Código Penal, porquanto tal disposição reporta-se aos crimes relativamente aos quais não se pode falar daquela presunção, nomeadamente por respeitarem a áreas em que os tipos legais se referem a condutas de pouca relevância axiológica, como sucede em muitos casos do chamado direito penal secundário, mas também em casos de novas incriminações, enquanto for aceitável o desconhecimento das novas normas (cfr. José António Veloso in "Erro em Direito Penal", 2.a Edição, 1999 p. 25).


Entende o recorrente que  a arma de abate de animais é algo que se encontra totalmente omisso na Lei n.° 12/2011, de 27 de Abril, que procede à quarta alteração à Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, e de acordo com o Princípio da Legalidade, pelo que não pode a sentença recorrida entender, sem mais, que tais objectos (armas destinadas ao abate de animais) devem ser consideradas armas de agressão e a sua detenção constitui conduta penalmente relevante, pelo que com tal entendimento, a sentença recorrida viola os princípios da Legalidade que se desdobra em três sub princípios: Princípio da Legalidade, Princípio da Tipicidade, Principio da Proibição de Analogia na definição ou qualificação de crimes (e de infrações).
A este respeito, disse a sentença recorrida :
«(...) defendeu o arguido no sentido de que se trata apenas de uma arma de sinalização, destinada a disparar “very-lights” a partir de embarcações. No entanto, esta argumentação deve ser afastada neste caso, na medida em que, conforme consta da perícia efectuada a esta arma, verifica-se que, embora a mesma tenha sido efectivamente concebida com aquela finalidade original, a verdade é que hoje já não se enquadra na classificação de “arma de sinalização”, na medida em que é convertível em arma de fogo (como o foi) e, como já se disse, está dissimulada sob a aparência de outro objecto.

Assim, tendo presente e mantendo-se que se trata de uma arma da classe A, reza com interesse o artigo 4º, n.º 1, al. a), da mesma Lei n.º 5/2006, 23 de Fevereiro que “São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A.” (sublinhados nossos). As excepções a esta regra que são contidas nos n.os 2 e 3 do mesmo preceito manifestamente não têm qualquer cabimento no nosso caso concreto.

Neste quadro, tendo presente ainda e mais uma vez que, como já se disse, se trata de uma arma de fogo dissimulada sob a aparência de outro objecto (neste caso uma caneta), a sua detenção preenche mais uma vez a tipicidade objectiva do (mesmo) tipo de crime previsto e punido pelo artigo 86º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, já acima citado a respeito da carabina de marca “Browning” e da pistola de marca “Carl Walther”.

Revertendo agora à tipicidade subjectiva do tipo de crime (único) que aqui temos em causa, e mais uma vez se reiterando que se trata de um crime necessariamente doloso, temos que se encontra provado que A... agiu com intenção de deter na sua posse armas de fogo com as características acima referidas, e sabiam que as mesmas, depois de municiadas, podiam ser utilizadas e eram aptas a ferir ou matar alguém e que as detinham fora das condições legais, e actuou sempre de forma livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a respetiva conduta era ilícita e puníveis por lei. Pensamos assim que também por este motivo estará suficientemente preenchido o tipo subjectivo de ilícito do crime de detenção ilegal de armas que se encontra aqui em causa, sob a forma de dolo directo (...)».

Como anteriormente se disse, as características da arma em causa impõem que, pela sua perigosidade e carácter possivelmente letal em certos casos,  se enquadre a mesma no tipo legal de armas proibidas ou de acesso condicionado, ou seja, de armas cuja posse, etc, depende de condicionalismos legais, objectivamente assentes em determinações previstas.

Ora, quanto á violação do princípio da legalidade, consagrado no art. 29.º, n.º 1, da CRP, no plano da determinabilidade da lei penal, o referido princípio exige que a lei penal seja certa e determinada, no sentido de as condutas proibidas e sancionadas pelo Direito Penal serem objectivamente determináveis.

Mas como dissemos, a referida lei das armas prevê e enuncia de forma clara o que são armas proibidas, do mesmo modo que assenta numa clara tipicidade das condutas e sem qualquer recurso a normas paralelas (analogia), pois que no seu entendimento quanto à compreensão e extensão se basta a si própria.

E assim é indiferente em que circunstâncias o recorrente adquiriu e quando tal arma e para que fim.


No que concerne à pistola de marca "Record", é indiferente, para efeitos penais, que se diga que foi dado como não suficientemente provado que a mesma fosse propriedade do arguido A..., ou que tal arma nunca foi propriedade do arguido A... nem por ele foi detida. Porque na verdade o recorrente não pode ser condenado de qualquer forma, por isso foi absolvido.

No que toca à consciência da ilicitude em relação a todas as armas não autorizadas e que eram detidas pelo recorrente, remetemos para o que acima ficou dito a esse respeito,

No que tange à detenção de 127 armas de fogo curto a que atrás fizemos referência, diz com pertinência o tribunal recorrido que «O crime de tráfico de armas é um crime formal de perigo comum cuja consumação se verifica com a aquisição e detenção da arma destinada ao tráfico (intenção de a transmitir – transferir para a posse de outrem), por qualquer forma. Estamos aqui no âmbito dos crimes de perigo comum em que a censurabilidade jurídico-criminal se situa a montante de um possível resultado desvalioso que se pretende prevenir e evitar. No caso da Lei n.º 5/2006, trata-se de crimes de perigo abstrato, pois que basta que a conduta do autor se enquadre numa das previsões normativas. O perigo foi considerado antes (pelo próprio legislador) para a tipificação criminal da conduta, mas não é elemento do tipo. Quer isto dizer, com relevância para o nosso caso concreto, que não é sequer necessária a prova de qualquer acto concreto de venda de armas, mas apenas a sua detenção com vista a esse fim, como foi aqui o caso».

Ora, como antes dissemos, segundo as regras da experiência e da lógica, a detenção de tamanho número de armas com tais características atípicas só se pode compreender num quadro de se pretender disseminar tais armas, pelo que estão realizados os elementos constitutivos do crime de tráfico, tal como entendeu a decisão recorrida.

Também a chamada "caneta de sinais" deve ser tida como arma proibida e a sua detenção tida como ilegal, pois como diz a decisão recorrida e emerge de tudo o que antes dissemos em relação ao crime de detenção de arma proibida, « (...) decorre do próprio senso comum (mesmo sem os conhecimentos específicos de que o arguido A... é portador) que a caneta de sinais e as armas de fabrico artesanal que foram apreendidas visam claramente um certo grau de dissimulação como sendo apenas outros objectos aparentemente inofensivos, e só por isso já não haverão de ser permitidas, atendendo à sua perigosidade latente.

Finalmente, refere o recorrente que no que se refere à arma "Carl Walther", a sua detenção não preenche o tipo legal de crime, mas sim de contra ordenação, dado que a mesma foi adquirida de forma legal, por herança, mas a mesma não se encontrava devidamente manifestada e licenciada.

Também aqui sufragamos o entendimento do tribunal recorrido, quando diz que é « (...) irrelevante que a mesma lhe tenha advindo de herança como adveio e que a mantivesse apenas por motivos sentimentais. Assim, é manifesto que a detenção desta arma o faz incorrer também no preenchimento da tipicidade objectiva do (mesmo) crime de detenção ilegal de arma previsto no artigo 86º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro (...) ».

Pois que o que importa para a realização do tipo legal de crime em causa é que a detenção não tenha uma justificação legal (autorização, licença, etc.), e não as razões privadas para a justificação da sua posse.

Recurso do arguido C....
Diz o recorrente, em suma, que existe erro notório na apreciação da prova, por o tribunal ao pôr a hipótese de a "testemunha" ter mentido, deixa manchada a sua justificação , que prova é mais do que insuficiente para a decisão da matéria de facto , e existe mesmo contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando o Tribunal deixa como possível a única testemunha poder estar a mentir - 4100, n°2, al. b) do CPP.
No que à matéria de facto e nesta parte diz respeito, o tribunal disse o que segue : «(...) ao arguido C..., e que no essencial foram dados como provados tal como constavam da acusação (com excepção da sua data), é de referir que este arguido os negou na totalidade, afirmando que nem sequer conhece de todo a pessoa de D.... No entanto, a verdade é que o referido D... depôs claramente no sentido de que adquiriu a arma em causa a este arguido C..., o local e o motivo pelos quais o fez, afirmou que este arguido lha ofereceu para compra, reconheceu a arma em causa como sendo aquela que lhe foi vendida, e afirmou que o preço foi de “€60,00 ou €70,00”. Apenas não soube de todo afirmar a data desses factos, nem por referência à data em que a arma lhe foi apreendida, apenas afirmando vagamente que a teria adquirido há cerca de um ano ou meio ano atrás.

Para além disso, conforme já foi anteriormente referenciado, existe ainda o auto de reconhecimento de fls. 287 a 289 dos autos, em que a testemunha D... reconheceu claramente e sem qualquer dúvida o aqui arguido C... como sendo aquele que lhe vendeu a arma conforme se refere na acusação, reconhecimento este que de certo modo reiterou em sede de audiência de julgamento, ao identificar a pessoa deste arguido entre os restantes arguidos e mesmo algum público que se encontrava na sala de audiências.

Ora, aqui chegados, é certo que não se pode excluir liminarmente a possibilidade de a testemunha D... ter faltado à verdade no seu depoimento. No entanto, também é verdade que não se vislumbra nem nos foi fornecido qualquer espécie de motivo pelo qual isso pudesse ter sucedido, nem nos parece que a testemunha em causa tivesse algum motivo aparente para tanto nem qualquer interesse nisso. A ser totalmente falsa esta imputação por parte da testemunha à pessoa concreta do aqui arguido C..., então o aludido depoimento testemunhal surgiria como perfeitamente aleatório e racionalmente inexplicável, na medida em que não pareceria existir então qualquer motivo para que isso sucedesse (...)».

Que o tribunal possa equacionar a veracidade do depoimento da testemunha D..., não inquina o mesmo fundamento de erro e de insuficiência de prova, como pretende o recorrente, porque nos termos em que se apresenta tal fundamentação é que, apesar de ser hipoteticamente tal possibilidade, desenvolve e explicita a ideia e a decisão, « (...) nem nos parece que a testemunha em causa tivesse algum motivo aparente para tanto nem qualquer interesse nisso. A ser totalmente falsa esta imputação por parte da testemunha à pessoa concreta do aqui arguido C..., então o aludido depoimento testemunhal surgiria como perfeitamente aleatório e racionalmente inexplicável, na medida em que não pareceria existir então qualquer motivo para que isso sucedesse (...) ».

A dúvida expressa pelo tribunal não é afinal a manifestação do que sente todo o julgador. quando se tem de confrontar com a maioria dos depoimentos numa julgamento, em que, por razões mesmas de natureza e das diferentes versões dos factos, se sinta na obrigação de se interrogar sobre o valor dos depoimentos e de dar ou não crédito às declarações mais plausíveis. Embora a coerência ou consistência das declarações não constitua um critério de verdade – pela simples razão de que mesmo provas demonstravelmente consistentes podem ser falsas –, a incoerência ou inconsistência já indicia a falsidade. O que sugere que devemos combinar as ideias de verdade e de conteúdo numa única – a ideia de um grau de melhor ( ou pior ) correspondência com a verdade, ou de uma maior ( ou menor ) semelhança ou similaridade com a verdade ; ou seja, a ideia de graus de verosimilhança.

Que tal dúvida seja natural, é o que acontece mesmo na chamada cientificidade e no campo da epistemologia, não surpreenderá por isso que o julgador se interrogue sobre tal. 

Mas o que interessa relevar é que o julgador, depois de se interrogar sobre tal depoimento, tenha concluído que tal testemunha depôs com verdade.

Diga-se nesta parte que o acto de julgar tem a sua essência na operação intelectual da formação da convicção e tal operação não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas, nos próprios termos da lei, parte de dados objectivos para uma formulação lógico-intuitiva. Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal. 135 e ss) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte : - a recolha de elementos - dados objectivos - sobre a existência ou inexistência dos factos e CódProcPenal), mas não arbitrária, porque motivável e controlável, condicionada pelo princípio de persecução da verdade material ; - a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

Ora o que o recorrente pretende é que o tribunal devia ter valorado as provas de acordo com a convicção dele próprio recorrente, substituindo-se ela ao julgador, mas situações que relevam para a sentença dá-se com a produção da prova em audiência: sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal, que é livre (art. 127.º do como se extrai do art. 127.º do CódProcPenal, salvo os casos de prova vinculativa, o julgador aprecia a prova segundo a sua própria convicção, formada à luz das regras da experiência comum. E, só perante a constatação de que tal convicção se configurou em termos errados é legalmente possível ao tribunal superior alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido.

Como se diz no Ac. Rel.Coimbra de 6/12/2000 (www.dgsi.pt - Acórdãos da Relação de Coimbra) «o tribunal superior só em casos de excepção poderá afastar o juízo valorativo das provas feito pelo tribunal a quo, pois a análise do valor daquelas depende de atributos ( carácter; probidade moral) que só são verdadeiramente apreensíveis pelo julgador de 1.ª instância ». Ou, consoante se escreveu no Ac. RelCoimbra de 3-11-2004 ( recurso penal n.° 1417/04 ) «... é evidente que a valoração da prova por declarações e testemunhal depende, para além do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados, do modo como os mesmos são assumidos pelo declarante e pela testemunha e da forma como são transmitidos ao tribunal, circunstâncias que relevam, a par da postura e do comportamento geral do declarante e da testemunha, para efeitos de determinação da credibilidade deste meio de prova, por via da amostragem ou indiciação da personalidade, do carácter, da probidade moral e da isenção de quem declara ou testemunha» (Cfr. entre outros; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos  n°s 1770/02 e 3960/03 ; Ac de. 02.06.19 e de 04.02.04, recursos n°s 1770/02 e 3960/03 ; Ac de 6-3-2002, CJ, Ano XXVII, 2.º-44,  todos da Relação de Coimbra ). Este último diz: «(...)  uma incomensurável diferença entre a prova  produzida em primeira instância e a efectuada em sede de recurso com base nas transcrições dos depoimentos (...) quando a opção do julgador se centra em elementos directamente interligados com o princípio da imediação ( vg o julgador refere que os depoimentos não são convincentes num determinado sentido), o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar ao concreta de tal princípio » a não ser que « a convicção do julgador na primeira instância mostre ser contrária ás regras da experiência,  da lógica e dos conhecimentos científicos».

Da motivação de facto consta que o tribunal recorrido ponderou as declarações de todas as testemunhas, e nesse exercício, e fundamentando tal convicção, entendeu dar crédito às testemunhas da acusação.

A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção — cf. o Acórdão do STJ de 30 de Janeiro de 2002, proferido no âmbito do processo n.º 3063/01, 3.a Secção, in SASTJ, n.º 57, 69 ; Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 15.a ed., 2005, p. 743.

Em conclusão: em matéria  da obrigação de motivação da sentença, esta, para ser legal, deve apresentar as características fundamentais da (1 ) “correcção”, no sentido da sua aderência aos elementos probatórios adquiridos, do ( 2 ) “completamente”, no sentido da sua extensão a todos os elementos relevantes para a formação dos juízos sectoriais conducentes ao juízo decisório, e da (3 ) “lógica”, no sentido da sua conformidade aos cânones que presidem às formas do raciocínio e que a este confiram a natureza de acto de demonstração da realidade.

Como dissemos, a sentença recorrida satisfaz estes requisitos e assim não ocorre também qualquer erro notório na apreciação da prova, que se exprime nas seguintes situações : ( 1 ) retira-se de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou arbitrária, ou que não é defensável segundo as regras da experiência comum ; ( 2 ) dá-se como provado algo que não podia ter acontecido ; ( 3 ) determinado facto provado é incompatível ou contraditório com outro facto dado como provado ou não provado contido no texto da decisão recorrida ; ( 4 ) há violação das regras sobre o valor da prova vinculada, das regras da experiência ou quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos.

No caso em apreço, o tribunal firmou a sua convicção nos depoimentos que refere como positivamente avaliados, e não se vê aí que o tribunal tenha decidido contra a prova produzida, ou seja, que tenha acolhido uma versão que esta não comporta ou que tenha violado qualquer regra da experiência comum ao valorar os depoimentos nos termos em que o fez.

Depois, no caso presente a fundamentação de facto é suficiente para dar como provados e não provados os factos referidos como tal na decisão recorrida, pois faz uma análise critica  e objectiva dos meios de prova, e não há qualquer contradição entre os factos provados entre si, entre estes e os não provados, e entre uns e outros e a respectiva fundamentação, e entre esta e a decisão recorrida.

                                                 +

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos :

I - Nega-se provimento aos recursos, mantendo-se a decisão recorrida.

II - Custas pelos recorrentes, com 3 Ucs de taxa de justiça cada um.

                                                *                          

Tribunal da Relação de Coimbra, 18 de Junho de 2014


 (Paulo Valério - relator)

 (Frederico Cebola - adjunto))