Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2588/15.2T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: INÁCIO MONTEIRO
Descritores: REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REQUISITOS
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA CENTRAL – SECÇÃO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL - J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 283.º E 287.º DO CPP
Sumário: I - O requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis.

II - Quando os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não integram, só por si, qualquer tipo de ilícito, a inclusão de outros no despacho de pronúncia que integram um tipo de ilícito não pode deixar de ser vista como uma alteração substancial dos factos.

III - Quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, não pode haver pronúncia, sob pena de violação dos artigos 303.º, 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP e 32.º, n.º 1 e 5, da CRP.

IV - Não constando do requerimento de abertura de instrução os factos, susceptíveis se preencherem os elementos objectivos e subjectivos do crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B, do CP, ou outro tipo de ilícito, que pudessem fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança aos arguidos, e que lhe competia identificar, impõe-se a sua rejeição, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP.

Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório

No processo supra identificado foi participada pelo Centro Hospitalar Tondela-Viseu, EPE, a morte de A... , ocorrida no dia 26/1072015, por ter sido vítima de acidente de trabalho, quando desempenhava funções de trabalhador da construção civil, por conta da sociedade «B... , L.da», tendo decorrido o competente inquérito, para eventual responsabilidade criminal, por crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B, do Código Penal, tendo sido proferido despacho de arquivamento, nos termos do art. 277.º, n.º 2, do CPP. 


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C... , mãe do sinistrado, tendo-se constituído assistente, notificado daquele despacho de arquivamento veio requerer abertura da instrução, sustentando que deve ser proferido despacho de pronúncia pelos factos participados, por integrarem a prática do crime acima mencionado, alegando que a entidade empregadora « B... , L.da», o encarregado da obra e responsáveis pela segurança daquela, por não terem cumprido as suas obrigações legais, nomeadamente correta elaboração do IPSS e cumprimento do mesmo, expôs o trabalhador sinistrado a risco não protegido e a uma situação de perigo grave e eminente que culminou consequentemente na morte daquele, limitando-se essencialmente a explanar as razões de facto e de direito da discordância do despacho de arquivamento.

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O senhor juiz de instrução proferiu despacho de rejeição do requerimento de abertura da instrução, por inadmissibilidade legal, nos seguintes termos:

«II – O requerimento de abertura de instrução

No termo do inquérito, o Ministério Público proferiu, nos termos do art. 277.° n.º 2 do Código de Processo Penal (diploma a que se reportarão outras normas sem menção de origem), despacho arquivamento dos autos, entendendo, pelos fundamentos apresentados a fls. 138-140, não terem sido recolhidos suficientes indícios da verificação de crime.

A ora assistente, inconformada com o arquivamento dos autos, veio requerer a abertura de instrução, esgrimindo argumentos de sentido contrário, pugnando pela pronúncia dos denunciados pela prática de um crime de violação de regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B do Código Penal, sem que, contudo, descreva o elemento subjectivo do tipo legal de crime.

Vejamos.

A instrução visa, tal como decorre do art. 286.º, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, esclarecendo o art. 308.º, no seu n.º 1, que, se até ao encerramento de instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Os indícios serão suficientes sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – é o que dispõe o art. 283.º n.º 2.

Assim, deve o juiz proferir despacho de pronúncia do arguido quando os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior e seja de concluir, com uma probabilidade razoável, que tais elementos se manterão em julgamento, ou quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação.

A abertura de instrução pode ser requerida pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Publico não tiver deduzido acusação (cfr. o art. 287.° n.º 1 al. b)), sendo que o requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar – cfr. o art. 287.° n.º 2.

Para além disso, com a redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, passou a exigir-se ao assistente a observância dos requisitos enunciados nas alíneas b) e c) do artigo 283.°, a saber:

– a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; e

– a indicação das disposições legais aplicáveis.

Assim, poder-se-á afirmar que o requerimento do assistente deve conformar materialmente uma verdadeira acusação, impondo-se-lhe que contemple os elementos enunciados nas referidas alíneas, porque é através do requerimento de abertura de instrução que se define o thema probandum, na certeza de que não pode o tribunal, sob pena de nulidade, vir a pronunciar o arguido por factos diferentes daqueles que constam do mesmo (ressalvada a hipótese de alteração contemplada no art. 303.º).

Como se decidiu, entre muitos outros, no Ac. da RP, de 23/6/2010, dgsi.pt, “na decorrência da estrutura acusatória do processo penal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente terá de consubstanciar, materialmente, uma acusação, com a narração precisa dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena e com a indicação das disposições legais aplicáveis”.

No caso de arquivamento do processo pelo Ministério Público e tal como claramente decorre do disposto nos arts. 288.º n.º 4 e 309.º n.º 1, o requerimento da abertura de instrução é que define e limita o objecto do processo a partir da sua formulação, dando-se assim expressão prática à estrutura acusatória do processo do processo penal, consagrada no art. 32.° n.° 5 da Constituição da República Portuguesa, salvaguardando igualmente o princípio do contraditório e o direito de defesa do arguido.

No presente caso, procuram isolar-se, na parte inicial do requerimento, reservada aos “Factos a provar” (pontos 1º a 7º do RAI), alguns dos factos concretos susceptíveis de integrarem o referido crime. No mais, a assistente critica a opção do Ministério Público de arquivar o inquérito, contrapondo os elementos probatórios constantes dos autos para evidenciar a sua divergência – as razões da discordância são importantes, obrigatórias e devem integrar o requerimento de abertura de instrução, mas não substituem a “acusação” exigível ao assistente sempre que, na sequência do arquivamento do inquérito, pretende a pronúncia do arguido.

Porém, a descrição do dolo é também essencial.

Como se escreveu na fundamentação do Ac. da RC, de 25/6/2014, “a exigência legal de o requerimento para abertura da instrução conter a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao ido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se tanto aos elementos objectivos como subjectivos do crime imputado, porquanto não existe crime/responsabilidade penal sem que uns e outros se mostrem preenchidos.” (proc. n.º 47/13.7TAPBL.C1, dgsi.pt)

E escreveu-se igualmente na fundamentação do Ac. da RC, de 10/7/2014 o seguinte: “o problema não passa também apenas por uma deficiente arrumação da factualidade, pois que é essencial que o arguido tenha um correcto conhecimento do que realmente lhe vem imputado, o que passa pela concretização precisa e concisa quer dos factos - objectivos e subjectivos conformadores do ilícito típico em causa - quer do direito, o que o requerimento manifestamente não satisfaz, sendo omisso, designadamente no que concerne à imputação dos elementos intelectual e volitivo do dolo, traduzidos, respectivamente na representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes, bem como na consciência de que esse facto é censurável e na vontade de realização do mesmo. É que não existem presunções de dolo e, assim sendo, não é possível afirmar a sua existência simplesmente a partir de circunstâncias externas da acção concreta. Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução, entre outros, o dever de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico – penal lesado pela conduta proibida.” (proc. n.º 140/12.3TAFVN.C1, dgsi.pt)

O requerimento em crise, já se disse, é totalmente omisso na imputação do dolo e não é ao juiz que compete compulsar os autos para fazer a enumeração e descrição dos factos que poderão indiciar o cometimento pelo arguido de um específico crime, pois, neste caso, estar-se-ia a transferir para aquele o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor.

Aliás, em rigor, a assistente nem tão pouco identifica os arguidos que pretende ver pronunciados, fazendo referência genérica à “entidade empregadora B... , Ld.ª”, ao “encarregado de obra” e “responsáveis pela segurança” (ponto 7º do RAI), ficando estes “denunciados” sem saber do que têm afinal de defender-se, ou seja, o que é que cada um fez que não deveria ter feito ou o que é que cada um não fez que deveria ter feito.

O recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015, de 20 de Novembro de 2014, fixou de resto jurisprudência no sentido de que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.” (DR 1ª série, n.º 18, de 27-01-2015)

O requerimento de abertura de instrução é pois insuficiente, imperfeito, no que concerne à descrição de factos constitutivos do crime que, a indiciarem-se, permitissem concluir que o agente actuou com culpa.

Nos termos do art. 287.º n.º 3, o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

A “inadmissibilidade legal”, causa de rejeição do requerimento de abertura de instrução, para além dos fundamentos mais óbvios, como seja por hipótese a ilegitimidade do requerente, abrange também os casos em que a instrução é inexequível por falta de objecto, o que ocorre nos casos de insuficiência de matéria de facto.

Por força do n.º 3 do art. 283.º, aplicável ex vi do n.º 2 art. 287.º, o requerimento apresentado enferma de nulidade, que é do conhecimento oficioso e que não é passível de sanação, designadamente por meio de aperfeiçoamento do requerimento de abertura da instrução.

Como esclareceu o Tribunal Constitucional em Acórdão de 30.01.2001 (DR, II-Série, de 23.03.2001), “ (…) nos casos de não pronúncia de arguido e em que o Ministério Público se decidiu elo arquivamento do inquérito, o direito de requerer a instrução que é reconhecido ao assistente – e que deve revestir a forma de uma verdadeira acusação – não pode deixar de contender com o direito de defesa do eventual acusado ou arguido no caso daquele não respeitar o prazo fixado na lei para a sua apresentação”.

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, fixou também jurisprudência no sentido de que “não há lugar a convite dirigido ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

E o Tribunal Constitucional, chamado novamente a pronunciar-se sobre o assunto, decidiu no seu Acórdão n.º 636/2011, de 20/12/2011 (DR, II-Série, n.º 19, de 26.1.2012) “não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.ºs 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).”

Assim, não há lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento.

Por todo o exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente por inadmissibilidade legal da instrução.

(…)».


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Deste despacho interpôs recurso a assistente, a qual pugna pela revogação do despacho recorrido e abertura da instrução, formulando as seguintes conclusões:

«1.Veio o tribunal ad quo rejeitar o requerimento para a abertura de instrução da aqui assistente com base na sua inadmissibilidade legal.

2.Inadmissibilidade que em súmula assenta e no facto de invocar que no caso de existir um despacho de arquivamento o requerimento para a abertura da instrução, pelo assistente, tem de consistir numa verdadeira acusação, o que no presente caso não aconteceu, bem como no facto do requerimento de abertura de instrução ser totalmente omisso na descrição e imputação do dolo enquanto facto constitutivo do crime imputado aos arguidos que, a indiciarem-se permitissem concluir que o agente actuou com culpa.

3.Todavia tal despacho e sustenta-se numa errada apreciação do requerimento para abertura da instrução da assistente, pois todas as formalidades legais foram cumpridas.

4.Ora, da mera análise do requerimento de abertura de instrução apresentado pela Assistente resulta que o mesmo respeita e preenche todos os requisitos legais aplicáveis:

A) enumera os factos concretos que entende estarem indiciados e respetiva data de cometimento;

B) identifica os arguidos;

C) identifica as disposições legais aplicáveis fazendo referência ao elemento subjetivo das infrações cometidas;

D) faz uma correta articulação dos factos imputados aos arguidos.

5.Entende o tribunal ad quo que o “...O requerimento de abertura de instrução é...insuficiente, imperfeito, no que concerne á descrição dos factos constitutivos do crime que, a indiciarem-se, permitissem concluir que o agente actuou com culpa.” bem como que o mesmo requerimento é omisso quanto á imputação do dolo, logo, na descrição do elemento subjetivo do tipo legal de crime em apreço. 

6.Ora, a descrição factual feita no requerimento de instrução apresentado pela Assistente, conforme transcrição supra efetuada, mencionada contêm os factos concretos susceptíveis de integrar todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo criminal que o assistente considera terem sido preenchidos, no caso, do crime de violação de regras de segurança, previsto e punido pelo artigo 152.º-B do Código Penal.

7.Considerar ser inadmissível a RAI pelos fundamentos apresentados no douto despacho de rejeição do mesmo, por pretensa omissão na descrição dos factos constitutivos do crime, é manifestamente incompreensível por os mesmos constarem daquele».


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Notificado o Ministério Público, nos termos do art. 411.º, n.º 6, para efeitos do art. 413.º, n.º 1, do CPP, apresentou reposta, que seguindo de perto os trilhos do juiz de instrução, conclui que o recurso deve improceder e consequentemente manter-se o despacho recorrido.

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Nesta instância de recurso, os autos tiveram vista do Ex.ma Senhora Procuradora-geral Adjunta, para os feitos do art. 416.º, n.º 1, do CPP, acompanhando a posição do Ministério Público na 1.ª instância, emitiu douto parecer no sentido de que o requerimento de abertura de instrução deve configurar, equivaler in totum a um despacho acusatório, com a descrição, narração factual bem apontada e delimitada, bem assim deve conter o elemento subjectivo da infracção, não sendo admissível em qualquer um dos elementos constitutivos a ideia de subentendimento.

Conclui assim que a lei impõe a rejeição de requerimento, impedindo a sua aceitação e posterior correcção, pelo que pugna também pela manutenção do despacho recorrido.


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Cumprido que foi o disposto no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, não houve resposta.

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Colhidos os vistos legais e indo os autos á conferência, cumpre decidir.

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II- O Direito

As conclusões formuladas pelo recorrente delimitam o âmbito do recurso.

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, conforme Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, as quais deve conhecer e decidir sempre que os autos reúnam os elementos necessários para tal.

Questão a decidir:

Aferir se há fundamentos para rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

Apreciando:
O requerimento de abertura de instrução (RAI) de fls. 185 a 193, incidindo sobre despacho de arquivamento do Ministério Público, devia consubstanciar todos os elementos constitutivos do crime ou crimes que no entender do assistente são imputados aos arguidos, isto é, para além de poder suscitar questões de direito e discutir as razões de discordância, deveria traduzir-se na acusação que não foi deduzida.
E isso implica que que do RAI conste obrigatoriamente a descrição da factualidade com os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de poder p. e p. pelo art. 382.º, do Código Penal e fazer o enquadramento legal.
Vejamos qual foi a posição da assistente C... face ao despacho de arquivamento.
Preocupou-se em pôr em causa o despacho de arquivamento pronunciando-se sobre:
- Os factos a provar;
- O Direito aplicável.
- A prova produzida e interpretação que da mesma faz.
- Considerações de discordância do arquivamento e conclusão que a leva à subsunção dos factos à prática de um crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B, do CP.
Acaba por censurar a actuação da “entidade empregadora B... , L.da, o encarregado da obra e responsáveis pela segurança daquela, por não terem as suas obrigações legais”, bem como o despacho de arquivamento.
Porém, o RAI não é rigorosa quanto à descrição dos factos constitutivos dos elementos objectivos do crime imputado e é absolutamente omisso quanto aos elementos subjectivos do crime e não indica os arguidos que em concreto, em seu entender, devem ser levados a julgamento, especificando para cada um deles a omissão ou acção que lhe é censurável.
A instrução, nos termos do art. 286.º, n.º 1, do CPP, diploma do qual farão parte os preceitos a citar, sem menção de origem, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Em conformidade com o disposto no art. 308.º, n.º 1, se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia. 

Porém, a simples apresentação de requerimento para abertura de instrução não determina de forma automática que esta fase processual tenha lugar.

No caso dos autos o senhor juiz de instrução indeferiu o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

A participação deve ser escorreita e concentrada, fazendo constar da mesma os elementos estritamente necessários e que fazem parte da estrutura do crime participado.   

No caso dos autos o Ministério Público ordenou o arquivamento dos autos por falta de indícios.

O juiz de instrução pode e deve rejeitar o requerimento só e apenas nas situações previstas no art. 287.º, n.º 3, isto é, por extemporaneidade, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Quando a lei fala em “inadmissibilidade legal”, tem em vista os casos em que da própria lei resulta clara e expressamente, como não admissível aquela fase processual, ou seja: nas outras formas de processo que não a comum e abreviado (art. 286.º, n.º 3); se requerida por outras pessoas não o arguido ou assistente, ou ainda que requerida por estes, quando o fazem fora dos casos definidos no art. 287.º, n.º 1, al. a) e b), do mesmo código, ou se o requerimento do assistente não configurar uma verdadeira acusação (não contiver a identificação do arguido, ou não descrever os factos componentes do crime imputado ou se os factos descritos não constituem crime, nomeadamente), caso em que faltará o próprio objecto do processo.

Em conclusão diremos que a inadmissibilidade legal da instrução tem a ver essencialmente com requisitos de forma e não com a substância do requerimento, isto é, com os fundamentos de ser deduzido despacho de pronúncia ou não pronúncia.
O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, como requisitos indispensáveis as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (...), sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto no art. 283.º, n.º 3, al. b) e c).
Por seu turno, o art. 283.º, n.º 3, do mesmo diploma diz-nos, sob pena de nulidade, quais os elementos que uma acusação deve conter, onde consta, na al. b), que a acusação deve narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.

A al. c) refere que a acusação deve conter as disposições legais aplicáveis.

Finalmente há, ainda, que ter em conta o art. 303.º, do mesmo diploma, que vincula o Juiz aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o n.º 3 desse artigo que uma alteração substancial do requerimento de abertura de instrução leva a novo inquérito.

Da conjugação destes citados artigos conclui-se que o requerimento do assistente para a abertura de instrução tem de configurar substancialmente uma acusação, devendo constar do mesmo a descrição dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e a indicação das disposições legais aplicáveis (art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), aplicável ex vi do art. 287.º, n.º 2).

Logo, a falta de narração, por parte do assistente, requerente da instrução, dos factos integradores do crime imputado e razões concretas por que imputa o crime aos responsáveis identificando-os (elementos objectivos e subjectivos), constituiu uma nulidade (art. 283.º, n.º 3), o que é facilmente compreensível, uma vez que o requerimento de abertura de instrução, pelo assistente, no caso de arquivamento por parte do Ministério Público, deve fixar o âmbito ou objecto do processo (art. 303.º e 309.º).

Tal mais não é do que uma decorrência do princípio do acusatório consagrado no art. 32.º, n.º 5 da CRP, um dos princípios estruturantes da constituição processual penal, como garantia do próprio arguido, em que a acusação (ou requerimento de abertura de instrução, como reacção ao despacho de arquivamento do Ministério Público) é condição e limite do julgamento.

Quando os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não integram, só por si, qualquer tipo de ilícito, a inclusão de outros no despacho de pronúncia que integram um tipo de ilícito não pode deixar de ser vista como uma alteração substancial dos factos (art. 1.º, al. f)).

Neste sentido vai precisamente o Ac. da RC de 2/11/99 ao estipular que:

«No requerimento para abertura de instrução, caso não tenha sido deduzida acusação, devem constar os factos concretos a averiguar através dos quais se possam retirar os elementos objectivos e subjectivos do crime».

Aliás, tem sido a nossa posição já vertida no Ac. do TRC de 15/4/2015 – Proc. 2393/12.8TACBR.C1, do qual fomos relator e que se encontra publicado in www.dgsi.pt.

De todo o explanado temos de concluir que quando o requerimento do assistente para a abertura de instrução não narra os factos que integram um crime, não pode haver pronuncia, sob pena de violação dos artigos 303.º, 283.º, n.º 3, al. b) e c), do CPP e 32.º, n.º 1 e 5, da CRP.

De facto, a pronunciar-se o arguido por factos que não constam do requerimento de abertura de instrução e que importam uma alteração substancial dos mesmos, tal configuraria também uma nulidade, prevista no art. 309.º, n.º 1.

Ora, uma instrução que não pode legalmente conduzir à pronúncia do arguido, como pretende a assistente no seu requerimento, é uma instrução que a lei não pode admitir.

É um requerimento de abertura de instrução sem objecto.

Não faz qualquer sentido admitir uma instrução que, desde o início, está condenada ao insucesso.

Enferma pois o requerimento do assistente da omissão da própria configuração do objecto da instrução, o que inviabiliza a sua abertura, tornando-a inexequível, cfr. escreve Souto Moura, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 120 e 121:

«Se o assistente requer a abertura de instrução sem a mínima delimitação do campo factual sobre que há-de versar, a instrução será inexequível, ficando o juiz sem saber que factos é que o assistente gostaria de ver provados».

De acordo com a lei, nomeadamente de acordo com os já citados artigos 287.º, 283.º e 303.º, um requerimento para abertura de instrução que não contém factos através dos quais se possam retirar os elementos objectivos e subjectivos do crime deve ser indeferido, por ferido de nulidade, nos termos do art. 283.º, n.º 3, aplicável ex vi do art. 287, n.º 2.

Sendo o requerimento para a abertura de instrução nulo por falta de objecto, o mesmo tem de ser obrigatoriamente indeferido, não sendo admissível a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento, sob pena de violação dos citados artigos 287.º, n.º 3 e 283.º, n.º 3 (neste sentido cfr., entre outros, Ac. da RL de 11 de Outubro de 2001, in CJ, T. IV, pág. 141).

A este propósito escreve-se no citado Acórdão:

«(...), estando em causa, como se disse, uma peça processual equiparável à acusação, um convite por parte do Juiz, à sua reformulação (por forma a descrever com suficiência e clareza factos que consubstanciam acusação), para além de exorbitar a comprovação judicial objecto da instrução referido no art. 286.º do CPP- e bem assim os correspondentes poderes do Juiz- envolveria de alguma forma “orientação” judicial que, em certa medida, poderia reconduzir-se a procedimento próprio de um processo de tipo inquisitório, banido desde há muito da nossa legislação».

O assistente deve ser convidado a aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, excepto quanto à falta de narração dos factos, que constitui o elemento definidor do âmbito temático da instrução.
No caso dos autos, o assistente, no requerimento de abertura de instrução limita-se a argumentar expondo os seus pontos de vista que diferem da posição assumida pelo MP, bem como a imitir os seus pontos de vista e a fazer o exame crítico do despacho de arquivamento dos autos, sem apontar concretamente os responsáveis que deve identificar e imputar-lhe factos concretos, sendo ainda absolutamente omisso quanto à culpa, por não fazer qualquer referência aos elementos subjectivos do crime.
Esta não é, no caso sub judice, a função essencial do requerimento de abertura de instrução.
Esquece-se que, enquanto assistente, tendo havido despacho de arquivamento do inquérito, nos termos do art. 277.º, por parte do Ministério Publico, embora o requerimento não esteja sujeito a formalidades especiais, devia deduzir uma verdadeira acusação, com todos os elementos e requisitos constantes do art. 283,º, n.º 3, por força do disposto no art. 287.º, n.º 2, ambos do CPP.
Que o requerimento para abertura de instrução, requerida pelo assistente, quando o MP tenha arquivado os autos, tem de vir minimamente explícito, quanto à narração dos factos integradores do tipo legal de crime em análise, em termos idênticos ao de uma acusação, está patente no facto de não poder haver lugar a convite para aperfeiçoamento.
Esclarecendo divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a tal respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12/05/2005 (Assento do STJ n.º 7/2005, in DR 1.ª Série A, de 4/11/2005), que decidiu no seguinte sentido:

«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».

Quanto a este ponto, é pertinente chamar à colação o entendimento dos Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 4.ª ed., pág. 522, em anotação ao art. 32.º, n.º 5, da CRP, sustentando:

«…a estrutura acusatória do processo penal implica:

a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação;

b) proibição de acumulação subjectiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador…».

Daqui resulta, no caso sub judice, que o juiz de instrução não pode intrometer-­se na delimitação do objecto da acusação no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da abertura da instrução.
E não se discuta que a não formulação de tal convite viola os direitos de garantias de processo criminal, consignados no art. 32.º, da CRP, pois o Ac. do TC n.º 175/2013, decidiu não ser inconstitucional a norma do art. 287.º, n.º 2, com referência ao art. 283.º, n.º 3, al. b) e c), segundo a qual não é admissível a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente e que não contenha o essencial da descrição dos factos imputados aos arguidos, delimitando o objecto fáctico da pretendida instrução.
Tal requerimento não constituiu substancialmente uma verdadeira acusação, mas deve imperativamente obedecer àqueles requisitos mínimos acima apontados, de modo a descrever os factos concretos de ordem objectiva e subjectiva susceptíveis de integrarem a prática pelos denunciados do crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B, do Código Penal.

O requerimento de abertura de instrução é manifestamente omisso quanto à descrição factual, da qual devem constar os elementos objectivos e subjectivos, integradores do tipo de ilícito imputado a cada um dos arguidos, para que possa possam ser pronunciados, não podendo o juiz de instrução, como já vimos - mesmo que durante as diligências de instrução concluísse pela existência de indícios da prática por parte dos arguidos de um crime - alterar ou criar por si a factualidade.

Assim sendo, bem andou o senhor juiz de instrução ao rejeitar o requerimento para abertura de instrução, formulado pela assistente, por nulidade do mesmo, e, consequente inadmissibilidade legal.

A assistente deveria narrar necessariamente os factos integradores tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificariam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, imputando-os directamente aos agentes do crime, os quais devia, também, ter identificado.

Em conclusão: Não constando do requerimento de abertura de instrução os factos, susceptíveis se preencherem os elementos objectivos e subjectivos do crime de violação das regras de segurança, p. e p. pelo art. 152.º-B, do Código Penal, ou outro tipo de ilícito, que pudessem fundamentar a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança aos arguidos, e que lhe competia identificar, impõe-se a sua rejeição, por inadmissibilidade legal, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP.


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III- Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pela assistente C... , e, consequentemente se mantém o despacho recorrido que rejeitou o requerimento para abertura de instrução, por inadmissibilidade legal.

Custas pela assistente cuja taxa de justiça se fixa em 2UCs.

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NB: O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do CPP. 

Coimbra, 9 de Janeiro de 2017



(Inácio Monteiro - relator)


(Alice Santos - adjunta)