Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1804/12.7TBTNV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO MONTEIRO
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
ERRO
ACTO PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 146 CPC
Sumário: 1.- O erro que incida sobre um acto com incidência processual escapa aos juízos sobre o erro nos negócios jurídicos.

2.- Sendo certo que para tais actos processuais, em regra, se exige apenas a consciência e vontade do acto, sendo irrelevante a vontade e a representação dos seus efeitos, a lei processual salvaguarda algumas possibilidades de suprimento do acto.

3. Se a parte não estiver acompanhada de advogado, o juízo do erro admissível deve ser mais cuidadoso. A possibilidade de desculpabilidade será então maior.

4- A expressão legal - “reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que” o impedimento cessou - há-de ser entendida em termos de razoabilidade.

5. -Ainda dentro do sentido da norma, o juiz deve adaptar o remédio à situação concreta, não chocando, configurada esta e havendo fundamento para perceber a desculpabilidade, se conceda um novo prazo para o acto em falta.

6. - Se os contornos da situação concreta estão ainda dependentes da produção de prova, que foi apresentada por ambas as partes, esta deve ser concretizada antes da decisão final do incidente.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Os Réus alegaram o justo impedimento para a prática da contestação fora do prazo legalmente previsto, dizendo, em síntese:
Foram citados em 25.1.2013 e o prazo para oferecer a Contestação terminava no dia 19.2.2013.
Tendo consciência do seu erro no dia 1.3.2013 (sexta-feira), no dia 4.3.2013 dirigiram-se à Sra. Juíza a dar conta da razão porque não contestaram atempadamente e pediram que lhes concedesse 10 dias para contestar.
Estavam convencidos que os requerimentos que entregaram no processo contemplavam a nomeação de patrono e, informados que esse pedido fazia parar o prazo para contestar e levaria à sua notificação prévia de novo prazo, ficaram descansados.
Afinal, eles não tinham posto a cruz na modalidade de “Nomeação e pagamento da compensação de patrono”.
Ao dirigirem-se ao Tribunal na tarde de 28.2.2013, ao Sr. Funcionário que lidava com o seu Processo, com o ofício da Segurança Social que lhes falava em pagar a prestações, pretendendo tão só saber o número das prestações, estando certos que lhes iriam atribuir advogado e disso falaram, como que lateralmente, ao dito funcionário, este disse-lhes que não estava no processo o pedido da nomeação do patrono e que vissem o que se estava a passar.
Não percebendo todo o alcance de tal informação, no dia seguinte chegaram à fala com o Advogado que foi ver o processo e constatou o problema.
Com o articulado, aqueles pediram a produção de prova do impedimento.
Os Autores responderam, dizendo que os Réus bem sabiam o que pediram na Segurança Social – a dispensa do pagamento de preparos e custas e não a nomeação de patrono. Por outro lado, desde sempre os Réus se apresentaram em juízo como tendo advogado.
Também os Autores pediram a produção de prova.
Sem a produção da prova apresentada, foi proferida decisão a julgar improcedente o incidente de justo impedimento invocado.
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            Inconformados, os Réus recorreram e apresentam as seguintes conclusões:
1.ª Não tendo os RR. - sendo ele pedreiro e ela cozinheira – oferecido Contestação dentro do respectivo prazo peremptório somente por estarem convencidos que os requerimentos que entregaram, pessoalmente, no Processo
em que pediam Apoio Judiciário contemplavam a nomeação de patrono e logo paravam o prazo que decorria para contestarem e tendo tal convencimento resultado também do facto de terem obtido da funcionária que deu entrada aos requerimentos a juntar os requerimentos do apoio judiciário a confirmação de que o pedido da nomeação de patrono fazia parar o prazo para contestar, embora eles não tivessem posto a cruz em tal modalidade de apoio judiciário, constitui justo impedimento atendendo à flexibilização de tal definição conceitual conforme se anuncia no preâmbulo do D.L. 329-A/95, de 12/12 no que tange ao art.º 146.º do C.P.C..
2.ª Tendo os Recorrentes tomado conhecimento do erro em que lavraram ao falarem com advogado por volta das 17,30 horas do dia 01/03/2013, sexta-feira, ou seja, de que por não terem colocado a cruz na modalidade de “Nomeação de pagamento da compensação de patrono” e logo não tinham requerido, como pensavam ter feito, a nomeação de advogado e que o prazo para contestar não tinha interrompido, deve entender-se que eles se apresentaram a requerer a permissão de contestar logo que cessou o impedimento, ao terem requerido na 2.ª-feira, dia 04/03/2013.
3.ª Mais deve entender-se que os Recorrentes ao requererem a permissão para oferecerem ainda a Contestação no prazo de 10 dias estão a cumprir escrupulosamente o exigido no n.º 2 do art.º 146.º do C.P.C., não sendo, de resto, exigível que os RR. contestassem logo que cessou o impedimento, pois atendendo à situação bizarra e à complexidade duma acção de direitos reais era impraticável apresentarem “logo” o pedido de prática do acto fora de prazo e a Contestação, atendendo ao tempo de estudo que uma acção de “reais” exige.
4.ª Tendo os Recorrentes alegado no seu requerimento factos que preenchem a asserção contida na 1.ª conclusão e alegado também que só tiveram conhecimento do erro quando pelas 17,30 horas do dia 01/03/2013, sexta-feira, falaram com advogado e tendo requerido, logo na segunda-feira seguinte que se julgasse verificado justo impedimento e lhe fosse concedido prazo de 10 dias para contestar, devia a Sra. Juíza ter ouvido as testemunhas para comprovar se os factos por si alegados vertiam a realidade, evitando decidir sob o signo da suspeição.
5.ª A Decisão recorrida ao entender como extemporâneo o requerimento dos RR. E que devia ser apresentado, concomitantemente, à prática do acto, violou o disposto no n.º 2 do art.º 146.º do C.P.C..
6.ª A Decisão recorrida ao não entender como nada plausível a situação de erro invocada pelos Recorrentes e não ouvindo as testemunhas arroladas violou o disposto nos arts. 341.º, 342.º, n.º 1 do C.C. e 264.º, n.º 2 e 664.º, parte final, do C.P.C..
7.ª Finalmente, vêm os Recorrentes com o maior respeito, aliás, enfatizar que se não for dada oportunidade à apreciação do direito material, permitindo-se a Contestação, em nome dum dogmatismo processual verão os RR., muito provavelmente, a sua casa destruída.
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            Não foram apresentadas contra-alegações.
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            Não foram fixados quaisquer factos e estes são os que resultam do relatado até aqui.
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Os Réus indicaram prova mas a mesma não foi produzida.
Os factos alegados pelos Réus não foram julgados porque se entendeu que razões formais tornavam inútil esse julgamento.
Ora, a consideração de tais factos far-se-á no âmbito das soluções plausíveis de direito. Porventura, sendo afastadas (ou afastáveis) aquelas razões formais, haverá depois necessidade de julgar aqueles factos, antes de uma decisão final sobre o pedido de verificação do justo impedimento.
Resumindo a situação:
Os Réus foram citados para a acção.
Pretenderam eles o apoio judiciário. Julgando-o unitário, queriam o apoio de um advogado e a dispensa das taxas de justiça do processo.
Ao preencherem o formulário junto da Segurança Social, em erro, os Réus não colocaram a cruz na parte relativa ao patrocínio judiciário.
Os Réus levaram depois ao processo a certificação do pedido feito na Segurança Social.
Aqueles perceberam o seu erro já depois de passado o prazo da contestação.
Em face disto, nota-se poder existir uma divergência entre a vontade (pedir o patrocínio) e a declaração (pedir apenas a dispensa das taxas) ou um erro na formulação da vontade.
Não deixa de ser um indício do seu alegado erro a junção aos autos, por eles, do pedido do apoio judiciário desacompanhado da contestação. Normalmente, quando se pede apenas a dispensa de taxas, a contestação é junta logo com a certificação do pedido à Segurança Social. Pelo contrário, esta certificação virá isolada quando diga respeito à solicitação do patrocínio judiciário.
Este alegado erro incide sobre um acto com incidência processual.
Na teoria geral do direito, este acto deve ser classificado como acto processual, escapando aos juízos sobre o erro nos negócios jurídicos. (M. Pinto, Teoria Geral, 4ª edição, Coimbra Editora, páginas 355 e seguintes e 417; A. Castro, Processo Civil, vol.III, Almedina, 1982, páginas 9 a 26.)
Sendo certo que para tais actos processuais, em regra, se exige apenas a consciência e vontade do acto, sendo irrelevante a vontade e a representação dos seus efeitos, como assinala este último citado Autor, “há que ter em conta a possibilidade de suprimento do acto, quer através da invocabilidade dos factos objectiva ou subjectivamente supervenientes e do justo impedimento, quer da rectificação e de certa modificabilidade dos actos.” (Página 22 da obra citada.)
Exigindo-se apenas a consciência e vontade do acto, estas não podem deixar de estar presentes.

No caso do apoio judiciário, não é irrelevante a representação ou consciência da diferenciação das modalidades do mesmo, para que se defina aquela que se quer.
Por outro lado, podemos dizer, para o acto processual em geral, não relevará o vício na manifestação da vontade porque a parte está tecnicamente acompanhada por advogado.
Mesmo assim, em casos pontuais, a lei admite rectificações.
Mas se a parte não estiver acompanhada tecnicamente, o juízo sobre o erro admissível deve ser mais cuidadoso. A possibilidade de desculpabilidade será então maior.
É neste enquadramento dogmático que devemos analisar o invocado “justo impedimento”.
“Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto.”
O artigo 140º, nº1, do Código de Processo Civil define assim o conceito, de forma idêntica ao anterior artigo 146º, aquele que era referência no momento da sua invocação.
A redacção do preceito pelo Decreto-Lei nº 329-A/95 eliminou o requisito de evento “normalmente imprevisível”, como constava anteriormente.
Como se salienta no Código de Processo Civil Anotado de L. de Freitas, J. Redinha e R. Pinto, em anotação ao artigo, passou-se “o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade para a sua não imputabilidade à parte ou ao seu mandatário”, pretendendo-se, como consta do preâmbulo do Decreto-Lei nº 329-A/95, flexibilizar “a definição conceitual de «justo impedimento», em termos de permitir a uma jurisprudência criativa uma elaboração, densificação e concretização, centradas essencialmente na ideia de culpa, que se afastem da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam.”
A flexibilização fez-se “de modo a permitir abarcar situações em que a omissão ou o retardamento da parte se haja devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria” (página 273 da obra citada).
Para ajuizar sobre esta culpa será preciso entender, de alguma forma, que tipo de formação e entendimento têm os Réus.
Poderá então admitir-se que terá acontecido um facto (o engano) que pode não envolver um juízo de censura à parte que o praticou ou nele incorreu. Se for desculpável, e especialmente relevante no acesso à Justiça, deverá admitir-se a rectificação da situação.
A Sra. Juíza a quo afastou liminarmente a justificação dos Réus porque entendeu faltarem dois requisitos: a invocação do justo impedimento tem de ser feita logo que cesse este e a mesma invocação tem de vir logo acompanhada do acto em falta (no caso a contestação).
Quanto ao primeiro: conforme o nº2 da norma em causa, o juiz deve “reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que” o impedimento cessou.
Esta apresentação tem de ser imediata, no próprio dia ou no dia seguinte?
Os anotadores L. Freitas, J. Redinha e R. Pinto advogam (página 276 da obra citada) que a expressão legal há-de ser entendida em termos de razoabilidade.
Atentemos no caso concreto:
A percepção do potencial erro terá ocorrido numa quinta-feira.
O seu completo esclarecimento terá ocorrido na reunião com o Advogado na sexta-feira seguinte.
De permeio o fim de semana, o Advogado levou o caso ao processo na segunda-feira seguinte.
Julgamos que esta sequência pode ser interpretada como tendo a parte apresentado o requerimento logo que o seu impedimento cessou. Trata-se de uma sequência normal e humanamente aceitável.
Quanto ao segundo requisito (a apresentação simultânea do acto em falta):

A Sra. Juíza a quo tem o apoio da jurisprudência que cita e também, entre outros, do acórdão desta Relação, de 18.7.2006, no processo 1887/06, em www.dgsi.pt.
Porém, a lei parece admitir mais do que foi entendido.
            Diz o mesmo nº2 da norma em causa: …”o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o acto fora do prazo, se julgar verificado o impedimento…” (Hoje o art.140º, nº2, do novo código alterou o tempo verbal, passando a exarar, em vez de admitirá, o juiz admite. Esta alteração não terá especial significado.)
            A norma admite o sentido de que após a decisão sobre o impedimento, e com ela, o juiz conceda prazo para a prática do acto em falta.
            Defende a jurisprudência referida que “o efeito do justo impedimento não é nem o de impedir o início do curso de prazo peremptório, nem o de interromper tal prazo quando em curso, no momento em que ocorre o facto que se deva considerar justo impedimento, inutilizando o tempo já decorrido, mas tão somente o de suspender o termo de um prazo peremptório, deferindo-o para o dia imediato aquele que tenha sido o último de duração do impedimento.”
            Esta exigência não é clara na norma.
            Porque não considerar suspenso o prazo quando ocorre o justo impedimento (o facto nuclear), voltando a correr o restante quando este cessado?
            No caso, a ter sido praticado devidamente o pedido de patrocínio judiciário, novo prazo de contestação correria a contar de nova notificação.
            Se a parte, em certo dia, tem consciência do erro e da falta, não tendo culpa, ela terá de reagir a tudo no dia imediato? Daquilo que lhe foi concedido antes e não pôde usar, ela perdeu tudo?
            Antes, a parte teria direito a 20 dias para contestar. Agora, detectado o problema, não imputável, passado aquele tempo, ela tem um dia para ir procurar um advogado, tudo explicar e preparar não só a fundamentação do justo impedimento como também a da contestação, qualquer que seja a sua complexidade e, por fim, tudo apresentar em tribunal?
           
Não nos parece ajustada a solução às preocupações e possibilidades da norma e ao potencial caso concreto.
            O presente caso não é idêntico ao do advogado, consciente do prazo de 20 dias, ao 18º dia vê-se confrontado com uma situação de justo impedimento.
            As capacidades de reacção da parte no nosso caso e do advogado no caso referido são muito diferentes.
            E, por isso, ainda dentro do sentido da norma, o juiz deve adaptar o remédio à situação concreta, não chocando, configurada a situação alegada e havendo fundamento para perceber a desculpabilidade, se conceda um novo prazo ou o restante de um prazo.
Podendo ser assim mas estando os contornos da situação concreta ainda dependentes da produção de prova, que foi apresentada por ambas as partes, esta deve ser concretizada antes da decisão final do incidente.
*
Decisão.
            Julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se o prosseguimento do incidente com a produção da prova apresentada.
            Custas conforme for decidido no final do incidente.
            Coimbra, 2013-12-3
 Fernando de Jesus Fonseca Monteiro ( Relator)
Luís Filipe Dias Cravo
 Maria José Monteiro Guerra