Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
47/21.3IDLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PERDA DE VANTAGENS DO CRIME
AUTONOMIA DA AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
ACORDO DE PAGAMENTO A PRESTAÇÕES DA PRESTAÇÃO TRIBUTÁRIA
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – JUIZ 2
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGO 105.º DO RGIT
ARTIGO 110.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), E 4, DO CÓDIGO PENAL/C.P.
ARTIGOS 71.º E 76.º, N.º 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
ARTIGOS 1.º, 3.º, N.º 1, ALÍNEA A), E 5.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO ESTATUTO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário: 1 - Impõe-se distinguir o dano causado pela prática do crime (o produto direto do crime, que se repara em primeira linha através do pedido de indemnização cível) e a vantagem decorrente da sua prática, que tem o sentido de incremento patrimonial efetivo do património do agente, sendo esta a que se pretende eliminar através da declaração de perda de vantagens a favor do Estado.

2 - Quando o dano e a vantagem coincidam, a realidade é a mesma. Optando-se pelo ressarcimento do dano em sede própria e, cumulativamente, pela declaração de perda dessa mesma vantagem, nos termos do art. 110º, n.º 1, al. b), do Código Penal, tal redundaria numa dupla punição do agente.

3 - Nos casos em que a perda de vantagens corresponda à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico apenas pode ser decretada se o titular dos danos causados pelo mesmo se desinteressar pela reparação do seu direito;

4 - Não pode ser decretada a pena de perda de vantagens (quantia correspondente ao IVA apropriado pelo arguido) nos casos em que a Autoridade Tributária comunicou ao Ministério Público que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil, por ter intentado execução fiscal daquela quantia, no âmbito da qual celebrou com o devedor acordo de pagamento.


Sumário eleborado pela Relatora
Decisão Texto Integral:

           Acórdão, deliberado em conferência, da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


I.

RELATÓRIO


  

            I. O Ministério Público veio  interpor recurso do segmento da sentença proferida no processo comum singular nº 47/21.3IDLRA, do Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha – J2, Tribunal da Comarca de Leiria, que julgou improcedente o pedido de declaração de perda a favor do Estado do valor de € 13.802,19, efetuado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 110°, n° 1, al. b), do Código Penal.


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     I.1. Decisão recorrida (que se transcreve na parte com relevo).

“(…) 1.1. Factos provados

Com interesse e relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

A) DA ACUSAÇÃO

A sociedade arguida está coletada em sede de IVA no regime normal de periodicidade trimestral.

Na qualidade de sujeito passivo de IVA, a sociedade arguida tinha como obrigações a liquidação de IVA, emissão de fatura ou documento equivalente, declarativa, autoliquidação de tributo e o pagamento.

A sociedade arguida deu cumprimento às respetivas obrigações de declaração periódica em sede de IVA, relativas ao quarto trimestre do ano de 2019, que apresentou à Administração Fiscal dentro do prazo legal estabelecido para o efeito.

Nessa declaração a sociedade arguida inscreveu como valores de IVA a favor do Estado a importância liquidada a terceiros, seus clientes, que alcançou o montante de €13.802,19.

Em simultâneo com o envio da mencionada declaração periódica de IVA, a sociedade arguida não entregou aos cofres do Estado a quantia suprarreferida resultante da autoliquidação, nem o fez nos 90 dias posteriores ao termo do prazo legal para a entrega.

Notificados os arguidos para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das quantias em dívida, acrescidas de juros e do valor das coimas aplicáveis, não o fizeram.

Em representação da sociedade arguida, o arguido … apoderou-se da referida quantia, integrando-a indevidamente no património da sociedade arguida para fazer face a outros compromissos.

Ao agir em representação da sociedade arguida, bem sabia o arguido … que tinha a obrigação legal de entregar o Imposto sobre o Valor Acrescentado aos Cofres do Estado e, apesar disso, de forma livre, voluntária e consciente, não o fez, e utilizou a mencionada quantia em proveito da sociedade arguida, em detrimento do Estado, atuando com intenção de obter vantagem patrimonial indevida e de prejudicar a Fazenda Nacional em montante não inferior a €13.802,19.

Mais sabia o arguido … que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

B) OUTROS FACTOS

1.

Para cobrança coerciva do IVA do quarto trimestre de 2019, liquidado em nome da arguida A..., Unipessoal, Lda., NIPC ..., no valor de 13.802,19 €, foi instaurado o processo de execução fiscal n. o ...63, no âmbito do qual, por Despacho de 28.04.2022, foi determinada a reversão fiscal contra o responsável subsidiário AA, NIF ..., cuja citação pessoal ocorreu em 13.06.2022, nos termos do Art. 192.0 n.º 2 e 3 do Código do Procedimento e do Processo Tributário.

2.

Relativamente ao valor do IVA de 13.802,19€, foi anulado o montante de 434,84€ (proveniente de uma declaração de substituição), ficando em dívida o montante de 13.367,35€, ao qual acresceram os seguintes valores: 872,17€ referentes a juros de mora e 388,00€ referentes a custas processuais.

3.

No âmbito da dívida em apreço, foi pago o montante de 10.738,45€, estando em dívida o valor de 3.889,07€, a que corresponde: 3.852,73€ de quantia exequenda, 14,28 € juros de mora e 22,06 € de custas processuais.

(…)

Na douta acusação vem pedida a PERDA DE VANTAGENS ao abrigo do disposto no Art. 110º, 1, alínea b), do Código Penal, …

Sucede que no caso dos autos à vantagem obtida corresponde uma obrigação fiscal de pagar o montante em causa. O qual, aliás, já está a ser objeto de execução, contra ambos os arguidos. Não podendo estes ser obrigados a pagar duas vezes esse montante, sob pena de enriquecimento indevido (e, portanto, ilícito) por parte do Estado.

Pelo que nada há a declarar perdido a favor do Estado.

C) Não se declara a PERDA DE VANTAGENS ao abrigo do disposto no Art. 110º, nº 1, alínea b), do Código Penal, como vem pedido na acusação, uma vez que não se verifica nos autos situação subsumível a essa previsão legal.


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    I.2. Recurso do Ministério Público

1. Nos presentes autos os arguidos … Foram condenados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelos arts.105° do RGIT.

2. Pese embora o Ministério Público não tenha deduzido pedido de indemnização civil - por tal ter sido a posição manifestada pela AT - requereu que fosse decretada a perda de vantagens nos termos 110, n.º, al.b), do C.P., pedindo concretamente que a vantagem patrimonial obtida (13.802,19€) fosse declarada perdida a favor do Estado e consequentemente que os arguidos fossem condenados a proceder à entrega de tal valor.

3. Todavia, o Tribunal a quo não declarou a perda de vantagens ao abrigo do disposto no art.110°, nº 1, alínea b), do Código Penal, por entender que não se verifica nos autos situação subsumível a essa previsão legal, uma vez que tal valor estava já a ser alvo de execução.

4. Resulta do art.110°, n.º1, al. b), do Código Penal (na redação introduzida pela Lei 30/2017, de 30/5 e já em vigor à data dos factos, anterior art.111°) que são declaradas perdidas a favor do Estado, as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.

5. Por sua vez, do seu nº4 resulta que "Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo na fase executiva, com os limites previstos no artigo 112°-A", e o n°6 acrescenta que o disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.

6. Assim, para tal decretamento basta a condenação por um facto ilícito típico e bem assim que dele tenham resultado vantagens para o seu agente.

7. O instituto da perda de vantagem do crime constitui instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium anunciando ao agente do crime, ao potencial delinquente e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito.

8. A norma penal que o prevê tem caráter geral e abstrato, não prevendo a mesma qualquer exceção, mesmo nos casos em que o ofendido é o próprio Estado/Administração Tributária que não deduziu pedido de indemnização civil e beneficia de outros meios coercivos de obter o pagamento da quantia em causa.

9. Assim, e por um lado, o facto da Autoridade Tributária ter prescindido de formular pedido de indemnização nos presentes autos em nada obsta à pretensão do Ministério Público, sendo que o Estado não poderá, em caso algum, obter o duplo pagamento das quantias em causa.

10. Por outro, não constitui também impedimento à declaração de perda da vantagem patrimonial o facto de a administração tributária ter ao seu dispor meios legais para ser ressarcida das quantias devidas, desde logo atenta a autonomia da responsabilidade tributária em relação à responsabilidade civil originária na prática do crime e também porque o decretamento da perda da vantagem patrimonial não fica dependente do êxito ou não da cobrança tributária, nem da dedução do pedido cível.

11. A perda das vantagens pode e deve ser decretada pelo Tribunal tenha ou não sido formulado pedido de indemnização civil pelo Estado, intervenha ou não o Ministério Público a defender os interesses civilísticos da Autoridade Tributária quando está em causa a apropriação de valores tributários e esteja ou não pendente execução fiscal.

12. Tendo, portanto, o Ministério Público formulado pedido de declaração de perda das vantagens, preenchendo a factualidade provada um facto ilícito típico e dele tendo resultado vantagens para o seu agente, o Tribunal terá sempre de declarar a perda de tais vantagens patrimoniais, exceto se for demonstrado que já foram recuperadas e que o ofendido já foi ressarcido, caso em que a perda não pode ser decretada, por se ter cumprido o fim da declaração da perda das vantagens (a não ser que o ressarcimento tenha sido parcial, caso em que se mantem o decretamento da perda de vantagem pelo valor que subsiste em dívida).

13. No caso dos autos o arguido, em representação da sociedade arguida, apoderou-se da quantia de 13.802,19€, a qual devia ter entregue nos cofres do Estado por ao mesmo pertencerem, a título de IVA liquidado e recebido dos clientes da sociedade arguida, por referência ao quatro trimestre do ano 2019.

14. Na execução fiscal instaurada o arguido pagou o montante de 10.738,45€, estando em dívida o valor de 3.889,07€, a que corresponde: 3.852,73€ de quantia exequenda, 14,28 € juros de mora e 22,06 € de custas processuais.

15. Estamos assim perante uma vantagem patrimonial para efeitos da citada norma legal, porquanto está em causa uma quantia recebida a título de IVA e não entregue à Autoridade Tributária, da qual o arguido se apoderou em representação da sociedade arguida, no âmbito do cometimento de um crime de abuso de confiança fiscal.

16. Tal quantia constitui inequivocamente uma vantagem patrimonial que pode ser declarada perdida, porquanto se verificam os respetivos pressupostos legais para tal declaração: a existência de um facto antijurídico e a existência de proveitos.

17. Consequentemente, e uma vez que no caso em apreço tem vindo a ser paga a quantia de 13.802,19 Euros inicialmente em causa, estando atualmente em dívida a supra referida quantia de 3.889,07€, a perda de vantagem a decretar recairia sobre este último valor, porquanto é esse que permanece em dívida.

18. Consequentemente, a decisão recorrida não poderá subsistir no segmento impugnado, por ter sido proferida em violação do disposto no art.110º, nºl, al.b), do C.P., impondo-se a sua revogação parcial e a subsequente condenação dos arguidos no pagamento ao Estado do valor atualmente em dívida de 3.889,07€, condenando-se solidariamente as arguidas ao seu pagamento ao Estado, sem prejuízo da dedução do montante de eventuais e futuros pagamentos que venham a ser efetuados a esse título, e por forma a evitar um duplo pagamento ilegal.


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                   I.3. Resposta do arguido AA: pronuncia-se pela improcedência do recurso, …


*

          I.4. Parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação:

          Acompanhou as motivações do recurso interposto.


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II.

Objeto do recurso


           O objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente.

          A questão apreciar consiste, tão só, na (in)susceptibilidade de declarar a perda da vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público em processo penal correspondente ao montante da prestação tributária retida pelos arguidos e não entregue à Autoridade Tributária (comportamento pelo qual foram condenados) nos casos em que o mesmo montante é objeto de acordo de pagamento a prestações celebrado entre a Autoridade Tributária e os arguidos, não tendo sido deduzido pedido de indemnização cível.

   

          Previamente, importa referir que a questão tem sido objeto de soluções jurisprudenciais contraditórias, facilmente encontradas na base de dados jurídicos do ITIJ, entendendo uma parte das decisões publicadas que a perda de vantagens traduz um ius imperii do Estado, não estando dependente da existência e sancionamento dos mecanismos de ressarcimento da Administração Tributária, é autónoma em relação à responsabilidade civil e fiscal, determinando eventualmente e apenas a sua inutilidade, tendo como pressupostos o facto ilícito e a existência de proveitos – constituindo a aplicação de perda de vantagens um efeito automático dos ilícitos donde decorram proveitos, desde que requerida.

Neste sentido se pronuncia a jurisprudência citada no recurso interposto e no parecer emitido pelo Ministério Público nesta Relação ([1]).

No entanto, não concordamos com tal jurisprudência, pelas razões que passamos a expor.

          Na acusação que deduziu e na motivação recursiva o Ministério Público declara não ter deduzido pedido de indemnização cível porque a própria Autoridade Tributária informou não ter no mesmo interesse, “porquanto o valor em causa encontra-se a ser exigido no processo executivo”.

          Ora, é ao Ministério Público, em representação da Autoridade Tributária e Aduaneira, que cabe deduzir pedido de indemnização civil conexo com o processo penal por crimes de natureza fiscal, sem excepção, desde que aquela solicite expressamente tal intervenção (artigo 1.º, alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º e alínea a) do nº 1 do artigo 5.º do Estatuto do Ministério Público, artigo 71.º e n.º 3 do artigo 76.º, do Código de Processo Penal) – entendimento que se encontra expresso na diretiva da PGR n.º 2/13 ([2]).

           Estatui o Decreto-Lei n.º 118/2011, de 15.12, que aprovou a orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira, que a AT é um serviço da administração directa do Estado dotado de autonomia administrativa (artigo 1º, nº 1) e tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos (artigo 2º, nº 1), tendo competência designadamente para:

a) Assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo, dos direitos aduaneiros e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas do Estado ou de pessoas colectivas de direito público;

c) Exercer a ação de justiça tributária e assegurar a representação da Fazenda Pública junto dos órgãos judiciais;

e) Promover a correta aplicação da legislação e das decisões administrativas relacionadas com as suas atribuições (artigo 2º, nº2).

          No âmbito da acção de justiça penal tributária, é à AT que cabe instaurar o inquérito (por para tanto dispor de competência delegada), sem prejuízo da obrigação de imediatamente o comunicar ao Ministério Público (cfr. artigo 40º, nº 3, do RGIT)

          Assim, a AT tem autonomia para decidir os termos da sua actuação face aos contribuintes em relação ao cumprimento e incumprimento das obrigações tributárias no âmbito das suas competências (atribuições) exclusivas de gestão (administração) dos impostos.

          Tal autonomia, com a discricionariedade administrativa inerente, permite à AT, nos casos em que detecta o incumprimento de uma obrigação fiscal:

1º optar pela execução fiscal da obrigação (artigo 184º do CPPT) ou acordar com o contribuinte, no âmbito do enquadramento legal que o permite, o cumprimento faseado da obrigação;

2º instaurar inquérito criminal e, se este culminar em acusação,

3º deduzir, representado pelo Ministério Público, pedido de indemnização civil no processo criminal  ([3]).

          Ou seja, a AT tem autonomia para decidir, de acordo com as suas atribuições, a melhor forma de obter o cumprimento das obrigações fiscais por parte de um contribuinte inadimplente.

          No caso em concreto, a AT instaurou execução fiscal contra a arguida sociedade, determinou a re4versão fiscal contra o arguido recorrente, acordou com este o pagamento da dívida subsistente de € 13.367,35 (a que acresce o valor de € 872,17 de juros e € 388 de custas processuais) em prestações, encontrando-se à data da sentença em dívida o valor de € 3.889,07 – factos provados nos p0ntos 1 a 3 dos “outros factos” da sentença.

Pese embora a pendência da execução fiscal e o desinteresse declarado pela AT na formulação de pedido cível enxertado no processo crime, o Ministério Público requereu a perda de vantagem patrimonial no valor da totalidade da prestação tributária em causa nos autos (€ 13.802,19, antes de anulado o montante de € 434,84 na sequência de declaração de substituição), afirmando que esse valor corresponde ao do património enriquecido – o que foi indeferido pelo tribunal recorrido, com os seguintes fundamentos:

          1º- a vantagem obtida corresponde ao valor da obrigação fiscal;

          2º- esta encontra-se a ser objeto de execução;

          3º- não podendo os arguidos ser obrigados a pagar duas vezes esse montante, sob pena de enriquecimento indevido por parte do Estado.

           No recurso interposto, o Ministério Público pugna pela “condenação dos arguidos no pagamento ao Estado do valor atualmente em dívida de € 3.887,07, sem prejuízo da dedução do montante de eventuais e futuros pagamentos

Importa em primeiro lugar considerar o que estabelece a norma que prevê a declaração de perda de vantagens – art. 110º, n.º 1, al. b), do Código Penal: “São declarados perdidos a favor do Estado: b) As vantagens do facto ilícito típico, considerando-se como tal as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem”. Se tal direito ou vantagem não puder ser apropriada em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor (nº4 do mesmo artigo).

Constitui entendimento unânime que a perda de vantagens tem como escopo a prevenção em globo da criminalidade, ligada à ideia de que “o crime não compensa”, uma medida sancionatória análoga à medida de segurança (e não uma pena acessória) que tem na sua génese necessidades de prevenção: a prática do facto ilícito não pode trazer ao agente vantagens de qualquer espécie ([4]). O que conduz a uma privação do agente dos benefícios ilicitamente obtidos, colocando-o no patamar patrimonial em que se encontrava antes da prática do facto ilícito, forma de evitar que enriqueça o seu património.

Na verdade, a vantagem é todo e qualquer benefício patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado ([5]), o lucro ou proveito do crime que vai além do produto direto do crime, ocorrendo designadamente quando o agente transformou e reinvestiu a vantagem de que se apropriou.

No entanto, importa distinguir o dano causado pela prática do crime (o produto direto do crime, que se repara em primeira linha através do pedido de indemnização cível) e a vantagem decorrente da prática do crime, sendo esta a que se pretende eliminar através da declaração de perda a favor do Estado. Quando o dano e a vantagem coincidam, a realidade é a mesma. Assim, a optar-se pelo ressarcimento do dano em sede própria e, cumulativamente, pela declaração de perda dessa mesma vantagem, tal redundaria numa dupla punição ([6]).

Desta distinção resulta que a vantagem a que se refere o art. 110º, n.º 1, al. b), do Código Penal “tem o sentido de um incremento patrimonial efetivo, realidade que implica duas coisas: (i) a de que seja tomado em conta o património do agente do crime e (ii) a de que haja efetivamente um aumento desse património(…) Assim, naqueles casos em que o agente vê o seu património incrementado apenas com o valor do imposto não pago e é condenado, a título de indemnização civil, a pagar esse montante ao Estado (Administração Tributária/Segurança Social), não existe qualquer vantagem. E não existe vantagem porque o seu património está afeto ao valor do correspondente direito de crédito.

Assim, e a nosso ver, quando a lei (art. 111º CP) fala em “vantagem”, está a reportar-se a um incremento patrimonial efetivo obtido pelo agente de um facto ilícito. De acordo com este entendimento, só existe vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso, do valor não entregue à Segurança Social e não abrangido pela condenação no pedido de indemnização civil.” ([7]).

          Naturalmente que aquele incremento patrimonial efetivo é distinto do produto do crime, do dano causado ao ofendido, estendendo-se para além deste. A perda de vantagens respeita ao primeiro – na prática, verificar-se-ia uma vantagem caso o arguido tivesse investido na bolsa o montante não entregue à AT, obtendo lucro através desse investimento: o lucro corresponderia à vantagem e o valor investido ao produto do crime. Ora, apenas o lucro corresponde a um incremento patrimonial efetivo, porquanto o valor do imposto indevidamente retido já se encontra garantido pelo património do devedor no âmbito da execução fiscal.

Este o fundamento para uma parte da jurisprudência se pronunciar pela inaplicabilidade da perda de vantagem nos casos em que o tribunal julga procedente a pretensão indemnizatória do lesado, condenando o arguido a pagar o mesmo montante em que importaria a vantagem e munindo-o de título executivo – com a qual concordamos ([8]).

Na realidade, o “confisco” visa sempre evitar que o agente do crime retire quaisquer dividendos da sua ação criminosa (independentemente da formulação de um pedido de indemnização cível), mesmo quando estes vão além do real e efetivo prejuízo da vítima. Por essa razão se justifica que a declaração de perda de vantagens abranja o dano direto causado pelo crime apenas nos casos em que o seu titular se desinteresse pela reparação do seu direito ([9]).

A vantagem adquirida (por apropriação) é suscetível de ser declarada perdida a favor do Estado. Porém, tem de ser devidamente considerada a locução conjuntiva subordinativa condicional utilizada pelo legislador, que em nosso entender conduz claramente à interpretação que efetuamos - sem prejuízo dos direitos do ofendido (n.º 6 do art. 110º do Código Penal) -, em linha com o disposto no n.º 2 do art. 130º do Código Penal, que estabelece a possibilidade de o tribunal atribuir ao lesão as vantagens declaradas perdidas a favor do Estado. Assim, a declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado nunca pode prevalecer sobre os direitos do lesado, não podendo ainda acrescer a uma indemnização a este paga ou em que o agente seja condenado a pagar (título executivo).

Acresce que as vantagens apropriadas em espécie ou substituídas pelo pagamento ao Estado do respetivo valor no âmbito do artigo 111º do Código Penal não são suscetíveis de atribuição ao lesado.

No caso, encontrando-se já pendente execução fiscal relativa às quantias que o Ministério Público peticionou fossem declaradas perdidas a favor do Estado ao abrigo do instituto da perda de vantagens, em caso de procedência deste último coexistiriam dois títulos executivos relativos ao mesmíssimo dano/prejuízo. Nestas situações, em abstrato, quando é que o Ministério Público executaria o título decorrente da declaração de perda de vantagens? Depois de gorado o pagamento tentado através do título de que a AT já dispõe? Ou executaria previamente? Como se asseguraria não ocorrer uma dupla penalização do agente decorrente do mesmo facto ilícito?

Concordamos, pois, com o entendimento que o Ministério Público  apenas deverá acionar o mecanismo de perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam à prestação da obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto quando o ofendido (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteressa pela mesma.

          “Só nestes casos poderá tal perda corresponder às suas finalidades supra referidas, de prevenção da criminalidade em globo, que não podem ou devem conflituar com o direito do ofendido de obter a reintegração no seu património daquilo que lhe foi subtraído (até porque a obrigação resultante para o agente da perda em espécie ou por pagamento do seu valor não deve piorar a situação do ofendido – cfr. CP Anotado, M.Simas Santos e M. Leal-Henriques, 4ª edição, págs.534 e 535)” ([10]).

          Ora, nos autos a lesada AT manifestou perante quem a representa judicialmente que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil, uma vez que optou pela execução fiscal da obrigação tributária – e, posteriormente, celebrou com o devedor acordo de pagamento da dívida fiscal em prestações, que está a ser cumprido. Elegeu, assim, a ofendida a reparação patrimonial do direito lesado por aquela que entendeu ser a melhor forma de a obter (renunciando ao direito de deduzir pedido de indemnização cível no processo crime).

          Desta forma, uma condenação paralela na perda dessa mesma vantagem significaria uma duplicação de punições e um enriquecimento injustificado do Estado, com a correspondente oneração infundada do arguido.

          Estas as razões que determinam a total improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público.

           

Concluindo:

1- Impõe-se distinguir o dano causado pela prática do crime (o produto direto do crime, que se repara em primeira linha através do pedido de indemnização cível) e a vantagem decorrente da sua prática, que tem o sentido de incremento patrimonial efetivo do património do agente, sendo esta a que se pretende eliminar através da declaração de perda de vantagens a favor do Estado.

2- Quando o dano e a vantagem coincidam, a realidade é a mesma. Optando-se pelo ressarcimento do dano em sede própria e, cumulativamente, pela declaração de perda dessa mesma vantagem, nos termos do art. 110º, n.º 1, al. b), do Código Penal, tal redundaria numa dupla punição do agente.

3- Nos casos em que a perda de vantagens corresponda à obrigação de indemnização civil decorrente da prática do facto ilícito típico apenas pode ser decretada se o titular dos danos causados pelo mesmo se desinteressar pela reparação do seu direito;

4- Não pode ser decretada a pena de perda de vantagens (quantia correspondente ao IVA apropriado pelo arguido) nos casos em que a Autoridade Tributária comunicou ao Ministério Público que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil, por ter intentado execução fiscal daquela quantia, no âmbito da qual celebrou com o devedor acordo de pagamento.


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III.

DECISÃO


Nos termos expostos, nega-se provimento ao recurso  e confirma-se a sentença recorrida.

    

Sem custas.


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Coimbra, 12 de julho de 2023

Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)

João Bernardo Peral Novais (1º adjunto)

Rui Pedro Miranda Mendes Lima (2º adjunto)





[1] - Remetemos ainda para os Acórdãos da Relação do Porto de 29.6.2022, rel. Liliana Páris Dias, proc. 638/17.7IDPRT.P2, de 8.10.2021 e de 30.3.2022, rel. José Carreto, proc. 38/17.7IDPRT.P2 e 5981/20.5T9PRT.P1, de 18.1.2023, rel. William Themudo Gilman, proc. 7930/19.4T9PRT.P1, todos em www.dgsi.pt
[2] Seguindo, nesta parte, de perto o Acórdão da Relação do Porto de 23.11.2016, rel. João Maldonado, proc. 905/15.4IDPRT.P1, em www.dgsi.pt.
[3] O que não deixa de ser de difícil compreensão, uma vez que tal pedido, invariavelmente, incidirá sobre a obrigação fiscal não cumprida relativamente à qual a AT já dispõe de titulo executivo e mais extenso por força das diferentes taxas de juro moratórios e compensatórios que incidem sobre o capital em dívida em sede de legislação tributária em comparação com a taxa de juro civil que resulta de uma condenação, em processo penal, pela prática do um facto ilícito e culposo.
[4] - Cf. Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime”, 1993, págs. 632-638, P.P.Albuquerque, CCP, 3ª edição, pág.460; M.M.Garcia e J.M.C.Rio, Código Penal comentado, 2ª edição 2015, pág.465: M.S.Santos e M.L.Henriques, CP Anotado, 4º edição 2015, pág.537.
[5] - Cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág.632, P.P.Albuquerque, ob. e pág. cit, e J. Conde Correia / H. Rigor Rodrigues, Julgar Online 8, pág.12
[6] - Cf. Ac. da Relação do Porto de 24.5.2023, rel. Pedro Vaz Pato, proc. 2915/17.8T9AVR.P1, em www.dgsi.pt.
[7] - Cf. Acórdão da Relação do Porto de 30.4.2019, rel. Élia São Pedro, proc. 1325/17.1T9PRD.P1, de 10.7.2019, da mesma rel., proc. 4929/17.9T9PRT.P1, estes em www.dgsi.pt, e de 30.3.2022, rel. Pedro Lima, proc. 9/19.0T9PFR.P1, no mesmo sentido.
[8] - Para além do aresto referido na nota anterior, cf. os Acórdãos. da Relação do Porto de 13.11.2019, rel. Nuno Pires Salpico, proc. 15710/17.5T9PRT.P1, e de 7.7.2021, rel. Eduarda Lobo, proc. 186/16.5T9PRT.P1, em www.dgsi.pt.
[9] - Cf. Acórdão da Relação de Lisboa de 7.11.2019, rel. Filipa Costa Lourenço, proc. 43/17.5IDFUN.L1-9, em www.dgsi.pt. João Conde Correia e Hélio Rigor Rodrigues, em artigo publicado na revista Julgar Online de Abril de 2015, concluem que o quadro normativo vigente impõe a conclusão de que inexiste qualquer limite ao confisco motivado pela mera possibilidade de ser deduzido pedido de indemnização cível, tese com a qual concordamos, mas pelas razões que referimos.
[10] - Conforme João Maldonado, no ac. citado na nota 2.