Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
85/16.8GTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: VASQUES OSÓRIO
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DETECÇÃO
ACTUALIDADE DA CONDUÇÃO
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (INSTÂNCIA LOCAL - J3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 152.º E 156.º, DO CE
Sumário: Há condução actual, nas situações em que, as concretas circunstâncias tornam evidente e inequívoca a relação entre o agente e o facto, entre o cidadão fiscalizado e a condução, num conceito próximo do da presunção de flagrante delito [na modalidade de ser o agente encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu – cfr. 256º, nº 2 do C. Processo Penal].
Decisão Texto Integral:






Acordam, em conferência, na 4ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

 I. RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de Viseu – Viseu – Instância Local – Secção Criminal – J3, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo especial sumário do arguido A... , com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em autoria material, de um crime de desobediência, p. e p. pelos arts. 348º, nº 1, a) e 69º, nº 1, c) do C. Penal e 152º, nºs 1, a) e 3 do C. da Estrada.

Por despacho proferido na audiência de julgamento de 29 de Junho de 2016 [acta de fls. 31 a 34] foi comunicada ao recorrente uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, nada tendo sido oposto ou requerido.

Por sentença de 29 de Junho de 2016, foi o arguido condenado, pela prática do imputado crime, na pena de sessenta dias de multa à taxa diária de € 7, perfazendo a multa global de € 420 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de quatro meses.


*

            Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:

1ª) Em função de todos os factos supra alegados, verifica-se que o Mmº Juíz “a quo” fez uma interpretação errónea das normas aplicáveis ao caso sub judice. É que,

2ª) O arguido não esteve envolvido em qualquer acidente de trânsito, não sofreu, nem causou quaisquer danos ou vítimas, tendo simplesmente parado o veículo na berma da estrada em virtude de um furo num pneumático.

3ª) O artº 152º, nº 1 do CE determina que os condutores, os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito e as pessoas que se propuserem iniciar a condução devem submeter-se às provas estabelecidas para detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas.

4ª) O arguido não era condutor actual, nem era um peão interveniente em acidente de trânsito nem, muito menos, em função da condição do veículo, se propunha a iniciar condução.

5ª) Por outro lado, o evento imprevisto de um furo de um pneu constitui um mero incidente a que a lei em disposição alguma obriga à submissão ao teste de pesquisa do álcool.

6ª) Não configurando o arguido nenhuma das qualidades que o artº 152º nº 1 do CE impõe para que os sujeitos possam ser obrigados à submissão do teste de alcoolemia, é ilegítima a ordem emanada pelos agentes de autoridade. Neste sentido,

7ª) Não havendo ordem legítima, não há recusa, e, como tal, não se verificam os pressupostos do crime de desobediência, não podendo o arguido ser condenado, como foi.

8ª) Ao equiparar erroneamente o conceito de acidente de trânsito com sinistro e considerar que, apesar de não ter havido danos ou terceiros envolvidos, a situação dos autos configura a verificação de um “acidente de trânsito”, o Tribunal violou assim o disposto no artº 152º, nº 1 e nº 3 do CE, artº 156º nº do CE e artº 348º, nº 1, al. a) do CP.

9ª) Os “incidentes” não se integram no conceito de “acidente de trânsito” previsto no artº 152º nº 1 do CE.

10ª) Em função do alegado, não deve o arguido ser condenado, de todo, pelo crime de proibição de conduzir veículos a motor, artº 69º, nº 1, al. c) do CP.

Pelo exposto e pelo mais que doutamente será suprido, deve conceder-se provimento a este recurso, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se o arguido, com o que esse Venerando Tribunal uma vez mais fará JUSTIÇA!


*

            Respondeu ao recurso o Digno Magistrado do Ministério Público, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões:

            1 – A matéria de facto dada como provada não foi devidamente impugnada, pelo que deve ser mantida;

                2 – O recorrente pode (tem) de se considerar condutor actual;

                3 – O recorrente foi interveniente em acidente de viação;

                4 – A ordem que lhe foi dada foi legítima.

                V. Ex.ªs, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!


*

Na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, aderindo à contramotivação do Ministério Público, afirmando que, face à matéria de facto provada, o recorrente tem que ser considerado condutor, e concluiu pela improcedência do recurso.

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            Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.

 

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.



            II. FUNDAMENTAÇÃO

Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.

Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, são:

- O não preenchimento pelo recorrente de nenhuma das qualidades previstas no nº 1 do art. 152º do C. da Estrada; e,

- O consequente não preenchimento do tipo do crime desobediência.


*

Para a resolução destas questões importa ter presente o que de relevante consta da sentença recorrida. Assim:

A) Nela foram considerados provados os seguintes factos, por nós numerados [de acordo com o que consta do registo gravado da audiência, posto que foi proferida oralmente, nos termos do disposto no art. 389º-A, nº 1, a) do C. Processo Penal]:

“ (…).

1. No dia 10 de Junho de 2016, pelas 7h, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros (...) ZF próximo do km 94,800 [do IP5], quando embateu num objecto na via e rebentou um pneu, imobilizando-se nesse local.

2. Na medida em que não logrou trocar a roda o arguido chamou a assistência em viagem e ficou a aguardar pela respectiva chegada dentro da viatura.

3. Enquanto o arguido aguardava, dentro da viatura, chegou ao local uma patrulha da Guarda Nacional Republicana constituída por B... e C... que ordenaram ao arguido que realizasse o teste qualitativo para a detecção de álcool no sangue.

4. Após duas tentativas de sopro no aparelho qualitativo em que não realizou qualquer sopro o agente de autoridade ordenou ao arguido que realizasse um teste de um aparelho quantitativo, o que este recusou, alegando problema de saúde que o impediam de o fazer.

5. Em face de tal recusa o agente de autoridade advertiu o arguido que, nesse caso, seria transportado a uma unidade de saúde para realizar um teste por recolha de sangue.

6. Ante tal advertência, o arguido respondeu que não faria qualquer tipo de teste.

7. Foi o arguido então advertido de que a recusa, naqueles termos, constituía crime de desobediência, mantendo-a.

8. O arguido sabia, e porque disso também foi advertido, que estava legalmente obrigado a submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou outras substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicos, porque era condutor de veículo automóvel na via pública, e que, ao recusar-se a efectuar o teste quantitativo, incorria na prática do crime de desobediência.

9. E ciente de tal, agiu querendo proceder dessa forma, recusando-se às mesmas.

10. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que os factos praticados eram proibidos e punidos por lei.   

11. O arguido está desempregado, vive sozinho em casa própria, sem encargos, tem € 920 de subsídio de desemprego que termina dentro de dois meses, paga um crédito pessoal com prestação de € 150 por mês e € 160 de pensão de alimentos a uma filha menor e tem o 9º ano de escolaridade.

12. Não tem antecedentes criminais.

(…)”.

B) Nela não foram considerados quaisquer factos como não provados.


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            Do não preenchimento pelo recorrente de nenhuma das qualidades previstas no nº 1 do art. 152º do C. da Estrada

            1. Alega o recorrente – conclusões 2ª, 4ª e 6ª – que não esteve envolvido em acidente de viação, tendo apenas parado a viatura na sequência de um furo num pneu, que por esta razão não era condutor actual, nem se propunha iniciar a condução, e também não era peão, interveniente em acidente de trânsito pelo que, não estava sujeito às obrigações decorrentes do disposto no art. 152º, nº 1 do C. da Estrada.    

            Oposta é a posição do Ministério Público para quem o recorrente era condutor actual e foi interveniente em acidente de viação pelo que, nos termos do citado artigo, devia submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool.

            Vejamos, então, em nosso entender, a quem assiste razão.

            Começaremos por dizer que a matéria de facto provada constante da sentença em crise não foi impugnada pelo recorrente, nos termos prescritos no art. 412º, nºs 3 e 4 do C. Processo Penal. Por outro lado, também na sentença não se evidencia a presença de qualquer dos vícios da decisão previstos no nº 2 do art. 410º do mesmo código.

            Assim, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto, nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância.

            Estabelece o art. 152º do C. da Estrada, na parte em que agora releva:

            1. Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas:

            a) Os condutores;

            b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;

            c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.

            (…)

            3. As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do nº 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.

            (…).

            São portanto, três as categorias de cidadãos que estão sujeitos à submissão a provas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool: os condutores, os peões, quando intervenientes em acidente de viação e, qualquer pessoa que pretenda iniciar a condução.

            Tendo em conta a matéria de facto provada, é manifesto que o recorrente não tem a qualidade de peão e, muito menos, nessa qualidade, foi interveniente em acidente de trânsito.

            Tendo em conta a mesma factualidade, dúvidas também não subsistem de que o recorrente também não tem a qualidade de pessoa que se propunha iniciar a condução. Acresce que, independentemente até da matéria de facto provada, nesta sede, nunca se colocaria a questão de o recorrente ter cometido o crime de desobediência, uma vez que o nº 3 do art. 152º do C. da Estrada não comina com desobediência a recusa de submissão às provas para detecção de álcool das pessoas que tenham a referida qualidade, apenas estabelecendo o nº 4 do mesmo artigo que serão impedidas de iniciar a condução.

           

Resta, assim, a qualidade de condutor. E entende o recorrente que não a tem porque, quando foi abordado pelo OPC, já não existia actualidade da condução. Em nosso entender, e ressalvado sempre o devido respeito, não tem razão.

A actualidade da condução, para efeitos de preenchimento do tipo do crime de desobediência, quando a acção se traduz na recusa de submissão às provas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, é um requisito que visa, tão-só, fixar se a condução foi exercida sob a influência do álcool, afastando as situações em que, pelas circunstâncias concretas que nelas concorrem, não é possível, com razoabilidade, concluir que o cidadão fiscalizado pela autoridade policial conduziu, de facto, sob aquela influência.

Concordando com o recorrente, aqui incluímos as situações mencionadas no acórdão desta Relação que cita (acórdão de 16 de Dezembro de 2015, processo nº 55/15.3GBALD.C1, in www.dgsi.pt) sendo portanto, condução actual, a do cidadão que, conduzindo veículo na via pública, é mandado parar pela autoridade, a do cidadão que, na mesma situação, não pára, sendo perseguido e interceptado e, a do cidadão que foi interveniente em acidente de viação e ainda no local, é fiscalizado pela autoridade.

Mas também entendemos ser de alagar o conceito àquelas situações em que, as concretas circunstâncias tornam evidente e inequívoca a relação entre o agente e o facto, entre o cidadão fiscalizado e a condução, num conceito próximo do da presunção de flagrante delito [na modalidade de ser o agente encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu – cfr. 256º, nº 2 do C. Processo Penal].

Revertendo para a matéria de facto provada, é evidente que o recorrente não conduzia o veículo pelo IP5 e, em pleno exercício da condução, foi mandado parar pela patrulha da GNR. E é também evidente, face à mesma matéria de facto, que não desobedeceu a ordem de paragem, foi perseguido e depois, interceptado pela patrulha da GNR.

O que está provado é que o recorrente conduzia o veículo pelo IP5 e a dada altura, embateu num objecto que se encontrava na via tendo, em consequência do embate, rebentado um pneu, o que determinou a imobilização do veículo nesse local. Está ainda provado que o recorrente não conseguiu mudar o pneu e por isso, chamou a assistência em viagem e aguardou dentro da viatura, sendo então abordado por uma patrulha da GNR, cujos militares lhe solicitaram que realizasse o teste para a detecção de álcool no sangue.

Perante esta factualidade, em que o recorrente é o único tripulante do veículo quando se dá a abordagem do OPC, veículo que se encontra incapaz de sair do local pelos seus próprios meios, parece-nos evidente que o recorrente tinha, há relativamente pouco tempo, acabado de exercer a condução e não havia saído do local, uma vez que aguardava a equipa de reparação. A condução do recorrente é, portanto, uma condução actual.

Por outro lado, e contrariamente ao pretendido pelo recorrente, o veículo por si conduzido não sofreu um furo num pneu. O que aconteceu foi que se deu um embate do veículo com um objecto que se encontrava na via, embate que causou o rebentamento do pneu que, por sua vez, determinou a imobilização daquele no local.

O embate de um veículo num objecto, causador do rebentamento de um pneu é, seguramente, um acidente de trânsito, cujo dano patrimonial consistiu, pelo menos, na inutilização do pneu.

Deste modo, atento o disposto no art. 156º, nº 1 do C. da Estrada, estava o recorrente obrigado a submeter-se a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.

Em síntese conclusiva:

- O recorrente era condutor actual e tinha sido interveniente em acidente de trânsito, quando foi fiscalizado pela patrulha da GNR;

- Assim, e nos termos do disposto nos arts. 152º, nº 1, a) e 156º, nº 1, ambos do C. da Estrada, estava obrigado a submeter-se a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.


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            Do não preenchimento do tipo do crime desobediência

            2. Na sequência da pretendida ausência das qualidades de condutor actual e de interveniente em acidente de trânsito, alega o recorrente – conclusões 7ª e 10ª – que não devia ter sido condenado pela prática de um crime de desobediência, por não ter sido legítima a ordem que lhe foi dada.

           

            São elementos constitutivos do tipo do crime de desobediência (348º, nº 1, a) do C. Penal):

            [Tipo objectivo]

            - Que o agente falte à obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos;

            - Que a ordem ou mandado tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente;

            - A existência de cominação legal de desobediência para a recusa de cumprimento;

            [Tipo subjectivo]

            - O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade [em qualquer uma das modalidades legalmente previstas]. 

            Vimos no ponto antecedente que o recorrente, por ser condutor actual e ter sido interveniente em acidente de trânsito, estava obrigado a submeter-se a exame de pesquisa de álcool no ar expirado.

            Assim, a ordem que lhe foi dada pelos militares da GNR para que realizasse o teste qualitativo para a detecção de álcool no sangue foi legítima e regularmente comunicada.

            Por outro lado, os factos provados preenchem os demais elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime.

           

Em conclusão, o recorrente praticou o crime de desobediência, p. e p. pelos arts. 348º, nº 1, a) e 69º, nº 1, c) do C. Penal e 152º, nºs 1, a) e 3 do C. da Estrada, que determinou a sua condenação nos autos, pelo que, não merece censura a sentença recorrida.


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III. DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.


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            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCS. (art. 513º, nº 1, do C. Processo Penal, art. 8º, nº 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).

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Coimbra, 22 de Fevereiro de 2017


(Heitor Vasques Osório – relator)


(Helena Bolieiro – adjunta)