Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2159/13.8TALRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIDADE INTELECTUAL
ACTA
EXTINÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
REGISTO COMERCIAL
Data do Acordão: 03/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO DA INSTÂNCIA CRIMINAL DE LEIRIA – JUIZ 3)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 256.º, N.º 1, AL. D), DO CP
Sumário: I – Não é de confundir a situação em que o agente não tem o domínio sobre a produção do documento, limitando-se à declaração do facto no mesmo reportado, daquela outra em que o agente pratica um acto material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante, como sucede quando o arguido, na qualidade de sócio gerente da uma sociedade por quotas, tendo em vista a extinção do ente colectivo, redige e assina uma acta - cujo teor, relativo à descrita inexistência de activo e passivo, é inverídico/falso -, destinada a instruir, como sucedeu, pedido de instauração, no Registo Comercial, de procedimento administrativo de extinção imediata da pessoa colectiva, o que veio a ocorrer.

II – O primeiro caso, não configura crime de falsificação de documento, enquanto o segundo preenche o tipo objectivo previsto no artigo 256.º, n.º 1,al. d), do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. No âmbito dos Autos de Instrução n.º 2159/13.8TALRA do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Leiria – Juízo Inst. Criminal – Juiz 3, na sequência da acusação pública deduzida contra A... , melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática, como autor material, de um crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo artigo 256.º, nº 1, alínea d) e e), por referência à alínea a) do artigo 255.º, todos do C. Penal, requereu o arguido a abertura da fase de instrução.

2. Finda a instrução, em 21.10.2016, foi proferida decisão instrutória que culminou com a não pronúncia do arguido.

3. Inconformado com a decisão recorreu o Ministério Público, formulando, então, as seguintes conclusões:

1.º A nossa discordância e portanto a razão do presente recurso prende-se com o despacho de não pronúncia exarado em 21.10.2016.

2.º O crime de falsificação de documento é um crime comum, de mera atividade, e de perigo abstrato, que tutela a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório relativo à prova. As alíneas a) a d), inclusive, do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, preveem as várias modalidades que pode assumir a falsificação de um documento e as alíneas e) e f) tipificam como crime a circulação do documento falso.

3.º São elementos constitutivos deste tipo de ilícito um comportamento do agente concretizado em qualquer uma das atividades enumeradas nas alíneas do nº 1 do citado artigo 256º e, quanto ao elemento subjetivo, a vontade de praticar o facto e, ainda, a intenção de causar prejuízo ao Estado ou a terceiro, ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo. Assim, no crime de falsificação exige-se o dolo específico, ou seja, a intenção de causar prejuízo ou de obter benefício ilegítimo. Contudo, a consumação do prejuízo patrimonial é indiferente no crime de falsificação.

4.º No caso sub judice deu-se como provado que o arguido A... , enquanto sócio-gerente desde o dia 25 de Julho de 2006 até ao dia 26 de Abril de 2013 da sociedade comercial unipessoal por quotas B... , Lda.”, na Travessa (...) , Ourém, fez constar na ata número nove datada do dia 17 de Abril de 2013, que redigiu e assinou, os seguintes dizeres: “(…) considerando que já foi liquidado todo o ativo e passivo da sociedade, que não existem bens a partilhar e que as respetivas contas de 2013 já foram aprovadas e encerradas, foi deliberado por unanimidade dissolver a referida sociedade (…)”, facto que bem sabia ser falso uma vez que estava perfeitamente consciente de que a mesma tinha, naquela data, pelo menos a dívida à sociedade comercial “ C... , Lda.”, correspondente ao valor de compras (cobertura de lâminas Abriblue Immbox para piscina, no montante de € 4.580,50 e cobertura de lâminas Abriblue Immbox para piscina, na importância de 4.445,20 €) e que, por tal motivo, a queixosa instaurou em 8 de Abril de 2013 processo de injunção, que correu termos com o n.º 52040/13.3YIPRT, na Secção Cível de Ourém, contra a sociedade comercial “ B... , Lda.”. Na posse desta ata, no dia 26 de Abril de 2013, o arguido dirigiu-se à Conservatória de Registo Comercial de Leiria e ali registou a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da sociedade comercial “ B... , Lda.”.

5.º Ora, o que está aqui em causa no tocante à declaração relativamente à inexistência de passivo da sociedade é o seu valor declarativo, para efeitos de extinção imediata da sociedade comercial. Tal declaração não tem como virtualidade a prova da inexistência de dívidas da sociedade, que até podem existir e existem no presente caso; te sim valor declarativo para, verificados os pressupostos legais, permitir o acesso ao procedimento especial de extinção imediata de entidades comerciais, sem passar pela fase prévia de liquidação do património societário – cf. artº 27º do Regime Jurídico da Dissolução e da Liquidação de Entidades Comerciais.

6.º Do explanado, resulta que inicialmente o documento em questão, i. é, a referida ata, só por si, seria anódino, apesar de dele ter o arguido feito constar facto falso (a inexistência de passivo), dado que essa declaração não tinha a virtualidade de liberar a sociedade perante os seus credores. No entanto, a intenção concretizada pelo arguido de usar tal declaração inserta na ata, com a finalidade de assim obstar ao procedimento de liquidação da sociedade, obtendo a imediata dissolução e liquidação da mesma, sem passar por tal procedimento, transformou tal declaração – que, não fora tal uso, apenas integraria um falso não punível – em declaração expressa de «facto juridicamente relevante» para aquele efeito. Aliás, a redação do aludido no nº 1 do artº 27º atribui relevância ao facto declarado, na medida em que, não existindo a referida declaração de inexistência de passivo, não poderia ter lugar tal procedimento especial (al. b)) e por sua vez este, pondo em causa a segurança das relações jurídicas, conduziu à imediata extinção da sociedade.

7.º No que concerne à relevância que se atribui à não prova da inexistência de ativo entendemos que a declaração da inexistência de passivo tem a relevância que aqui já lhe atribuímos e em nada fica prejudicada pela inexistência de ativo. Note-se que a norma da alínea b) do nº 1 do mencionado artigo 27º usa a disjuntiva “ou” e não a conjuntiva “e”, o que faz concluir que o procedimento em causa só pode ter lugar se inexistir ativo e passivo a liquidar.

8.º Na sequência deste raciocínio realça-se que não se mostra igualmente pertinente fazer apelo à circunstância de o não pagamento da dívida não ser consequência direta da extinção da sociedade devedora mas, isso sim, da inexistência de ativo que responda pelas dívidas. É que o elemento subjetivo do tipo traduz-se na exigência de um dolo específico, consistente na intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo. Não se exige a efetiva ocorrência desse prejuízo ou benefício; basta que haja sido aquele o propósito a presidir à manobra defraudatória praticada pelo arguido, o que ocorreu no presente caso.

9.º O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente ao apresentar o documento em apreço na Conservatória do Registo Comercial de Leiria, nos termos igualmente supra referidos. Fê-lo com vista a criar um documento a que fosse atribuída fé pública, ciente de que o que declarava e fazia constar no mesmo era juridicamente relevante e não correspondia à verdade, logrando assim inscrever no registo e tornar pública a dissolução da sociedade e inexistência de ativo e passivo e levar à extinção da aludida sociedade, enquanto pessoa coletiva, sabendo que obtinha benefício ilegítimo para si, a que não tinha direito.

10.º Perante o supramencionado, conclui-se que o tipo em estudo, de falsificação de documento, p. e p. pelo artº 256º, 1, d) e e), por referência ao artigo 255º, al. a), ambos do Código Penal, está consumado, quer na sua perspetiva típica subjetiva, quer objetiva.

11.º Ao exarar o despacho de não pronúncia colocado em crise o Mmo. Juiz de Instrução Criminal não apreciou corretamente a prova produzida, nem retirou as conclusões lógicas que a matéria dada como provada impunha, violando deste modo o disposto no artigo 256º do CP e nos artigos 127º e 308º, nº 1, ambos do CPP. Assim, requer-se que a decisão recorrida seja revogada, substituindo-se por outra que determine a submissão do arguido a julgamento pela prática do assacado crime de falsificação de documento.

Porém, decidindo, V. Ex. farão a costumada Justiça.

4. O recurso foi admitido para subir imediatamente e com efeito devolutivo.

5. Ao recurso respondeu o arguido defendendo a manutenção da decisão recorrida.

6. Na Relação o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, acompanhando a posição perfilhada pelo recorrente, se pronuncia no sentido do recurso dever proceder.

7. Cumprido o n.º 2 do artigo 417.º do CPP, não houve reação.

8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, pois, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Sendo por intermédio das conclusões que se delimita o objeto do recurso, a questão que urge decidir traduz-se em saber se, ao lavrar (escrever e assinar) ata donde fez constar, sem correspondência com a realidade, que a sociedade B... , Lda., da qual era sócio gerente, não tinha ativo nem passivo a liquidar, deliberando, assim, a sua dissolução e apresentando-a, após, na Conservatória de Registo Comercial, com o que logrou registar a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da dita sociedade, incorreu o arguido na prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas d) e e) do C. Penal. 

2. A decisão recorrida

Ficou a constar do despacho recorrido [transcrição parcial]:

(…)

B) Análise crítica da decisão final do inquérito e ponderação dos indícios:

I – Atento o acervo probatório constante dos autos de inquérito e na instrução consideram-se suficientemente indiciados os seguintes factos constantes da acusação:

1 - O arguido A... foi sócio-gerente da sociedade comercial unipessoal por quotas “ B... , Lda.” desde o dia 25 de Julho de 2006 até ao dia 26 de Abril de 2013, tendo tal sociedade comercial por objeto comercial, designadamente, a construção e manutenção de piscinas e jardins. 

2 – No dia 17 de Abril de 2013, pelas 20 horas, na Travessa (...) , Ourém, o arguido A... , na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial “ B... , Lda.” redigiu e assinou a ata número nove, na qual, designadamente, fez constar os seguintes dizeres: “(…) considerando que já foi liquidado todo o ativo e passivo da sociedade, que não existem bens a partilhar e que as respetivas contas de 2013 já foram aprovadas e encerradas, foi deliberado por unanimidade dissolver a referida sociedade (…)”. 

3 - Na posse de tal ata, no dia 26 de Abril de 2013, o arguido dirigiu-se à Conservatória de Registo Comercial de Leiria e ali registou a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da sociedade comercial “ B... , Lda.”. 

4 – Sucede que, no âmbito da atividade comercial exercida por tal sociedade comercial, o arguido tinha encomendado, em 9 de Agosto de 2012, diverso material à sociedade comercial ofendida “ C... , Lda.”, tal como: cobertura de lâminas Abriblue Immbox para piscina de 10,58x2,97m, no montante de 4.580,50 (quatro mil, quinhentos e oitenta euros e cinquenta cêntimos9 euros e cobertura de lâminas Abriblue Immbox para piscina de 9,00x2,99m, no montante de 4.445,20 (quatro mil, quatrocentos e quarenta e cinco euros e vinte cêntimos) euros.

5 - Para pagamento de parte do preço de tal compra, no dia 31 de Janeiro de 2013, o arguido emitiu, assinou e entregou à queixosa o cheque nº C... , sacado sobre o “ P... ”, no montante de 3.025,70 (três mil e vinte e cinco euros e setenta cêntimos) euros, o qual apresentado a pagamento foi devolvido em 21 de Fevereiro de 2013 por falta de provisão. 

6 - Por tal motivo e por o arguido não ter pago o restante montante relativo ao preço das referidas compras, a queixosa instaurou em 8 de Abril de 2013 processo de injunção, que correu termos com o nº 52040/13.3YIPRT, na Secção cível de Ourém, contra a sociedade comercial “ B... , Lda.”.

   7- Sabia o arguido que ao redigir na referida ata no dia 17 de Abril de 2013 que a sociedade comercial “ B... , Lda.” Já não tinha ativo e tinha liquidado todo o seu passivo, tal não correspondia à verdade, pois a sociedade comercial ainda não tinha pago à sociedade comercial ” C... , Lda.” o preço das referidas compras. 

8 - Sabia o arguido que apresentava tal documento, que continha dizeres não correspondentes com a realidade, junto da Conservatória de Registo Comercial de Leiria. 

9 – Sabia o arguido que só conseguia registar na Conservatória de Registo Comercial a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da sociedade comercial “ B... , Lda.” Caso apresentasse documento do qual constasse nomeadamente que a referida sociedade já não tinha ativo e tinha liquidado todo o seu passivo. 


*

II – Factos não indiciados e constantes da acusação.

 1Com tal conduta, o arguido agiu com intenção de obter para si e para a sociedade comercial da qual era sócio-gerente “ B... , Lda” uma forma ilegítima, que sabia não ser real e à qual não tinha direito, de não pagar voluntaria ou coercivamente à ofendida o montante em dívida relativamente ao preço das compras que efetuara, pois a sociedade comercial “ B... , Lda.” Ao ser dissolvida e a sua matrícula cancelada deixava de existir e de poder satisfazer as dívidas. 

2 – Agiu, ainda, o arguido com intenção de causar prejuízo à sociedade comercial ofendida, pois, com a sua conduta supra referida, esta nunca iria ser ressarcida do preço da venda dos referidos bens, pois a sociedade comercial “ B... , Lda.” Deixou de existir e de ter património penhorável, o que logrou o arguido concretizar.

3 – Sabia o arguido que toda a sua conduta lhe estava legalmente vedada por ser ilícita e criminalmente punível.


*

C - Motivação

Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado.

 Os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado. 

 O juízo sobre a suficiência dos indícios, feito com base na avaliação dos factos, na interpretação das suas intrínsecas correlações e na ponderação sobre a consistência das provas, contém sempre, contudo, necessariamente, uma margem (inescapável) de discricionariedade. 

 O despacho de pronúncia, como também a acusação, dependem, pois, da existência de prova indiciária, de prima facie, de primeira mas razoável aparência, quanto à verificação dos factos que constituam crime e de que alguém é responsável por esses factos. 

Ora importa para este efeito apreciar da prova produzida, quer no inquérito, quer na fase de instrução:

O arguido foi sujeito a interrogatório e confirmou que o mesmo era sócio e gerente da sociedade comercial unipessoal por quotas “ B... Lda.” e que em 17 de Abril de 2013 nessa qualidade redigiu e assinou a ata número nove, na qual fez constar que a sociedade não tinha ativo, nem passivo.

 O arguido admitiu que a sociedade tinha dívidas, concretamente a que está identificada na acusação, e que não tinha bens. O arguido explicou ainda que face à situação económica difícil que atravessava a sociedade, decorrente entre outros factos, da situação de não conseguir obter pagamento de valores que lhe eram devidos, decidiu por termo a essa sociedade, uma vez que a sua continuação implicava o acumular de encargos e de dívidas que não tinha capacidade para satisfazer. O arguido referiu ainda que procurou aconselhamento jurídico e que das opções que lhe foram apresentadas optou por recorrer por recorrer à dissolução da sociedade nos termos referidos e que estão elencados na acusação. O arguido declarou que elaborou tal documento para obter o cancelamento da matrícula da sociedade, tendo consciência que o que fez contar nessa ata não correspondia à verdade, uma vez que apesar de não existir ativo existia passivo da responsabilidade da sociedade.

O arguido referiu que na sua visão esta foi a melhor opção, sublinhando que a mesma em nada prejudicava os credores sociais, os quais poderiam tentar cobrar o que lhes era devido à custa do património da sociedade e dos sócios. O arguido referiu ainda que a sociedade na ocasião em que elaborou a ata já não tinha bens, situação essa que não se alterou após o encerramento da liquidação.

As declarações do arguido, conjugadas com a prova testemunhal e documental existente no inquérito, concretamente: 

- O depoimento da testemunha I... cujas declarações constam de fls. 32 dos autos e os documentos  

- Fatura nº. 87924/ 87925 - Fls. 7 e 8.

- Cópia do cheque nº. C... – Fls. 9.

- Cópia da certidão permanente da sociedade “ B... , Lda.” - fls. 10 a 12 e de fls. 91 a 93.

- Certidão extraída dos autos de ação especial nº. 52040/13.3 YIPRT - fls. 85 e ss.

- Cópia da ata nº. nove de 17 de Abril de 2013 – fls. 18.

Permitem concluir que se encontra suficientemente indiciada a factualidade indicada, a qual não é colocada em causa pelo próprio arguido no requerimento apresentado para a instrução. 

No que concerne aos factos indicados como não indiciados tal resulta da circunstância de não ter sido feita no que concerne aos mesmos. Das declarações prestadas pelo arguido retira-se a motivação subjacente à sua atuação, a qual não visou diretamente atingir os interesses da sociedade credora identificada na acusação. 

O arguido declarou que existiam outros credores, assim como existiam pessoas e outras empresas que eram devedoras para com a “ B... ” de várias importâncias as quais o mesmo não conseguiu cobrar.

D) Da ponderação global dos indícios, por referência aos crimes imputados ao arguido.

 O arguido encontra-se acusado da prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.° 256°, n° 1, al. d) e e) do Código Penal. 

Sobre o crime de falsificação de documento:

Dispõe o artigo 256.º do Código Penal: 

 “1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:  

a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;  

b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;  

c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;  

d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante; 

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou

f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito; é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.  

2 - A tentativa é punível.  

3 - Se os factos referidos no n.º 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força, a testamento cerrado, a vale do correio, a letra de câmbio, a cheque ou a outro documento comercial transmissível por endosso, ou a qualquer outro título de crédito não compreendido no artigo 267.º, o agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.  

 O bem jurídico tutelado reside no valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados na “qualificativa”, assegurando a sua genuinidade no desenrolar da vida em sociedade, garantindo assim a estabilidade das relações sociais, ou seja, assegurar a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório, que no que concerne aos títulos de crédito diz respeito à proteção da sua circulação comercial.

O crime de falsificação de documento visa proteger a verdade intrínseca do documento enquanto tal, por outras palavras, visa proteger a segurança no tráfico jurídico relacionada com os documentos (neste sentido veja-se Helena Moniz em Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pág. 680, Matos Fernandes, in Falsificação de Documentos, Moeda, Pesos e medidas, CJ, ano IX, Tomo IV, pág. 31).

Acentua-se, deste modo, as duas funções que o documento pode ter: função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana e função de garantia, pois cada autor do documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal qual como ele num certo momento e local as expôs. 

A simples falsificação do documento é suficiente para preencher a conduta objetivamente típica, uma vez que o legislador presume ser a mesma potencialmente lesiva do bem jurídico protegido com o preceito incriminador (crime de perigo abstrato). Porém, só se verifica a efetiva lesão daquele quando o documento falso é apresentado, utilizado como meio de prova de algum facto, isto é, quando o documento é colocado no tráfico jurídico. Antes disso, existe apenas perigo de lesão do bem jurídico, e não ainda, lesão daquele. São elementos objetivos do tipo, a adulteração de documento sob alguma das formas descritas nas diversas alíneas do nº. 1 do art. 256º do CP.

Ou seja, para o preenchimento do tipo objetivo deverá o arguido praticar para além do ato de falsificação, um dos tipos de atividades previstas nas alíneas a) a f). 

Quanto ao elemento subjetivo, trata-se de um crime intencional, isto é, o agente necessita de atuar com dolo, mas com a especial intenção de “causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

Ora no caso concreto está em causa a elaboração no dia 17 de Abril de 2013, pelo arguido, na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial “ B... , Lda.”, da ata número nove, na qual, designadamente, fez constar os seguintes dizeres: “(…) considerando que já foi liquidado todo o ativo e passivo da sociedade, que não existem bens a partilhar e que as respetivas contas de 2013 já foram aprovadas e encerradas, foi deliberado por unanimidade dissolver a referida sociedade (…)”. 

 O arguido na posse de tal ata, no dia 26 de Abril de 2013, dirigiu-se à Conservatória de Registo Comercial de Leiria e ali registou a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da sociedade comercial “ B... , Lda.”. 

 Importa pois apreciar se estão verificados os pressupostos necessários à imputação ao arguido do crime de falsificação de documento.

A questão em apreço não é pacífica existindo em relação à mesma divisão na jurisprudência. Recentemente no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 2 de Março de 2016, proferido no processo n.º 2125/13.3TAVIS.C1, Relator Juiz Desembargador Jorge França, considerou-se que:

     “ Comete o crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, nº. 1, al. d) do Código Penal, o agente, legal representante de uma sociedade por quotas, que lavra uma ata com teor não correspondente à realidade relativa à declarada inexistência do ativo e passivo, destinada a requerer – como efetivamente requereu -, com sucesso – na Conservatória do Registo Comercial, o procedimento especial de extinção imediata do dito ente coletivo”.

A respeito da questão de se saber se a declaração aposta na ata de inexistência de ativo e de passivo constitui ou não um facto juridicamente relevante, suscetível de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado e de traduzir para o agente a obtenção para o mesmo ou para outra pessoa de um benefício ilegítimo, pronunciou-se o referido Acórdão constando do mesmo que:

 “Tal declaração não tem como virtualidade a prova da inexistência de dívidas da sociedade, que até podem existir, e existem no nosso caso, mas apenas tem valor declarativo para, verificados os pressupostos legais, permitir o acesso ao procedimento especial de extinção imediata de entidades comerciais, sem passar pela fase prévia de liquidação do património societário nos termos do disposto no art° 27° do Regime Jurídico da Dissolução e da Liquidação de Entidades Comerciais (…) 

Ou seja: inicialmente o documento em questão, a referida ata, só por si, seria anódino, apesar de dele ter o arguido feito constar facto falso, v.g. a inexistência de passivo, pois que essa declaração não tinha a virtualidade de liberar a sociedade perante os seus credores. Só a intenção, concretizada pelo arguido, de usar tal declaração, inserta na ata, com a finalidade de assim obstar ao procedimento de liquidação da sociedade, obtendo a imediata dissolução e liquidação da mesma, sem passar por tal procedimento, transformou tal declaração – que, não fora tal uso, apenas integraria um falso não punível – em declaração expressa de «facto juridicamente relevante» para aquele efeito. Aquele art° 27°, n° 1, atribui relevância ao facto declarado, na medida em que, não existindo a referida declaração de inexistência de passivo, não poderia ter lugar tal procedimento especial (al. b)). E este conduziu à imediata extinção da sociedade”. 

“ A declaração da inexistência de passivo tem a relevância que lhe atribuímos e em nada fica prejudicada pela inexistência de ativo.”

“Não é aqui pertinente fazer apelo à circunstância de o não pagamento da coima e das custas em dívida não ser consequência direta da extinção da sociedade devedora mas, isso sim, da inexistência de ativo que responda pelas dívidas. E isto porque o elemento subjetivo do tipo se traduz na exigência de um dolo específico, consistente na intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou de obter para si ou outra pessoa benefício ilegítimo. E em termos provados tal dolo existiu. Não se exige, para a perfeição do crime, a efetiva ocorrência desse prejuízo ou benefício, bastando que haja aquele propósito a presidir à manobra defraudatória praticada pelo agente”.

No acórdão em apreço e em defesa da posição assumida são ainda citados os acórdãos: - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19.02.2014, publicado in http://www.dgsi.pt/jtrc, constando no sumário do referido acórdão que:

 “ I - Não é de confundir a situação em que o agente não tem o domínio sobre a produção do documento, limitando-se à declaração do facto no mesmo reportado, daquela outra em que os agentes praticam um ato material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante, como sucede quando as arguidas, únicas sócias de uma sociedade por quotas, deliberam em conjunto extinguir o ente coletivo, lavrando, de comum acordo, para o efeito, uma ata com o teor inverídico/falso relativo à inexistência de ativo e passivo, por ambas subscrita, destinada a instruir, como instruiu, pedido de instauração, no Registo Comercial, de procedimento administrativo de extinção imediata da pessoa coletiva, o que veio a ocorrer.

 II - O primeiro caso, não configura crime de falsificação: o segundo, preenche o tipo objetivo descrito no artigo 256. °, n. °1, al. d), do CP.

 Escreve-se ainda no referido acórdão, e na parte que aqui releva: ”Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio do facto ou de direito sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento.

“No que concerne à idoneidade da dita ata para “causar dano” ou “ por em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características está destinado a projetar, com respeito por opinião contrária, (…) sufragamos o entendimento que, com base nessa declaração falsa foi possível às arguidas obter a dissolução e extinção da sociedade, designadamente em relação à sua matrícula no registo comercial, que foi cancelada, através do pedido que apresentaram para o efeito. Para obter essa dissolução e extinção da sociedade, atento o facto de ter sido declarado que a mesma não tinha ativo, nem passivo, não houve necessidade de previamente proceder à sua liquidação. Na verdade, determina o artigo 160.°, n°2, do Código das Sociedades Comerciais que a sociedade considera-se extinta pelo registo do encerramento da liquidação. Se constasse da ata o facto verdadeiro quanto à situação da sociedade, ou seja, que a mesma tinha ativo e passivo, haveria necessidade, por tal estar imposto legalmente, designadamente nos artigos 146º e ss do CSC, proceder à prévia liquidação do seu património, composto pelo seu ativo e pelo seu passivo. Nesse caso, haveria necessidade de liquidar o ativo da sociedade e proceder ao pagamento das dívidas da mesma com o produto daquela liquidação. Só depois da liquidação estar encerrada é que seria possível a sociedade solicitar a sua extinção. Verifica-se assim que aquele facto falso, de que a sociedade em causa não tinha ativo, nem passivo, foi apto a extinguir uma relação jurídica, designadamente aquela empresa, no âmbito do registo comercial e com eficácia geral para todas as pessoas, incluindo os credores da empresa, após a realização de extinção e o cancelamento da matrícula.”

E ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 20.12.2011, na parte onde se refere:

 “ Em concreto, a relevância jurídica resulta da própria lei: o ato permitiu uma alteração no mundo do Direito, traduzido na extinção de uma pessoa coletiva, com o consequente benefício, que no caso não tem relevância patrimonial direta, traduzido no próprio encerramento, gerador de aparência perante terceiros de uma realidade diferente da existente, suscetível de gerar inação daqueles na reclamação de créditos. Acrescida da cessação das responsabilidades dos arguidos enquanto gerentes. E impediram que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, o que teria consequências diretas para as suas pessoas. E conclui-se que a influência de um ato destes no mundo do Direito é de tal ordem, que a simples extinção da sociedade, quando havia património e dividas a cobrar, se traduziu num benefício que, de outra forma não lograriam e, logo, injusta e legalmente não tutelada".

 No entanto em posição diversa e com a qual concordamos, com respeito por opinião contrária, foi defendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra 19.06.2013, proferido no processo nº. 1783/11.8 T3AVR. C1, Relator Juiz Desembargador Brizida Martins, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc, no qual se pode ler:

1 - A declaração inverídica perante notário no ato de celebração de escritura pública de dissolução da sociedade, segundo a qual esta não tinha passivo a liquidar, não é suscetível de constituir o crime de falsificação de documento; 

 2- Na falsificação intelectual ou ideológica é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa. A alteração surgirá aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que é realizada;

 3 – Ora, a arguida declarou na ata da assembleia geral que deliberou pela dissolução da sociedade que esta não tinha qualquer passivo a liquidar. E foi isso, e apenas isso mesmo que declarou perante o oficial público e este incorporou na escritura outorgada. Logo o documento em si não apresenta qualquer mácula; reproduz fielmente o ato.

 4- Por outro lado, a mesma assembleia e a ata que narra a deliberação tomada tinha por objetivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito que abala ou anula essa sua finalidade. O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projetar. A ata não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova suscetível de ser usado para excecionar eventuais débitos. “

 No referido Acórdão consta ainda que: “ A doutrina e a jurisprudência têm considerado que a previsão incriminatória do artigo 256.° do Código Penal, engloba tanto a falsidade material (quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente - o documento não é genuíno), como a falsidade intelectual (quando o documento é genuíno mas não traduz a verdade por haver uma desconformidade entre a declaração e o que dele consta – o documento é inverídico).

 Nesta – falsificação intelectual ou ideológica – é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa. A alteração dá-se aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da realizada. Esta modalidade de falsificação estará abrangida pela expressão falsificar ou alterar documento do 256º, nº. 1, al. a) do CP.

Ora, não é disto que tratam os factos dados como provados nos autos.

Como vimos, os arguidos declararam na escritura pública de dissolução da sociedade que esta não tinha qualquer passivo a liquidar. E foi isso que o emitente fez constar do documento. 

 Portanto, o documento em si não apresenta qualquer mácula: reproduz fielmente o ato.  

Por outro lado a escritura pública tinha por objetivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito que abala ou anula essa sua finalidade. 

 O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projetar. 

A escritura pública outorgada não serve para infirmar a existência de um crédito que sobre a sociedade se venha a reclamar: não é meio de prova suscetível de ser usado para excecionar eventuais débitos. 

Portanto, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 256.°, do Código Penal [a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos, e em particular, que os outorgantes produziram perante o notário aquelas declarações] não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina (…).

Assim e como bem refere a sentença recorrida, não é verdade que a assistente tenha ficado impedida por via da conduta dos arguidos de obter a cobrança coerciva do seu crédito, o que também não decorre do regime de dissolução e liquidação das sociedades comerciais previsto nos artigos 145º do CSC e artigo 162º e 163º, pois uma vez que foi declarada também a inexistência de ativo, e a acusação quanto a esta declaração não alega que a mesma não corresponda à realidade, nunca será por causa da declaração de inexistência do passivo que assistente viu frustrada a cobrança do seu crédito.”

No mesmo sentido pode citar-se os acórdãos:

 - Do Tribunal da Relação de Évora de 26.04.2016, proferido no processo nº. 1649/13.7 TDLSB.E1, Relator Desembargador Clemente Lima onde se pode ler que:

 “ 1 – A declaração, por parte dos arguidos, de que não existe passivo, em escritura pública de dissolução de sociedade, quando exista um crédito já reconhecido por sentença, transitada em julgado, não configura um crime de falsificação de documento, material, ideológico ou intelectual, poisa apesar de facto não é juridicamente relevante.”

2 – A declaração emitida pelos sócios de que a sociedade não tinha qualquer ativo ou passivo – facto esse que não era verdadeiro – é da responsabilidade dos sócios, não representando a escritura prova plena quanto a esse facto, não podendo essa declaração ser oposta aos credores.”

No mesmo sentido de que a declaração inverídica de que a sociedade não tem ativo, nem passivo, não constitui a prática de crime de falsificação de documento, nos termos do artigo 256º do CP, o

- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7.05.2014, proferido no processo nº. 6041/13.0 TAVNG.P1, Desembargadora Élia São Pedro; 

- Ac. Do Tribunal da Relação do Porto de 14.04.2010, proferido no processo nº. 5316/04.4 TDPRT.P1, relator Desembargador Artur Oliveira; 

- Ac do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.07.2011, proferido no processo nº.1465/08.8 TALRA.C1, desembargadora Alice Santos; 

- o Ac do Tribunal da Relação do Porto de 21.01.2015, proferido no processo nº.7640/13.6 TAVNG.P1, Desembargador Donas Botto; 

- o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.10.201, proferido no processo nº. 2630/07.0 TMSNT Luís Espirito Santo, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Reportando ao caso concreto cumpre referir que o crime de falsificação de documento visa proteger o bem jurídico da segurança e da credibilidade do tráfico jurídico probatório. 

Neste pressuposto o crime de falsificação de documento é um crime de perigo abstrato, pois após a falsificação do documento ainda não existe a violação do bem jurídico, mas o perigo dessa violação.

O objeto do crime de falsificação é assim o documento enquanto meio de prova de facto juridicamente relevante.

Neste ponto cumpre referir que a ata elaborada pelo arguido reporta-se à narração de um determinado evento e atesta o que foi declarado num determinado evento, neste caso, na reunião da Assembleia Geral da “ B... , Lda.” realizada no dia 17 de Abril de 2013, declaração que o arguido fez constar da ata e de acordo com a qual se decidiu por unanimidade dissolver a referida sociedade. Tal ata não atesta um facto juridicamente relevante e a mesma não constitui um documento falso, dado que na mesma se reporta fielmente o que aconteceu na referida reunião. 

Está assim afastada, em nossa opinião, a verificação dos requisitos exigidos pelo disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 256º do Código Penal.

A questão que se coloca é a de saber se em consequência do uso dado a esse documento, do qual constam declarações inverídicas, poderá o arguido incorrer na prática do crime de falsificação de documento, nomeadamente por referência ao disposto na al. e) do nº.1 do artigo 256º do Código Penal.

  O arguido ao requerer o registo da dissolução da sociedade decorrente do disposto no artigo 160º do CSC não faz uma nova declaração falsa, mas apenas formula um pedido, tendo por base uma anterior deliberação.

 Ou seja, nesse momento não existe qualquer falsidade material ou intelectual, pois não foi forjado, nem alterado, qualquer documento e o que é declarado e requerido nesse momento não apresenta desconformidade com o que se fez constar na ata.

Ou seja, o arguido utiliza um documento exato que contém uma declaração inverídica. Nestes termos a utilização da ata elaborada nas condições já descritas não integra a previsão da al. c) do nº. 1 do artigo 256º do CP, uma vez que “ o arguido não usou um documento a que se referem as alíneas a) a d) do CP”.

 Poderia colocar-se a questão de se apurar se em consequência da utilização de um documento que contém declarações inverídicas, mas que não é um documento falso, mas com base no qual se requereu o procedimento especial de extinção imediata da sociedade, se neste pressuposto e dado que assim se alcançou uma nova situação com relevância jurídica, se nestas condições estariam preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos exigidos para a verificação do crime de falsificação de documento.

 Ora não se pode perder de vista que comete o crime de falsificação quem atuar com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou atuar com a intenção de obter para si ou para outrem um benefício ilegítimo.

 Resulta assente que a ata não serve para infirmar e afastar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar. 

 Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação – art.1020º do Código Civil.

As ações em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios – art. 162º do CSC.

Do exposto retira-se que a declaração inverídica feita constar na ata e com a qual se formulou o pedido para dissolução da sociedade, não apresenta a virtualidade de causar prejuízo a outra pessoa ao Estado. 

 O pedido de dissolução da sociedade e o consequente registo do encerramento e liquidação da sociedade não causa prejuízo aos credores da sociedade.

Quando muito poderá dizer-se que o recurso ao mecanismo em apreço facilitou ao arguido, enquanto sócio da sociedade, o processo que visava registar na Conservatória do Registo Comercial a dissolução, o encerramento e a liquidação da matrícula da sociedade, nomeadamente por não ter sido necessário proceder à prévia liquidação da sociedade, nos termos do disposto no art° 27° do Regime Jurídico da Dissolução e da Liquidação de Entidades Comerciais.

 E neste ponto concreto a conduta do arguido teria que ser observada à luz de uma conduta praticada com o objetivo de obter para si ou para outra pessoa de um benefício ilegítimo.

 Contudo neste ponto concreto e em nossa opinião seria necessário averiguar no inquérito em que termos se materializou esse benefício ilegítimo, para além do encerramento e liquidação da sociedade, tanto mais que como já se deixou exposto dessa conduta assumida pelo arguido não resulta diretamente prejuízo para o credor identificado na acusação.

 Em nossa opinião e com respeito de opinião diversa, sempre seria de apurar se a sociedade era detentora de bens, uma vez que a declaração apresentada pelo arguido e consignada na ata nº. 9 tem duas vertentes, ou seja, a declaração de inexistência de ativo e de passivo.

A acusação neste ponto concreto é totalmente omissa na referência à existência ou não de ativo que fosse detido pela sociedade e em caso afirmativo do destino dado ao mesmo. 

 Assume relevância o apuramento sobre se a sociedade era ou não detentora de ativo, uma vez que apenas no caso desse ativo existir se poderá analisar se a atuação assumida pelo arguido se traduziu num benefício ilegítimo e se da sua atuação resultou prejuízo para os credores, uma vez que estes apenas teriam expectativa de ver ressarcidos os seus créditos no caso de existência de património.

 Ou seja, do exposto considera-se que não se encontram preenchidos os requisitos necessários à verificação do crime de falsificação de documento.

Cumpre ainda referir que do que já se deixou exposto e do declarado pelo arguido, não contrariado por outra prova existente no inquérito, o mesmo não atuou com a intenção de não pagar voluntária ou coercivamente à ofendida o montante em dívida relativamente ao preço das compras que efetuara.

Apesar de o arguido não ter contestado a existência desse crédito, o mesmo declarou que a sua motivação resultou apenas da necessidade de encerrar a sociedade, dado que não tinha condições financeiras para manter a atividade desta e pretendia dessa forma evitar o acumular dívidas, decorrentes entre outras de obrigações fiscais.

Da mesma forma não está provado que o arguido atuou com intenção de causar prejuízo à sociedade comercial ofendida, pois, com a conduta assumida pelo arguido esta sociedade não ficou privada de reclamar o seu crédito, desconhecendo-se se a sociedade deixou de ter património penhorável.

Como já se deixou expresso com a dissolução da sociedade não ficam os credores privados de reclamarem os respetivos créditos, nem de obterem pagamento, dado que os sócios respondem pelo passivo social.

 Pelo exposto e tendo presente que a pronúncia ou não pronúncia do arguido no final da instrução depende, nos termos do disposto no artigo 308º, nº. 1 do CPP, da existência ou não de indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, não se pode concluir estarem reunidos tais pressupostos, existindo sim a forte probabilidade de em julgamento vir o arguido a ser absolvido da prática do crime de falsificação de documento.

Pelo exposto, impõe-se a não pronúncia do arguido.

(…)

3. Apreciação

A questão a dirimir, como aliás dá bem nota a decisão recorrida, não tem merecido resposta unânime, designadamente por parte dos tribunais superiores, registando-se, antes, duas posições em sentido oposto: por um lado, aquela que defende que o agente, agindo na qualidade de legal representante de uma sociedade, que redige e assina uma ata, cujo teor no que concerne à declarada inexistência de ativo e passivo não tem correspondência com a realidade, com o fim (no caso concretizado) de requerer junto da Conservatória do Registo Comercial o procedimento especial de extinção imediata da sociedade (propósito bem-sucedido), constitui crime de falsificação de documento; por outro lado, uma outra (estamos em crer, maioritária) que, contrariando, no essencial, o prejuízo, mormente para terceiros credores do ente coletivo, afasta a verificação do crime.

O problema tem vindo a colocar-se, com grande frequência, na sequência do procedimento especial de extinção imediata de entidades comerciais, de que se ocupam os artigos 27.º e ss. do RJPADLEC - enquanto, para o efeito, se basta com a apresentação na Conservatória de Registo Comercial de requerimento subscrito por qualquer membro da entidade comercial, acompanhado de ata contendo a deliberação (unânime) da dissolução e liquidação imediata da sociedade com menção expressa à inexistência de ativo e passivo, requerimento, esse, a apreciar, no momento, pelos serviços da CRC, dando origem a declaração de dissolução e liquidação do ente coletivo, com o registo oficioso e imediato do competente registo seguido das publicações (vd. artigo 29.º, n.º 2 do RJPADLEC e artigos 3.º e 70.º do CRC) – e, bem assim, no seguimento dos casos de dissolução da sociedade por assembleia geral (artigo 141.º, n.º 1, alínea b) do CSC), com base em deliberação no sentido da inexistência de ativo e passivo a liquidar, a que se segue, sem que ocorram as vicissitudes previstas no artigo 146.º e ss. do CSC, o registo do encerramento da liquidação e a extinção da sociedade (artigo 160.º, n.º 2 do CSC).

Não é a primeira vez que somos chamados a pronunciarmo-nos sobre a matéria e, assim, já em momento anterior deixámos claro o nosso pensamento, o qual não vemos motivo para alterar.

Na verdade, no acórdão do TRC de 19.02.2014, proferido no âmbito do processo n.º 651/11.8TATNV.C1, disponível em www.dgsi.pt, escrevemos:

De qualquer forma, como ainda recentemente defendemos no acórdão do TRC de 18.12.2013 [proc. n.º 18/13.3TAVCF.C1], a propósito de declarações inverídicas/falsas – juridicamente relevantes, naturalmente - prestadas perante notário, ao nível da conformação objetiva do tipo, afigura-se-nos não ser de confundir a situação em que o agente não tem o domínio sobre a produção do documento, limitando-se à declaração do facto no mesmo reportado, daquela outra em que o agente pratica um ato material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante, como sucedeu no caso em análise em que as arguidas/recorrentes, únicas sócias da sociedade (…), deliberaram em conjunto extinguir a sociedade, lavrando, de comum acordo, para o efeito, a dita Ata n.º 9 com o teor inverídico/falso [relativo à inexistência de ativo e passivo] descrito nos (…) factos provados, por ambas subscrita, destinada a instruir – como instruiu – o pedido de instauração no Registo Comercial de procedimento administrativo de extinção imediata da referida sociedade, o que veio a ocorrer.

Acompanhamos, assim, as palavras de Paulo Dá Mesquita quando, a propósito da distinção entre as falsas declarações e o crime de falsificação de documento, escreve: «Estabelecido que «não é típica a conduta do agente que faz declaração de um facto juridicamente irrelevante», importa esclarecer se o violar ou atingir da «função de perpetuação» por via da declaração oral destinada a ser reduzida a escrito por funcionário e incorporada em documento autêntico, sem que o autor da declaração conforme a produção do documento em sentido estrito, nomeadamente não tendo intervenção material ou diretiva nos atos de redução a escrito, é subsumível ao tipo previsto na al. d) do n.º 1 do art. 256.º, do Código Penal» para, adiante, concluir: «Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão do documento com informação sobre factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento.

Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objetivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.

(…)

Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento …» - [cf. “Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante a autoridade pública”, Revista do Ministério Público, n.º 134, Abril/Junho de 2013, págs. 90-92].

(…)

No que concerne à inidoneidade da dita ata para «causar dano» ou «pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projetar» (…), com o respeito devido por posição contrária, não comungamos de semelhante pensamento, sufragando, antes, o essencial, da análise do tribunal a quo, quando em sede de direito, com extensa referência a elementos doutrinários, fez consignar:

«Na presente situação não restam dúvidas que o facto falso que as arguidas fizeram constar do documento em causa, ou seja a ata da assembleia geral, designadamente que a empresa (…) não tinha ativo, nem passivo, é juridicamente relevante. Na verdade, com base nessa declaração falsa foi possível às arguidas obter a dissolução e a extinção imediata da sociedade em causa, designadamente em relação à sua matrícula no registo comercial, que foi cancelada, através do pedido que apresentaram para o efeito. Para obter essa dissolução e extinção da sociedade, atento o facto de ter sido declarado que a mesma não tinha ativo, nem passivo, não houve necessidade de previamente proceder à sua liquidação. Na verdade, determina o artigo 160.º, nº 2, do Código das Sociedades Comerciais que a sociedade considera-se extinta pelo registo do encerramento da liquidação.

Se constasse da ata o facto verdadeiro quanto à situação da sociedade, ou seja que a mesma tinha ativo e passivo, haveria necessidade, por tal estar imposto legalmente, designadamente nos artigos 146º e seguinte do Código das Sociedades Comerciais, da mesma proceder previamente à liquidação do seu património, composto pelo seu ativo e pelo seu passivo. Nesse caso, haveria necessidade de liquidar o ativo da sociedade e proceder ao pagamento das dívidas da mesma com o produto daquela liquidação. Só depois da liquidação estar encerrada é que seria possível à sociedade … solicitar a sua extinção. Verifica-se assim que aquele facto falso, de que a sociedade em causa não tinha ativo, nem passivo, foi apto a extinguir uma relação jurídica, designadamente aquela empresa …, no âmbito do registo comercial, e com eficácia geral para todas as pessoas, incluindo os credores da empresa, após a realização de extinção e o cancelamento da matrícula.

Não se compreende que maior relevância jurídica será possível exigir a tal facto falso.

(…)

Sabiam (…) as arguidas que a declaração exarada por si na ata referida em 3), que a sociedade (…) não tinha ativo, nem passivo, não era verdadeira, e que tal declaração era juridicamente relevante, pois mediante a apresentação da mesma na Conservatória do Registo Comercial logravam inscrever no registo e tornar pública a dissolução e extinção da referida sociedade (…) Quiseram através do comportamento atrás descrito obter para si um benefício ilegítimo a que sabiam não terem direito. As arguidas previram e quiseram causar, desse modo, aos credores da referida sociedade (…) um prejuízo patrimonial, impossibilitando-os de demandar esta sociedade para obter o pagamento dos seus créditos, na medida em que teria sido declarada extinta …, pretenderam que esta última fosse beneficiada, na medida em que deixou de poder ser executada pelos credores com vista à obtenção do pagamento dos seus créditos com a utilização para o efeito do ativo da sociedade. Ficaram igualmente impossibilitados os credores de instaurar uma ação de insolvência para obter o pagamento dos seus créditos. Tal constitui igualmente um benefício para a arguida (…) que passou a poder dispor como bem entendesse do ativo da sociedade. Designadamente, livremente vendeu tal ativo da sociedade, consistente no estabelecimento comercial, que, por sua vez, era composto pelo direito ao arrendamento e das máquinas nele existentes (…) Finalmente, a arguida (…) ficou livre de ser responsabilizada pela eventual insolvência da sociedade no âmbito de um eventual processo de insolvência e de sofrer os efeitos negativos inerentes a essa qualificação culposa da insolvência, designadamente a inibição para o exercício do comércio, e, atualmente, a obrigação de pagar os créditos dos credores da empresa. Além disso, os credores da sociedade sofreram um prejuízo patrimonial, na medida em que ficaram impossibilitados de demandar a sociedade extinta para obter o pagamento dos seus créditos» (…).

Apreciação que no geral se subscreve, adotando-se, nesta parte, o entendimento perfilhado no (…) acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.12.2011, quando a propósito refere:

«Em concreto, a relevância jurídica resulta da própria lei: o ato permitiu uma alteração no mundo do Direito, traduzido na extinção de uma pessoa coletiva, com o consequente benefício, que no caso não tem relevância patrimonial direta, traduzido no próprio encerramento, gerador de aparência perante terceiros de uma realidade diferente da existente, suscetível de gerar inação daqueles na reclamação de créditos. Acrescida da cessação das responsabilidades dos arguidos enquanto gerentes. E impediram que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, o que teria consequências diretas para as suas pessoas. E conclui-se que a influência de um ato destes no mundo do Direito é de tal ordem, que a simples extinção da sociedade, quando havia património e dívidas a cobrar, se traduziu num benefício que, de outra forma não lograriam e, logo, injusta e legalmente não tutelada.

De notar que o art. 1º, n.º 1 do Código de Registo Comercial dispõe que “O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a segurança do comércio jurídico”».

Em suma, não merece censura a decisão recorrida enquanto julgou presentes os elementos objetivo e subjetivo do crime de falsificação de documento, na modalidade de falsificação intelectual, atenta a relevância da ação das arguidas/recorrentes no mundo do direito, geradora da aparência perante terceiros de uma realidade inexistente, com o consequente prejuízo – o qual, consabidamente, no tipo de crime em questão não tem de revestir natureza patrimonial – e, sobretudo, benefício, ambos nas diferentes vertentes ali assinaladas, aspeto de que as arguidas estavam conscientes».

Mas, então, que semelhanças entre a situação vinda de citar e o caso ora em apreço?

Na decisão instrutória teve-se por suficientemente indiciado:

1 - O arguido A... foi sócio-gerente da sociedade comercial unipessoal por quotas “ B... , Lda.” desde o dia 25 de Julho de 2006 até ao dia 26 de Abril de 2013, tendo tal sociedade comercial por objeto comercial, designadamente, a construção e manutenção de piscinas e jardins. 

2 – No dia 17 de Abril de 2013, pelas 20 horas, na Travessa (...) , Ourém, o arguido A... , na qualidade de sócio-gerente da sociedade comercial “ B... , Lda.” redigiu e assinou a ata número nove, na qual, designadamente, fez constar os seguintes dizeres: “(…) considerando que já foi liquidado todo o ativo e passivo da sociedade, que não existem bens a partilhar e que as respetivas contas de 2013 já foram aprovadas e encerradas, foi deliberado por unanimidade dissolver a referida sociedade (…)”. 

3 - Na posse de tal ata, no dia 26 de Abril de 2013, o arguido dirigiu-se à Conservatória de Registo Comercial de Leiria e ali registou a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da sociedade comercial “ B... , Lda.”. 

4 – Sucede que, no âmbito da atividade comercial exercida por tal sociedade comercial, o arguido tinha encomendado, em 9 de Agosto de 2012, diverso material à sociedade comercial ofendida “ C... , Lda.”, tal como: cobertura de lâminas Abriblue Immbox para piscina de 10,58x2,97m, no montante de 4.580,50 (quatro mil, quinhentos e oitenta euros e cinquenta cêntimos9 euros e cobertura de lâminas Abriblue Immbox para piscina de 9,00x2,99m, no montante de 4.445,20 (quatro mil, quatrocentos e quarenta e cinco euros e vinte cêntimos) euros.

5 - Para pagamento de parte do preço de tal compra, no dia 31 de Janeiro de 2013, o arguido emitiu, assinou e entregou à queixosa o cheque nº C... , sacado sobre o “ P... ”, no montante de 3.025,70 (três mil e vinte e cinco euros e setenta cêntimos) euros, o qual apresentado a pagamento foi devolvido em 21 de Fevereiro de 2013 por falta de provisão. 

6 - Por tal motivo e por o arguido não ter pago o restante montante relativo ao preço das referidas compras, a queixosa instaurou em 8 de Abril de 2013 processo de injunção, que correu termos com o nº 52040/13.3YIPRT, na Secção cível de Ourém, contra a sociedade comercial “ B... , Lda.”.

   7- Sabia o arguido que ao redigir na referida ata no dia 17 de Abril de 2013 que a sociedade comercial “ B... , Lda.” Já não tinha ativo e tinha liquidado todo o seu passivo, tal não correspondia à verdade, pois a sociedade comercial ainda não tinha pago à sociedade comercial ” C... , Lda.” o preço das referidas compras. 

8 - Sabia o arguido que apresentava tal documento, que continha dizeres não correspondentes com a realidade, junto da Conservatória de Registo Comercial de Leiria. 

9 – Sabia o arguido que só conseguia registar na Conservatória de Registo Comercial a dissolução, o encerramento da liquidação e o cancelamento da matrícula da sociedade comercial “ B... , Lda.” Caso apresentasse documento do qual constasse nomeadamente que a referida sociedade já não tinha ativo e tinha liquidado todo o seu passivo. 

Donde resulta revelar-se a conduta agora em questão em tudo idêntica à apreciada no âmbito dos autos acima identificados, já que aqui, como ali, o arguido, na qualidade de sócio gerente da sociedade “ B... , Lda.”, em 17.04.2013, redigiu e assinou uma ata, na qual, sem correspondência com a realidade, entre o mais necessário à extinção imediata da sociedade junto da Conservatória de Registo Comercial, fez constar já haver sido liquidado todo o ativo e passivo da sociedade, bem como a deliberação por unanimidade da sua dissolução, conseguindo, assim, no dia 26.04.2013, registar na Conservatória do Registo Comercial de Leiria a dissolução e o cancelamento da matrícula da dita entidade.

Fê-lo, contudo, sabendo que a sociedade, por via do negócio de fornecimento de mercadorias, realizado em 9 de Agosto de 2012, com a “ C... , Lda.”, se havia constituído devedora das quantias mencionadas no ponto 4. (factos indiciariamente demonstrados) para cujo pagamento (parcial) em 31 de Janeiro de 2013 emitiu o cheque (titulado pela “ B... , Lda” – cf. fls. 9), identificado em 5. (factos indiciariamente demonstrados), o qual, porém, viria a ser devolvido, em 21 de Fevereiro de 2013, por falta de provisão, circunstância que levou a entidade credora, em 8 de Abril de 2013, para cobrança de parte da divida a instaurar contra a sociedade “ B... , Lda.” processo de injunção (cf. fls. 64 e 157/158).

Significa, pois, que a declaração inscrita pelo arguido na ata por si redigida e assinada, ou melhor o facto dado como declarado no sentido da sociedade já ter liquidado todo o ativo e passivo por não haver ocorrido carecia de correspondência com a realidade, certo, porém, que se tratou de facto juridicamente relevante apto a determinar – como determinou - a extinção e o cancelamento de matrícula imediatos da respetiva sociedade, efeitos jurídicos que não fora a dita falsidade não lograva ser alcançado à margem do procedimento de prévia liquidação.

A questão não é, por conseguinte, a idoneidade do facto (falso) declarado a comprovar a efetiva inexistência de passivo ou ativo, antes a produção de efeitos que, através dele, se produzem no mundo jurídico, não deixando, assim, de colocar em causa o bem protegido pela incriminação, qual seja a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.

Trata-se, pois, de uma mentira escrita que, em violação do quadro legal, surge adequada à extinção de uma situação jurídica.

Dissentimos, igualmente, da análise levada a efeito na decisão recorrida quanto ao elemento subjetivo do tipo e concretamente no que concerne ao dolo específico.

Se não suscita reserva a natureza dolosa do tipo de ilícito em referência, tão pouco a exigência de uma intenção típica reportada a certo resultado (para o que ora releva causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo), o certo é que à consumação do crime (de perigo abstrato) não é exigível que o mesmo (prejuízo e/ou benefício ilegítimo) venha a ocorrer, bastando que o agente atue com essa intenção e, não menos relevante, o prejuízo ou o benefício ilegítimo intentado não tem de revestir caráter patrimonial.

E se encontra sustentação na lei o facto de na sequência de um procedimento de extinção imediata de entidades comerciais, conduzindo à efetiva extinção do ente, com base no facto inverídico feito constar em ata da sociedade não ter ativo nem passivo, caso se venha a apurar a existência de passivo superveniente os credores terem ação contra os antigos sócios (artigo 162.º e ss. CSC), como no acórdão (supra identificado) por nós prolatado tivemos oportunidade de expressar tal constatação não se afigura definitiva, quer pela natureza que o prejuízo e/ou benefício ilegítimo é passível de revestir (a supressão da fase da liquidação no processo de extinção de sociedades, conseguida, não raramente, com base em declaração falsa dos sócios atestando a inexistência de passivo social, levanta as maiores dificuldades aos credores quando confrontados com o desaparecimento da sociedade devedora), quer por nos parecer, no caso, inegável o prejuízo para o Estado.

Em sentido idêntico pronunciou-se recentemente o acórdão do TRC de 02.03.2016, proferido no âmbito do processo n.º 2125/13.3TAVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt, do qual se respiga:

«Cremos, no entanto que, quanto a tal pormenor, lavra o recorrente em confusão: com efeito, o que está aqui em causa não é o valor probatório daquela declaração relativamente à inexistência de passivo da sociedade, mas isso sim, o seu mero valor declarativo, para efeitos de extinção imediata da sociedade comercial. Tal declaração não tem como virtualidade a prova da inexistência de dívidas da sociedade, que até podem existir, e existiam no nosso caso, mas apenas tem valor declarativo para, verificados os pressupostos legais, permitir o acesso ao procedimento especial de extinção imediata de entidades comerciais, sem passar pela fase prévia de liquidação do património societário.

(…)

A questão, suscitada pelo recorrente, nas suas conclusões, relativa à relevância que atribui à não prova da inexistência de ativo, é apenas aparente. Com efeito, contrariamente ao que afirma (…), a declaração da inexistência de passivo tem a relevância que lhe atribuímos e em nada fica prejudicada pela inexistência de ativo. Basta atentar em que a norma da alínea b) daquele artº 27º, 1, usa a disjuntiva “ou” e não a conjuntiva “e”, o que inculca a ideia de que o procedimento em causa só pode ter lugar se inexistir ativo e passivo a liquidar.

Não é aqui pertinente fazer apelo à circunstância de o não pagamento da coima e das custas em dívida não ser consequência direta da extinção da sociedade devedora mas, isso sim, da inexistência de ativo que responda pelas dívidas. E isto porque o elemento subjetivo do tipo se traduz na exigência de um dolo específico, consistente na intenção de causar prejuízo a outrem ou ao Estado ou de obter para si ou outra pessoa benefício ilegítimo. E nos termos provados, tal dolo existiu. Não se exige, para a perfeição do crime, a efetiva ocorrência desse prejuízo ou benefício, bastando que haja sido aquele propósito a presidir à manobra defraudatória praticada pelo agente. Foi o que aconteceu no nosso caso».

Efetivamente, também na nossa perspetiva a demonstração da existência de ativo não é essencial à consumação do ilícito típico, não só porque a falsidade da declaração capaz de determinar a extinção imediata do ente se tem de traduzir na afirmação de inexistência de ativo e passivo a liquidar, como a projetada vantagem ilícita ou prejuízo não tem de revestir caráter patrimonial, como, por fim, não é imprescindível que se venha a verificar.

Por outro lado, tendo presente que a prova do elemento subjetivo do tipo há-de resultar dos factos objetivos descritos, concedendo, embora, não vir o mesmo configurado da forma mais rigorosa – aspeto não decisivo atento o disposto no artigo 303.º, nº 1 do CPP - afigura-se-nos conduzirem os últimos a uma suficiente indiciação do dolo, designadamente quanto à específica intenção do arguido de, no mínimo, causar prejuízo ao Estado – o qual, enfatiza-se, não tem de revestir natureza patrimonial – sem excluir, o benefício que lhe advinha de lograr alcançar o registo de dissolução e extinção da sociedade sem a necessidade de passar pelo necessário procedimento de liquidação.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal, na procedência do recurso, em revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que pronuncie o arguido pelo crime de falsificação de documento pelo qual foi deduzida acusação pública.

Sem tributação

Coimbra, 29 de Março de 2017

[Processado e revisto pela relatora]

(Maria José Nogueira - relatora)

(Isabel Valongo - adjunta)