Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2943/13.2TBLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CATARINA GONÇALVES
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
DECLARAÇÃO
NULIDADE
EFEITOS
FALTA
PEDIDO
Data do Acordão: 06/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - INST. CENTRAL - SECÇÃO CÍVEL - J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 3º E 609º DO CPC
Sumário: I – A declaração de nulidade de um contrato de mútuo importa, não só a restituição do capital mutuado, mas também a restituição dos valores que o mutuário tenha pago a título de juros convencionados.

II – Todavia, estando em causa um mútuo em que, não obstante a sua nulidade, o mutuário pagou os juros convencionados, durante cerca de sete anos, sem nunca questionar essa obrigação e a validade do contrato, será abusivo o exercício da pretensão de restituição desses juros, por força da nulidade que veio a ser declarada, por corresponder a um venire contra factum propium e defraudar a legítima expectativa do mutuante e a confiança que lhe mereceu o anterior comportamento do mutuário.

III – O que está subjacente à doutrina do Assento nº 4/95 é a possibilidade de convolar a causa de pedir que era invocada e de alterar a qualificação da pretensão material deduzida, mas apenas para decretar o efeito prático-jurídico que foi solicitado, ainda que com base noutros fundamentos e sob diferente qualificação jurídica; não é, no entanto, permitido ao Tribunal, sob pena de violação do disposto nos arts. 3º e 609º do CPC, decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado e declarar os efeitos da nulidade sem que tenha sido formulada uma qualquer pretensão no âmbito da qual esses efeitos se possam inserir, ainda que sob diversa qualificação.

IV – Assim, não tendo sido formulada uma qualquer pretensão no âmbito da qual se possa inserir, ainda que sob diversa qualificação, tal condenação, o Tribunal está impedido de condenar as partes – ou uma delas – a restituir o que receberam em cumprimento do contrato nulo, tal como está impedido de fazer operar a excepção de compensação entre os créditos de que cada uma das partes é titular, por força da nulidade do negócio, se tal compensação (que não é de conhecimento oficioso) não foi oportunamente invocada.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

A... , residente na (...) , Maceira, veio intentar a presente acção contra B... e mulher, C... , residentes na (...) , Maceira, alegando, em suma, que: em 22/08/2006 emprestou aos Réus 150.000,00€, tendo ficado acordado que os Réus restituiriam essa quantia logo que vendessem uma moradia que tinham em construção, o que se previa acontecer dentro de ano e meio; todavia, embora já tenham vendido essa moradia e embora tenham vindo a pagar os juros até 2012, não restituíram ainda a quantia mutuada, não obstante as várias interpelações que o Autor lhes efectuou; ainda que o aludido mútuo seja nulo, porque celebrado verbalmente, os Réus estão obrigados a restituir ao Autor a quantia mutuada.

Conclui pedindo que os Réus sejam condenados a pagar-lhe a aludida quantia de 150.000,00€ acrescida de juros à taxa legal a partir da citação.

A Ré, C... , veio contestar, impugnando os factos alegados, negando que o Autor lhe tenha emprestado a aludida quantia e alegando desconhecer se a emprestou ou não ao Réu, B... , sendo certo que já não é casada com este.

Conclui pedindo a sua absolvição do pedido.

O Réu, B... , apresentou contestação, aceitando o mútuo que é alegado pelo Autor e alegando já ter pago – de forma faseada como havia sido acordado e até finais de 2012 – o valor total de 106.312,11€.

Conclui pela sua absolvição do pedido na parte em que excede o valor confessado na contestação.

O Autor apresentou réplica, dizendo que, aquando do empréstimo, os Réus eram casados e que o empréstimo foi concedido a ambos, mais alegando que o Réu nada pagou a título de capital, já que todos os pagamentos efectuados se reportavam aos juros que, conforme havia ficado acordado, eram devidos à taxa de 8%, ou seja, 1.000,00€ por mês, alegando ainda que um dos pagamentos invocados pelo Réu – efectuado em 04/09/2006 – não diz respeito a este empréstimo mas sim a um empréstimo anterior.

Foi realizada a audiência prévia, foi proferido o despacho saneador e fixado o objecto do litígio, bem como os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, condenou os Réus, solidariamente, a pagar ao Autor a quantia de 150.000,00€, acrescida de juros de mora, desde a citação até pagamento, à taxa de 4%.

Inconformados com essa decisão, ambos os Réus vieram interpor recurso.

A Ré, C... , formulou as seguintes conclusões:

1) Estão incorrectamente julgados e devem ser dados como não provados os factos, que constam do ponto 8 da matéria de facto provada e que na opinião do recorrente e com o devido respeito estão erradamente considerados provados na Sentença de que se recorre – “ Das funções exercidas pelo 1º Réu B... na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal”

2) Não foi produzida qualquer prova no sentido de dar como provado este facto.

3) Da análise do teor dos depoimentos gravados de todas as testemunhas verifica-se que nenhuma delas referiu o que quer que seja no sentido de dar como provada esta matéria.

4) Os depoimentos de D... (20141202094746_1422540_2870939), E... (20141202100202_1422540_2870939) e F... (20141202101030_1422540_2870939), nada referem quanto a esta matéria.

5) Nas declarações de parte (20141202104025_1422540_2870939 - até 00:06:00), o Autor nada refere no sentido de dar como provada esta matéria.

6) Na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto também nada se refere quanto aos depoimentos dessas testemunhas que possa levar a concluir que as mesmas tenham prestado quaisquer declarações nesse sentido,

7) Antes pelo contrário, as testemunhas G... e H... nos seus depoimentos declaram que a Ré C... era funcionária da empresa de que o Réu B... era sócio à data do empréstimo e auferia um salário da mesma.

A Ré C... tinha salário, tinha rendimentos próprios, não dependia unicamente do dinheiro que o Réu B... , seu marido à data, ganhava.

8) Ainda que o salário auferido pela Ré C... fosse pago como retribuição pelas funções que desempenhava na empresa que o Réu B... geria, isso não pode, nem deve confundir-se com aquilo que se afirma na sentença de que se recorre que, e passamos a citar: “ Das funções exercidas pelo 1º Réu B... na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal.”

9) Nenhuma testemunha afirmou em sede de julgamento que os rendimentos da Ré C... provinham exclusivamente das funções do seu marido, ou que esta não tivesse qualquer actividade profissional ou rendimentos resultantes dessa actividade.

10) O facto constante no ponto 8 dos factos dados como provados na sentença deve assim ser considerado como não provado.

11) Estão incorrectamente julgados e devem ser dados como não provados os factos, que na opinião do recorrente e com o devido respeito estão erradamente considerados provados na Sentença de que se recorre e que constam da 2ª parte do ponto 10 da matéria de facto provada - “ 10… sendo a quantia de € 81.312,11 correspondente ao pagamento dos referidos juros acordados e a quantia de € 25.000,00 correspondente à restituição de um primeiro empréstimo que este fizera àquele em 02.03.2006” .

12) Além da testemunha D... , com interesse directo no resultado da acção por ser esposa do Autor A... , nenhuma outra testemunha se pronunciou sobre esse alegado empréstimo

13) Nem mesmo a filha do Autor, E... , que declarou que tinha conhecimento do negócio dos 150.000,00 Euros, porque em casa falavam de tudo.

14) E o depoimento da testemunha D... sobre este alegado empréstimo de 150.000,00 Euros é vago e sem consistência, ao afirmar ter havido um empréstimo anterior, mas não se lembrar do montante ou das condições do mesmo.

15) A testemunha D... , no seu depoimento claramente admite não se lembrar do valor desse primeiro empréstimo, nem em momento algum faz qualquer menção ao pagamento dos 25.000,00 € que o Réu B... fez, como tendo sido efectuados como forma de pagamento de qualquer empréstimo anterior.

16) Efectivamente esses 25.000,00 € foram entregues pelo R. B... ao Autor, A... , para descontar no empréstimo de 150.000,00 € que este lhe tinha efectuado.

17) Não deveria ter sido dado como provado que esses 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros) foram entregues ao Autor para pagamento pelo Réu B... , de um empréstimo anterior, pois não existe qualquer meio de prova nos presentes autos para o suportar.

18) Os factos constantes na 2ª parte do ponto 10 da sentença deviam ter sido dados como não provados.

19) Dando-se como provado que a entrega de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros) efectuada pelo Réu B... ao Autor, foi para descontar na dívida resultante do empréstimo que este fez àquele no montante de 150.000,00 € (cento e cinquenta mil euros).

20) Considerando-se como provado que o Réu B... entregou ao Autor, com referência ao empréstimo que este lhe fez de 150.000,00 € , a quantia total de 106.312,11 (cento e seis mil trezentos e doze euros e onze cêntimos).

DA MATÉRIA DE DIREITO

21) Foi declarada a nulidade do contrato de mútuo celebrado entre o Réu B... e o Autor A... , por falta de forma.

22) Por essa via, o mesmo Tribunal a quo condenou os Réus B... e C... ao pagamento ao Autor A... , da quantia de 150.000,00 € acrescida dos juros de mora calculados ao uma taxa de 4% ao ano, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.

23) Não nos parece tenha decidido bem o tribunal de primeira instância.

24) Nada há a apontar à sentença de que se recorre, quando considera nulo o contrato de mútuo, uma vez que

25) Conforme artº 1143º do Código Civil: “ Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a € 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2500 se o for por documento assinado pelo mutuário.”

26) Prescreve ainda o artº 220º do Código Civil que a inobservância da forma legal, quando outra não seja a sanção especialmente prevista, implica a nulidade do contrato.

27) A declaração de nulidade do mútuo do mútuo por falta de forma, tem como consequência a restituição, pelo mutuário, de tudo o que tiver sido prestado, por força do que decorre do nº 1 artº 289º do Código Civil: “ Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.”

28) Mas por força ainda do citado preceito legal, tanto a declaração de nulidade, como a anulação têm efeito retroactivo, o que impõe a restituição de tudo o que tiver sido prestado, ou se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

29) No caso de nulidade, tudo se deve passar como se o acto não existisse, destruindo-se retroactivamente as atribuições patrimoniais e essa retroactividade obriga à restituição das prestações efectuadas, como se o negócio não tivesse sido realizado, veja-se nesse sentido o Código Civil anotado de Pires de Lima e Antunes Varela, volume I, página 266, Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.11.2005, relatado por Coelho de Matos, Procº nº 1963/05 e de 17.01.2006, relatado por Ferreira de Barros, Procº nº 3531/05 e Acórdão do Tribunal da relação do Porto de 02.05.2013, relatado por Carlos Portela, Procº nº 1785/11.4 TBVFR.P1.

30) A declaração de nulidade do contrato, faz desaparecer retroactivamente as atribuições patrimoniais nele acordadas e todos os efeitos que produziria um contrato válido, incluindo convenções quanto a prazos ou data da restituição do capital mutuado, tal como se o negócio nunca tivesse sido celebrado.

31) A nulidade do contrato de mútuo, por falta de forma, aplica-se a todo o seu conteúdo, incluindo a taxa de juros compensatórios, bem como a data da restituição do capital mutuado.

32) Não há que atender ao acordado entre as partes do contrato de mútuo quanto a juros, pois sendo o contrato nulo, essa cláusula não pode deixar de ser igualmente nula.

33) No caso em apreço, tendo-se dado como provado, ainda que contrariamente ao que declarou sempre o Réu B... , que entre este e o Autor A... , foi acordado aplicar ao empréstimo uma taxa de juros de 8%.

34) Tendo em conta o que se tem vindo a dizer sobre a nulidade do contrato de mútuo e suas consequências, essa cláusula a par do contrato, tem necessariamente de ser declarada nula e sem qualquer efeito, como se nunca tivesse sido acordada.

35) A obrigação de restituição não pode produzir os efeitos correspondentes a uma hipotética validade do negócio, designadamente a contraprestação, remuneração ou retribuição acordadas ou legalmente previstas, assim sendo,

36) No caso do contrato de mútuo declarado nulo por falta de forma, devem as partes restituir o que receberam, ou seja, o mutuário deve restituir o dinheiro que recebeu do mutuante, e este, por sua vez, deve restituir os juros convencionados e que foram pagos, existindo uma obrigação recíproca de restituição em espécie.

37) No caso em apreço, deveria o Tribunal a quo ter, não só condenado o Réu B... a restituir ao Autor A... , a quantia mutuada, como também condenar este a restituir ao Réu B... , toda a quantia que lhe foi entregue de juros, no montante de 106.312,11 € .

38) À quantia que o Réu tem de entregar ao Autor, 150.000,00 € , terá necessariamente de ser deduzido o montante de juros, por aquele já pago, voluntariamente, no montante de 106.312,11, tendo apenas o Réu de entregar ao Autor a quantia de 43.687,89 € ,

39) Não cabendo aqui a figura do abuso de direito pelo mutuário, como refere a sentença de que se recorre.

40) Não se pode e não faz qualquer sentido é fazer corresponder os efeitos do contrato de mútuo nulo aos efeitos que teria esse mesmo contrato se fosse válido

41) É impensável que o legislador não quisesse estabelecer uma diferença entre os dois regimes, ao exigir a escritura pública ou contrato particular autenticado como formalidade essencial do negócio.

42) A sentença condenou a Ré C... como responsável pelo pagamento da quantia de 150.000,00 € ao Autor A... .

43) Entendeu o Tribunal a quo que o empréstimo foi concedido ao Réu B... , na constância do matrimónio com a Ré, C... e em proveito comum do casal, aplicando a al. c) do artº 1691º do Código Civil.

44) É nossa opinião que o ponto 8 dos factos considerados provados - “ Das funções exercidas pelo 1º Réu B... na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal” - está mal julgado e devia ter sido considerado como não provado.

45) Deveria ter-se dado como não provado que era das funções exercidas pelo Réu B... na referida empresa que eram retirados os rendimentos do casal.

46) Da produção da prova em audiência de julgamento, ou dos documentos juntos aos autos, não resulta que a Ré vivesse dos rendimentos auferidos pelo Réu B... no exercício da sua actividade,

47) Ficou antes provado, em audiência de julgamento que a Ré tinha rendimentos próprios.

48) É com base no facto dado como provado no ponto 8 da matéria de facto provada que o Tribunal a quo considera estar preenchido um dos requisitos para condenar solidariamente a Ré C... , o proveito comum do casal

49) Ao entendermos estar mal julgado o ponto 8 dos factos dados como provados, já que devia ter sido considerado como não provado, é que entendemos discordar de tal entendimento.

50) Para responsabilizar um dos cônjuges por uma dívida contraída pelo outro, nos termos da al. c) do nº 1 do artº 1691º do Código Civil, é necessário que dívida tenha sido contraída na constância ou vigência do matrimónio, que o tenha sido em proveito comum do casal e que o tenha sido no âmbito e nos limites dos poderes de administração do cônjuge que a contraiu.

51) Estes requisitos são cumulativos e o ónus de alegação e prova incumbe, como regra, ao Autor que dele pretenda prevalecer-se.

52) Não basta que o Autor alegue que o dinheiro foi para investir numa casa do filho dos Réus, ou para uma casa propriedade do Réu B... .

53) Sendo ainda exigível que o Autor alegue e prove que esse empréstimo foi efectuado com vista aos interesses comuns do casal, isto é, no interesse da sociedade familiar

54) Já se impugnou matéria de facto dada como provado no ponto 8, já que prova nenhuma se fez para que se possa chegar a essa conclusão.

55) A ré tinha os seus rendimentos, não dependendo dos rendimentos do Réu B...

56) Corrigindo-se a sentença e considerando-se como não provado o ponto 8 que consta dos factos provados, que das funções exercidas pelo Réu B... empresa, eram retirados os rendimentos do casal, o que se espera, não pode deixar de se concluir também que não ficou provado nos autos o proveito comum do casal e em consequência,

57) Revogar-se a sentença na parte em que condena a Ré como responsável pelo pagamento da dívida ao Autor, ao abrigo da al. c) do nº 1 do o artº 1691º do Código Civil.

58) Entendeu ainda o tribunal ser a Ré pelo pagamento ao Autor da quantia de 150.000,00 Euros acrescida de juros, por entender que o empréstimo foi concedido ao Réu B... no exercício do comércio deste, ao abrigo da al. d) do nº 1 do artº 1691º do Código Civil.

59) Não podemos concordar com tal entendimento, por considerarmos não existem nos autos factos suficientes que possam levar a este resultado.

60) Decorre da lei que, em princípio quaisquer dívidas comerciais que um cônjuge comerciante contraia, presumem-se que o foram no exercício do seu comércio, no entanto.

61) Isto por si só não basta para responsabilizar o outro cônjuge, é necessário que esteja verificado o proveito comum do casal, sendo que aqui, contrariamente ao regime da al. c) do nº 1 do Código Civil, é ao cônjuge não comerciante que cabe o ónus de provar que essa dívida não em benefício do casal, provando que não foi contraída em proveito comum.

62) No caso em apreço, em nosso entender a Ré C... ilidiu essa presunção ao provar que tinha rendimentos próprios, que tinha um salário, facto esse que deveria ter sido dado como provado, conforme já se afirmou em sede de impugnação de matéria de facto.

63) Ficou provado nos autos que não era da actividade do Réu B... que provinham os rendimentos do casal, o que deveria fazer parte dos factos não provados, conforme já alegado quanto à matéria de facto.

64) A Ré C... ao provar que não dependia do Réu B... e os seus proventos não resultavam da actividade exercida por este, ilidiu a presunção de proveito comum do casal, essencial para que seja responsabilizada pelo pagamento da dívida ao Autor, pelo que deverá ser revogada a sentença, na parte que condena a Ré ao abrigo da al. d) do nº 1 do artº 1691º do Código Civil.

Termos em que se deverá julgar procedente o presente recurso e, por via dele, revogar-se a douta sentença, proferindo-se acórdão que julgue improcedente a acção quanto à R. ora recorrente, tudo com as legais consequências.   

O Réu, B... , formulou conclusões que reproduzem as 1ª a 41ª conclusões da Ré, C... .

O Autor apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1º - Resulta evidente que o R. pediu emprestados ao A. 150.000,00€, em 22.08.2006;

2º - Que a Ré teve conhecimento e aprovou tal empréstimo, sempre afirmando que o iriam pagar;

3° - O dinheiro foi utilizado na empresa de construção civil de que os RR. eram sócios e gerentes, onde ambos trabalhavam e de onde tiravam os meios de subsistência;

4° - Houve, primeiro, um empréstimo de 25.000,00€ em 02.03.2006 e, depois em 22.08.2006, um segundo, de 150.000,00€;

5° - O R. não tem direito a pedir a quantia que, a titulo de juros, pagou ao A., conforme os artigos 402, 403° e 476° do CC;

6° - A sentença recorrida não merece censura e deve ser mantida na integra;

7° - Um recurso que não tem propriamente conclusões não pode ser aceite;

8º - A ser considerado o recurso, o mesmo tem efeitos meramente devolutivos;

9° - Só negando provimento ao recurso se fará justiça.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações dos Apelantes – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

• Saber se existiu erro na apreciação da prova e se importa ou não alterar – e em que termos – a decisão proferida sobre a matéria de facto no que toca aos pontos impugnados;

• Saber se, por efeito da nulidade do contrato de mútuo, o Réu tem direito à restituição dos valores que pagou ao Autor a título de juros convencionados e se, como tal, esses valores devem ou não ser deduzidos à quantia que o Réu está obrigado a pagar ao Autor;

• Saber se a restituição desses juros configura ou não abuso de direito.

• Saber se a 2ª Ré é ou não responsável pela dívida em causa, o que pressupõe a questão de saber se a mesma foi ou não contraída em proveito comum do casal.


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III.

Na 1ª instância, considerou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 22 de Agosto de 2006 o Autor emprestou ao 1.º Réu B... a quantia de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros).

2. Para garantir tal empréstimo, o 1.º Réu sacou e entregou ao Autor dois cheques, sacados sobre a I... de Leiria, datados de 22/08/2006.

3. Ficou acordado que o Autor não apresentava os referidos cheques a pagamento ao banco.

4. Ficou acordado que a quantia acima mencionada (€150.000,00) seria restituída ao Autor logo que fosse vendida uma vivenda pertencente aos Réus que estava em construção no Lugar da Cerca, que se previa acontecer dentro de um ano e meio.

5. O 1.º Réu tem vindo a pagar os juros até Junho de 2013, data a partir da qual nada mais pagou.

6. O empréstimo acima mencionado foi concedido ao 1.º Ré para este acabar a construção da casa do filho H... .

7. E ainda para acabar a construção de vivenda da empresa (de que o 1.º Réu era gerente) que estava a ser construída no Lugar da Cerca.

8. Das funções exercidas pelo 1.º Réu B... na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal.

9. Aquando do empréstimo acima referido, o 1.º Réu comprometeu-se a pagar juros todos os meses à taxa de juro de 8%, acordando o pagamento mensal de €1.000,00, quantia que foi pagando todos os meses ao Autor, sempre a título de juros.

10. O 1.º Réu entregou ao Autor desde Setembro de 2006 até Junho de 2013 a quantia global de €106.312,11 (cento e seis mil, trezentos e doze euros e onze cêntimos), sendo a quantia de €81.312,11 correspondente ao pagamento dos referidos juros acordados e a quantia de €25.000,00 correspondente à restituição de um primeiro empréstimo que este fizera àquele em 02/03/2006.

11. Os Réus casaram um com o outro em 01 de Agosto de 1976, o qual foi dissolvido por divórcio decretado a 03 de Julho de 2012.


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IV.

Impugnação da matéria de facto

Os Apelantes começam por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, sustentando dever ser considerada como não provada a matéria de facto constante do ponto 8º e da 2ª parte do ponto 10.

Dizem, no que toca ao ponto 8º, que nenhuma testemunha confirmou esse facto, já que nenhuma delas afirmou em sede de julgamento que os rendimentos da Ré C... provinham exclusivamente das funções do seu marido, ou que esta não tivesse qualquer actividade profissional ou rendimentos resultantes dessa actividade, resultando, pelo contrário, dos depoimentos prestados por G... e H... que a Ré C... era funcionária da empresa de que o Réu B... era sócio à data do empréstimo e auferia um salário da mesma, pelo que tinha salário e rendimentos próprios, não dependendo unicamente do dinheiro que o Réu B... , seu marido à data, ganhava.

E, no que toca à 2ª parte do ponto 10º, dizem que, além da testemunha D... (com interesse directo no resultado da acção por ser esposa do Autor e que nem sequer conseguiu precisar o valor do empréstimo), nenhuma outra testemunha se pronunciou sobre o alegado empréstimo de 25.000,00€.

Relativamente ao ponto 8º, importa dizer o seguinte:

No citado ponto 8º, considerou-se provado que das funções exercidas pelo 1º Réu, B... , na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal.

Ora, ao contrário que sustentam os Apelantes, a circunstância de a Ré, C... , também ser funcionária da empresa e auferir um salário é irrelevante para a pretendida alteração daquele ponto de facto; isso significaria apenas que os rendimentos do casal não provinham exclusivamente das funções ali exercidas pelo 1º Réu, mas também das funções exercidas pela 2ª Ré e do inerente salário que auferia.

Mas, ainda que a 2ª Ré auferisse esse salário, parece certo que os rendimentos do casal também provinham das funções exercidas pelo 1º Réu e dos inerentes rendimentos que auferia.

É isso mesmo que declaram as testemunhas, G... e H... (filhos dos Réus), quando declaram que os pais viviam dos proventos auferidos naquela empresa – onde ambos trabalhavam, já que não tinham outra actividade – e dos quais retiravam os rendimentos para as despesas do dia-a-dia.

É certo, portanto, que dos proventos auferidos pelo 1º Réu no exercício daquelas funções eram retirados rendimentos com os quais o casal fazia face às despesas normais e correntes do respectivo agregado familiar (ainda que os rendimentos auferidos pela 2ª Ré também tivessem idêntica finalidade) e, como tal, não se justifica qualquer alteração ao citado ponto de facto.

O ponto 10º da matéria de facto tem a seguinte redacção:

O 1.º Réu entregou ao Autor desde Setembro de 2006 até Junho de 2013 a quantia global de €106.312,11 (cento e seis mil, trezentos e doze euros e onze cêntimos), sendo a quantia de €81.312,11 correspondente ao pagamento dos referidos juros acordados e a quantia de €25.000,00 correspondente à restituição de um primeiro empréstimo que este fizera àquele em 02/03/2006.

Os Réus impugnam apenas a 2ª parte do citado ponto de facto, na parte em que se alude a um empréstimo anterior, no valor de 25.000,00€, empréstimo esse que – sustentam – não existiu e não poderia ter sido considerado provado, na medida em que não encontra apoio na prova produzida, sendo que a entrega dessa quantia foi feita para pagamento do empréstimo de 150.000,00€ (que está em causa nos autos) e não para pagamento de qualquer outro empréstimo anterior.

 É certo que o aludido empréstimo de 25.000,00€ apenas é confirmado pelo próprio Autor e pela sua esposa (a testemunha, D... ) que, apesar de não ser parte na causa, tem inegável interesse na decisão, importando notar que as demais testemunhas, apesar de não confirmarem esse facto, nada declararam de concreto que aponte para a sua inexistência.

Ora, ainda que os aludidos depoimentos (do Autor e esposa) não fossem, só por si, suficientes para fundar a convicção do Tribunal, a verdade é que os mesmos são, de algum modo, confirmados por outros elementos probatórios que, conjugados com as regras de experiência, são bastantes para fundamentar a nossa convicção acerca da existência desse empréstimo.

E não poderemos deixar de registar, desde já, a posição que, sobre esta matéria, o Réu assumiu no depoimento que veio prestar ao Tribunal, já que, ao contrário do que seria normal caso o Autor não lhe tivesse efectuado aquele empréstimo, não o negou expressamente, limitando-se a dizer que não se lembra do mesmo. Ora, não nos parecendo credível que o Réu não se lembrasse da inexistência do aludido empréstimo, tal declaração aponta, em nosso entender, para a confirmação da sua existência.

Além do mais, o Autor, para prova do aludido empréstimo, juntou aos autos (fls. 77) a cópia de um cheque, datado de 02/03/2006 e no valor de 25.000,00€, por si emitido à ordem do Réu, documento esse que não foi impugnado. E ainda que esse cheque não prove, só por si, que a aludida quantia tenha sido efectivamente entregue ao Réu, a verdade é que, quando conjugado com a circunstância de o Réu não o ter impugnado e com a circunstância de o Réu ter assumido, no seu depoimento, a posição supra assinalada (de não se lembrar), tem relevância bastante para fundamentar a nossa convicção. E tal convicção é reforçada pelo documento junto a fls. 31 do qual resulta que em 04/09/2006, o Réu depositou à ordem do Autor a quantia de 26.000,00€. Com efeito, tendo ficado acordado entre as partes, no que toca ao empréstimo de 150.000,00€, que o Réu pagaria a quantia mensal de 1.000,00€, não será muito credível que escassos dias após esse empréstimo o Réu tenha pago, além dos 1.000,00€, a quantia de 25.000,00€, tudo apontando no sentido de que – tal como declaram o Autor e a sua esposa – esses 25.000,00€ se destinassem ao pagamento de um empréstimo anterior.

Parece-nos, portanto, em face do exposto, dever manter-se o ponto 10º da matéria de facto.

 Mantém-se, portanto, integralmente, a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Direito

Fixada a matéria de facto a considerar, importa agora analisar as demais questões suscitadas, ao nível da aplicação do Direito.

É indiscutível que entre o Autor e o 1º Réu foi celebrado um contrato de mútuo, por via do qual o primeiro emprestou ao segundo a quantia de 150.000,00€ e é incontroverso que – conforme se considerou na sentença recorrida e nenhuma das partes põe em causa – o aludido contrato é nulo por inobservância da forma legal que era imposta pelo art. 1143º do Código Civil[1] – cfr. art. 220º.

E, como preceitua o art. 289º, nº 1, a declaração de nulidade tem efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a prestação em espécie não for possível, o valor correspondente.

É indiscutível, portanto, que o Réu está obrigado a restituir ao Autor a prestação que dele recebeu em cumprimento do contrato, ou seja, a quantia de 150.000,00€.

Sustentavam os Réus – na sua contestação – que tal restituição já havia sido parcialmente efectuada, porquanto, ao longo dos anos, foram entregando diversas quantias a esse título, já que – diziam – ao contrário do que era alegado pelos Autores, não havia sido estipulado o pagamento de quaisquer juros.

A verdade é que a versão apresentada pelos Réus não veio a ficar provada, antes se provando que o Réu se havia comprometido a pagar juros todos os meses à taxa de 8% e que a quantia de 81.312,11€ que entregou, efectivamente, ao Autor – desde Setembro de 2006 até Junho de 2013 – não visava a restituição do capital mutuado e correspondia ao pagamento dos juros que haviam ficado acordados.

Perante estes factos, a sentença recorrida considerou que a quantia paga pelo Réu a título de juros não tinha que lhe ser restituída – em primeiro lugar, porque, correspondendo à contrapartida pela utilização e fruição do capital mutuado, seria o valor correspondente a tal utilização e fruição que não pode restituir (à semelhança do que acontece com as rendas em caso de nulidade do contrato de arrendamento) e, em segundo lugar, porque a exigência de tal restituição corresponderia a um abuso de direito – e, como tal, condenou o Réu a restituir a quantia de 150.000,00€ (sem dedução, portanto, do valor que este havia pago a título de juros).

Discordando desta decisão, consideram os Apelantes que, por efeito da nulidade do contrato, o Autor também está obrigado a restituir a quantia recebida a título de juros, pelo que – dizem – o Tribunal deveria ter condenado o Autor a restituir ao Réu essa quantia, sendo que a quantia que o Réu tem que entregar ao Autor, deve ser deduzida do valor pago a título de juros.

Refira-se, antes de mais, que, ressalvando a possível existência de abuso de direito (que a sentença recorrida entendeu existir), o Autor estará, efectivamente, obrigado a restituir as quantias que o Réu lhe entregou a título de juros.

De facto, e tal como referimos, a declaração de nulidade – em conformidade com o disposto no art. 289º,nº 1 – tem efeitos retroactivos e determina a restituição de tudo o que tiver sido prestado e, portanto, assim como o Réu está obrigado a restituir a prestação efectuada pelo Autor (a quantia de 150.000,00€), também o Autor ficará obrigado a restituir a prestação efectuada pelo Réu em cumprimento desse contrato, ou seja, o valor que este pagou a título de juros e que, por efeito da nulidade do contrato e da destruição retroactiva dos efeitos que dele decorriam e que por ele foram produzidos, não são devidos.

E, salvo o devido respeito, não concordamos com o entendimento adoptado na sentença recorrida, quando nela se afirma – fazendo um paralelismo com o contrato de arrendamento, relativamente ao qual se tem entendido que a respectiva nulidade não determina a restituição das quantias pagas a título de renda – que os juros pagos não devem ser restituídos por corresponderem ao valor da prestação de que o Réu beneficiou (a utilização e fruição do capital mutuado) e que não está em condições de restituir. De facto, ao contrário do que acontece no contrato de locação – em que a obrigação essencial do locador consiste em ceder a outrem o gozo de determinada coisa, assegurando esse gozo, de forma continuada, durante o período de vigência do contrato (prestação essa que, em caso de nulidade do contrato, não pode ser restituída em espécie, por isso se impondo, ao abrigo do disposto no citado art. 289º, a restituição do valor correspondente que, por regra, se entende ser o valor das rendas acordadas ou o valor locativo ou de uso da coisa locada) –, no contrato de mútuo, a prestação do mutuante esgota-se com a entrega ao mutuário da coisa mutuada que, a partir desse momento, se torna propriedade deste (cfr. art. 1144º). Não existe, portanto, num contrato de mútuo, uma qualquer obrigação, de carácter continuado, de assegurar o gozo ou a disponibilidade da coisa mutuada; a única obrigação a cargo do locador é a de entregar a coisa mutuada ao mutuário e, sendo essa a única prestação que efectua, será essa a única prestação a cuja restituição tem direito por efeito da nulidade do contrato. A disponibilidade, utilização ou fruição do capital mutuado não corresponde, portanto, a uma verdadeira e autónoma prestação do mutuante que, como tal, deva ser restituída (em valor correspondente por não ser possível a restituição em espécie) por efeito da nulidade. No contrato de mútuo, o mutuante apenas assume a obrigação de entregar ao mutuário a coisa mutuada (aí se esgota a sua prestação), assumindo o mutuário a obrigação de entregar, em determinado prazo, outro tanto do mesmo género e qualidade, podendo ainda assumir, a obrigação de pagar juros a título de retribuição. E, declarada a nulidade do contrato, cada uma das partes tem direito à restituição da prestação que efectuou; o mutuário tem direito à restituição da quantia que entregou e o mutuante tem direito aos juros que, entretanto, tenha pago.

O Réu terá, portanto, direito à restituição das quantias que pagou a título de juros, a não ser que – como se considerou na sentença recorrida – tal configure abuso de direito.

Mas poderá ser configurada a existência de abuso de direito?

A resposta não é linear e remete-nos para a questão de saber se os efeitos decorrentes da declaração de nulidade de um negócio, por vício de forma, podem ser paralisados pelo instituto do abuso de direito.

De acordo com o disposto no art. 334º do CC “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A nossa jurisprudência tem vindo a admitir, em determinadas circunstâncias e por aplicação do instituto do abuso de direito, a paralisação dos efeitos da nulidade do negócio por vício formal, desde que as circunstâncias apontem para uma clamorosa ofensa ao princípio da boa fé e do sentimento geralmente perfilhado pela comunidade, situação em que o abuso do direito servirá de válvula de escape no nosso ordenamento jurídico, tornando válido o acto formalmente nulo, como sanção do acto abusivo, nomeadamente em situação de claro venire contra factum proprium, manifestamente lesivo da boa fé.

Mas, mesmo admitindo a aplicação, neste domínio, do abuso de direito, a verdade é que tal aplicação – implicando a preterição de regime legal imperativo que tem como objectivo assegurar a certeza e segurança do comércio em geral – terá sempre natureza excepcional e apenas se justificará em situações onde a invocação e declaração da nulidade constitua uma clamorosa ofensa do princípio da boa fé e do sentimento geralmente partilhado pela comunidade, “não podendo obviamente generalizar-se e banalizar-se o recurso à figura do abuso de direito como forma de – sindicando os motivos pessoais e subjectivos que estão na base da invocação da nulidade pelo interessado cujo interesse é por ela prosseguido - acabar por se precludir a aplicação sistemática do regime legal imperativo que comina determinada invalidade por motivos de deficiências de forma do acto jurídico[2].

A manifestação mais clara do abuso do direito e aquela que – conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial – poderá assumir relevância como forma de paralisar os efeitos da nulidade do negócio reconduz-se ao venire contra factum proprium que corresponde ao exercício de uma pretensão ou posição jurídica que, sendo incompatível ou contraditória com o comportamento anterior de quem exerce tal pretensão, defrauda a confiança ou expectativa que a outra parte legitimamente adquiriu com base no comportamento anterior do titular do direito.

Como refere Baptista Machado[3], o venire contra factum proprium pressupõe, em primeiro lugar, uma situação objectiva de confiança, sendo que “a confiança digna de tutela tem de radicar em algo de objectivo: numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura (…) O ponto de partida é, pois, uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira

E, de acordo com o mesmo autor[4], os casos excepcionais em que se justificaria submeter a invocação da nulidade à proibição do venire contra factum proprium haveriam de caracterizar-se pelos seguintes traços:

a) ter uma das partes confiado em que adquiriu pelo negócio uma posição jurídica;

b) ter essa parte, com base em tal crença, orientado a sua vida por forma a tomar disposições que agora são irreversíveis, pelo que a declaração de nulidade provocaria danos vultuosos de vária ordem que agora se revelam irremovíveis através doutros meios jurídicos, designadamente através do recurso ao art. 227º do Código Civil;

c) poder a situação criada ser imputada à contraparte, por esta ter culposamente contribuído para a inobservância da forma exigida, ou então ter o contrato sido executado e ter-se a situação prolongado por largo período de tempo, sem que hajam surgido quaisquer dificuldades”.

Em sentido semelhante, pronuncia-se António Menezes Cordeiro[5] quando aponta os seguintes pressupostos da protecção da confiança através do venire:

1.º uma situação de confiança, traduzida na boa fé própria da pessoa que acredite numa conduta alheia (no factum proprium);

2.º uma justificação para essa confiança, ou seja, que essa confiança na estabilidade do factum proprium seja plausível e, portanto, sem desacerto dos deveres de indagação razoáveis;

3.º um investimento de confiança, traduzido no facto de ter havido por parte do confiante o desenvolvimento de uma actividade na base do factum proprium, de tal modo que a destruição dessa actividade (pelo venire) e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;

4.º uma imputação da confiança à pessoa atingida pela protecção dada ao confiante, ou seja, que essa confiança (no factum proprium) lhe seja de algum modo recondutível”.

Ora, tendo como ponto de partida estas considerações e embora a questão não seja isenta de dúvidas, inclinamo-nos a aceitar a tese sustentada na sentença recorrida, de acordo com a qual constitui abuso de direito o exercício da pretensão, por parte do Réu, de restituição dos valores que pagou a título de juros.

De facto, o contrato em causa foi celebrado em 22/08/2006 e, desde Setembro de 2006 até Junho de 2013 (durante cerca de sete anos), o Réu pagou os juros que haviam sido estabelecidos e fê-lo todos os meses em total conformidade com o que havia sido acordado. Ora, essa conduta –adoptada pelo Réu de forma continuada – era idónea para criar no Autor a confiança de que o Réu iria cumprir o acordado, pagando os juros estabelecidos até ao momento em que procedesse à restituição do capital mutuado; por outro lado, é legítimo afirmar que o Autor investiu nessa confiança, já que, foi nesse pressuposto que permitiu ao Réu a disponibilidade do capital mutuado durante tanto tempo e que se dispôs a aceitar que tal capital não lhe proporcionasse os rendimentos que poderia auferir caso estivesse na sua disponibilidade e, ao que nos parece, a total restituição das prestações efectuadas (designadamente, as prestações de juros que foram pagas pelo Réu) conduziria a uma situação de clara injustiça, porquanto o Réu teria tirado todo o benefício que o contrato lhe podia proporcionar (porquanto, não obstante a nulidade, sempre teria tido a disponibilidade do capital durante vários anos e a possibilidade de o aproveitar em seu proveito) e o Autor ficaria apenas com o capital, sem auferir qualquer proveito e suportando ainda o prejuízo decorrente do facto de, durante aqueles anos, ter ficado impossibilitado de rentabilizar aquele capital e de o utilizar em seu benefício. Refira-se que, num caso como este, a restituição das prestações que é imposta pelo art.289º do CC não tem a virtualidade de eliminar todos os efeitos que o contrato produziu enquanto foi cumprido pelas partes e não tem total idoneidade para repor a situação que existia anteriormente, porquanto, enquanto o contrato foi cumprido (no caso, durante sete anos), ele produziu o efeito que aproveitava ao Réu (a disponibilidade do capital), surgindo por isso como claramente injusto que não se aceite também a produção do efeito que aproveitava ao Autor (a respectiva remuneração) durante o período em que tal efeito foi aceite e foi cumprido pelo Réu, sem questionar essa obrigação e sem questionar a validade do contrato.

Inclinamo-nos, portanto, a considerar que o exercício da pretensão, por parte do Réu, de restituição dos valores que pagou a título de juros seria ilegítimo por corresponder a abuso de direito[6].

E dizemos que seria ilegítimo porque, de facto, o Réu não exerceu essa pretensão, razão pela qual nunca poderia ser aqui reconhecido e declarado esse direito.

Expliquemos esta afirmação.

Por força da nulidade do contrato e conforme referimos, o Autor tem um direito de crédito sobre o Réu, no valor de 150.000,00€ (correspondente à prestação que efectuou em cumprimento do contrato) e o Réu teria um direito de crédito sobre o Autor, no valor de €81.312,11 (correspondente à prestação de juros que efectuou em cumprimento do mesmo contrato).

Todavia, ao contrário do que dizem os Apelantes, ainda que não existisse abuso de direito na reclamação desse crédito por parte do Réu, o Tribunal não podia condenar o Autor a restituir ao Réu essa quantia, porquanto esse pedido não foi formulado e, como decorre do disposto no art. 3º e 609º do CPC, o Tribunal não pode decretar uma pretensão que não lhe foi formulada e não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

E, ao contrário do que pretendem os Apelantes, também está vedado ao Tribunal deduzir o valor do crédito do Réu ao valor do crédito do Autor para o efeito de condenar o Réu a pagar apenas a diferença. E esse procedimento está vedado ao Tribunal porque ele pressupõe o funcionamento da compensação de créditos e tal compensação, não sendo de conhecimento oficioso, não foi invocada pelo Réu.

Importa notar que o Réu, na sua contestação, não alegou sequer ser titular de um qualquer crédito sobre o Autor (como era pressuposto para o funcionamento da excepção de compensação), porquanto alegou que a quantia que havia entregue ao Autor não respeitava ao pagamento de quaisquer juros (alegando que estes não haviam sido convencionados) mas sim ao pagamento do capital mutuado. Ou seja, o que o Réu invocou foi a excepção de pagamento (parcial) relativamente ao crédito de 150.000,00€ que era reclamado pelo Autor (pagamento que não provou, porquanto o que se veio a provar é que a quantia entregue não se destinava ao pagamento do referido crédito do Autor, mas sim ao pagamento dos juros que haviam sido acordados); o Réu não invocou, no entanto, a excepção de compensação, até porque esta pressupunha a alegação de um crédito sobre o Autor, alegação essa que o Réu não efectuou.

Refira-se que, ainda que o Tribunal possa declarar oficiosamente a nulidade (cfr. art. 286º do CC), não poderá declarar os seus efeitos oficiosamente e sem que estes lhe sejam pedidos (ainda que com base noutros fundamentos), sob pena de violação das normas supra citadas e do princípio do dispositivo que nelas está consagrado.

Não ignoramos o teor do Assento nº 4/95[7], onde se diz que “quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico, invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no n. 1 do artigo 289 do Código Civil”.  

Todavia, e como bem se explica no Acórdão do STJ de 05/11/2009[8], o que está subjacente à doutrina do referido assento é apenas a possibilidade de convolar a causa de pedir que era invocada e de alterar a qualificação da pretensão material deduzida, mas apenas para decretar o efeito prático-jurídico que foi solicitado, ainda que sob diferente qualificação jurídica, e não para o efeito de decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado[9]. Ou seja, se o aqui Autor peticionasse a devolução da quantia mutuada, no pressuposto de que o contrato era válido e com base, designadamente, no seu incumprimento, a mera circunstância de se concluir que o contrato era nulo não obstaria a que, com fundamento na nulidade e nos efeitos delas emergentes, se decretasse o efeito prático que era peticionado (a condenação do Réu a devolver aquela quantia) ainda que assente em fundamentos diferentes dos que haviam sido invocados; mas já não seria permitido ao Tribunal, sob pena de violação dos arts. 3º e 609º do CPC, que, concluindo pela nulidade do contrato, condenasse o Réu a restituir a quantia mutuada se o Autor, actuando no pressuposto de que o contrato era válido, apenas se apresentou a pedir o pagamento de juros acordados e referentes a determinado período.     

A doutrina do aludido Assento não poderá, portanto, ser invocada para o efeito de condenar o aqui Autor a restituir ao Réu o que dele recebeu em cumprimento do contrato nulo (porquanto o Réu não formulou qualquer pretensão no âmbito da qual se pudesse inserir, ainda que sob diversa qualificação, essa condenação) ou para o efeito de fazer operar a excepção de compensação entre esse crédito do Réu e o crédito que o Autor vem reclamar na presente acção, porquanto tal excepção não pode ser conhecida oficiosamente e não foi invocada pelo Réu.

Com efeito, não poderemos subscrever a sentença recorrida, quando afirma que, em virtude de o Réu ter alegado expressamente que havia entregue ao Autor as aludidas quantias que pretende ver descontadas, tal equivale à invocação da compensação.

De facto, a compensação é uma causa extintiva das obrigações que, como decorre do disposto nos arts. 847º e segs. do CC, pressupõe uma reciprocidade de créditos e que apenas se torna efectiva mediante declaração de uma das partes à outra.

Ora, o Réu nunca manifestou a vontade de pretender compensar o seu crédito com o crédito do Autor – não aludiu sequer, na sua contestação, a tal instituto – e não alegou, sequer, ser titular de qualquer crédito sobre o Autor. O Réu alegou, de facto, que havia entregue determinadas quantias ao Autor e sustentou que essas quantias deviam ser descontadas ao valor do crédito que o Autor reclamava; mas, ao fazer tal alegação, o Réu limitou-se a invocar a excepção de pagamento (parcial) do crédito do Autor (já que, na versão dos factos que trouxe aos autos, não era titular de qualquer crédito sobre o Autor e aquelas quantias ter-se-iam destinado a pagar o crédito do Autor), sem que tenha invocado uma qualquer compensação de créditos (compensação que nem sequer se adequava aos factos que havia alegado, porquanto, a compensação pressupunha que fosse titular de um crédito sobre o Autor). O Réu não logrou fazer a prova do facto extintivo da obrigação do Autor que havia invocado (o pagamento), porquanto a realidade que veio a ficar provada é diferente daquela que havia alegado; o que se conclui, perante a matéria de facto provada, é que o crédito do Autor não se extinguiu parcialmente pelo pagamento (conforme alegava o Réu) e que as quantias entregues pelo Réu corresponderão apenas ao valor de um crédito que o Réu detém sobre o Autor e esta realidade não pode ser agora aproveitada para fazer operar uma compensação desses créditos que, no momento oportuno, o Réu não invocou e não declarou pretender efectivar.

Afigura-se-nos, portanto, em face do exposto, que, ainda que a pretensão de restituição dos juros pagos pelo Réu não configurasse abuso de direito, o direito a tal restituição não podia ser aqui considerado, seja para o efeito de condenar o Autor a tal restituição, seja para o efeito de fazer operar a compensação de créditos e julgar parcialmente extinto o crédito do Autor, porquanto, não tendo sido formulada qualquer pretensão no sentido de ver reconhecido esse direito ou no sentido de obter a condenação do Autor a proceder a tal restituição, o Tribunal, ainda que concluísse pela inexistência de abuso de direito, sempre estaria impedido de proferir tal decisão, tal como estaria impedido de descontar o valor desse crédito ao valor do crédito do Autor (para efeitos de apenas condenar o Réu a pagar a diferença entre esses valores), porquanto esse procedimento só poderia operar através do funcionamento da compensação de créditos e esta compensação não foi invocada em momento oportuno e não pode ser conhecida oficiosamente.

 

Em face do exposto, impõe-se confirmar a sentença recorrida na parte em que condenou o 1º Réu a pagar ao Autor a quantia de 150.000,00€ acrescida de juros, à taxa legal, desde a citação.

Resta agora saber se a 2ª Ré também é responsável pelo pagamento dessa quantia.

A sentença recorrida considerou que sim, fundamentando a decisão no disposto no art. 1691º, nº 1, alíneas c) e d) do CC por ter entendido que a dívida foi contraída no exercício do comércio do 1º Réu e em proveito comum do casal.

A 2ª Ré – ora Apelante – discorda dessa decisão, argumentando que a dívida em causa não foi contraída em proveito comum do casal, na medida em que se provou que a Apelante tinha rendimentos próprios (auferia um salário) e que não era da actividade do 1º Réu que provinham os rendimentos do casal.

Dispõe a norma citada, nas alíneas que fundamentaram a decisão recorrida, que:

São da responsabilidade de ambos os cônjuges:

(…)

c) As dívidas contraídas na constância do matrimónio pelo cônjuge administrador, em proveito comum do casal e nos limites dos seus poderes de administração;

d) As dívidas contraídas por qualquer dos cônjuges no exercício do comércio, salvo se se provar que não foram contraídas em proveito comum do casal ou se vigorar entre os cônjuges o regime de separação de bens;

(…)”.

Tendo em conta que, de acordo com o disposto no nº 3 da norma em questão, o proveito comum do casal não se presume, excepto nos casos em que a lei o declarar, o credor que pretenda responsabilizar o cônjuge do seu devedor estará, por regra, obrigado a fazer a prova de que a dívida foi contraída em proveito comum do casal. Todavia, se a dívida em causa tiver sido contraída pelo cônjuge devedor no exercício do seu comércio, o credor ficará dispensado de fazer a prova do proveito comum do casal que, nesse caso, se presume, recaindo sobre o cônjuge do devedor o ónus de provar a inexistência desse proveito comum. Importa notar, por outro lado, que, em conformidade com o disposto no art. 15º do C.Comercial, as dívidas comerciais do cônjuge comerciante presumem-se contraídas no exercício do seu comércio, pelo que, para responsabilizar o cônjuge do seu devedor, o credor apenas terá necessidade de provar que o cônjuge devedor é comerciante e que a dívida em causa tem natureza comercial; provados estes factos, presume-se, por efeito do citado art. 15º, que a dívida foi contraída no exercício do comércio e presume-se, consequentemente, por efeito da alínea d) do nº1 do art. 1691º do CCivil, que ela foi contraída em proveito comum do casal.

Todavia e salvo o devido respeito, não se provou, nos presentes autos, o proveito comum do casal e tão pouco se provou que o 1º Réu seja comerciante e que a dívida em causa tenha natureza comercial.

Vejamos.

Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela[10], há proveito comum do casal “…sempre que a dívida é contraída tendo em vista um interesse comum de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar”. Continuam dizendo que “do que fundamentalmente se trata, portanto, é de saber se o cônjuge administrador ao contrair a dívida, agiu em vista de um fim comum (ainda que precipitada ou desastrosamente) ou procurou, pelo contrário, realizar um interesse exclusivamente seu, satisfazendo uma necessidade apenas sua (…) No primeiro caso, a dívida responsabiliza ambos, seja qual for o regime de bens vigente; no segundo, é da exclusiva responsabilidade do cônjuge que a contraia…”.

Ora, a verdade é que não é possível extrair da matéria de facto provada o aludido proveito comum do casal (importando notar que, além do que consta da matéria de facto, o Autor nada mais alegou).

De facto, apenas sabemos que o empréstimo que o Autor concedeu ao Réu tinha em vista a conclusão da casa do filho do Réu e a conclusão de uma vivenda que andava a ser construída e que pertencia a uma empresa de que o Réu era gerente.

Ora, não é possível retirar destes factos um qualquer proveito comum do casal que tivesse sido visado pelo empréstimo em causa, já que, de acordo com esses factos, a dívida contraída pelo Réu terá revertido em benefício do seu filho e em benefício da empresa da qual era gerente (e sem que resulte sequer da matéria de facto se era uma empresa singular ou uma sociedade e se o Réu era dono dessa empresa ou sócio dessa sociedade, sendo certo que as partes, nos respectivos articulados, não identificaram essa empresa) já que as casas construídas terão sido incorporadas no património do filho do Réu e no património da referida empresa sem que tenha sido alegado e provado um qualquer facto do qual se pudesse retirar um qualquer interesse comum de ambos os cônjuges ou da sociedade familiar que aquela dívida visasse satisfazer. Refira-se que não sabemos sequer a que título o Réu terá feito reverter a dívida que contraiu em favor do filho e em favor da empresa de que era gerente e não dispomos de qualquer outro facto que nos permita afirmar que a 2ª Ré, ora Apelante, tivesse qualquer interesse (material ou moral) naquela situação.

Resultou, efectivamente, provado que das funções exercidas pelo 1.º Réu B... na referida empresa eram retirados os rendimentos do casal. Mas, salvo o devido respeito, esse facto não nos permite concluir que a dívida em causa tenha sido contraída em proveito comum do casal, já que, perante esse facto, a única coisa que poderemos concluir é que a remuneração do Réu, enquanto gerente daquela empresa, revertia em proveito comum do casal; mas nem sequer nos será permitido afirmar que o resultado da actividade exercida por essa empresa (em cujo benefício a dívida foi contraída) também revertesse, directamente, em proveito comum do casal, já que não resultou provado que o Réu, além de gerente, também fosse dono ou sócio (tudo indica que também seria, já que, de outro modo, não se perceberia que tivesse contraído um empréstimo em benefício da empresa, mas a verdade é que não está provado e só aos factos provados poderemos atender).

Está afastada, portanto, a possibilidade de aplicação da alínea c) da norma supra citada, porquanto nada se provou que permita concluir que a dívida tenha sido contraída em proveito comum do casal.

E também nos parece não estar verificada a situação prevista na alínea d), porquanto não resultaram provados quaisquer factos que permitam afirmar que o 1º Réu era comerciante e que a dívida em causa se relacionasse com a sua actividade comercial.

Dispõe o art. 13º do Código Comercial que:

São comerciantes:

1.º As pessoas, que, tendo capacidade para praticar actos de comércio, fazem deste profissão;

2.º As sociedades comerciais”.

Ora, nada na matéria de facto nos permite afirmar que o Réu se dedicasse profissionalmente ao comércio.

Apenas sabemos que o Réu era gerente de uma empresa.

Ora, o exercício de funções de gerência não tem, em princípio, qualquer idoneidade para conferir ao gerente o estatuto de comerciante com referência aos actos que pratica no exercício dessas funções. Como refere Filipe Cassiano dos Santos[11], “…só o exercício em nome próprio é susceptível de tornar um sujeito comerciante. Os actos praticados em nome de outrem repercutem-se na esfera jurídica do representado ou mandatário ou, em qualquer caso, e na falta de relação jurídica que funde um tal resultado, não produzem efeitos na esfera do sujeito que actua, e não conduzem por isso à aquisição da qualidade de comerciante por quem os pratica – poderão é, se se verificarem os respectivos pressupostos, ser aptos para tornar comerciante o sujeito em cuja esfera vão ter eficácia”. 

E, se é certo que os actos comerciais praticados pelo Réu no exercício de funções de gerência não têm idoneidade para lhe conferir o estatuto de comerciante, a verdade é que não sabemos – porque nada resulta da matéria de facto provada – que o Réu, em seu próprio nome, praticasse actos de comércio, disso fazendo profissão.

Não existindo elementos bastantes para concluir que o 1º Réu é comerciante, a 2ª Ré, ora Apelante, apenas poderia ser responsabilizada pela dívida em causa nos autos se o Autor tivesse provado que a mesma foi contraída em proveito comum do casal, prova que, como vimos, não foi efectuada.

Impõe-se, portanto, em face do exposto, absolver a 2ª Ré do pedido.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – A declaração de nulidade de um contrato de mútuo importa, não só a restituição do capital mutuado, mas também a restituição dos valores que o mutuário tenha pago a título de juros convencionados.

II – Todavia, estando em causa um mútuo em que, não obstante a sua nulidade, o mutuário pagou os juros convencionados, durante cerca de sete anos, sem nunca questionar essa obrigação e a validade do contrato, será abusivo o exercício da pretensão de restituição desses juros, por força da nulidade que veio a ser declarada, por corresponder a um venire contra factum propium e defraudar a legítima expectativa do mutuante e a confiança que lhe mereceu o anterior comportamento do mutuário.

III – O que está subjacente à doutrina do Assento nº 4/95 é a possibilidade de convolar a causa de pedir que era invocada e de alterar a qualificação da pretensão material deduzida, mas apenas para decretar o efeito prático-jurídico que foi solicitado, ainda que com base noutros fundamentos e sob diferente qualificação jurídica; não é, no entanto, permitido ao Tribunal, sob pena de violação do disposto nos arts. 3º e 609º do CPC, decretar um efeito que não foi, de todo, solicitado e declarar os efeitos da nulidade sem que tenha sido formulada uma qualquer pretensão no âmbito da qual esses efeitos se possam inserir, ainda que sob diversa qualificação.

IV – Assim, não tendo sido formulada uma qualquer pretensão no âmbito da qual se possa inserir, ainda que sob diversa qualificação, tal condenação, o Tribunal está impedido de condenar as partes – ou uma delas – a restituir o que receberam em cumprimento do contrato nulo, tal como está impedido de fazer operar a excepção de compensação entre os créditos de que cada uma das partes é titular, por força da nulidade do negócio, se tal compensação (que não é de conhecimento oficioso) não foi oportunamente invocada.


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V.
Pelo exposto, negando-se provimento ao recurso do Réu, B... , e concedendo-se provimento ao recurso da Ré, C... , confirma-se a sentença recorrida na parte em que condenou o primeiro Réu e revoga-se a mesma sentença, na parte em que condenou a Ré, C... , absolvendo-se esta Ré do pedido contra ela formulado.
O Réu, B... , suportará as custas do recurso que interpôs.
As custas referentes ao recurso da Ré, C... , serão suportadas pelo Apelado.
Notifique.

Maria Catarina Gonçalves (Relatora)

Maria Domingas Simões

Nunes Ribeiro


[1] Diploma a que se reportam as demais disposições legais que venham a ser citadas sem menção de origem.
[2] Cfr. Acórdão do STJ de 08/06/2010,  proc. nº 3161/04.6TMSNT-L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3]   RLJ, Ano 118º, pág. 171.
[4]   RLJ Ano 118º, pág. 11.
[5] Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, pág.964.
[6] Neste sentido e numa situação idêntica, pode ver-se o Acórdão do STJ de 27/05/2010 – citado pela sentença recorrida – proferido no processo nº 148/06.8TBMCN.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[7] Publicado no DR. Série I-A, de 17/05/1995
[8] Proferido no processo nº 308/1999.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, veja-se também o Acórdão do STJ de 20/05/2003, processo nº 03A1402
[10] Código Civil Anotado, Vol. IV, 2ª ed. Revista e Actualizada, pág. 331.
[11] Direito Comercial Português, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, pág. 113.