Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7/18.1IDVIS-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
Data do Acordão: 10/29/2021
Votação: DECISÃO SINGULAR
Tribunal Recurso: VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Decisão: ATRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA
Legislação Nacional: ART. 46.º DO RGIT; ART. 25.º DO CPP
Sumário: I – Para efeitos de competência por conexão relativa a processos cujo objecto verse crimes tributários, não são da mesma natureza os crimes de abuso de confiança fiscal e de abuso de confiança contra a segurança social.

II - A conexão (subjectiva) prevista no artigo 25.º do CPP verifica-se apenas quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca.

Decisão Texto Integral:




I. Relatório:

O Sr. Juiz do Juízo Local Criminal de Viseu (J1) suscitou, no âmbito do processo comum singular n.º 7/18.1IDVIS, a resolução do conflito negativo de competência (por conexão) existente entre o próprio e o Sr. Juiz do Juízo Local Criminal de Viseu (J2), estando em causa determinar se cabe (ou não) ao primeiro dos dois Juízes referidos a realização do julgamento (conjunto) relativo àquele processo e aos autos de processo comum singular n.º 769/20.6T9VIS.

Cumprido o disposto no artigo 36.º, n.º 1, do CPP, o Sr. Procurador-Geral Adjunto, em parecer que emitiu, sustenta a inexistência de conexão determinante do julgamento conjunto nos indicados processos, enquanto os arguidos A... , B... , C... e D... “reiteram na íntegra o teor do despacho”, abaixo parcialmente transcrito, proferido pelo Sr. Juiz do Juízo Criminal de Viseu – J1.


*

II. Fundamentação:

1. Elementos relevantes:

A. No domínio do processo n.º 7/18.1IDVIS, o Ministério Público acusou, em 29-11-2019, E... , Lda., D... e A... pela prática, em autoria material, cada um dos arguidos, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105.º, n.ºs 1 e 4, als. a) e b), do RGIT – Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, com sucessivas alterações, nomeadamente, as das Leis 53-A/2006, de 29 de Dezembro, e 64-A/2008, de 31 de Dezembro.

B. Por sua vez, em 08-10-2020, no proc. n.º 769/20.6T9VIS, foi deduzida acusação pública contra E... , Lda., A... , C... , D... e B... , imputando-lhes a “autoria de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos termos dos arts. 30.º, n.º 2, 77.º e 79.º do CP, e no art. 107.º, n.º 1, do RGIT”.

C) Em despacho judicial proferido no processo 769/20.6T9VIS, foi determinada, ao abrigo do disposto nos arts. 24.º, n.ºs 2, 25.º, 28.º, alínea a), e 29.º, n.ºs 1 e 2, do CPP, a apensação daquele processo ao de n.º 7/18.1IDVIS;

D) Posteriormente, o Sr. Juiz do Juízo Local Criminal de ViseuJ1 despachou nos seguintes termos (transcrição parcial):

«Por decisão proferida no processo n.º 769/20.6T9VIS do Juízo Local Criminal de Viseu, Juiz 2, datada de 03/05/2021, foi determinada a apensação aos presentes autos (cfr. fls. 456 do apenso). Fundamentou-se tal apensação nos artigos 24.º, n. 2, 25º, 28º, al. c) e 29º nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

Dispõe o artigo 25º, do Código de Processo Penal: “(…”).

Sendo evidente não se verificar qualquer uma das causas de conexão previstas no artigo 24º, n.º 1, do Código de Processo Penal, há que analisar a situação concreta à luz da transcrita disposição legal.

Compulsados os autos, constata-se que, nos presentes autos, os arguidos acusados são tão só E... , Lda., A... e D... (cf. fls. 1222 e ss.), ao passo que, no processo n.º 769/20.6T9VIS, encontram-se acusados, para além daqueles arguidos, também C... e B... (cfr. fls. 247 e ss. do apenso).

Ora, no caso de haver mais de um arguido, o citado artigo 25º só tem aplicação se os arguidos forem os mesmos em todos os processos, o que, como vimos, não sucede in casu (…).

Entendimento diferente, como aquele que determinou a apensação, é contrário ao espírito legislativo, bem como à unidade do sistema jurídico.

(…).

Não se verifica, pois, a conexão que fundamenta a apensação dos processos prevista no artigo 25º, do Código de Processo Penal.

Mesmo que se entendesse verificado o fundamento de conexão previsto no artigo 25º, do Código de Processo Penal, de qualquer forma, o mesmo não valeria no caso, por estarem em causa processos por crimes tributários de diferente natureza.

Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 46º, do RGIT, “as regras relativas à competência por conexão previstas no Código de Processo Penal valem exclusivamente para os processos por crimes tributários da mesma natureza”.

Tendo presente a sistemática do Título I da Parte III do RGIT, os crimes tributários distinguem-se, segundo a sua natureza, em crimes tributários comuns (capítulo I), crimes aduaneiros (capítulo II), crimes fiscais (capítulo III) e crimes contra a segurança social (capítulo IV).

Nos presentes autos, os arguidos encontram-se acusados pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105.º, n.º 1, e n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT, portanto, um crime fiscal. Já no processo n.º 769/20.6T9VIS do Juízo Local Criminal de Viseu, Juiz 2, os arguidos encontram-se acusados pela prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto e punido pelo artigo 1070. n.º 1, do RGIT, portanto, um crime contra a segurança social.

A diferente natureza dos crimes tributários imputados num e noutro processo afasta as regras relativas à competência por conexão previstas no Código de Processo Penal, designadamente as que fundamentaram a decisão proferida no processo n.º 769/20.6T9VIS do Juízo Local Criminal de Viseu, Juiz 2.

Assim, em face do exposto, conclui-se ser este Tribunal incompetente para o julgamento do processo n.º 769/20.6T9VIS do Juízo Local Criminal de Viseu, Juiz 2, remetido para apensação, que, por isso, em nosso entendimento, deve ser desapensado e subsequentemente reenviado para o Juízo Local Criminal de Viseu, J2.

Notifique.


*

(…).»

 


***

II. Cumpre decidir:

A dissensão fonte do conflito evidenciado nestes autos está em saber se é legalmente admissível a apensação processual acima enunciada.

De acordo com o disposto no artigo 46.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante apenas RGIT), “Para efeitos do presente diploma, as regras relativas à competência por conexão previstas no Código de Processo Penal valem exclusivamente para os processos por crimes tributários da mesma natureza”.

Consagra, assim, o RGIT uma restrição à aplicação das regras contidas no Código de Processo Penal (adiante apenas designado de CPP) relativas à competência por conexão (artigos 25.º a 29.º).

O normativo acabado de citar não fornece, para os fins visados, o sentido e o alcance do segmento normativo “crimes tributários da mesma natureza”.

Contudo, a sistemática do Título I (“Das infracções tributárias em especial) da Parte III  (“Crimes Tributários”) sugere o critério que se me afigura como “menos equívoco e mais coerente com a ratio do art. 46.º do RGIT” – o itálico é expressão retirada do Ac. da Relação do Porto proferido, em 24-01-2007, no proc. 0615426, publicado em http://www.dgsi.pt.

De acordo com a ordenação desse “segmento normativo do RGIT”, os crimes tributários comuns surgem elencados no capítulo I (artigos 87.º a 91.º), os crimes aduaneiros constam do capítulo II (artigos 92.º a 102.º), e os crimes fiscais e os crimes contra a segurança social estão contidos, respectivamente, no capítulo III (artigos 103.º a 105.º) e no capítulo IV (artigos 106.º e 107.º).

Por via do exposto, no caso concreto, respeitando os dois processos em causa a crimes de estrutura diferenciada, o referenciado artigo 46.º do RGIT obsta à determinada, pelo Sr. Juiz do Juízo Local Criminal de Viseu (J2), apensação – neste sentido, vejam-se, além do Acórdão acima mencionado, António Augusto Tolda Pinto e Jorge Manuel Almeida dos Reis Bravo, in Regime Geral das Infracções Tributárias, Coimbra Editora 2002, pág. 170, e Jorge Lopes de Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias, Anotado, 2008, págs.396/7.

Remanescendo um mínimo de dúvida sobre esta orientação jurídica, outros argumentos conduzem à mesma solução, ancorados na interpretação do artigo 25.º da lei geral adjectiva.
Transportarei para aqui o que deixei escrito no despacho proferido, em 13 de Julho de 2018, no proc. 870/17.3PBVIS-F.C1 (publicado no sítio do ITIJ), versando, de igual modo, um conflito negativo de competência.

«A dissensão fonte do conflito (…) radica na questão de saber qual o campo de aplicação do artigo 25.º do Código de Processo Penal, mais precisamente, se a aplicabilidade da referida norma está limitada a processos nos quais é apenas um o agente de múltiplos crimes cujo julgamento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, ou se, verificado este último condicionalismo, não obstante a diversidade de arguidos nos diversos processos, ainda assim deve operar a mesma regra alargada de competência.

A jurisprudência dos nossos Tribunais da Relação não tem sido absolutamente consensual neste domínio. Em perfeito alinhamento com o despacho do Sr. Juiz Local Criminal, (…) apenas dei conta do Ac. da Relação do Porto de 09-12-2004, publicado em www.dgsi.pt..

Aí se diz, no segmento mais relevante:

“(…) o único índice de conexão legalmente estabelecido é o mesmo agente ter cometido vários crimes, cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca. Nem se diga que esta expressão “o mesmo agente” afasta as hipóteses em que haja uma pluralidade de agentes. Havendo uma pluralidade de agentes, a melhor leitura da lei é, em nosso entender, a que faz depender a conexão apenas da prática, por um mesmo agente, de vários crimes na área da mesma comarca. Não faria qualquer sentido afastar a conexão, ao abrigo do art. 25.º do C.P.Penal, quando vários agentes tivessem cometido, em co-autoria, na área da mesma comarca, vários crimes. É assim claro que, da letra do citado preceito, só pode extrair-se a conclusão de que é de todo em todo irrelevante que o mesmo agente tenha praticado só, ou em qualquer outra forma de participação criminosa, vários crimes na área da mesma comarca.

Por um lado, a razão de ser deste elemento de conexão é a economia processual, com a consequente vantagem do agente poder ser julgado conjuntamente pelos vários crimes praticados, para efeitos de aplicação de uma pena única, em razão do concurso de crimes (art. 77.º do C.Penal) […]. Esta razão subjacente à referida conexão processual é prosseguida mesmo que o julgamento conjunto arraste o julgamento de outros arguidos.”

No outro sentido, podem consultar-se os Acs. do Tribunal da Relação do Porto de 06-07-2005 e de 08-03-2017, proferidos nos processos 0443684 e 5544/11.6TAVNG-U.P1, e as decisões dos Srs. Presidentes de Secções Criminais da Relação do Porto de 04-07-2014 (proc. n.º 589/12.1GAVNF-B.P1) e da Relação de Évora de 21-05-2015 (proc. n.º 52/15.9YREVR), todos publicados in www.dgsi.pt., e, na doutrina, Simas Santos e Leal Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 2.ª edição, 1999, pág. 192, e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª edição, 2009, em anotação ao artigo 25.º).

Extractamos, da decisão de conflito relativa ao processo n.º 589/12.1GAVNF-B.P1, as seguintes passagens:

«(…) em nosso entender, tanto o espírito legislativo como a unidade do sistema jurídico impedem se considere que há uma conexão entre os processos em causa.

Desde logo porque o art.º 25º do CPP, de forma expressa se refere ao “mesmo agente”, acrescentando: que “tiver cometido vários crimes”.

Mesmo agente importa unidade de acusado, não pluralidade de acusados. E [deste modo] tem de ser entendido, pelas razões que a Sr.ª Juiz do processo comum singular aduz, nas quais nos revemos, e que aqui reproduzimos: “A não ser assim, conduziria o artigo 25.º do CPP a múltiplas situações de conexão e consequente apensação de processos em que até poderá não haver um único arguido comum a todos os processos apensados, sendo julgadas conjuntamente pessoas sem qualquer ligação entre si e por factos sem qualquer relação palpável, sendo o tribunal «obrigado» a apreciar complexas realidades simultaneamente multi-pessoais e multi-factuais sem outra relação que não seja a de se repetir, e apenas «pontualmente» (pois que bastaria para a conexão que houvesse um arguido – entre muitos – comum entre determinado processo e aquele que seria competente para o julgamento, independentemente do número de arguidos neste acusados, podendo esta situação multiplicar-se por número considerável de processos), um mesmo agente.»

Procedendo à devida recensão crítica das duas teses em confronto, estou do lado a que pertence a [descrita] em último lugar.

A disposição normativa génese da anunciada divergência, com a epígrafe “Conexão de processos da competência de tribunais com sede na mesma comarca”, dispõe:

«Para além dos casos previstos no artigo anterior, há ainda conexão de processos quando o mesmo agente tiver cometido vários crimes cujo conhecimento seja da competência de tribunais com sede na mesma comarca, nos termos dos artigos 19.º e seguintes”.

A conexão (subjectiva) prevista no preceito legal acabado de citar tem como pressuposto a existência de concurso de infracções, para além dos casos de unidade de acção ou de omissão da alínea a) do n.º 1 do artigo 24.º. Prevê-se aqui a pluralidade de comportamentos integrantes de vários crimes da competência material de tribunais sedeados na mesma comarca; haverá, então, conexão de processos, que são julgados em conjunto, da competência do tribunal que resultar da aplicação das regras de competência determinadas pelo artigo 28.º (vide Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado, 2014, Almedina, pág. 99/100).

A razão da conexão de processos radica na celeridade e economia processual e na vantagem dela advinda para o agente, que, julgado conjuntamente, pelos diversos crimes, vê a sua situação jurídico-penal unitariamente definida (a propósito, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. I, 6.ª edição, pág. 210).

Dito isto, subscrevo, sem nenhuma reserva, a interpretação do preceito que conduz à existência da conexão prevista no artigo 25.º apenas quando existe pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente.

A não se entender deste modo, resultaria incompreensivelmente sacrificado o basilar princípio da economia e celeridade na gestão e decisão dos processos.

Com efeito, o posicionamento que, por economia de palavras, agora designarei de “mais alargado”, poderia conduzir - em situações pontuais, conduziria seguramente -, ao julgamento conjunto de uma imensa multiplicidade de processos, com um cortejo inimaginável de arguidos, em que as situações fácticas reveladas não teriam nenhuma relação entre si.

Como está escrito no já aludido despacho do Sr. Presidente das Secções Criminais da Relação de Évora, a exegese acolhida “não impedirá que, para além dos casos previstos nas alíneas d) e e) do art. 24.º do CPP, e em caso de vários arguidos, agindo em coautoria, possa ocorrer a apensação de processos crime, pendentes na mesma comarca, ao processo a que respeitar o crime determinante da competência por conexão, segundo os critérios enunciados no artigo 28.º (pena mais grave, arguido preso, prioridade da notícia do crime) quando os agentes dos crimes forem os mesmos em todos os processos.” - Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 6 de Julho de 2005, relator Agostinho de Freitas, acessível in www.dgsi.pt/jtrp.

Em jeito de síntese conclusiva, cabe dizer: a conexão (subjectiva) prevista no artigo 25.º do CPP apenas se verifica quando, em princípio, existe uma pluralidade de crimes cometidos pelo mesmo agente, para cujo conhecimento sejam competentes tribunais com sede na mesma comarca».

Revertendo à situação decorrente dos presentes autos, manifestamente ela não se integra na dita interpretação normativa.


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III. Dispositivo:

Posto o que precede, decidindo o presente conflito negativo, determino que os processos em causa não sejam apensados, mantendo cada um dos Srs. Juízes a competência para o julgamento do processo que lhe foi oportunamente distribuído.

Sem tributação.

Cumpra-se o disposto no art. 36.º, n.º 3, do CPP.


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Coimbra, 29 de Outubro de 2021

(Documento elaborado e integralmente revisto pelo signatário, Presidente da 5ª Secção - Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra)

(Alberto Mira)