Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1732/06.5TBCVL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
OBRAS
ARRENDATÁRIO
BENFEITORIA
Data do Acordão: 03/03/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – SECÇÃO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 1046º, N.º1, 1273º E 1275º DO C. CIVIL.
Sumário: I - As obras realizadas pelo arrendatário em prédio arrendado sem a prévia apresentação e aprovação dos respectivos projectos, não tendo sido licenciadas, quando tal era exigido, não se provando que ainda é possível o seu licenciamento não podem ser consideradas uma benfeitoria que confira ao arrendatário um direito de indemnização.

II - Um campo de futebol construído num prédio rústico pode ser retirado sem detrimento deste, pelo que a sua construção pelo arrendatário não lhe confere o direito a ser indemnizado pela realização de uma benfeitoria útil.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

A Autora intentou a presente acção de condenação com processo ordinário, pedindo a condenação dos Réus a:
a) pagarem-lhe a quantia de € 211.408,00, a título de indemnização por enriquecimento sem justa causa pelas benfeitorias necessárias e úteis que realizaram e que não podem ser removidas sem detrimento do próprio terreno, acrescida de juros, calculados à taxa legal, que se vencerem desde a citação dos Réus até efectivo e integral pagamento da quantia em dívida;
B) reconhecerem que à Autora assiste o direito de exercer o direito de retenção do prédio objecto do dito arrendamento até que lhe paguem a quantia cujo pagamento é peticionado na alínea anterior.
Para fundamentar a sua pretensão alegou, em síntese, que enquanto foi arrendatária do prédio que identifica, agora propriedade dos Réus, para o destinar, como sempre o destinou, a construir e instalar o seu campo de jogos, sobretudo para a prática do futebol, realizou neste várias obras cujo valor importou em € 211.408,00.
Depois de descrever todas as obras e trabalhos realizados no locado, concluiu que as mesmas integram a realização de benfeitorias úteis ou necessárias, todas feitas com o conhecimento e consentimento dos proprietários do imóvel, que aumentam o valor do mesmo e, atenta a sua natureza, não podem ser removidas ou levantadas sem a sua destruição, nem do imóvel em que foram levadas a cabo.
Alegando ainda que o contrato de arrendamento que a une aos Réus foi denunciado pelos senhorios em 31.12.2006, pretende ser indemnizada na medida do enriquecimento dos Réus em consequência da valorização.
Os Réus … deduziram pedido reconvencional.
Reconhecendo a celebração do arrendamento, alegaram que a Autora nos últimos trinta anos não pagou aos senhorios uma única renda.
Negam que tenham dado autorização para a execução dos trabalhos ou obras realizados no locado e que estas tenham obtido a sua concordância.
Alegando que as benfeitorias realizadas não eram necessárias para evitar a perda destruição ou deterioração do locado ou mesmo indispensável para a conservação daquela parcela de terreno, como existia, concluem que nenhuma delas pode ser qualificada como necessária.
Para o caso de se entender que as mesmas integram a qualificação de benfeitorias úteis, defendem que a Autora sempre poderia fazer o levantamento da quase totalidade das mesmas sem detrimento da parcela arrendada.
Concluíram pela improcedência da acção e procedência dos pedidos reconvencionais deduzidos:
- declarar-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a Autora e os Réus em 1 de Janeiro de 1969;
- condenação da Autora a restituir aos Réus a parcela com cinco mil metros quadrados que vêm ocupando no prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de …, no concelho da Covilhã, sob a matriz …, bem como a retirar, levantar e demolir, daquela parcela que lhe foi arrendada, todas as edificações, muros, vedações e construções que ali efectuou, designadamente as referidas nos artigos … da petição inicial ou, em alternativa, ser a Autora condenada a pagar aos Réus a quantia de 60.000,00, acrescida de juros desde a notificação da presente contestação/reconvenção até integral e efectivo pagamento, referente às despesas e custos com a demolição de todas aquelas edificações e construções, remoção dos respectivos aterros e materiais sobrantes e respectivo licenciamento da demolição e, ainda, ser a Autora condenada a pagar aos Réus a quantia diária de 50€, a título de indemnização pela perda por estes do uso e fruição da parcela de terreno com cinco mil metros quadrados que foi por eles dada de arrendamento à Autora, até que esta faça entrega àqueles da aludida parcela, livre e desimpedida de pessoas e bens.
A Autora replicou, alegando ter sempre pago a renda devida, salvo quando, alguns anos antes de falecer, F… lhe declarou que prescindia do seu recebimento, devendo ter-se presente que as obras em causa foram necessárias para que se mostrasse assegurada a finalidade do arrendamento, sendo absolutamente indiferente para as autos a questão do licenciamento administrativo das obras levadas a cabo há décadas.
Concluiu pela improcedência da reconvenção.
Os Réus apresentaram tréplica, concluindo como na contestação.
Veio a ser proferida sentença que julgou a causa nos seguintes termos:
Justifica quanto exposto que se profira decisão julgando a acção parcialmente procedente, por nessa medida provada, e consequentemente:
A1.condenam-se os RR. nos seguintes pedidos formulados pelos AA.:
a) Pagarem à Autora a quantia que se apurar em execução de sentença, correspondente, a título de indemnização por enriquecimento sem justa causa, ao custo das benfeitorias úteis que realizaram e que não podem ser removidas sem detrimento do próprio terreno, referidas em 6 a 13 da matéria de facto provada, acrescida de juros, calculados à taxa legal, que se vencerem desde a citação dos Réus até efectivo e integral pagamento da quantia em divida;
b) Reconhecerem que à Autora assiste o direito de exercer o direito de retenção do prédio objecto do dito arrendamento até que lhe paguem a quantia cujo pagamento é mencionado na alínea anterior;
A2 – condena-se a A. no seguinte pedidos reconvencional formulado pelos RR.: declara-se resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre Autora e os Réus em 1 de Janeiro de 1969, sendo a Autora condenada a fazer entrega aos Réus da parcela com cinco mil metros quadrados que vêm ocupando no prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de …, no concelho da Covilhã, sob a matriz …, bem como a retirar, levantar e demolir, daquela parcela que lhe foi arrendada, as obras que ali realizou, referidas na matéria de facto provada, excepto as referidas nos artigos em 6 a 13 da matéria de facto provada.
B. Absolvem-se A. e RR. dos demais pedidos contra si, e respectivamente, formulados.
O Autor inconformado com a decisão interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:

Os Réus apresentaram resposta, pugnando pela confirmação da decisão.
1. Do objecto do recurso
Considerando que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente cumpre conhecer a seguinte questão:
A Autora deve ser indemnizada pelas obras a que se referem os factos provados na sentença sob os n.º 14 a 51?
2. Dos factos

3. O direito aplicável
Em 1 de Janeiro de 1969 a Autora arrendou um prédio rústico para nele construir um campo de jogos destinado sobretudo à prática do futebol.
Os actuais senhorios denunciaram, por carta remetida à Autora, em 12 de Dezembro de 2005, o contrato de arrendamento.
A Autora, não colocando em causa a eficácia dessa denúncia, e aceitando o termo do contrato, através da presente acção pretende que os Réus a indemnizem dos gastos que teve com a construção do campo de futebol que ergueu no prédio arrendado, a título de benfeitorias.
A sentença recorrida considerou que as obras realizadas para a preparação do terreno em causa para nele ser construído o campo de futebol eram benfeitorias úteis que não podiam ser levantadas sem detrimento do prédio arrendado, pelo que reconheceu à Autora o direito a ser delas indemnizada, em valor a liquidar em incidente posterior.
Já quanto às obras de construção do campo de jogos considerou que nos encontrávamos perante benfeitorias voluptuárias que não conferiam à Autora qualquer direito a ser indemnizada.
Com o recurso interposto a Autora pretende que estas obras enumeradas nos factos provados sob os n.º 14 a 51 sejam consideradas benfeitorias úteis e que, assim qualificadas, seja julgado procedente o seu pedido de indemnização pela realização das mesmas, uma vez que não pode proceder ao seu levantamento sem o detrimento da coisa.
O direito à indemnização pela realização das benfeitorias no contrato de arrendamento encontra-se regulado nos art.º 1046º, n.º1, 1273º e 1275º, todos do C. Civil.
Assim, o locatário, salvo estipulação em contrário, é equiparado ao possuidor de má-fé quanto a benfeitorias que haja realizado no locado – art.º 1046º, n.º 1, do C. Civil.
O possuidor de má-fé têm direito a ser indemnizado pelas benfeitorias úteis que haja feito, e bem assim a levantá-las, desde que o possa fazer sem detrimento dela – art.º 1273º, do mesmo diploma.
Caso o possuidor não possa proceder ao levantamento das benfeitorias para evitar o detrimento da coisa, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.
Destas normas resulta inequívoco que a lei só confere direito a indemnização ao locatário pela realização de benfeitorias úteis no locado quando este não as puder levantar para evitar o detrimento da coisa.
Este direito à indemnização resultará da prova de duas realidades:
- a realização de benfeitorias úteis no locado;
- que as mesmas não possam ser levantadas sem detrimento da coisa.
Já no que respeita às benfeitorias voluptuárias o locatário perde-as sempre em benefício do locador – n.º 2, do mesmo artigo.
Um primeiro problema coloca-se, desde logo, quanto à catalogação das obras de construção do campo de jogos como benfeitorias, uma vez que as obras realizadas não foram executadas sem a prévia apresentação e aprovação dos respectivos projectos, não tendo sido licenciadas, não possuindo o campo de jogos licença de utilização.
Estamos, pois, perante uma construção ilegal pelo arrendatário no prédio arrendado que pode ser sujeita a demolição pelas entidades competentes.
Não tendo a Autora invocado e consequentemente provado a possibilidade do campo de jogos poder ser licenciado a posteriori, estamos perante uma obra equivalente às deteriorações no arrendado, que de modo algum pode ser considerado uma benfeitoria, dado não se traduzir numa obra de conservação ou melhoramento do arrendado [1].
Mas mesmo que se considerasse, por mera hipótese de raciocínio, que esta circunstância não impedia que se considerasse que o campo de jogos não deixava de se traduzir num melhoramento que aumentava o valor do prédio arrendado, sempre estaria colocado em crise o direito do Autor à indemnização pretendida, uma vez que, sendo o locatário equiparado ao possuidor de má-fé só lhe é conferido direito à indemnização das benfeitorias úteis realizadas no locado quando as mesmas não possam ser levantadas sem detrimento da coisa.
Ora, estando em causa um terreno rústico poderão sempre aquelas ser levantadas pois, nunca estará em causa o detrimento deste [2]. A coisa sobre a qual haveria de se verificar o “detrimento” é um terreno rústico que se encontrava a monte, antes da realização das obras, pelo que o levantamento/demolição da construção edificada em nada pode danificar o terreno onde foi erguida.
 Face ao exposto, a construção do campo de jogos pela Autora não lhe confere o direito a ser indemnizado pelas respectivas despesas, terminado o contrato de arrendamento do prédio onde aquele foi edificado.
Não se tendo considerado que a construção do campo de jogos pela Autora era uma benfeitoria que, terminado o contrato de arrendamento, deveria permanecer no prédio arrendado a troco do pagamento de uma indemnização, tendo-se antes entendido que era uma obra ilegal, sem que se tenha provado a possibilidade de a licenciar, sendo, por isso, equivalente às deteriorações no arrendado, também se revela correctamente decidido o pedido reconvencional na parte em que condenou a Autora a retirar, levantar e demolir, da parcela que lhe foi arrendada, as obras que ali realizou, referidas na matéria de facto provada, excepto as referidas nos pontos 6 a 1, uma vez que o arrendatário está obrigado a restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato – art.º 1043º, n.º 1, do C. Civil –, nunca podendo uma obra ilegal, sem perspectiva de licenciamento, ser incluir uma prudente utilização do arrendado.
Por esta razão deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
                                               Coimbra, 3 de Março de 2015.

***
Sílvia Pires (Relatora)
Henrique Antunes
Isabel Silva


[1] Vide, neste sentido, MARTA SÁ REBELO, in Comentário ao Código Civil – Parte Geral, pág. 483, ed. 2014 da Universidade Católica Editora, e os Acórdãos do S.T.J., de 10.7.2008, relatado por Moreira Alves e de 5.7.2012, relatado por Lopes do Rego, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.

[2] Neste mesmo sentido, os acórdãos do S. T. J. de 25.03.2003, relatado por Duarte Soares, e de 12.7.2011, relatado por Alves Velho, ambos acessíveis em www.dgsi.pt .