Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
943/10.8TTLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FELIZARDO PAIVA
Descritores: PERSONALIDADE COLECTIVA
LEVANTAMENTO
DESCONSIDERAÇÃO
Data do Acordão: 07/03/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 384º,Nº 2, AL. D) DO CÓDIGO DO TRABALHO; 334º DO C.CIVIL
Sumário: I – A desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva surgiu na doutrina e, posteriormente, na jurisprudência como meio de cercear formas abusivas de actuação, que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema.

II – No fundamental, ela traduz-se numa delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema ou “exprime situações nas quais, mercê dos vectores sistemáticos concretamente mais poderosos, as normas que firmam a personalidade colectiva são substituídas por outras normas.

III – O recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.

IV – De entre elas avultam a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal.

V – Em todas estas situações verifica-se que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.

VI – A desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, envolve sempre a formulação de um juízo de censura e deve revelar-se ilícita, havendo que verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

I- A... veio intentar a presente acção declarativa com processo comum contra “B... , LDA”, pedindo, expressis verbis:

I- Que seja declarado:

1- Que entre A. e Ré vigorou um contrato de trabalho de 07/10/1986 a 31/12/2009;

2- Que a A. desempenhou as funções inerentes à categoria profissional de “Encarregada” desde o início da sua relação de trabalho até 31/12/2003;

3- Que a A. tinha direito a ser classificada, ininterruptamente, desde 07/10/1986, com a categoria profissional de “Encarregada”;

4- Que a Ré lhe deve as seguintes quantias relativas a diferenças salariais:

[…]

II- Que a R. seja condenada:

1- A reconhecer tudo quanto ficou pedido no título anterior.

2- A pagar à A. todas as quantias indicadas nos pontos 4 a 6 desse título, num total, até à data da entrada da presente petição, de 65.892,64€.

3- A pagar à A. os juros que sobre as quantias indicadas no ponto anterior se vencerem, desde a data da citação até integral pagamento.”.

Alegou, para tanto e muito em síntese, que celebrou um contrato de trabalho com a R., sendo que, posteriormente, a R. a despediu ilicitamente, sendo-lhe devidos pela R. os créditos laborais e a indemnização peticionada.


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No processo apenso, C... veio intentar acção com processo comum contra “ B..., LDA”, pedindo, expressis verbis:

I- Que seja declarado:

1- Que entre A. e Ré vigorou um contrato de trabalho de 07/11/1985 a 31/12/2009;

2- Que a A. sempre desempenhou as funções inerentes à categoria profissional de “Oficial de 1ª”;

3- Que a A. tinha direito a ser classificada, ininterruptamente, desde 07/11/1985, com a categoria profissional de “Oficial de 1ª”;

4- Que a Ré lhe deve as seguintes quantias relativas a diferenças salariais:

[…]

II- Que a R. seja condenada:

1- A reconhecer tudo quanto ficou pedido no título anterior.

2- A pagar à A. todas as quantias indicadas nos pontos 4 a 6 desse título, num total, até à data da entrada da presente petição, de 111.880,11€. 3- A pagar à A. os juros que sobre as quantias indicadas no ponto anterior se vencerem, desde a data da citação até integral pagamento”.

Alegou, para tanto e muito em síntese, que celebrou um contrato de trabalho com a R., sendo que, posteriormente, a R. a despediu ilicitamente, sendo-lhe devidos pela R. os créditos laborais e a indemnização peticionada.


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Nas audiências de partes não foi possível a composição amigável do litígio pelo que se ordenou a notificação da ré para contestar as acções, o que fez, invocando o pagamento e pretendendo que “deverá a presente ação ser julgada parcialmente improcedente quanto ao pedido formulado pela A., na parte que excede o mencionado anteriormente”.

Alegou, para o efeito e muito resumidamente, que sempre pagou às AA. os seus direitos/créditos, pelo que não “pode ser declarado: - Que a categoria profissional da A. estava incorrecta; - Que a Ré, deva qualquer quantia à A. além da indemnização, pela extinção do posto de trabalho, na base de um mês por cada ano completo de trabalho, dado que tudo o resto foi sempre pontualmente liquidado à A., a qual foi devidamente processada aquando da extinção”.


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As AA. responderam à Contestação, impugnando parte da matéria de facto alegada pelas RR...

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Foi proferido despacho saneador, onde se relegou para final a apreciação do mérito dos autos, afirmando-se a validade e regularidade da instância e dispensando-se a realização de audiência preliminar, a fixação dos factos assentes e da base instrutória.

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As AA. vieram apresentar articulados supervenientes, em que efectuaram as alterações do pedido e da causa de pedir, e pedir a intervenção principal provocada de “ D..., Lda.”, E..., F... e G... por terem constituído uma nova sociedade e terem transferido para a mesma os bens da R. “ B..., Lda.”, que se veio opor à requerida intervenção principal provocada, tendo sido considerados admissíveis os articulados supervenientes e as alterações do pedido e da causa de pedir, bem como a intervenção principal provocada.

A A. A... veio dirigir os seguintes pedidos contra os intervenientes principais:

[…]


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Os intervenientes principais “ D..., Lda.”, E..., F... e G... vieram declarar que fazem seus todos os articulados apresentados pela R. “ B..., Lda.”, o que esta fez, invocando a excepção peremptória de prescrição e de abuso de direito, pretendendo que a acção seja julgada improcedente, sendo absolvida dos pedidos formulados pelo A..

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O A. respondeu à contestação, pretendendo que improceda a excepção de prescrição, mantendo o alegado na petição inicial.

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II – Prosseguiram os autos a sua normal tramitação tendo, a final, sido proferida sentença que decidiu julgar parcialmente procedentes a presente acção e a acção apensa e, em consequência:

a) Declarou que entre a A. A... e a R. “ B..., Lda.” vigorou um contrato de trabalho de 7/10/1986 a 31/12/2009, data em que a A. A... foi despedida ilicitamente pela R. “ B..., Lda.”, condenando a R. “ B..., Lda.” e os intervenientes principais “ D..., Lda.”, E..., F... e G... a tal reconhecer;

[…]


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III – Inconformados com a decisão dela vieram apelar B..., Lda, D..., Lda., H..., F... e G... alegando e concluindo:

[…]


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Não houve contra a legações.

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Recebida a apelação a Exmª PGA emitiu fundamentado parecer no sentido da manutenção do julgado.

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IV – Da 1ª instância vem dada como provada a seguinte factualidade:

[…]


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V - Conforme decorre das conclusões da alegação da recorrente que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso (artºs 684 nº 3 e 685º-A nº 3, ambos do Código de Processo Civil), as questões a decidir são as seguintes:

1) Se a cessação dos contratos de trabalho operada por iniciativa da recorrente foi lícita.

2) Se é legal a condenação solidária dos intervenientes principais.

Da cessação contratual:

A recorrente procedeu à cessação dos contratos invocando que o fazia através da “extinção do posto de trabalho”

O tribunal a quo considerou que “o despedimento das AA. foi efectuado sem observância de qualquer procedimento prévio e sem que o mesmo se enquadre em qualquer uma das situações em que é legalmente possível ao empregador despedir o trabalhador, não tendo também sido pagas às trabalhadoras as compensações inerentes ao despedimento por extinção do posto de trabalho (nos termos do Art. 366º, por remissão expressa do Art. 372º, ambos do Código do Trabalho).

Ora, tal inobservância das disposições legais aplicáveis a estes despedimentos tornam-nos ilícitos, nos termos gerais do Art. 381º do Código do Trabalho, na redacção em vigor aquando do despedimento das AA.

(…)

(“O despedimento por extinção de posto de trabalho é ainda ilícito se o empregador: a) Não cumprir os requisitos do n.º 1 do artigo 368.º; b) Não respeitar os critérios de concretização de postos de trabalho a extinguir referidos no n.º 2 do artigo 368.º; c) Não tiver feito as comunicações previstas no artigo 369.º; d) Não tiver colocado à disposição do trabalhador despedido, até ao termo do prazo de aviso prévio, a compensação a que se refere o artigo 366.º por remissão do artigo 372.º e os créditos vencidos ou exigíveis em virtude da cessação do contrato de trabalho”), com as consequências previstas legalmente, nos Arts. 389º e ss. do Código do Trabalho”.

Alegam os recorrentes que o Código do Trabalho, não faz depender a legalidade do despedimento da efectiva e real satisfação dos créditos do trabalhador que foi despedido, mas apenas da “disponibilização” do respectivo montante, o que é diferente do seu pagamento. No caso, a empregadora B..., Lda procedeu verbalmente a essa disponibilização

A questão prende-se com o disposto na 2ª parte da alínea d) do artigo 384º do Cód. do Trabalho: o empregador deve disponibilizar ao trabalhador os créditos vencidos ou exigíveis em virtude da cessação do contrato de trabalho.

Se é verdade que disponibilizar (colocar à disposição do trabalhador despedido) não significa pagar, não vislumbramos dos factos provados que essa disponibilização tenha sido efectuada.

Acresce ainda que, se por hipótese tal disponibilização tivesse ocorrido, sempre ela não teria sido feita até ao termo do aviso prévio, que pura simplesmente inexistiu, na medida e que o procedimento de extinção se limitou ao envio das cartas referidas nos factos 15º e 46º.

Por outro lado, a compensação a que se refere o artigo 366º não foi disponibilizada pela recorrente (factos 22º e 53º), nem foram cumpridos os requisitos e observado o critério a que aludem, respectivamente, os artigos 368º nº 1 e 368º nº 2 do Cód. do Trabalho.

Por isso, é por demais evidente a ilicitude do despedimento (artigo 384º do Cód. do Trabalho) não merecendo, nesta parte, a decisão impugnada qualquer censura.

Da condenação solidária dos intervenientes principais:

Vejamos como a 1ª instância abordou esta questão.

Lê-se na sentença que “quanto aos intervenientes principais, deu-se como provado que os sócios da R. constituíram uma nova sociedade, também interveniente principal, que labora no mesmo local da R., para onde transferiram todos os activos da R. e que manteve a actividade anterior da R. “ B...”, pretendendo as AA. que os intervenientes sejam condenados, juntamente com a R., no pagamento das quantias que entendem ser-lhes devidas.

Como se sabe, o Art. 980º do Código Civil prescreve que o contrato de sociedade “é aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa atividade” (cfr., detalhadamente sobre esta disposição, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado II, 3.ª Edição, Coimbra, 1986, p. 307, e FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial II, Coimbra, 1968, p. 3-14).

Assim, desenvolvendo esta noção, temos que as sociedades são definidas por quatro elementos: (i) Elemento pessoal: pluralidade de sócios; (ii) Elemento patrimonial: obrigação de contribuir com bens ou serviços; (iii) Elemento finalístico (fim imediato ou objecto): exercício em comum de certa actividade económica que não seja de mera fruição; (iv) Elemento teleológico (fim mediato ou fim stricto sensu): repartição dos lucros resultantes dessa actividade” – MIGUEL PUPO CORREIA, Direito Comercial – Direito da Empresa, 9.ª Edição, Lisboa, 2005, p. 117.

O Art. 5º do Código das Sociedades Comerciais prescreve, por seu lado, que “As sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras”, conferindo personalidade jurídica às sociedades (e, consequentemente, também judiciária, podendo as sociedades demandar e ser demandadas, dado que a legislação processual civil prevê, como critério geral para aferição da personalidade judiciária, a sua equiparação “à personalidade civil” – MANUEL DE ANDRADE, Noções elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 78, v. Art. 5º, n.º 2 do Código de Processo Civil).

De facto, como refere PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 5.ª Edição, Coimbra, 2004, p. 24, as sociedades comerciais “não se limitam a constituir um mero corpo unitário de bens, um património autónomo, uma unidade objectiva, mas são verdadeiramente uma unidade subjectiva, um novo sujeito de direito, em si, uma individualidade diferente de cada um dos seus sócios”.

Ou, de outra forma, a sociedade passa a ser um “autónomo centro de imputação de efeitos jurídicos ou autónomo sujeito de direitos e obrigações” – ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, «Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais» in Estudos de Direito das Sociedades, coord. de COUTINHO DE ABREU, Coimbra, 1998, p. 69.

Todavia e no caso vertente, deu-se como provado que essa nova sociedade “adquiriu, na data da sua constituição, o estabelecimento, sito na ..., constituído por todos bens, equipamentos e trabalhadores que a integravam e que, até àquela data eram propriedade da R. “ B..., Lda.”, visando, através da constituição de uma nova sociedade, diminuir o património da R. “ B..., Lda.””, pretendendo os sócios da R., através da criação dessa nova sociedade (que, no fundo, veio suceder integralmente à R., apenas ficcionando os sócios da R. que se trata de uma nova sociedade, distinta da R.), evitar o pagamento dos créditos das AA..

Ora, tal forma de actuação afigura-se manifestamente abusiva e desconforme à boa fé negocial, agindo os intervenientes principais com abuso de direito, previsto no Art. 334º do Código Civil, que verifica-se quando o respectivo “titular se excede no seu exercício, consistindo justamente na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que deve ser exercido” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 1997, BMJ n.º 470, p. 546, cfr. também, mais detalhadamente, COUTINHO DE ABREU, Do abuso do direito, reimpressão, Coimbra, 1999, passim, especialmente p. 55-69).

Ou, de outro modo e paradigmaticamente, este instituto “traduz a contradição entre o cumprimento da estrutura formalmente definidora de um direito e a violação concreta do fundamento que material-axiologicamente constitui esse mesmo direito” (CASTANHEIRA NEVES, Questão-de-facto – Questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade I, Coimbra, 1967, p. 524-525).

Como se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 11 de Maio de 2006, retirado de www.dgsi.ptIII - O recurso à teoria da desconsideração da personalidade jurídica representa uma via, doutrinária e jurisprudencial, que permite controlar o uso que os sócios fazem das sociedades para alcançarem fins ilícitos repudiados pela ordem jurídica e para os quais se verifica a inexistência de previsão legal adequada. IV – Se se puder concluir que a sociedade na sua existência e funcionamento encerra abuso de personalidade colectiva, por não ser mais do que um embuste que permitiu de forma legal evitar o cumprimento das obrigações da responsabilidade dos sócios, agindo, deste modo, com abuso de direito, então poder-se-á verificar o levantamento da personalidade colectiva dessa sociedade, ou seja, a derrogação do princípio da separação entre a pessoa colectiva e os que por detrás dela actuam”.

Desta forma, e uma vez que a criação dessa sociedade, por parte dos restantes intervenientes principais, visou unicamente transmitir para a mesma os bens da R. e impedir o pagamento aos seus credores, em que se incluem as AA., deve aplicar-se a figura da “desconsideração, como instituto assente no abuso do direito - art. 334.º do Código Civil”, dado que “tem em si abrangida a violação das regras da boa fé no interagir com terceiros, implica a existência de uma conduta censurável que só foi possível alcançar mediante a separação jurídica do ente societário - através da personalidade jurídica que a lei lhe atribui - e a pessoa dos sócios, para assim almejar um resultado contrário a uma reta actuação” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2012, retirado de www.dgsi.pt) devendo ser desconsiderada a personalidade jurídica dessa nova sociedade, sendo a mesma responsabilizada solidariamente com a R., tal como os sócios da R. e também intervenientes principais, pelo pagamento das quantias devidas às AA..

Assim, como conclui FRANCISCO GRANJEIA, Teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade no âmbito das sociedades coligadas, disponível em http://www.verbojuridico.com/doutrina/comercial/coligadas.html “-A personalidade jurídica da sociedade representa um instrumento jurídico-formal para a prossecução de interesses e fins aceites e valorizados pela ordem jurídica; -A sociedade comercial é um instrumento legítimo de destaque patrimonial para a exploração de certos fins económicos e a limitação da responsabilidade dos sócios representa um instrumento de viabilização da actividade económica; -A personalidade jurídica da sociedade resulta na sua compreensão como uma entidade jurídica separada dos seus sócios e com bens próprios separados dos seus sócios; -Porém, quando o princípio da separação dos bens da sociedade e dos seus sócios e o princípio da limitação da responsabilidade proporcionado pela sociedade são utilizados de forma abusiva pelos sócios para a prossecução de fins ilícitos, verifica-se nesse caso um desvio à função para que foi criada a sociedade que urge ser corrigido; (…) -O recurso à teoria da desconsideração da personalidade jurídica representa então uma via doutrinária e jurisprudencial que permite controlar o uso pelos sócios das sociedades (leia-se, das sociedades filhas) para alcançarem fins ilícitos repudiados pela ordem jurídica e para os quais se verifica a inexistência de previsão legal adequada

Em síntese, temos que os intervenientes principais serão também condenados, solidariamente com a R., no pagamento das quantias devidas às AA., uma vez que a sua actuação visou apenas frustrar o pagamento dos créditos das AA., constituindo para o efeito, e de forma perfeitamente abusiva e fraudulenta, uma nova sociedade, devendo ser responsabilizados pessoal e solidariamente por essa sua actuação abusiva e perfeitamente desconforme à boa fé por que se deve pautar o tráfego jurídico”.

Contra este entendimento se insurgem os intervenientes principais, alegando que no caso não deve ser aplicado o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

Decidindo.

Este instituto não se encontra regulamentado na lei portuguesa, mas isso não significa que o nosso direito civil não disponha, na sua positividade, de regras fundamentais que o permitem acolher particularmente, no que ao caso em análise interessa, o artº 334º do Cód.Civil (abuso de direito).

A desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva surgiu na doutrina e, posteriormente, na jurisprudência como meio de cercear formas abusivas de actuação, que ponham em risco a harmonia e a credibilidade do sistema.

No fundamental, ele traduz-se numa delimitação negativa da personalidade colectiva por exigência do sistema ou, se se quiser, “ele exprime situações nas quais, mercê dos vectores sistemáticos concretamente mais poderosos, as normas que firmam a personalidade colectiva são substituídas por outras normas" - cfr. Menezes Cordeiro, Manual do Direito Das Sociedades, I vol., 2004. pag. 381.

O recurso a esse instituto é possível quando ocorram situações de responsabilidade civil assentes em princípios gerais ou em normas de protecção, nomeadamente dos credores, ou em situações de abuso de direito e não exista outro fundamento legal que invalide a conduta do sócio ou da sociedade que se pretende atacar, ou seja, a desconsideração tem carácter subsidiário.

De entre elas, avultam a confusão ou promiscuidade entre as esferas jurídicas de duas ou mais pessoas, normalmente entre a sociedade e os seus sócios (ainda que não tenha de ser obrigatoriamente assim); a subcapitalização da sociedade, por insuficiência de recursos patrimoniais necessários para concretizar o objecto social e prosseguir a sua actividade; e as relações de domínio grupal - cfr. Menezes Cordeiro, ob. cit. pags. 364 e segs.

Em todas estas situações verifica-se que a personalidade colectiva é usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros, existindo uma utilização contrária a normas ou princípios gerais, incluindo a ética dos negócios.

A desconsideração tem de envolver sempre um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, ou seja, envolve sempre a formulação de um juízo de censura e deve revelar-se ilícita, havendo que verificar se ocorre uma postura de fraude à lei ou de abuso de direito.

No caso concreto, as sociedades B... e D... não se encontram numa relação de domínio ou de grupo pelo que não lhes é aplicável o regime de responsabilidade solidária prevista no artigo 334º do Cód.. do Trabalho.

Por outro lado, como assinala a Exmª PGA, o levantamento da personalidade colectiva reconhecida na sentença faz com que às autoras pudessem ter sido reconhecidos créditos que o não seriam pela simples aplicação do disposto no artigo 285º nº2 do Cód. do Trabalho, pois houve créditos que emergiram após a prolação da sentença, ou seja, um ano depois da transmissão do estabelecimento (facto 50).

A confusão, ou melhor, a promiscuidade entre as duas sociedades B... e D... e entre elas e os seus sócios é por demais patente e demonstra-se, à saciedade, com a factualidade provada nos artigos 55º e ss. que, por uma questão de economia, nos dispensamos aqui de reproduzir.

A constituição da sociedade D... e a transferência para esta do estabelecimento, sito na ..., constituído por todos bens, equipamentos e trabalhadores que a integravam e que, até àquela data eram propriedade da R. “ B..., Lda.”, visou, diminuir o património da R. “ B..., Lda. e, obviamente dificultar ou evitar a cobrança dos créditos por parte dos credores da B...,  expediente este que, como nos revela a experiência, é frequentemente utilizado no comércio jurídico, pretendendo-se com expedientes meramente formais encobrir aquilo que é evidente aos olhos da comunidade, em suma, visando-se “esconder o sol com a peneira”.

Para além do fim visado não vemos que fim lícito pudesse ser prosseguido com a referida a actuação.

Com tudo isto queremos dizer que no caso é possível formular um juízo de forte censura, revelando-se toda esta actuação ilícita e estando comprovado directamente (e não apenas por presunção) um nítido propósito de iludir a lei.

Por tudo isto, bem andou a 1ª instância ao decidir desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade pois, salvo melhor opinião, só através dela se pode evitar de forma cabal os efeitos indesejáveis não pretendidos pelo ordenamento jurídico.

A apelação tem assim de improceder.


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VI Termos em que se delibera julgar a apelação totalmente improcedente com integral confirmação da sentença impugnada:

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Custas pelos recorrentes.

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(Joaquim José Felizardo Paiva - Relator)

(Jorge Manuel da Silva Loureiro)

(José Luís Ramalho Pinto)