Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
539/08.0TBSEI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ AVELINO GONÇALVES
Descritores: REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO
ABUSO DE DIREITO
ESTILICÍDIO
Data do Acordão: 02/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE SEIA – 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 7º CÓD. REG. PREDIAL; 334º E 1365º DO C. CIVIL.
Sumário: I – A presunção resultante do registo predial não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais - com finalidade essencialmente fiscal - numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis, tanto mais que o mesmo é susceptível de assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controle do conservador, apesar da sua intervenção mesmo oficiosa.

II - Por isso, o Tribunal com base na simples presunção do registo apenas poderá declarar que se é proprietário de um dado prédio, já não quanto à sua área, cuja existência não é abrangida pela presunção.

III - A vocação da figura do abuso do direito tem como objectivo primordial - funcionando como uma “válvula de segurança” do sistema - obstar à consumação de certos direitos que, embora válidos em tese, na abstracção da hipótese legal, acabam por constituir, quando concretizados, uma clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante.

IV - Configurará uma situação de abuso do direito se/quando alguém, embora legítimo detentor de um determinado direito, formal e substancialmente válido, o exercita circunstancialmente fora do seu objectivo ou da finalidade que justifica a sua existência, em termos que ofendam, de modo gritante, o sentimento jurídico, seja criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra quem é invocado, seja prejudicando ou comprometendo o gozo do direito de outrem.

V - A obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só existe quando elas caem gota a gota nos prédios ditos servientes.

VI - O proprietário pode evitar que a água goteje do seu telhado, por exemplo, conduzindo-a através de algerozes a longo das paredes do prédio, ou dando ao telhado uma inclinação tal que a água pluvial escorra para o terreno do mesmo proprietário, não estando, por isso, obrigado a respeitar o intervalo legal do artigo 1365º, n.º 1 do C. Civil.

VII - Fazendo-o não se constitui servidão de estilicídio sobre o prédio vizinho, precisamente porque não há gotejamento nem recepção de águas pluviais por parte desse prédio.

VIII - A indemnização atribuída por danos de natureza não patrimonial respeita apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso da ofensa dos direitos à integridade física, saúde e qualidade de vida, entre outros, devendo tal danos ser seleccionados com extremo rigor.

Decisão Texto Integral: 1.Relatório

A… e F… intentaram a presente acção declarativa, sob a forma sumária, contra M… e C…, pedindo a condenação dos réus a:

Para tanto, alegaram, em síntese, serem donos e legítimos possuidores de uma casa de habitação, composta de rés-do-chão, 1º e 2º andares, a confrontar de norte com a ré e rua pública e dos restantes lados com a rua pública, que inicialmente adquiriram de modo verbal, tendo posteriormente outorgado escritura pública, mantendo uma posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, desde há mais de 40 anos.

A casa dos réus surge descrita com uma área coberta de 69,10 m2 e descoberta de 8,20 m2.

Porém, os réus adquiriram-na por cessão de quinhão hereditário, sendo que, à data, o prédio estava inscrito na matriz com a superfície coberta de 35 m2 e, apenas em 2004, a ré fez constar que a casa tinha a área, composição e limites referidos no documento nº 5, ao que se seguiu a execução de uma obra com quase o dobro da área.

Por outro lado, os réus registaram um reduto do qual não são donos, tendo o mesmo natureza pública ou comum a autores e réus, uma vez que sempre foi possuído em comum. Apesar disso, os réus abriram uma porta por baixo das escadas, presumivelmente para aí arrecadar botijas de gás, onerando o espaço sem consentimento dos autores e, na parede em frente do dito espaço, instalaram um tubo de fumos e colocaram o suporte e fios de uma antena parabólica.

Do outro lado, o espaço situado além da primitiva casa dos réus também é público ou comum de autores e réus.

Aí têm os autores o beirado do telhado mais saliente e, por baixo do mesmo, um tubo de água a ligar as caleiras, beirado que se sobrepunha apenas em cerca de 10 cm ao telhado dos réus.

Todavia, estes fizeram chegar a nova construção à frente, rasgando a parede dos autores e nela, e na parede nova dos réus, cimentando o referido tubo, tapando-o. Além do que invadiram o espaço da casa dos autores, ficando a parede frontal da casa dos réus a ser suportada numa viga cravada no beirado daquela casa e ligando as paredes das casas. Também os degraus da casa dos réus, que estavam praticamente ao nível dos da casa dos autores, passaram a estar sobrepostos com os destes e em altura superior, desde o exterior.

Invadiram o espaço da casa dos autores, ficando a parede frontal da casa dos réus a ser suportada numa viga cravada no beirado daquela casa e ligando as paredes das casas. Também os degraus da casa dos réus, que estavam praticamente ao nível dos da casa dos autores, passaram a estar sobrepostos com os destes e em altura superior, desde o exterior.

Acresce que a casa dos autores tinha as águas suportadas por caleiros, que as faziam escoar em direcção a topos da casa e daí até ao esgoto ou à rua pública, estando a caleira situada ligeiramente por baixo das telhas encimadas como beirado. Ora, a parede da casa dos réus passou a ter uma altura superior inclusive em relação à casa dos autores, sendo de presumir que os réus tenham aproveitado a parede da casa dos autores para nela alçar a parede superior, uma vez que o caleiro ficou “sufocado e entalado” com a parede da casa dos réus, afectando o escoamento das águas e causando prejuízos, designadamente infiltrações na parede de uma divisão da casa dos autores. A entender que algum beirado gotejasse sobre o imóvel dos réus, há muito que estaria constituída servidão de estilicídio, obrigando os réus a edificar de modo a não impedir o escoamento das águas, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dos autores.

Estão assim os autores obrigados a eliminar os vícios da obra, no que contende com os direitos dos autores, eliminando também os danos relativos a infiltrações, repondo o interior da casa dos autores com novas pinturas, para o que será necessário invadir a privacidade destes, devendo indemnizá-los no que se venha a liquidar em execução de sentença, sem prejuízo da condenação pelos danos relativos ao abalo psíquico e desgosto causados aos autores com toda esta situação.

Contestaram os réus alegando, em síntese, que a sua casa tinha e tem uma superfície coberta de 69,10 metros e um logradouro de 8,20 metros, confrontando a sul com um espaço público para onde se desenham as escadas de acesso às portas do lado sul e nascente das casas de réus e autores, respectivamente. Por sua vez, o reduto fica situado no lado oposto e a porta que os réus colocaram debaixo das suas escadas, num compartimento destinado a uma botija de gás, fica nesse reduto, exclusivamente pertencente aos réus, aí tendo igualmente colocados a caixa do correio e o contador de energia eléctrica. Os réus têm ainda três janelas para lá voltadas, por onde se podem debruçar e usufruir de vistas, verificando-se estes actos de posse há mais de 30 anos, de forma ininterrupta e consecutiva, sem oposição de ninguém, à frente de toda a gente e na convicção dos réus possuírem coisa própria, como de facto é.

De resto, os réus impugnaram o alegado pelos autores e deduziram reconvenção relatando que adquiriram a sua casa por estar integrada no quinhão hereditário da avó da ré, que compraram em 1982, data desde a qual a têm possuído consecutiva e ininterruptamente, à frente de toda a gente, sem oposição de ninguém, com a convicção de possuírem coisa própria, como de facto é, dela fazendo parte um reduto que tem início na Rua do …, a norte, e se desenvolve até às paredes desse lado das casas de autores e réus.

Ainda nessa altura, os réus colocaram verticalmente ao longo de toda essa sua parede norte, um tubo em inox, que expele fumos e gases do esquentador a gás da cozinha da sua casa, o qual está saliente da parede cerca de 20 cm, ocupando espaço aéreo pertencente ao logradouro dos réus.

Há cerca de quatro anos, os autores fizeram obras na sua casa, rasgando uma abertura ao nível da parede norte da cave dessa casa, sendo a mesma servida por caixilhos de alumínio, de abertura com vidro basculante e com parapeito situado a menos de 1,80 metros do piso que serve, deitando directamente para o reduto. Por essa abertura, podem os autores usufruir de vistas para o reduto e nele despejar detritos e objectos.

Ainda nessa altura, os autores colocaram verticalmente ao longo de toda essa sua parede norte, um tubo em inox, que expele fumos e gases do esquentador a gás da cozinha da sua casa, o qual está saliente da parede cerca de 20 cm, ocupando espaço aéreo pertencente ao logradouro dos réus.

Há cerca de 13 anos, os autores colocaram debaixo do beirado, do lado nascente da sua casa, uma caleira para suporte de águas pluviais, na qual embutiram um tubo de descarga em latão, que conduz as águas até ao dito logradouro, assim se escoando grandes quantidades de águas pluviais que inundam e tornam inutilizável o logradouro dos réus nos dias de muita chuva.

Concluíram pela improcedência da acção e procedência da reconvenção, condenando-se os autores a:

Responderam os autores alegando, além do mais, que as obras que executaram foram realizadas há 18 anos, sendo então que rasgaram a abertura identificada no artigo 67º da contestação, que sempre serviu de janela e que foi aberta na medida em que o reduto é público. Ainda que não o seja, sendo comum a autores e réus, estaria constituída servidão de vistas, por usucapião. Ainda que não seja comum, tudo o que os autores têm nesse espaço foi consentido, constituindo, por isso, abuso de direito a intenção de agora fechar a janela. O mesmo se dirá quanto ao tubo de descarga de águas, verificando-se, neste caso, uma servidão de estilicídio, se o espaço não for público.

O Sr. Juíz do Tribunal Judicial de Seia proferiu a seguinte decisão:

Pelo exposto, na parcial procedência da acção e da reconvenção, decide o Tribunal:

1. Condenar os réus M… e C…:

i. A reconhecer que os autores A… e F… têm o seu prédio com beirados e o mais aí existente há mais de 20 anos, estando o prédio dos réus onerado com uma servidão de estilicídio, salvo quanto à área do reduto;

ii. A executar as obras necessárias a permitir o escoamento das águas pelo caleiro aludido em 3.23 nos termos em que se verificava antes das obras realizadas pelos réus; e

iii. A realizar as obras necessárias a eliminar as infiltrações, manchas e fendas existentes nas paredes da casa dos autores e descritas em 3.24.

2. Condenar os autores A… e F…:

i. A reconhecer que os réus M… e C… são donos e legítimos possuidores do prédio descrito em 3.6 e 3.7, dele fazendo parte o reduto que consta da respectiva descrição predial;

ii. A reconhecer que a onerar o referido reduto, e a beneficiar o prédio dos autores, não se encontra constituída qualquer servidão de vistas ao nível da cave ou loja deste prédio, nem servidão de estilicídio;

iii. A retirarem ou removerem o tubo de descarga de águas pluviais referido em 3.38. “.

2.O Objecto da instância de recurso

Os apelantes/apelados A… e F… apresentam as seguintes conclusões:

Os apelados/apelantes M… e marido, RR./reconvintes respondem à apelação dos autores e formulam nova apelação, assim concluindo:

A… e esposa, AA, respondendo às alegações dos RR recorrentes, dizem os recorridos:

...

I.Da nulidade da sentença

Começamos pela invocada nulidade da sentença – artigo 615.º al.c) do Código do Processo Civil - proferida pela 1.ª instância.

É dado assente que incongruência entre a fundamentação de facto e a decisão, nos termos da norma citada, é causa de nulidade da sentença - quando a fundamentação da sentença aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou direcção diferente -.

Como se sabe, a sentença deve conter os fundamentos, devendo o Juíz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes.

Ora, constituindo a sentença um silogismo lógico-jurídico, de tal forma que a decisão seja a conclusão lógica dos factos apurados, aquela nulidade – como tem sido unanimemente afirmado na doutrina e na jurisprudência – só se verifica quando das premissas de facto e de direito se extrair uma consequência oposta à que logicamente se deveria ter extraído.

Nesta conformidade, importa ter presente que não ocorre a nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável ou se, porventura, errou na indagação de tal norma ou na sua interpretação.

Vejamos, então, o caso dos autos.

A este propósito, escrevem os réus:

...

Como se escreve na douta decisão do Tribunal de Seia, “ …de toda a matéria em questão, os autores apenas conseguiram provar o que respeita à caleira que ficou entalada.

Na verdade, o andar superior da casa dos autores tinha as águas suportadas por caleiros, que as faziam escoar em direcção a extremidades da casa e daí até ao esgoto ou rua pública, situando-se a caleira ligeiramente por baixo das telhas encimadas como beirado [3.22].

Porém, em consequência das obras empreendidas pelos réus, essa caleira ficou entalada com a nova parede da casa destes, impedindo que os autores façam limpeza e manutenção dessa caleira, a não ser que tirem as telhas e provocando um mau escoamento das águas [3.23].

Ora, no que concerne à dita caleira, estava verificada a servidão de estilicídio.

Uma das características das servidões reside no facto de implicarem uma restrição ao gozo efectivo do dono do prédio, designadamente inibindo-o de praticar actos que prejudiquem o exercício da servidão.

Estavam assim os réus condicionados a respeitar o exercício da servidão, devendo executar as obras necessárias a repor o normal exercício da servidão.

Considerando o que ora se expôs, improcederão os pedidos identificado como 6, 8 e 9, procedendo parcialmente a 1ª parte do pedido identificado em 7, não ficando os réus obrigados a recuar a parede, sendo unicamente obrigados a executar as obras necessárias a permitir o escoamento das águas pelo caleiro nos termos em que se verificava anteriormente…”.

Dos factos fixados nos Pontos 23 e 24 resulta que foram os réus, ao fazerem as obras no seu imóvel, que entalaram a caleira aí existente.

Por isso, logicamente, terão de ser estes a remover esse obstáculo para que os AA. façam limpeza e manutenção dessa caleira.

O próprio perito, nos seus esclarecimentos diz “…Por isso é que eu digo que é preciso portanto retirar destelhar, não é preciso destelhar tudo, uma ou duas fiadas das telhas, ver qual é o estado da caleira e portanto depois se efectivamente a caleira estiver intacta tem a ver com a impermeabilização da parede do vizinho que foi feita portanto e então tomar as medidas necessárias para a correcção”.

A lógica da decisão e essa.

Os réus violaram o direito à utilização da caleira por parte dos autores.

Por isso, terão de ser eles a remover tal obstáculo.

Ilógico e contraditório seria obrigar os autores a resolverem um problema que teve origem no comportamento dos réus.

Assim sendo, não existe tal nulidade.

Avançando.

II. Do valor da causa e desproporcionação de pagamento de custas (recurso dos autores)

A 1.ª instância fixou à causa o valor de 125000€.

Esse valor resulta do somatório do valor do prédio dos AA. após arbitramento (52.500 €), do montante por eles peticionado a título de danos morais (5.000 €) e do valor do prédio dos RR., também ele objecto de perícia 68.000 €).

Como todos sabemos, nas acções reais é o valor da coisa que determina o valor da causa – artigo 311.º do CPC (agora 302.º).

Por outro lado, nada impede, neste tipo de acções, que ao pedido de reconhecimento de propriedade se acrescentem outros pedidos acessórios, desde que caibam neste tipo de acção, como, por exemplo, o de indemnização dos danos causados na coisa pelo demandado, ou do valor do uso que este dela fez, e o de condenação do demandado na demolição de obra por ele feita, indevidamente, na coisa litigiosa.

É certo, como escreveu o Prof. Alberto dos Reis – no seu Comentário ao Código de Processo Civil, V. III, págs. 594 e seguintes - citando e comentando dois Acórdãos do STJ, de 13 de Maio e 7 de Novembro de 1941, que apreciavam a utilidade das acções com este configuração de pedido, não é pelo facto de o autor pedir o reconhecimento da propriedade de todo o seu prédio que o valor da acção passa necessariamente a ser o de todo esse prédio.

No entanto, como AA. e RR. pediram ambos o reconhecimento do seu direito de propriedade, será ajustada a decisão que considera o valor desse direito de propriedade – que é nem mais nem menos o valor real dos prédios – para efeitos de fixação do valor da causa.

Argumentam os AA. que o valor da acção devia corresponder apenas à parte em discussão, mas não só se esquecem de dizer que parte é essa e que valor económico tem, como também se esquecem que com o pedido que formulam em 2 centram a discussão da acção em todo o seu prédio e não apenas na parte dos beirados ou das paredes pretensamente ocupadas.

Por outro lado, quando ao pedido dos RR., há também que considerar o valor global do prédio destes, não só pela forma como se configura a reconvenção como também pelos vários pedidos, inclusive os de demolição, que os AA. fazem na p.i. e que têm reflexo económico significativo.

Assim sendo, o valor achado pelo Sr. Juíz da 1.ª instância representa a utilidade económica imediata do pedido – artigo 305.º do Código do Processo Civil (agora artigo 296.º).

Improcede, neste particular, a instância recursiva.

III.Do reduto/logradouro

Por mera presunção de registo, o Tribunal de Seia reconheceu aos RR um direito sobre um reduto/logradouro com 8,20 m2.

Para tanto, escreveu a 1.ª instância:

 “Assim, se é certo que os réus não provaram a propriedade sobre o espaço em litígio – e tendo por adquirido que o registo e a correspondente presunção derivam da prática de actos unilaterais dos réus, dificilmente enquadráveis na realidade jurídica anterior, como resulta de 3.7 a 3.11 –, também é certo que não lhes incumbia essa prova e que os autores, onerados com a prova do contrário – não lhes bastando, por isso, produzir prova nos termos do disposto no artigo 346º do Código Civil –, não fizeram tal prova.”

Mais,”… nesta parte, dada a dificuldade da prova da aquisição derivada, assumem particular relevância as presunções legais da posse e do registo, na medida em que afastam a necessidade da prova das sucessivas transmissões anteriores (conforme os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/06/94, de 29/10/96, e de 26/11/96, in http://www.dgsi.pt).

Ora, é certo que os réus dispõem da presunção derivada da inscrição no registo do direito de propriedade sobre o reduto, estando, por isso, dispensados de provar a legitimidade das sucessivas transmissões anteriores (artigo 350º, nº 1, do Código Civil), cabendo aos autores provar que o reduto não pertence aos réus, pelo menos na extensão definida no registo (artigo 350º, nº 2, do Código Civil).

Apesar disso, os réus igualmente invocaram a aquisição por usucapião, a qual, a demonstrar-se, implicaria a prova cabal do respectivo direito de propriedade, sem necessidade de ponderação da legitimidade das anteriores transmissões.

Sucede, porém, que os réus não lograram provar a verificação dos requisitos de que depende a aquisição por usucapião, como ressalta das respostas a 43º a 46º da base instrutória.

Impõe-se, por isso, determinar se os autores conseguiram fazer a legalmente exigida prova do contrário.

Ora, a nosso ver, tal não aconteceu.

Efectivamente, alegavam os autores que o reduto teria natureza pública ou comum.

Desde logo importa sublinhar que a alegação do carácter público do reduto não encontra eco em quaisquer factos que suportem tal alegação, pois, se atentarmos no teor da base instrutória, veremos que, em consonância com os articulados dos autores, não consta qualquer facto que pretenda e permita retratar essa natureza pública.

Na verdade, os autores limitaram-se a afirmar conclusivamente que o reduto, a não ser comum, seria público, não alegando qualquer facto de suporte.

Daí que nenhuma prova tenha sido produzida quanto a essa natureza pública do reduto, estando absolutamente afastada essa hipótese.

Restava-lhes, por isso, provar que o reduto é comum aos prédios de autores e réus. O que não fizeram.

Efectivamente, às cruciais questões respeitantes à utilização do reduto, vertidas em 9º a 12º da base instrutória, o Tribunal respondeu “não provado”, não sendo assim demonstrada a utilização em comum do espaço em causa.”

Os AA sustentaram que o espaço, em face do desenho do seu terreno, indicia que se encontraria dentro desse e por isso é próprio deles. Mas os AA compraram a terceiro e as únicas referências que detêm são da própria Junta de Freguesia, que lhes passou documento, constando nas confrontações e registo do seu imóvel, que desse lado confinam com espaço comum, tal como consta da descrição predial do seu prédio.

Donde, a ser válida a tese do Tribunal, seria então igualmente válida a tese do registo do imóvel dos AA: confinam com espaço comum”.

Parece-nos, que o fez, pelo menos no essencial, acertadamente.

De facto, as presunções registrais emergentes do art.º 7º do Código do Registo Predial não abrangem factores descritivos, como as áreas, limites, confrontações, do seu âmbito exorbitando tudo o que se relacione com os elementos identificadores do prédio.

Apenas faz presumir que o direito existe e pertence às pessoas em cujo nome se encontra inscrito, emerge do facto inscrito e que a sua inscrição tem determinada substância - objecto e conteúdo de direitos ou ónus e encargos nele definidos (art.º 80ºn.º 1 e 2 do Código do Registo Predial) - .

A presunção não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais - com finalidade essencialmente fiscal - numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis, tanto mais que o mesmo é susceptível de assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controle do conservador, apesar da sua intervenção mesmo oficiosa - com interesse para esta questão, aconselhamos a leitura dos artigos 60.º, 90.º e 46.º do Código do Registo Predial, os Acórdãos do STJ de 11 de Maio de 1995, 17 de Junho de 1997, 25 de Junho de 1998, 11 de Março de 1999, 10 de Janeiro de 2002 e 28 de Janeiro de 2003, retirados, respectivamente, da CJ/STJ – III-II-75, V-II-126, VI-II,134, VII-I-150; Sumários/2002, 28 e 249; Sumários/Janeiro, 2003, Acórdão do STJ 30.09.2004, este pesquisado no site www.dgsi.pt-.

Como esclarecidamente se escreve, no Acórdão desta Relação de Coimbra de 26.11.2013, disponível no site www.dgsi.pt -, “ daí que a presunção (de titularidade constante do preceito) diga respeito apenas e só à inscrição predial, uma vez que a inscrição é o único acto registal em causa (a descrição não é um registo, mas o suporte para o mesmo); daí, consequentemente, que os elementos da descrição registal (que não fazem parte do que se regista) não estejam abarcados pela presunção (de titularidade constante do art. 7.º do C. Registo Predial); daí a afirmação inicial da presunção apenas abarcar o que resulta do facto jurídico inscrito tal como foi registado (que uma inscrição de compra e venda traz, como resultado, a presunção do comprador ser o proprietário) …”.

Por isso, o Tribunal com base na simples presunção do registo, apenas poderá declarar que os réus são proprietários do reduto em causa, já não quanto à sua área, cuja existência não é abrangida pela presunção.

Só mais esta nota, aproveitando-se o escrito dos réus, quando afirmam:

“Depois, sem expressamente a classificarem como tal, os AA. Parecem impugnar a matéria de facto por forma a que da sua alteração resulte a conclusão de que, afinal, o reduto é comum a ambos os prédios ou, mais peregrinamente, qualificado como ‘coisa indeterminada’ com uso a ambos os imóveis (…) A verdade é que as regras da impugnação da matéria de facto estão bem definidas no artº 685-B do C.P.C. (versão anterior) e os AA. estão muito longe de as ter respeitado, até porque nem indicam que concretos pontos foram incorrectamente julgados, nem as concretas provas que impunham decisão diversa.

Prosseguem depois os AA. dizendo que a presunção a favor dos RR. não pode funcionar porque não abrange as confrontações, áreas e composição dos prédios a que respeitam.

Sendo isso verdade, afigura-se que os AA. laboram em manifesto equívoco.

O registo identifica claramente o prédio dos RR., declarando que ele é constituído por uma casa e por um logradouro.

A propriedade quer da casa quer do logradouro está assim ampla e plenamente presumida.

O que está excluída da presunção é outra coisa, são as áreas quer da casa quer do logradouro, são as suas confrontações e é a sua composição.

Dito de outra forma, não é com base na presunção que se pode demonstrar que o logradouro ou reduto dos RR., porque registado a seu favor, é composto de árvores ou de outros bens, se é pavimentado ou é em terra batida, se é triangular ou quadrado, etc.

Isso tem de ser provado, como tem também de ser provado se o reduto confina com o proprietário A, ou com o B e se tem 100 ou 200 m2, por exemplo.

O que não há dúvidas é que a presunção abrange o direito de propriedade da coisa que está concretamente identificada e determinada no registo, neste caso o logradouro e a casa dos RR…”.

Assim, também neste particular improcede o recurso, com a interpretação acima referida, no tocante à condenação 2. i. proferida pela 1.ª instância.

IV. Das Obras (recursos dos autores e dos réus/reconvintes)

Escreve a 1.ª instância:

“No que tange às obras executadas pelos autores provou-se que, há cerca de 8 a 10 anos, os autores fizeram obras na sua casa, tendo rasgado uma abertura com 40×27 cm ao nível da parede norte da loja ou cave dessa casa [3.32].

Essa abertura é servida por caixilhos de alumínio, com vidro basculante e com parapeito situado a menos de 1,80 metros do piso que serve e que deita directamente para o logradouro, através dela podendo os autores, não obstante a rede que nela aplicaram, usufruir de vistas para aquele logradouro e despejar para ele detritos e objectos [3.33, 3.34]. Aliás, a dita abertura sempre foi utilizada como janela, ainda que esteja dotada de malha protectora para evitar intromissões, por ela se podendo ver, receber ar e luz [3.39, 3.40].

Desde a obra em que a abertura foi rasgada, os autores a têm utilizado à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e continuadamente [3.41].

Na mesma altura, os réus colocaram verticalmente ao longo de toda essa sua parede norte, um tubo em inox de 20x20 cm, que expele fumos e gases do esquentador a gás da cozinha da sua casa, o qual se encontra saliente da parede entre 0 a 3 cm, situando-se na extremidade do tubo oposta à parede a uma distância de 20 a 23 cm [3.35, 3.36].

Finalmente, em data não apurada, os autores colocaram debaixo do beirado do lado nascente da sua casa, pendente sobre o logradouro, uma caleira para suporte de águas pluviais, nela embutindo um tubo de descarga em latão que conduz as águas até ao dito logradouro, mais concretamente à sua extremidade sul, junto à janela aludida em 3.32 [3.37, 3.38].

Desde essa altura que os autores aparam águas na caleira existente na sua parede junto ao dito logradouro à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e continuadamente [3.42].

Comecemos por apreciar o problema relativamente à abertura (…) Das transcritas normas resulta que a abertura de janelas que deitem directamente sobre o prédio vizinho terá de observar a distância de 1,50 metros em relação ao prédio vizinho (artigo 1360º do Código Civil), não sendo, todavia, tal restrição aplicável às frestas, seteiras ou óculos para luz e ar.

Importa assim determinar se a abertura existente no prédio dos autores corresponde a uma janela ou a uma fresta, seteira ou óculo para luz e ar (...) No caso vertente apurou-se que a abertura não só tem uma dimensão superior à indicada no artigo 1363º, nº 2, do Código Civil (apresentando uma dimensão de 40×27 cm), como ainda se apurou que a abertura está situada a menos de 1,80 metros do piso que serve [3.32, 3.33].

Estamos assim perante uma janela, à qual é aplicável a restrição prevista no artigo 1360º, nº 1, do Código Civil, tanto mais que, através dela, podem os autores usufruir de vistas para o reduto e nele despejar detritos e objectos.

Importa ainda notar que não se encontram verificadas as condições previstas no artigo 1364º do Código Civil, que, a encontrarem-se preenchidas, viabilizariam a existência da janela sem necessidade de observância do interstício legal.

Também os tubos de expelição de fumos/gases e de descarga de águas pluviais estão a violar o direito de propriedade dos réus, tendo sido edificados em termos de ocuparem o espaço aéreo do prédio destes (artigo 1344º do Código Civil), não respeitando a regra do artigo 1360º do mesmo Código.

Resulta assim que, à partida, os autores deverão tapar ou frestar a janela, tal como peticionaram os réus por via reconvencional – podendo ainda gradar a janela nos termos previstos no artigo 1364º do Código Civil, caso tal seja possível, dado que, desse modo, cessa a razão da aplicação da norma do artigo 1360º do mesmo Código –, devendo, também à partida, retirar ou remover os referidos tubos.

Alegam, contudo, os autores duas ordens de razões que visam obstar à procedência dos aludidos pedidos reconvencionais.

Sustentam os autores, em primeira linha, a existência de uma servidão de vistas e de uma servidão de estilicídio.

Não deixaremos de sublinhar que os autores deixaram de lado a alegação da constituição de qualquer servidão relativa ao tubo de expelição de fumos/gases, como notoriamente ressalta dos artigos 26º a 30º da réplica, nos quais os autores restringiram a matéria respeitante a esse tubo à alegação da excepção de abuso de direito (...)

 Encontra-se provado que a janela foi aberta há cerca de 8 a 10 anos [3.32].

Ora, 10 anos seria o período mínimo de tempo para que a usucapião se pudesse verificar. Mas tal só se poderia verificar se os autores dispusessem de título de aquisição e de registo, independentemente da boa ou da má-fé.

No presente caso, não se encontram verificadas aquelas condições, motivo pelo qual não se pode afirmar constituída a pretendida servidão de vistas.

O mesmo se dirá quanto à servidão de estilicídio, pois, nessa parte, nem sequer se logrou apurar desde que data os autores instalaram o tubo de descarga de águas (…)

Os autores fundam a alegação do abuso do direito na circunstância de as obras que realizaram e que os réus põem em causa terem sido por estes consentidas.

Impõe-se notar que, devendo o excesso no uso do direito ser manifesto, só um consentimento prolongado ou um consentimento expresso ou tacitamente inequívoco integraria o abuso do direito.

Sucede, porém, desde logo, que não se encontra demonstrado esse consentimento ou sequer a tolerância dos réus perante tais obras.

Afastada está a possibilidade de os réus terem manifestado de modo expresso o seu consentimento a essas obras, uma vez que nada se provou nesse sentido.

O consentimento tácito inequívoco igualmente não ressalta do elenco de factos provados, restando, por isso, a hipótese de se considerar que os réus consentiram tacitamente nas obras durante um período de tempo de tal modo prolongado que permitiu aos autores firmar a convicção da legitimidade das obras realizadas]. Tanto assim que apenas em sede reconvencional, perante as exigências dos autores, é que os réus vieram reagir contra as obras.

Porém, no que tange ao tubo de descarga de águas pluviais, não tendo sido provado em que data o mesmo foi instalado, não podemos aventar um possível consentimento ou tolerância prolongada por parte dos réus.

Já no que concerne ao tubo de expelição de fumos/gases e à janela, encontra-se provado que foram instalados há 8 a 10 anos.

Trata-se de um período de tempo relevante, ao longo do qual, ainda que sem o consentimento expresso dos réus, estes não reagiram contra a obra, antes permitiram que os autores fossem utilizando a janela e o dito tubo [3.41, 3.42]. Tanto assim que apenas em sede reconvencional, perante as exigências dos autores, é que os réus vieram reagir contra as obras.

Acresce que os réus fazem uma utilização muito residual do reduto [3.29 a 3.31], não se descortinando em que medida a janela e o tubo lesam em concreto os direitos dos réus em termos de justificarem a sua inutilização total ou parcial.

Procede, por isso, a excepção de abuso do direito em relação à janela e ao tubo de descarga de águas pluviais – será tubo de expelição de fumos e gases -, improcedendo a 1ª parte do pedido reconvencional identificado como d) e o pedido identificado como e), procedendo, por sua vez, em parte, os pedidos identificados como c) e d), 2ª parte”.

Para contrariar estes argumentos, alegam os réus/reconvintes que:

“Não é abusivo o exercício de um direito de eliminação de uma abertura e de remoção de um tubo de descarga de água de um prédio vizinho ao fim de 8 ou 10 anos, precisamente porque a só lei estabelece um prazo de 15 ou de 20 anos para que esse prédio passe a beneficiar de uma servidão de vistas com base na existência dessa abertura.

Por maioria de razão, é ainda mais pacífico e incontroverso o exercício desse direito depois de decorridos apenas 3 a 5 anos, como foi o caso.

Julga-se, assim, que deverá proceder a reconvenção e improceder a excepção do abuso de direito que o Tribunal decretou”.

Uma primeira nota para dizer, como o fez a 1.ª instância – e essa conclusão resulta da matéria de facto fixada pelo Tribunal de Seia –, que estamos perante violação do direito de propriedade dos réus/reconvintes.

Trata-se de uma janela, à qual é aplicável a restrição prevista na norma do artigo 1360.º, n.º 2 do Código Civil – naturalmente, se os autores assim o pretenderem, como aliás o vão dizendo nas suas alegações, podem utilizar a norma do artigo 1364.º para fazer cessar tal violação -.

Nas palavras de Cunha Gonçalves - Tratado de Direito Civil, Vol. XII. Coimbra, Coimbra Editora, 1938, pág. 73 –, “janela é a abertura feita na parede, acima do nível do solo, a fim de se dar luz e ar às divisões interiores do edifício, e, ao mesmo tempo, permitir que os respectivos moradores espreitem e até se debrucem para o exterior e, em caso de absoluta necessidade, por aquela abertura saiam ou entrem, embora com o auxílio de escada ou corda. As janelas podem ser mais ou menos amplas, iguais ou desiguais em dimensões e feitio, conforme a natureza do edifício, o destino do compartimento, o traçado do arquitecto ou o mestre de obras”.

Por outro lado, quanto à questão da aplicação do instituto do abuso de direito em relação à janela e ao tubo dos fumos, a razão está do lado dos réus/reconvintes.

Nos autos discute-se o abuso do direito, na modalidade da “supressio”.

Ou seja, os reús/reconvintes, exercitando o direito reclamado, nos termos em que o fizeram, abusaram nesse exercício, sabido que o mesmo é ilegítimo - na noção legal constante do art. 334.º do Código Civil – “…quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Como é sabido, a vocação da figura do abuso do direito tem como objectivo primordial - funcionando como uma “válvula de segurança” do sistema - obstar à consumação de certos direitos que, embora válidos em tese, na abstracção da hipótese legal, acabam por constituir, quando concretizados, uma clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante – sobre esta questão, aconselhamos a leitura de, Vaz Serra, BMJ n.º 85/253; Coutinho de Abreu, ‘Do Abuso do Direito’, 1983; Manuel de Andrade, ‘Teoria Geral das Obrigações’, 3.ª Edição, pgs.63-64; Antunes Varela, ‘Das Obrigações em Geral’, Vol. I, 6.ª Edição, pg. 516; Pires de Lima/A. Varela, ‘Código Civil Anotado’, Vol. I, 4.ª Edição, pg. 299 -.

Temos para nós, que configurará uma situação de abuso do direito se/quando alguém, embora legítimo detentor de um determinado direito, formal e substancialmente válido, o exercita circunstancialmente fora do seu objectivo ou da finalidade que justifica a sua existência, em termos que ofendam, de modo gritante, o sentimento jurídico, seja criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra quem é invocado, seja prejudicando ou comprometendo o gozo do direito de outrem.

Na elaboração dogmática à volta do instituto do abuso do direito, o “venire contra factum proprium” assume, como é consabido, uma das suas manifestações mais características, cuja estrutura pressupõe duas condutas, sucessivas mas distintas, temporalmente distanciadas e de sinal contrário, protagonizadas pelo mesmo agente: o “factum proprium”, seguido, em contradição, do “venire”.

A inacção, inércia ou omissão do exercício de um direito por parte do seu titular, durante um mais ou menos longo lapso de tempo, constitui um dos elementos da modalidade do abuso do direito na vertente da proibição do “venire contra factum proprium”, apelidada pela doutrina, na expressão original alemã, de “Verwirkung”  - Baptista Machado, Tutela da Confiança…in ‘Obra Dispersa’, I, pág. 421 segs., também referido no Acórdão da Relação do Porto de 10.4.2003, retirado da Col.Jur.,2003, Tomo 2, pág. 197 - ou de “supressio”, na terminologia introduzida por Menezes Cordeiro - parágrafo 34.º do Volume V do seu ‘Tratado de Direito Civil’, na edição da 2.ª reimpressão, Almedina, 2011 .

Diz este autor que, sendo embora variável o “quantum” de tempo necessário para concretizar a “supressio”, o mesmo há-de ser sempre inferior ao da prescrição, por óbvias razões, mas equivalente ao período, decorrido o qual, segundo o sentir comum prudentemente interpretado pelo julgador, já não será de esperar o exercício do direito atingido”.

Nesta abordagem, buscando a afinação do conceito à luz do vector tempo, consigna o mesmo autor que “…a “supressio” não pode ser, apenas, uma questão de decurso do tempo, sob pena de atingir, sem vantagens, a natureza plena da caducidade e da prescrição”.

Além disso, remata, traduzindo-se a supressio numa omissão – a que falta, por isso, a precisão do positivo factum proprium – a sua caracterização demanda a verificação de outros elementos complementares - circunstâncias colaterais, ibidem, pág. 323 - que, para além do não-exercício prolongado do direito, melhor alicercem a confiança do beneficiário, a saber: uma situação de confiança; uma justificação para essa confiança - baseada na conduta circunstancial do titular do direito, a contraparte convence-se, justificadamente, que o direito já não será exercido -; um investimento de confiança e a imputação da confiança ao não-exercente - a contraparte, convicta e movida por essa confiança, tomou medidas ou passou a actuar em conformidade, causando-lhe ora o exercício tardio do direito maiores desvantagens do que o seu exercício atempado.

Haverá abuso de direito, segundo o critério proposto por Coutinho de Abreu - Abuso de Direito, pág. 43 -, "quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito se traduz na não realização dos interesses pessoais de que esse direito é instrumental e na negação de interesses sensíveis de outrém".

A omissão do titular do direito, por via desse nexo de imputação da confiança, constituiu-se assim numa situação que torna, ética e socialmente aceitável/ajustado, o seu sacrifício – neste preciso sentido o recente Acórdão do STJ de 11.12.2013, inserido no site www.dgsi.pt –.

Almeida Costa - Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 52 - observa que o instituto do abuso do direito constitui “um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar, em algumas situações particularmente clamorosas, aos efeitos da rígida estrutura das normas legais. Ocorrerá tal figura de abuso do direito quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento de justiça dominante na comunidade social”.

Em síntese:

Para que se verifique a "neutralização do direito", é necessária a combinação de diversas circunstâncias, como de longo tempo sem exercício, de criação de convicção de confiança da contraparte de que já não será exercido, e de exercício tardio a acarretar uma desvantagem maior do que o exercício atempado.

Perante isto, qual a vantagem que advém para os réus reconvintes com o fechamento/frestamento da janela?

Evitar, essencialmente, que os autores/moradores espreitem e até se debrucem para o exterior e, em caso de absoluta necessidade, por aquela abertura saiam ou entrem, colocando em causa a privacidade dos réus.

Estes, por outro lado, mesmo frestando a janela, continuam a usufruir de luz e ar.

Não alegaram quaisquer outras circunstâncias, que permitissem ao julgador concluir que o fecho/frestamento da janela acarretará para estes prejuízos avultados que não têm qualquer expressão nas vantagens daí advenientes para os réus/reconvintes.

“Mutatis mutandi” para o tubo de descarga de águas, até porque em relação a este não se provou a data da sua instalação, não podendo “aventar um possível consentimento ou tolerância prolongada por parte dos réus, bem como quanto ao tubo de expelição de fumos/gases.

Como estes escrevem, “…em primeiro lugar, não foi alegado nem provado que os RR. nunca reagiram contra tais violações.

Logo, não pode o Tribunal presumir o que não resulta inequívoco da matéria de facto dada como provada.

Depois, não se pode dizer que é abusivo o exercício de um direito exercido ao fim de 8 ou 10 anos.

Antes de mais porque é a própria lei a impor como limite mínimo para aquisição de um direito de servidão de vistas por usucapião um período de 15 e de 20 anos, consoante haja ou não boa fé (…) Mas mais importante que isso é que, também neste aspecto, a douta sentença incorreu em manifesto erro de raciocínio.

Com efeito, ao contrário do que se escreveu na sentença, não é verdade que os RR. tenham permitido o uso da janela e do tubo de descarga de águas durante 8 a 10 anos.

A acção deu entrada em Juízo em 2008 e logo nesse ano, na sua reconvenção, os RR. se insurgiram expressamente contra essas violações.

Acontece que foi dado como provado que a janela e o tubo foi instalado há cerca de 8 a 10 anos, ou seja, entre os anos de 2003 e 2005, uma vez que a sentença foi proferida em 2013.

Quer isto dizer que logo 3 a 5 anos depois, (e não 8 a 10, como erradamente considera a sentença) os RR. vieram judicialmente manifestar o seu inconformismo contra essas instalações, o que não pode, obviamente, ser considerado um prazo excessivo.

Por outro lado, vir argumentar-se que o logradouro tem uso residual por parte dos RR., para além de não estar demonstrado em nenhum facto, não afasta a violação do direito de propriedade dos RR., que fica devassado e esventrado.

De igual modo, não faz sentido a argumentação da sentença de que “não se descortina em que medida a janela e o tubo lesam em concreto os direitos dos RR.”.

A devassa com vistas e a possibilidade de despejo de objectos e detritos é, só por si, suficiente para tipificar essa lesão, tanto assim que é a própria lei, no artº 1362 do C. Civil, que proíbe e regula essa devassa…”.

Assim, não pode proceder a excepção do abuso de direito invocado pelos AA. e decretado pela 1ª instância, procedendo, nesta parte, o recurso apresentado pelos réus.

Só uma breve nota quanto à ordenada remoção do tubo de descarga.

A servidão de estilicídio que foi declarada refere-se apenas e tão só à parte oposta da casa dos AA. (a do lado nascente), mais concretamente aquela onde está a caleira que foi “entalada” pelo alteamento da casa dos RR.

O tubo de descarga que foi mandado remover pela sentença é aquele que desagua no logradouro dos RR. situado do lado poente da sua casa.

Ora, quanto a esta parte não foi reconhecido qualquer direito de servidão de estilicídio, pelo que, correcta a decisão da 1.ª instância.

Avançando.

Quanto aos degraus, dizem os autores:

“Questão pertinente se considera o facto de que o tribunal viu sobreposição de degraus que apenas existiu com as obras dos RR. Mas, ao contrário do que seria de esperar - porque não tem qualquer fundamento legal - o tribunal não ordenou que os degraus deixassem de ser sobrepostos porque, citamos, "ficou por provar que essa sobreposição resultasse de um avanço da casa dos réus...".

Parece-nos infeliz este modo de ver e aplicar direito. Na verdade, mesmo que se não provasse avanço da casa, o que justificaria que alguém sobreponha coisa sobre coisa alheia? Só um título que o legitimasse, mas que não foi invocado, porque inexiste.

Ocorre assim violação do direito de propriedade dos AA, devendo os RR retirar a dita sobreposição”.

Escreveu a 1.ª instância:

Os autores pediram a condenação dos réus a recuar a casa dos réus para os limites que tinha antes, no que se refere à parede avançada, desligando o vigamento e a sua parede das paredes dos autores, descobrindo o tubo das águas dos autores, tal como antes se encontrava, bem como a recuar ainda a parede lateral de modo a permitir o correcto escoamento das águas pelo caleiro supra identificado no documento nº 15.

Mais pediram a condenação dos réus a demolir toda a obra que se encontra sobre as paredes da casa dos autores, para além da altura em que os réus tinham a casa antes da dita obra, e a recuar paredes e parabólica até ao seu limite, bem como os degraus situados no espaço também comum em frente das entradas dos imóveis (no lado oposto à Rua …), deixando a parede dos autores totalmente livre até ao limite em que se encontrava em confinância com a casa dos réus.

Para o efeito alegam os autores que os réus rasgaram a parede do prédio daqueles, ficando a parede frontal da casa dos réus a ser suportada numa viga cravada no beirado daquela casa e ligando as paredes de ambas. Por outro lado, os degraus da casa dos réus passaram a estar sobrepostos aos da casa dos autores (...)

Verifica-se pois que, nesta parte, os autores apenas conseguiram provar que há uma sobreposição dos degraus da casa dos réus em relação aos degraus da casa dos autores [3.21].

Porém, ficou por provar que essa sobreposição resultasse de um avanço da casa dos réus, provocando uma alteração da situação anterior [respostas a 22º e 23º]”.

Fê-lo acertadamente.

Uma acção de responsabilidade civil, quer baseada no art. 493.º quer no art. 483.º, ambos do Código Civil, não prescinde – para a sua procedência – da existência de um lesante, de um facto lesivo, de um nexo de imputação do facto lesivo ao lesante, de um dano, de um nexo de causalidade entre o facto e o dano e de um lesado.

Ou seja, para existir direito de indemnização em virtude de estragos causados num imóvel em consequência de obras realizadas noutro prédio contíguo, tem que ser demonstrado que o prejuízo resultou directamente das mesmas.

Ora, não se provou a sobreposição dos degraus resultasse de um avanço da casa dos réus, provocando uma alteração da situação anterior [respostas a 22º e 23º]”.

Insuficiente para a procedência do pedido.

V. Da servidão de estilicídio (recurso dos réus)

Afirmam os réus/reconvintes, a dado momento do seu recurso, que “… A existência de uma caleira no prédio dos AA. impede a constituição de servidão de estilicído a onenar o prédio dos RR. precisamente porque não há nem nunca houve gotejamento para esse prédio nem  recepção de águas pluviais da sua parte.

Inexistindo servidão de estilicídio, afigura-se inquestionável que os RR. não estavam obrigados a respeitar qualquer distância relativamente ao prédio dos AA na reconstrução e alteamento de sua casa, podendo fazer esse alteamento, como fizeram, de encosto à parede daquele prédio. “

Têm razão quanto à não existência da dita servidão.

De facto, a regra é a de que os vizinhos devem construir de forma que a beira do telhado respectivo, ou outra cobertura, não goteje sobre o prédio alheio – artigo 1365.º n.º 1 do Código Civil.

Como todos sabemos, os conflitos entre os titulares de direitos sobre prédios vizinhos constituem um fenómeno sociológico muito antigo.

O legislador sensato e prático procurou encontrar soluções para resolver as questões assim originadas a contento dos diversos interessados.

Por isso, como tudo na vida, criou a excepção a tal regra.

Se, porém, surgir a qualquer título, uma servidão de estilicídio, é o titular do prédio alheio que não pode impedir o escoamento normal da água – n.º 2 do artigo 1365.º.

Como todos sabemos, esta figura jurídica visa atender às situações criadas pelos proprietários que deixam ficar os beirados dos telhados dos seus prédios urbanos a gotejar sobre prédios vizinhos, isto é, as situações em que alguma(s) parede(s) de um prédio urbano define(m) o limite da propriedade e uma vez que o(s) beirado(s) fica(m) dela(s) saliente(s), já sobre prédio vizinho, as águas que deles caiem tem necessariamente de tombar no prédio vizinho, face ao que está prevista a referida figura de servidão de estilicídio, nos termos da qual uma vez constituída, o proprietário do prédio serviente não pode levantar edifício ou construção que impeça esse escoamento, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio, sem prejuízo para o prédio dominante.

Mas como resulta da referida previsão legal o que nela está previsto é o “gotejar” sobre o prédio vizinho, isto é, o acto de cair água de um telhado gota a gota, e de cada uma das “canas” formadas pelas telhas.

Por outras palavras, com a referida figura jurídica está previsto o escoamento das águas pluviais que caiem de um dado telhado ou cobertura ao longo dos seus beirados e em toda a sua extensão, sem o que nem se compreenderia a necessidade de o proprietário dever edificar de modo a deixar um intervalo mínimo de cinco decímetro entre o prédio e a beira, se de outro modo não puder evitá-lo.

Donde que a obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só exista quando elas caem gota a gota nos prédios ditos servientes - neste preciso sentido,  Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, pág. 157 .

Não é isso que se verifica no caso concreto.

O beirado da casa dos AA. Sempre esteve servido por uma caleira que conduzia as águas para a sua extremidade, sendo depois direccionadas para a rua pública (a sul) por um tubo de descarga (vide pontos 22, 25 e 26 dos factos provados).

Significa isto que nunca a casa dos RR. recebeu as águas provenientes da casa dos autores.

Essas águas eram conduzidas por uma caleira e por um tubo para a rua pública e não para o prédio dos RR.

Como sabemos, o proprietário pode evitar, por vários meios, que a água goteje do seu telhado, por exemplo, conduzindo-a através de algerozes a longo das paredes do prédio, ou dando ao telhado uma inclinação tal, que a água pluvial escorra para o terreno do mesmo proprietário, não estando, por isso, obrigado a respeitar o intervalo legal do artigo 1365.º n.º 1 - neste sentido Pires de Lima e A. Varela obra citada pág. 229 e Luís Carvalho Fernandes in Lições de Direitos Reais, 3ª ed. pág. 212-213 -.

Como se pode ler nos Acórdãos da Relação do Porto 20.05.2006 e desta Relação de Coimbra, de 31.01.2006 – ambos consultados no site www.dgsi.pt -, “ …a existência de uma caleira impede a constituição de servidão de estilicido sobre o prédio vizinho, precisamente porque não há gotejamento nem recepção de águas pluviais por parte desse prédio.

Por isso, os RR. não estavam obrigados a respeitar a distância de 50 cms na reconstrução e alteamento de sua casa, podendo fazer esse alteamento, como fizeram, de encosto à parede da casa dos AA.

No entanto, conforme alegam os autores, “...houvesse ou não servidão de estilicídio (...) sempre a conduta que se exige aos RR decorre do facto de que não podem causar dano por obra, devendo repor a situação no estado em que se encontrava antes”.

Está provado que a dita caleira, tal como os beirados e caleiros “sempre ali se situaram e sempre foram utilizados com a função de escoamento de águas…”(facto 26).

 Donde, mesmo que se não configurasse uma servidão como estilicídio sempre se configuraria uma servidão atípica, reportada à existência da dita caleira, que sempre impediria os RR de a entalarem, causando prejuízo que ocorre há vários anos...”.

Mais, consta como provada a seguinte matéria:

“Os beirados e caleiros da casa dos autores – com a largura suficiente para suportar o tubo do telhado dos autores – sempre ali se situaram e sempre foram utilizados com a função de escoamento de águas, quer pelos autores, quer pelos seus antecessores, há mais de 40 anos, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta, na convicção de possuírem coisa própria e na ignorância de lesão dos direitos de outrem [respostas a 36º e 37º]”.

Ou seja, está provada a propriedade dos autores sobre os beirados e caleiros.

As Obras levadas a cabo pelos réus violam tal direito.

De facto, demonstrado está que, “...em consequência das obras empreendidas pelos réus, essa caleira ficou entalada com a nova parede da casa destes, impedindo que os autores façam limpeza e manutenção dessa caleira, a não ser que tirem as telhas, provocando um mau escoamento das águas, o que gera infiltrações nas paredes da casa dos autores, essencialmente na parte norte, mas também nas paredes nascente e poente, as quais apresentam manchas, humidades e estão a descascar, apresentando fendas com alguns milímetros, chegando a ter de comprimento 10 cm a 50 cm”.

Improcede pois, neste particular, o recurso dos réus/reconvintes.

VI.Da indemnização

O tribunal de Seia absolveu os RR do pedido de indemnização a favor dos autores por, no seu entender, não haver actos que sejam em si graves e que mereçam tutela de direito.

Para assim concluir, escreveu:

Quanto ao alegado abalo psíquico, não foi feita prova, conforme as respostas a 41º e 42º, improcedendo, por isso, igualmente esta parte do pedido.

Resta o pedido na parte respeitante à tutela da personalidade.

É certo que se provou que, para a realização das obras necessárias a eliminar as infiltrações na casa dos autores, uma equipa de três homens especializados demorará três dias [3.27].

Mas deixarão os autores de usufruir da casa nesse período?

Não se encontra demonstrado que tal venha a suceder, uma vez que os autores residem em Sacavém, como ressalta do alegado na petição inicial e do próprio cabeçalho desse articulado.

É certo que se verificará uma intromissão de desconhecidos no espaço privado dos autores. A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.

Contudo, não vemos que essa intromissão seja distinta daquela que é provocada pela realização de obras a pedido dos próprios.

Isto significa que, na óptica deste Tribunal, os danos a sofrer pelos autores não se revestem de uma gravidade tal que justifique a tutela do Direito (artigo 496º, nº 1, do Código Civil).

Não se olvida que é distinta a situação daquele que promove por sua vontade uma intromissão na sua esfera privada, enquanto consequência necessária da realização de uma actividade que pretende ver realizada, da situação daquele que é forçado a ver realizada essa actividade, ainda que em seu benefício, com o inerente custo para a sua intimidade.

No entanto, é entendimento deste Tribunal que uma intromissão forçada, por um período de 3 dias, é aceitável e não constitui um facto de tal modo grave que justifique a imposição da obrigação de indemnização por terceiro.

Razões pelas quais improcede o pedido de indemnização na sua totalidade”.

A indemnização atribuída por danos de natureza não patrimonial respeita apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso da ofensa dos direitos à integridade física, saúde e qualidade de vida, entre outros - já se escrevia no Acórdão do STJ de 12.7.1988, que os danos não patrimoniais indemnizáveis devem ser seleccionados com extremo rigor, devendo atender-se apenas aos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito -.

A gravidade mede-se por um padrão objectivo, conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias concretas – neste preciso sentido, A. Varela, Obrigações, pág. 428 -.

Escreve esta Relação de Coimbra, em Acórdão de 21.3.2013, retirado do site www.dgsi.pt, que, “na impossibilidade de concretizar um critério geral, porque nesta matéria o casuísmo é infindável, apenas importa acentuar que danos consequentes a lesões a direitos de personalidade devem ser considerados mais graves do que os resultantes de violação de direitos referidos a coisas”.

Assim, considerando os factos alinhavados nos autos, teremos de concordar com a 1.ª instância quando refere que os mesmos não revestem tal gravidade que mereçam a tutela do direito.

Passemos ao sumário:

i. A presunção resultante do registo predial não abrange os limites ou confrontações, a área dos prédios, as inscrições matriciais - com finalidade essencialmente fiscal - numa palavra, a identificação física, económica e fiscal dos imóveis, tanto mais que o mesmo é susceptível de assentar em meras declarações dos interessados, escapando ao controle do conservador, apesar da sua intervenção mesmo oficiosa.

ii. Por isso, o Tribunal com base na simples presunção do registo, apenas poderá declarar que os réus são proprietários do reduto em causa, já não quanto à sua área, cuja existência não é abrangida pela presunção.

iii. A vocação da figura do abuso do direito tem como objectivo primordial - funcionando como uma “válvula de segurança” do sistema - obstar à consumação de certos direitos que, embora válidos em tese, na abstracção da hipótese legal, acabam por constituir, quando concretizados, uma clamorosa ofensa da Justiça, entendida enquanto expressão do sentimento jurídico socialmente dominante.

iv. Temos para nós, que configurará uma situação de abuso do direito se/quando alguém, embora legítimo detentor de um determinado direito, formal e substancialmente válido, o exercita circunstancialmente fora do seu objectivo ou da finalidade que justifica a sua existência, em termos que ofendam, de modo gritante, o sentimento jurídico, seja criando uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito e as consequências a suportar por aquele contra quem é invocado, seja prejudicando ou comprometendo o gozo do direito de outrem.

v. A obrigação legal de suportar o escoamento das águas pluviais só existe quando elas caem gota a gota nos prédios ditos servientes.

vi. O proprietário pode evitar que a água goteje do seu telhado, por exemplo, conduzindo-a através de algerozes a longo das paredes do prédio, ou dando ao telhado uma inclinação tal, que a água pluvial escorra para o terreno do mesmo proprietário, não estando, por isso, obrigado a respeitar o intervalo legal do artigo 1365.º n.º 1.

vii. Fazendo-o não se constitui servidão de estilicídio sobre o prédio vizinho, precisamente porque não há gotejamento nem recepção de águas pluviais por parte desse prédio.

viii. A indemnização atribuída por danos de natureza não patrimonial respeita apenas aos danos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso da ofensa dos direitos à integridade física, saúde e qualidade de vida, entre outros, devendo tal danos ser seleccionados com extremo rigor.

3.Decisão

Pelas razões expostas, no parcial provimento do recurso interposto pelos réus/reconvintes, revogamos a sentença proferida na 1.ª instância, no tocante à aplicação do instituto do abuso do direito, invocado pelos autores/reconvindos, procedendo o pedido reconvencional identificado como d) - retirarem ou removerem quer o tubo de expelição de fumos e gases colocado na parede norte da sua casa, quer o tubo de descarga de águas pluviais referido nos artigos 73º e 74º - e e) - Tapar ou frestar a abertura referida nos artigos 65º a 67º -.

No mais, mantemos tal decisão.

Custas pelos autores apelantes, quanto ao seu recurso, cuja instância improcedeu, sendo que as custas devidas pelo recurso apresentado pelos réus/reconvintes serão a pagar por estes e apelados/autores, na proporção, respectivamente, de ¼ e ¾ .

Coimbra, 11 de Fevereiro de 2014

(José Avelino Gonçalves - Relator -)

(Regina Rosa)

(Artur Dias)