Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
76/04.1TBMGL.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
ANIMAL
CONCESSIONÁRIO
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 11/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MANGUALDE - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.13, 483, 487, 493, 799 CC, LEI Nº 24/2007 DE 18/7
Sumário: 1.- Não tomando posição quanto à natureza jurídica da responsabilidade civil imputada ao concessionário de auto-estradas, veio a Lei nº 24/2007 de 18-07, atribuir o ónus da prova, no âmbito da responsabilidade civil (qualquer que ela seja), aos concessionários de auto-estradas por danos derivados de acidentes com veículos automóveis, designadamente em situações de colisão com animais.

2 - Assim, uma vez provada a existência de acidente devido a obstáculo existente na faixa de rodagem, sem prova da culpa do condutor do veículo, ou de terceiro, ou a existência de caso fortuito, recai sobre a concessionária da auto-estrada o ónus de provar o cumprimento das obrigações de segurança para se eximir da sua responsabilidade civil.

3 - O facto de o citado diploma legal ter entrado em vigor depois da ocorrência do acidente não impede que ao mesmo se recorra para integrar o caso concreto, tendo em conta a natureza interpretativa do novo regime, - art. 13º, nº 1, do CCiv. - pois que, a nova lei, tem como objetivo sanar dúvidas que se colocavam acerca da distribuição do ónus de prova em tais situações.

4 - Ainda que entendêssemos que a cadência de patrulhamentos – de 3 em 3 horas - é diligente e aceitável, não sendo possível à Ré ter câmaras ou vigilantes em número tal e para áreas de tal modo reduzidas que, em absoluto, eliminassem qualquer risco de intrusão de um animal, a verdade é que não é aceitável haver zonas fora de controlo, como são as zonas cobertas de vegetação, que não permitem verificar o estado das vedações.

5 - Cabia à Ré usar os meios de prevenção necessários para que nenhuma zona de vedação ficasse sob a impossibilidade de ser inspecionada, nomeadamente, removendo a vegetação que o impede.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                            I

J.L.S. – (…), S.A., com sede na (...), Viseu, veio interpor a presente ação com processo sumário contra LUSOSCUT BLA, AUTO-ESTRADAS DAS BEIRAS LITORAL E ALTA, S.A., atualmente denominada ASCENDI BEIRAS LITORAL E ALTA, AUTO ESTRADAS DAS BEIRAS LITORAL E ALTA, SA, alegando em resumo que, no dia 8 de Março de 2003, pelas 23 horas, o veículo automóvel matrícula (...)HI, conduzido por J (…) e pertencente à autora, circulava no IP5, sentido Guarda - Viseu, quando, sem que nada o fizesse prever, ao Km 113,4, surgiu repentinamente, vindo do lado esquerdo da via um animal, que depois veio a saber tratar-se de um javali, e que veio a embater frontalmente no dito veículo causando danos avultados. O condutor não pode evitar o embate com o dito animal, na medida em que este surgiu inesperadamente.

 Alega ainda que contactou a ré com vista a imputar-lhe responsabilidade no sucedido, tendo esta enviado um fax à autora, onde a informava de que não poderia ser responsabilizada pelo ocorrido, uma vez que, alegadamente, havia efetuado as normais diligências de vigilância, que assegurariam a segurança de circulação na via, não detetando qualquer falha na vedação da infraestrutura.

A autora procedeu à reparação do veículo, tendo para o efeito, despendido a quantia de 6.017,14 €. A ré, responsável pela vigilância e manutenção da via, não pode deixar de responder pelos danos causados pela evasão e súbita e inesperada aparição do animal na mencionada via, onde foi colidir com um automóvel, pois que incumpriu um específico dever de segurança, presumindo-se a sua culpa.

 Alega também a autora que o veículo esteve imobilizado sem poder circular face aos danos que apresentava até ao dia 20.05.2003, sendo que o aluguer diário de um veículo marca BMW, modelo 525 tds, como o dos autos, custa 75 €.

Este veículo era utilizado pela administração da autora nas suas inúmeras deslocações, em Portugal e ao Estrangeiro e a sua falta causou bastantes incómodos àquela, necessitando, inclusivamente, de pedir veículos emprestados para o efeito, o que perfaz uma indemnização a esse título não inferior a 5.325,00€.

Conclui a Autora que deverá a ação ser julgada procedente, condenando-se a ré a pagar-lhe a quantia global de 11.342,14 € acrescida de juros desde a citação até a integral pagamento.

A Ré foi citada e contestou alegando ter sempre cumprido a obrigação de vigilância a que está obrigada pelo contrato de concessão, o que havia sido feito no dia, não tendo sido detetado em qualquer ponto da autoestrada qualquer animal, durante qualquer patrulhamento, além de que, a vedação não se encontrava danificada, nomeadamente com qualquer “rompimento”. Acrescenta que a via é uma via sem portagens (ou com portagens virtuais), daqui resultando a não existência nos nós de entrada ou saída, de barreiras físicas que possam impedir a entrada de animais, pelo que, poderá ter sido por aí que se deu a entrada do animal na via, não sendo  exequível que a Concessionária tenha um posto de vigia em cada entrada ou saída do IP5, nem isso lhe é exigido pelo Contrato de Concessão.

Conclui a ré que deve a ação ser julgada improcedente e não provada absolvendo-se esta do pedido que contra ela foi formulado pelo autor.

Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente por não provada e em consequência, absolveu-se a Ré do pedido.

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:

(…)

Contra-alegou a Ré, assim concluindo:

(…)

                                                                        II

São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal «a quo», corrigidos já, na sequência do julgamento de facto feito por esta Relação:

1. No dia 8 de Março de 2003, pelas 23h o veículo automóvel de matrícula (...)HI, conduzido por J (…) e pertencente à autora, circulava no IP 5, sentido Guarda-Viseu.

2. Nesse dia e hora, quando, sem que nada o fizesse prever, ao Km 113,4, área desta comarca, surgiu repentinamente, vindo do lado esquerdo da via um animal, que depois veio a saber tratar-se de um javali.

3. E que veio a embater frontalmente no dito veículo causando danos avultados.

4. O HI seguia no lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito.

 5. O embate deu-se precisamente na mão de trânsito tomada pelo veículo da autora.

 6. O condutor é uma pessoa experiente e que já conduz há largos anos.

Substituído por: “O condutor é uma pessoa experiente e que já conduz há largos anos, efetuando uma condução cautelosa e defensiva”.

 7. Apesar de tudo isto, nunca o condutor poderia ter evitado o embate do dito animal, na medida em que este surgiu inesperadamente não permitindo o evitar do choque.

 8. A vedação de proteção que existe na extensão da via visa reforçar a segurança, impedindo, nomeadamente a intromissão de animais.

 9. Não podendo suportar os prejuízos decorrentes da imobilização do veículo, a autora procedeu à reparação do mesmo, tendo despendido a quantia de 6.017,14 €, pelos serviços constantes da fatura que lhe foi enviada, e constante de fls.7.

 10. Os danos do veículo foram aqueles que se acham espelhados na aludida fatura.

 11. O veículo esteve imobilizado sem poder circular face aos danos que apresentava até ao dia 20.05.03.

 12. O que causou à autora o prejuízo de 5.325,00 €.

 13. A autora logo que soube que a responsabilidade pelo ressarcimento dos seus prejuízos competia à ré, comunicou-lhe o local aonde iria reparar o veículo para que esta lhe fizesse uma peritagem.

 14. A ré ignorou esta comunicação da autora e nunca compareceu na oficina reparadora.

 15. A qual, devido à sua intensa atividade, apenas aprontou definitivamente o veículo em 20.05.03.

16. O aluguer diário de um veículo marca BMW, modelo 525 tds, como o dos autos, custava, à data do acidente, o montante não inferior a 75,00 €.

17. O veículo da autora é utilizado pela administração da autora nas suas inúmeras deslocações, em Portugal e ao Estrangeiro.

 18. E a sua falta causou bastantes incómodos àquela, necessitando, inclusivamente, de pedir veículos emprestados para o efeito.

 19. A ré, tendo em vista manter a autoestrada em perfeitas condições de utilização, efetua dentro de determinados horários previstos e fixados, turnos normais de patrulhamento da via.

 20. No dia do acidente não foi detetado em qualquer ponto da autoestrada qualquer animal, durante qualquer patrulhamento.

Substituído por – “No dia do acidente, além do javali que veio a ser atropelado, não foi detetado em qualquer ponto da autoestrada qualquer outro animal, durante os patrulhamentos realizados”;

21. Sempre que sucede haver o aparecimento de um animal na via, toda a vedação, da área circundante ao local do aparecimento do animal é inspecionada nos dois sentidos.

Substituído por - “Sempre que há conhecimento do aparecimento de um animal na via, toda a vedação, da área circundante ao local do aparecimento do animal, é inspecionada nos dois sentidos, em cerca de 200 metros para cada lado, havendo, contudo, zonas com vegetação a impossibilitar tal inspeção.“

22. São igualmente efetuados de forma periódica vistorias à rede, realizadas pelas equipas de obra civil, a pé, ao longo dos 176 km do IP5, e nos dois sentidos.

Substituído por –O procedimento instituído é, fazer patrulhamento de 3 em 3 horas em ambos os sentidos da estrada. Ocorrendo um acidente provocado pelo aparecimento de um animal, a vedação seria inspecionada pelo funcionário da Ré numa extensão de 200/300 metros para cada lado e também no sub-lanço (entre dois nós) com uma viatura em circulação onde haja caminhos paralelos, ou a pé onde os não haja. São igualmente efetuados de forma periódica - duas vezes por ano - vistorias à rede, realizadas pelas equipas de obra civil, a pé, ao longo dos 176 km do IP5, e nos dois sentidos”.

23. Na ocasião do acidente a vedação foi imediatamente inspecionada pelo funcionário da ré.

Substituído por - “Na ocasião do acidente a vedação foi imediatamente observada pelo funcionário da Ré, em cerca de 200m para cada lado, na parte em que não estava acompanhada de vegetação”.

24. Inspeção essa realizada na presença e com o acompanhamento dos agentes da Brigada de Trânsito da G.N.R. presente no local.

Substituído por -“observação essa realizada de noite”.

 25. Da qual resultou verificar-se que a vedação estava em boas condições.

 Substituído por - “Da qual resultou a convicção para este de que a vedação estava em boas condições”.

26. Compete à Ré, por força do contrato de concessão, assegurar condições de segurança a quem transite naquela via, nomeadamente, zelar pela sua conservação.

 27. Ao local do acidente compareceram as Autoridades Policiais, que elaboraram o competente auto, e uma viatura pertencente à ré, empresa concessionária responsável pela manutenção da referida via e que terá transportado o javali para o entregar às autoridades competentes, com a autorização da G.N.R..

 28. A autora contactou a ré no sentido de obter esclarecimentos quanto à sua responsabilidade no sucedido.

 29. Na sequência daquele contacto, a autora enviou à ré vários faxes, descrevendo todo o sucedido, solicitando uma resposta quanto ao seu pedido de reparação do veículo.

30. A ré enviou um fax à autora, onde a informava de que não poderia ser responsabilizada pelo ocorrido, uma vez que, alegadamente, havia efetuado as normais diligências de vigilância, que assegurariam a segurança de circulação na via, não detetando qualquer falha na vedação da infraestrutura.

31. O facto do “rompimento”, não consta do relatório de "Ocorrência de Trânsito" elaborado pela Brigada de Trânsito da GNR.

 32. Na reclamação que o Autor endereçou à Ré em 14.03.03, e subsequente fax de 20.3.2003, nenhuma menção é feita quanto a tal facto.

 33. O IP5 é uma via sem portagens (ou com portagens virtuais).

 34. Daqui resulta a não existência nos nós de entrada ou saída de barreiras físicas que possam impedir a entrada de animais.

                                                                        III

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (art. 635 nº 3 do nCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. art. 608 in fine), são as seguintes as questões a decidir:

- Impugnação da matéria de facto.

- Do apuramento da responsabilidade da Ré, concessionária de autoestrada.

I - Da impugnação da matéria de facto

(…)

II - Da responsabilidade da Ré, concessionária de autoestrada.

Impõe-se apreciar se pode imputar-se responsabilidade à Ré, na sua qualidade de concessionária da autoestrada onde ocorreu o acidente, derivado do facto de se encontrar na faixa de rodagem um animal (javali) que, surgindo repentinamente, vindo do lado esquerdo da via, veio a embater frontalmente no veículo do Autor, causando a este danos.

O entendimento seguido pela 1ª instância foi o de que, sendo a responsabilidade da Ré, uma responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito e, prevendo o art. 483º, n.º 1 do Código Civil a regra geral na responsabilidade por factos ilícitos, haveria o Autor, onerado com o ónus probatório, de provar todos os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos: 1º - a existência de um facto (“controlável pela vontade do homem”); 2º - a ilicitude; 3º - o nexo de imputação do facto ao lesante (culpa); 4º - o dano; 5º - o nexo de causalidade entre o facto e o dano. E que, não tendo o A. provado que o javali entrou para o IP5 em virtude de a vedação se encontrar danificada, não ficou provado que a Ré omitiu qualquer dever de vigilância ou de diligência permitindo que o javali entrasse na via, ou que tivesse violado as obrigações constantes do contrato de concessão, pelo que foi absolvida.

 Concluiu, assim, o tribunal recorrido que incumbindo à Autora, o ónus probatório dos pressupostos integrantes da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 1 do Cód. Civil, tratando-se de factos constitutivos do direito, e não tendo feito tal prova, a Ré não praticou nenhum facto ilícito, logo, sobre ela não recai qualquer dever de indemnizar a Autora pelos danos sofridos em virtude da colisão do seu veículo com o javali aparecido no IP5.

Foi por esta via que uma grande parte da jurisprudência optou até à entrada em vigor da Lei 24/2007.[1]

De acordo com esta posição é ao lesado que incumbe alegar e fazer prova da culpa do autor da lesão, a menos que exista sobre ele (lesante) uma presunção de culpa (art. 487º do C. Civil).

Em termos práticos esta orientação atribui ao lesado o ónus da prova, por exemplo, da deficiência da vedação, da entrada do animal por zonas abertas sem que algo o tivesse impedido, etc. Prova esta, de resto, particularmente difícil nas vias onde não é permitido parar, impedindo assim o lesado da recolha de eventuais elementos esclarecedores do acidente, tirando fotografias, por exemplo.

E nestas vias, de circulação rápida, muitas vezes não há testemunhas, o que torna a prova ainda mais difícil. Assim, neste entendimento, muito dificilmente o lesado vê a sua pretensão indemnizatória atendida, pois é-lhe muito difícil fazer prova que a concessionária não cumpriu com os deveres de segurança.

Ao invés, a concessionária, tem ao seu dispor meios que permitem fazer mais facilmente a prova de que as suas obrigações foram ou não cumpridas, através de patrulhamentos, vigilância monitorizada das estradas, etc.

Razão porque uma parte da jurisprudência[2] e doutrina[3] viessem defender a existência de uma responsabilidade contratual, tendo subjacente um contrato ou uma relação contratual de facto demonstrados pela disponibilidade da autorização de circulação de veículos, mediante o pagamento de uma taxa, apontando para uma presunção de culpa da concessionária no incumprimento de obrigações de segurança, nos termos do art. 799º, nº 1, do CC. Por esta via os utentes da autoestrada beneficiariam do regime probatório próprio das relações contratuais – art. 799º nº 1, sendo que, a presunção só seria afastada pela “prova histórica, positiva” da intrusão do animal, ou seja, só demonstrando em concreto como o animal se introduziu na autoestrada, poderia, a concessionária, afastar a presunção. Não bastaria à concessionária demonstrar que no local do acidente as vedações não apresentavam qualquer anomalia.

Entre uma e outra das posições, admitiu-se ainda uma presunção de culpa em sede de responsabilidade extracontratual tendo em conta a natureza da via concessionada, sob a guarda e vigilância do concessionário, atento o disposto no art. 493º, nº 1, do CC, e falou-se ainda numa terceira via da responsabilidade civil integrada pela violação de normas de proteção de terceiros.

Com a entrada em vigor da Lei 24/2007 de 18-07, que veio definir direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como autoestradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares, o interesse dessa discussão, perdeu-se em grande parte.

Dispõe esta Lei que:

«Artigo 12.º - Responsabilidade

1 — Nas autoestradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a:

(…)

b) Atravessamento de animais;

(…)».

Não tomando posição quanto à natureza jurídica da responsabilidade civil imputada ao concessionário de autoestradas, veio esta lei, contudo, atribuir o ónus da prova, no âmbito da responsabilidade civil (qualquer que ela seja), aos concessionários de autoestradas por danos derivados de acidentes com veículos automóveis, designadamente em situações de colisão com animais.

Assim, uma vez provada a existência de acidente devido a obstáculo existente na faixa de rodagem, sem prova da culpa do condutor do veículo, ou de terceiro, ou a existência de caso fortuito, recai sobre a concessionária da autoestrada o ónus de provar o cumprimento das obrigações de segurança para se eximir da sua responsabilidade civil.

Ora, tendo o acidente ocorrido em data anterior à entrada em vigor de tal lei, importa questionar, particularmente em relação ao seu artigo 12º, se estamos perante um lei inovadora ou interpretativa.

Para uma situação equivalente pronunciou-se o Ac. do STJ de 14-03-2013, P. 201/06.8TBFAL.E1.S1, Relator: Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt:

«O facto de o citado diploma legal ter entrado em vigor depois da ocorrência do acidente a que os autos se reportam não impede que ao mesmo se recorra para integrar o caso concreto, tendo em conta a natureza interpretativa do novo regime, integrando-se no acervo normativo aplicável a eventos anteriores, nos termos do art. 13º, nº 1, do CC.

Trata-se, aliás, de entendimento uniforme deste Supremo Tribunal, o qual encontra a sua justificação no facto iniludível de a nova lei ter como objetivo sanar dúvidas que se colocavam acerca da distribuição do ónus de prova em tais situações (cfr., entre outros, os Acs. do STJ, de 2-11-08, CJSTJ, tomo III, pág. 108, de 1-10-09 e de 13-11-07, em www.dgsi.pt)».

As leis interpretativas devem integrar-se na lei interpretada ganhando aplicação imediata - as leis interpretativas fazem corpo com a lei interpretada tornando-se numa só (art. 13 do Cód. Civ.).

Entendimento que tem a nossa concordância.

Assim, perante a existência de um animal (ou outro elemento contemplado no art. 12 da Lei 24/2007), a responsabilidade da concessionária da autoestrada, não é imediata, apenas decorre daí uma presunção juris tantum de incumprimento de obrigações de segurança, cabendo à concessionária onerada a possibilidade de demonstrar que não houve incumprimento causal de quaisquer obrigações de segurança, sendo o acidente devido, por exemplo, a comportamentos do condutor, de terceiro ou, eventualmente imputáveis a casos de força maior.

No caso concreto, provou-se que, no dia 8 de Março de 2003, pelas 23h o veículo automóvel de matrícula (...)HI, conduzido por J (…) e pertencente à autora, circulava no IP 5, sentido Guarda -Viseu. Nesse dia e hora, quando, sem que nada o fizesse prever, ao Km 113,4, área desta comarca, surgiu repentinamente, vindo do lado esquerdo da via um animal, que depois veio a saber tratar-se de um javali, o qual veio a embater frontalmente no dito veículo causando danos avultados. O HI seguia no lado direito da faixa de rodagem, atento o seu sentido de trânsito. O embate deu-se precisamente na mão de trânsito tomado pelo veículo da autora. O condutor é uma pessoa experiente e que já conduz há largos anos, efetuando uma condução cautelosa e defensiva. Nunca o condutor poderia ter evitado o embate do dito animal, na medida em que este surgiu inesperadamente não permitindo o evitar do choque.

Atenta a matéria de facto apurada, é de considerar definitivamente afastada qualquer responsabilidade culposa do condutor, uma vez que, nenhuma circunstância permite concluir, quer em termos de velocidade, mão de trânsito ou outra, que a sua condução tivesse qualquer conexão com o acidente.

Assim, o acidente não ocorre por razões que possam ser imputadas ao condutor ou a terceiro, ou a caso fortuito ou de força maior.

Recai, assim, sobre a Ré o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança. Importa apurar se o logrou fazer.

A nossa resposta é negativa, pois que, ainda que entendêssemos que a cadência de patrulhamentos – de 3 em 3 horas - é diligente e aceitável, não sendo possível à Ré ter câmaras ou vigilantes em número tal e para áreas de tal modo reduzidas que, em absoluto, eliminassem qualquer risco de intrusão de um animal, a verdade é que não é aceitável haver zonas fora de controlo, como são as zonas cobertas de vegetação, que segundo as testemunhas da Ré que procediam à verificação das vedações, não permitem verificar o estado das vedações.

Resultou provado que - “Sempre que há conhecimento do aparecimento de um animal na via, toda a vedação, da área circundante ao local do aparecimento do animal é inspecionada nos dois sentidos, em cerca de 200 metros para cada lado, havendo, contudo, zonas com vegetação a impossibilitar tal inspeção” e que “Na ocasião do acidente a vedação foi imediatamente observada pelo funcionário da Ré, em cerca de 200m para cada lado, na parte em que não estava acompanhada de vegetação”.

Cabia à Ré usar os meios de prevenção necessários para que nenhuma zona de vedação ficasse sob a impossibilidade de ser inspecionada, nomeadamente, removendo a vegetação que o impede.

E ainda que, a via em causa, seja uma via sem portagens (ou com portagens virtuais) que, por isso, não comporta barreiras físicas que possam impedir a entrada de animais nos nós de entrada ou saída, tal não isenta a ré da obrigação de providenciar, nesses locais, por recursos aptos à deteção de animais ou ao afugentamento dos mesmos, de modo a prevenir a sua entrada.

Vêm a propósito a ponderação tecida no Ac. do STJ de 14-03-2013, supra citado:

“(…) a mera constatação da impossibilidade de se garantir a infalibilidade de um sistema apto a evitar a entrada, detetar a existência ou determinar a retirada de animais ou de outros objetos da faixa de rodagem que, pelas suas dimensões, possam constituir efetiva fonte de perigo, não pode redundar no abrandamento do grau de diligência a um ponto em que a liberação da responsabilidade da concessionária acabe por penalizar os condutores ou terceiros que, sem qualquer responsabilidade e fiados na existência de condições de segurança, sofram danos.

Atenta a natureza da via concessionada, o elevado grau de sofisticação da atividade e a experiência acumulada pela concessionária, a apreciação do cumprimento do dever de diligência, segundo o padrão do “bom pai de família”, a que alude o art. 487º, nº 2, do CC, deve guindar-nos a um plano de elevada exigência, tendo em conta, além do mais, que a mesma exerce uma atividade lucrativa, devendo, por isso, mobilizar meios humanos, materiais e financeiros ajustados a evitar incidentes semelhantes”.

Ora, em face da factualidade apurada, não pode considerar-se ilidida a presunção de culpa relacionada com a existência do animal num local onde, por razões de segurança, não poderia encontrar-se.

A Ré é, assim, responsável por tal acidente e deve responder pelos danos causais.

Com o embate do veículo da Autora no javali, o dito veículo sofreu os danos constantes do documento de fls. 7, cuja reparação importou em 6.017,14 €. Por sua vez, o veículo esteve imobilizado sem poder circular face aos danos que apresentava até ao dia 20.05.03, o que causou à autora o prejuízo de 5.325,00 €.

O montante total dos danos patrimoniais da A. corresponde a €11.342,14, valor esse que corresponde ao pedido.

A ré está obrigada ao seu pagamento acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento (art. 805 nº2 b) do Cód. Civ.).

Em suma:

- Não tomando posição quanto à natureza jurídica da responsabilidade civil imputada ao concessionário de autoestradas, veio a Lei nº 24/2007 de 18-07, atribuir o ónus da prova, no âmbito da responsabilidade civil (qualquer que ela seja), aos concessionários de autoestradas por danos derivados de acidentes com veículos automóveis, designadamente em situações de colisão com animais.

- Assim, uma vez provada a existência de acidente devido a obstáculo existente na faixa de rodagem, sem prova da culpa do condutor do veículo, ou de terceiro, ou a existência de caso fortuito, recai sobre a concessionária da autoestrada o ónus de provar o cumprimento das obrigações de segurança para se eximir da sua responsabilidade civil.

- O facto de o citado diploma legal ter entrado em vigor depois da ocorrência do acidente não impede que ao mesmo se recorra para integrar o caso concreto, tendo em conta a natureza interpretativa do novo regime, - art. 13º, nº 1, do CCiv. - pois que, a nova lei, tem como objetivo sanar dúvidas que se colocavam acerca da distribuição do ónus de prova em tais situações.

- ainda que entendêssemos que a cadência de patrulhamentos – de 3 em 3 horas - é diligente e aceitável, não sendo possível à Ré ter câmaras ou vigilantes em número tal e para áreas de tal modo reduzidas que, em absoluto, eliminassem qualquer risco de intrusão de um animal, a verdade é que não é aceitável haver zonas fora de controlo, como são as zonas cobertas de vegetação, que não permitem verificar o estado das vedações.

- Cabia à Ré usar os meios de prevenção necessários para que nenhuma zona de vedação ficasse sob a impossibilidade de ser inspecionada, nomeadamente, removendo a vegetação que o impede.

                                                                        IV

Termos em que, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e condenando a Ré no pagamento à Autora da quantia de €11.342,14 (onze mil trezentos e quarenta e dois euros e catorze cêntimos), acrescida de juros legais, à taxa civil, desde a citação até integral pagamento.

Custas pela Ré.


 Anabela Luna de Carvalho( Relatora ))
João Moreira do Carmo
José Fonte Ramos


[1] Tomemos como ex. o Acórdão do TR do Porto, de 14-10-2002, P. 0150929 (Relator: Sousa Lameira) in www.dgsi.pt, assim sumariado: - «No caso de acidente de viação ocorrido em autoestrada, por motivo da entrada de um animal (uma raposa) na faixa de rodagem, a responsabilidade da concessionária da construção, conservação e exploração dessa via, atribuída, segundo o regime da concessão, "nos termos da lei", depende da inobservância das obrigações prescritas nesse regime da concessão.
II - Essa responsabilidade situa-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos e baseia-se na culpa, que se não presume, cabendo ao lesado o ónus da sua prova».

[2] No que diz respeito à posição dos tribunais superiores, o TR de Guimarães, no seu Acórdão de 26-04-2007, P. 494/07-2 (Relatora; Rosa Ching) defende que o contrato de concessão é dotado de eficácia de proteção em relação a terceiros – os utentes da utilização das estradas:
                «1º- O contrato de concessão celebrado entre o Estado e a Brisa, Auto-Estradas de Portugal, S.A., nos termos do DL nº. 294/97, de 24/10, é dotado de eficácia de proteção em relação a terceiros – os utentes da utilização das autoestradas.
2º- O contrato celebrado entre o utente que pretende circular pela autoestrada e a Brisa é um contrato inominado em que o utente tem como prestação o pagamento de uma taxa-portagem e a Brisa a contraprestação de permitir que o utente “utilize” a autoestrada, com comodidade e segurança.
3º- O acidente de viação ocorrido numa autoestrada e provocado pelo aparecimento de um canídeo morto na faixa de rodagem, cai no âmbito da responsabilidade contratual.
4º- Porque, de harmonia com o disposto no nº. 2 da citada Base XXXVI, só o “caso de força maior devidamente verificado” exonera a Brisa-concessionária da sua obrigação de garantir a circulação nas autoestradas em condições de segurança, para afastar a presunção de culpa estabelecida no mencionado art.799º.nº. 1 do C. Civil, não bastará à Brisa-concessionária mostrar que foi diligente (que se esforçou por cumprir, que usou daquelas cautelas e zelo que em face das circunstâncias do caso empregaria um bom pai de família) ou que não foi negligente ( que não se absteve de tais cautelas e zelo, que não omitiu os esforços exigíveis, ou seja, aqueles que também omitiria uma pessoa normalmente diligente)».
[3] ] Cfr., entre outros, Sinde Monteiro, RLJ, ano 132º, págs. 31 e segs., e 133º, págs. 37 e segs., Menezes Cordeiro, ROA, ano 65º, págs. 134 e segs., Urbano Dias, Da Responsabilidade civil das concessionárias de autoestradas em acidentes de viação, na Revista do CEJ, nº 6, págs. 21 e segs., ou Rui Ataíde, Acidente em autoestradas: natureza e regime jurídico da responsabilidade dos concessionários, em Estudos em Homenagem ao Prof. Carlos Ferreira de Almeida, vol. II, págs. 157 e segs.