Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1783/11.8 T3AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 06/19/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: BAIXO VOUGA – AVEIRO – JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 256.º DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1.- A declaração inverídica perante notário no ato de celebração de escritura pública de dissolução da sociedade, segundo a qual esta não tinha passivo a liquidar, não é suscetível de constituir o crime de falsificação de documento;

2.- Na falsificação intelectual ou ideológica é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa. A alteração surgirá aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que é realizada;

3.- Ora, a arguida declarou na ata da assembleia-geral que deliberou pela dissolução da sociedade que esta não tinha qualquer passivo a liquidar. E foi isso, e apenas isso mesmo que declarou perante o oficial público e este incorporou na escritura outorgada. Logo, o documento em si não apresenta qualquer mácula: reproduz fielmente o ato;

4.- Por outro lado, a mesma assembleia e a ata que narra a deliberação tomada tinha por objetivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito que abala ou anula essa sua finalidade. O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projetar. A ata não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova suscetível de ser usado para excecionar eventuais débitos.

Decisão Texto Integral: Precedendo conferência, acordam na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

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I. Relatório.

1.1. A..., LDA., com sede em Ílhavo, apresentou queixa-crime [fls. 3/5] contra B... , entretanto mais identificada.

1.2. Tramitado o inquérito instaurado por via de tal participação, o Ministério Público proferiu acusação [fls. 148/150], imputando àquela denunciada, entretanto constituída arguida, a prática material consumada de um crime de falsificação de documento, previsto e punido através do art.º 256.º, n.º 1, als. a) e e), do Código Penal.

1.3. Visando infirmar judicialmente o libelo, foi a vez desta arguida requerer a abertura da fase facultativa de instrução [fls. 213/219] que, tramitada, culminou com a prolação de decisão da sua não pronúncia [fls. 277/286].

1.4. Admitida a intervir nos autos assumindo a qualidade de assistente, recorre a denunciante, concluindo [fls. 299 e segs.] deste modo a respectiva motivação:

A. A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos (transcrição):

- “… em 10 de Agosto de 2010, a referida “C..., Lda.” e a sociedade “ A...”, aqui denunciante, celebraram entre si um contrato-promessa (...), relativo ao trespasse de um estabelecimento comercial denominado “D...”, sito no (...), n.º 28, em Aveiro, pertencente a esta última sociedade comercial pelo preço de 25.000,00 € (vinte e cinco mil euros), tendo a “ C..., Lda.” pago aquando da celebração do dito contrato-promessa o montante de 10.000,00 € (dez mil euros), ficando acordado que os restantes 15.000,00 € (quinze mil ouros) seriam pagos em duas prestações, a saber, 5.000,00 € (cinco mil euros) a pagar em 27-12-2010 e os restantes 10.000,00 € (dez mil euros) a pagar aquando da celebração do contrato definitivo.

- (...) a Arguida B..., em representação da “ C..., Lda.” se dirigiu à Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, onde manifestou o propósito de dissolver a referida sociedade.

- Com efeito, a Arguida apresentou uma “Acta de Assembleia-Geral” da “ C..., Lda.”, (...) da qual consta, designadamente: “Aos seis dias do mês de Julho de 2011, pelas 11h00, na sua sede social, reuniu a Assembleia-geral dos sócios da sociedade “ C..., Lda., supra identificada, com a seguinte ordem do dia: 1. Deliberar sobre a dissolução da sociedade; 2. Deliberar sobre a aprovação de contas e do balanço do exercício final, reportados à data da dissolução, com declaração de liquidação simultânea por inexistência de ativo e de passivo.

Encontrava-se presente a sócia detentora da totalidade do capital social, senhora D. B..., que está em condições de deliberar validamente, titular de uma quota de valor nominal de 5.000,00 € (cinco mil euros), a qual concorda unanimemente em reunir e deliberar, sem a observância de formalidade prévias, nos termos do artigo 54.º do Código das Sociedades Comercias, sobre assuntos constantes da ordem do dia, também por unanimidade acordada (...)”.

- Na sequência da apresentação de tal documento na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, veio a “ C..., Lda.” a ser dissolvida naquele mesmo dia 06 de Julho de 2011, tal como melhor resulta da certidão que se encontra junta (...).

B. Pelo que a arguida/recorrida sabia bem que as declarações que fazia constar no documento não correspondiam à verdade, designadamente no que respeita a inexistência de passivo aquando da respetiva liquidação em 06/07/2011, pelo que não podia ignorar que tal documento era falso.

C. Pois a sociedade de que era gerente, naquela data e ainda atualmente, devia e deve à recorrente até à presente data o montante de 10.000,00 €.

D. Pois, no âmbito de um “Contrato-promessa de trespasse de estabelecimento comercial” celebrado entre a recorrente e a recorrida, esta obrigou-se a liquidar àquela a quantia de 25,000,00 €, da seguinte forma: 10.000,00 € na data da assinatura do contrato em apreço, 5.000,00 € no dia 27 de Dezembro de 2010, 10.000,00 € no dia da celebração do contrato definitivo, com qualquer terceiro.

E. No dia 15 de Junho de 2011, a recorrida, na qualidade de legal representante da sociedade “ C..., Lda.”, celebrou um contrato de trespasse de estabelecimento comercial com um terceiro, a saber, a sociedade E..., Lda.

F. Pelo preço de 35.000,00 €, a ser pago em duas prestações, a saber, uma no dia da assinatura do referido contrato e a segunda no dia 1 de Julho de 2011.
G. O que, de facto, aconteceu.

H. Ou seja, não obstante e recorrida ter-se obrigado perante a recorrente a pagar-lhe os 10.000,00 € ainda em débito aquando da realização de um contrato definitivo, com qualquer terceiro, esta, não só não procedeu ao referido pagamento.

I. Como, rapidamente, diligenciou pelo encerramento e liquidação da sociedade “ C..., Lda.”, 5 dias após a recepção da segunda prestação referente ao contrato mencionado supra, com o único propósito de se furtar ao pagamento da quantia em débito à aqui recorrente.

J. Posto isto, quando a recorrente tomou conhecimento que a recorrida havia concretizado um contrato de trespasse definitivo, na qualidade de legal representante da sociedade “ C..., Lda.”, interpelou-a, de imediato, para proceder ao pagamento da quantia de 10.000,00€, ainda em débito.

K. Contudo, apesar de várias vezes instada para proceder ao pagamento do referido montante, a Recorrida não o fez.

L. Assim, a recorrente viu-se obrigada a lançar mão de uma acção executiva para o efeito, a qual correu termos no Juízo de Execução de Ovar, sob o n.º 3256/11.0 T2OVR.

M. Aquando da diligência de penhora realizada no âmbito do processo supra, o novo explorador do estabelecimento comercial em apreço informou ter efectuado um contrato de trespasse de estabelecimento comercial com a “ C..., Lda.” pelo preço de 35.000,00 €, o qual já havia liquidado na totalidade.

N. Mais, informou ainda ter conhecimento que a “ C..., Lda.” havia encerrado a sua actividade.

O. Posto isto, a recorrente dirigiu-se, de imediato, à Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, onde solicitou uma certidão e constatou a veracidade daquela informação.

P. Assim, não restam dúvidas que a recorrida com o seu comportamento, isto é, ao apresentar a referida Acta de Assembleia-Geral com aquelas declarações que sabia serem falsas, pretendeu convencer o Conservador do Registo Comercial de Aveiro de que, àquela data, a “ C..., Lda.” não tinha dívidas, visando, como conseguiu, a dissolução da dita sociedade, subtraindo-a, assim, ao pagamento da dívida à aqui recorrente, não ignorando que, assim, iria causar prejuízo a esta última.

Q. Mais, a recorrida sabia que, dessa forma, obtinha para si um benefício ilegítimo a que não tinha direito.

R. Isto é, a recorrida não poderia portanto, deixar de prever e querer o benefício que advinha da dissolução.

S. Agiu ainda a arguida de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta atentava contra a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.

T. Posto isto, não restam dúvidas que, efectivamente, se encontram preenchidos os elementos constitutivos do crime que é imputado à arguida/recorrida, a saber, falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, als. a e e), do Código Penal.

U. Mais, os factos provados em sede de “Debate Instrutório” preenchem também o requisito subjectivo do tipo legal de crime em apreço.

V. A citada norma indica como elemento do tipo subjectivo a intenção por parte do agente de “causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.

W. “Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do ato de falsificação ou do ato de utilização do documento falsificado”.

X. O bem jurídico tutelado/protegido pelo crime de falsificação de documentos é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, ou seja, o valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados na sua “qualificativa” – n.º 3 do preceito.

Y. O dolo específico, traduzido na intenção de o agente causar prejuízo a outra pessoa ou de obter para si um benefício ilegítimo, não altera o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação, acima mencionado.

Z. Como refere Helena Moniz «O facto de o agente ter de actuar com esta específica intenção não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico probatório.

AA. Não constitui objecto de protecção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos, mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental.»

BB. De facto o crime de falsificação de documentos é um crime intencional, terminologia associada à existência de um dolo específico enquanto particular intenção do agente, definida pelo tipo, quando da realização do mesmo, para além da mera existência de um dolo genérico, como mero conhecimento e vontade de realização do tipo.

CC. No caso concreto, essa especial intenção concretiza-se no facto de a recorrida saber que, dessa forma, obtinha para si um benefício ilegítimo a que não tinha direito.

DD. Ademais, a recorrida agiu livre, voluntária e conscientemente ao apresentar o documento em apreço na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, nos termos supra referidos.

EE. O que fez com vista a criar um documento a que fosse atribuída fé pública.

FF. Sabendo que o que declarava e fazia constar no mesmo era juridicamente relevante e não correspondia à verdade.

GG. Logrando assim inscrever no registo e tornar pública a dissolução da sociedade e inexistência de ativo e passivo e levar à extinção da sociedade “ C... Lda.”, enquanto pessoa colectiva.

HH. O crime de falsificação de documentos constitui um crime de perigo, ou seja, após a falsificação documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste.

II. A confiança pública e a fé pública foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo.

JJ. Trata-se de um crime de perigo abstracto, (o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador) pois como se alude no Comentário Conimbricense “… para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo (de violação do bem jurídico); basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual.”

KK. É também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado, considerando os interesses que o tipo legal visa proteger.

LL. Mas se considerarmos a actividade do agente, isto é, o acto de falsificar o documento, podemos considerar que se trata de um crime material de resultado.

MM. Assim, ao nível do tipo objectivo, o documento é falso quando não corresponde à realidade, como ocorre com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica).

NN. Na falsificação intelectual, a declaração é conforme com a vontade, todavia contra a verdade dos factos – contra a vontade real – como ensina Helena Moniz, in O crime de Falsificação de Documentos.

OO. Na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um benefício (neste sentido, Helena Moniz).

PP. Consequentemente, “a mentira” inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que “a declaração corporizada em escrito…”, seja “… idónea para provar facto juridicamente relevante…”, como resulta do teor dos art.ºs 255.º, al. a) e 256.º, n.º 1, al. d), do Código Penal.

QQ. No caso vertente, a recorrida, em representação da “ C..., Lda.”, dirigiu-se à Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, onde manifestou o propósito de dissolver a referida sociedade.

RR. Para o efeito, apresentou uma Acta de Assembleia-Geral da qual consta, designadamente, “aprovar os documentos de prestação de contas da gerência, reportados à presente data, (...) nos quais se vislumbra a inexistência de ativo e (...) assim como a declaração de encerramento da liquidação por inexistência de ativo e passivo.”

SS. Resulta, pois, da matéria de facto provada que a arguida declarou perante o Conservador a existência de um facto – a inexistência de activo e passivo – que não correspondia à verdade.

TT. Assim, através dessa declaração e à luz do que dispõe o Código das Sociedades Comerciais no art.º 160.º, n.º 2, foi-lhe possível extinguir a sociedade comercial, o que fez.

UU. Em concreto, a relevância jurídica resulta da própria lei: o acto permitiu uma alteração no mundo do Direito, traduzida na extinção de uma pessoa colectiva com o consequente benefício, traduzido no próprio encerramento, gerador de aparência perante terceiros de uma realidade diferente da existente, susceptível de gerar inacção daqueles; acrescida da cessação das responsabilidades da arguida/recorrida enquanto gerente; e impediu que terceiros pudessem requerer a insolvência da sociedade, o que teria consequências directas para a sua pessoa.

VV. E conclui-se que a influência de um acto destes no mundo do Direito é de tal ordem, que a simples sociedade, quando havia património e dívidas por cobrar, se traduziu num benefício que, de outra forma não lograria e, logo, injusta e legalmente não tutelada.

WW. De notar que o art.º 1.º, n.º 1 do Código de Registo Comercial dispõe que “O registo comercial destina-se a dar publicidade à situação jurídica dos comerciantes individuais, das sociedades comerciais, das sociedades civis sob forma comercial e dos estabelecimentos individuais de responsabilidade limitada, tendo em vista a
segurança do comércio jurídico.”

XX. Em suma, a declaração inverídica feita pela arguida/recorrida ao Conservador é susceptível de integrar a prática de um crime de falsificação de documento, do encimado art.º 256.º.

YY. Por último, resultaram provados factos susceptíveis de revelar o elemento subjectivo do tipo de falsificação de documento: a intenção de causar prejuízo a outra pessoas ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.

ZZ. Aliás, nem sequer se descortina com que outra intenção poderá ter agido a arguida/recorrida que não seja a de conseguir o «benefício ilegítimo».

Terminou pedindo que a decisão recorrida seja revogada, substituindo-se por outra que determine a submissão da arguida a julgamento pela prática do assacado crime de falsificação de documento.

1.5. Notificados para contra-alegarem, fizeram-no o Ministério Público e a arguida, pedindo ambos a improcedência do recurso e concluindo, respectivamente [fls. 315 e 321/2], nos termos seguintes:

(o Ministério Público)

A. A recorrente reproduz integralmente nas conclusões (?) o teor dos fundamentos (?) do recurso pelo que deverá a mesma ser notificada nos termos previstos pelo art.º 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

B. A declaração inverídica feita pela arguida não é susceptível de integrar a prática de um crime de falsificação, do art.º 256.º, do Código Penal, uma vez que o documento que a corporiza não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado.

C. Não se indiciam factos susceptíveis de revelar o elemento subjectivo do tipo falsificação de documente, a saber, a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.

(a arguida)

A. Para fundamentar o recurso interposto, a assistente alega que o despacho recorrido devia ter considerado por verificados os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito imputado à ora recorrida.

B. Na verdade, tenta a recorrente demonstrar que, afinal, o documento é falso quando não corresponde à realidade, e que na falsidade em documento se integram os casos em que se presta uma declaração de facto falso.

C. Acresce, ainda, que a recorrente refere falsamente que o processo n.º 3256/11.0 T2OVR, que correu termos no Juízo de Execução de Ovar; visava a cobrança dos € 10.000,00 a que alegadamente tinha direito.

D. Dado que a execução visou a cobrança dos 5.000,00 € referidos no contrato-promessa de trespasse, com a indicação de pagamento a 21 de Dezembro de 2010.

E. Ora, não lhe assiste razão uma vez que, contrariamente ao por si alegado se extrai de forma clarividente a certeza de que a recorrida não praticou o crime por que vinha acusada.

F. Tanto mais que, e como certeiramente precisou a decisão recorrida, “Só é legítimo ao Estado submeter alguém a julgamento pela prática de um crime havendo motivos suficientemente fortes para tal, motivos que justifiquem pois a ida de alguém a julgamento e que, funcionem quase como uma garantia de que, seguramente, face às provas que poderão ser reproduzidas e analisadas em audiência de julgamento será condenado embora, tal possa não acontecer. Assim há que ter em conta que, está vedado ao Juiz submeter uma pessoa a um julgamento imputando-lhe factos sobre os quais, findo o inquérito ou a instrução, subsistam duvidas razoáveis porque inexistem indícios suficientes da prática do ilícito como a lei o formula.”

G. Ora, dos factos conhecidos e assumidos pela arguida, não é possível subsumir os mesmos à norma constante no art.º 256.º em causa, e, daí, resultar inviável a conclusão de que a mesma se institui agente desse ilícito.

H. Ademais, a jurisprudência tem sido condizente dizendo que se existirem (o que no caso não se sabe ser verdade) “… declarações inverídicas prestadas pelos arguidos não põem em perigo a segurança jurídica e probatória que o documento, pela sua natureza a característica, está destinado a projectar. A escritura pública de dissolução da sociedade enquanto documento autêntico faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo notário, assim como dos factos que neles são atestados com base na percepção deste (art.º 371.º do Código Civil). As declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo, nem bens a partilhar, são da responsabilidade dos arguidos não representando a escritura prova plena quanto a esses factos”, in Ac. da Relação de Coimbra, de 12 de Julho de 2011, proferido no âmbito do processo n.º 1465/08. 8 TALRA.C1.

I. Pelo que, à acta não pode ser atribuído o valor jurídico pretendido pela recorrente.

J. Pois, “… nem a dissolução nem a liquidação nem mesmo a partilha podem obstar a que o credor superveniente possa reclamar o seu crédito: encerrada a liquidação e extinta a sociedade os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação – art.º 1020.º do Código Civil.”

K. Do que vai dito, extrai-se a conclusão de que a punição constante do art.º 256.º do Código Penal visa proteger um bem jurídico que não é o que a recorrente aponta, dado que não é a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos que está em causa resultando na inexistência de qualquer dano.

L. Por último refira-se que não resultaram provado factos susceptíveis de revelar o elemento subjectivo do tipo – falsificação de documento –, a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo.

1.6. Proferido despacho admitindo o recurso [fls. 323], cumpridas as formalidades devidas, remeteram-se os autos para este Tribunal ad quem.

1.7. Aqui, o Ex.mo Procurador-geral Adjunto emitiu parecer [fls. 333/335] conducente a idêntica improcedência do mesmo.

1.8. Observada a notificação a que alude o art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, colhidos os vistos, realizada a conferência, cumpre decidir.


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II. Fundamentação.

2.1. É do seguinte teor o despacho de não pronúncia sob recurso:

«A fls. 148 e ss., o Ministério Público acusou B..., divorciada, empregada de balcão, nascida a 07-05-1976, filha de (...) e de (...), natural de (...), Porto e residente na (...), Aveiro, imputando‑lhe a prática de um crime de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Código Penal.

Não se conformando com a acusação deduzida, veio a Arguida requerer a abertura de instrução, declarando que não cometeu o crime de que é acusada.

Para tanto, e em suma, alega que em 10 de Agosto de 2010, F..., sócio gerente da sociedade comercial por quotas “ C..., Lda.” e a sociedade “ A...” celebraram um contrato promessa relativo ao trespasse de um estabelecimento comercial denominado “ D...”, instalado e a funcionar na rua (...), n.º 28 – Aveiro, na condição de adquirir os direitos e obrigações sobre o imóvel supostamente arrendado à “ A..., Lda.”.

No entanto, a sociedade “ A..., Lda.” não tinha legitimidade para outorgar tal contrato, por saber que não tinha na sua disponibilidade o imóvel.

Nessa medida, entende que não poderia haver passivo a liquidar para com a sociedade “ A..., Lda.”, devido ao facto de o contrato promessa de trespasse ser ilícito por inexistência do direito do arrendatário.

Alega ainda que era constante a presença de fornecedores e agentes de execução que procuravam obter o recebimento de quantias que haviam ficado por pagar pela “ A..., Lda.”.


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Foi requerida a inquirição de sete testemunhas.

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Procedeu-se à inquirição das testemunhas arroladas no requerimento de abertura de instrução, à excepção de F..., pelos motivos exarados no despacho de fls. 262.

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Realizou-se debate instrutório nos termos dos art.ºs 297.º e ss. do Código de Processo Penal (CPP).

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O Tribunal é o competente.

Inexistem nulidades ou questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer.


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Cumpre proferir decisão instrutória, nos termos do art.º 307.º e ss. do CPP.

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A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (cf. artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), com base na prova recolhida em sede de inquérito e de instrução.

Impõe-se, pois, averiguar se os elementos probatórios recolhidos nessa sede consubstanciam, ou não, indícios suficientes da prática pela Arguida do crime que lhe é imputado tendo presente que, de harmonia com o preceituado no artigo 283.º, n.º 2, do mesmo diploma, constituem indícios suficientes aqueles de que resulta uma possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.

A suficiência de tais indícios tem de ser apreciada em função da natureza preparatória ou instrumental da instrução em relação à fase de julgamento.

Dispõe o art.º 308.º do Código de Processo Penal que «se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos (...)».

O conceito de “indícios suficientes” utilizado na acusação e na pronúncia tem o mesmo significado, sendo certo que, na instrução, a entidade que formulará tal juízo, necessariamente um Juiz de Direito, encontra-se totalmente desligada do processo investigatório e da dedução da acusação, pelo que reúne, objectivamente, condições de imparcialidade e distanciamento face à decisão de acusar.

Por outro lado, ao existir na instrução, pelo menos, uma fase contraditória, os indícios carreados para os autos são sujeitos a uma crítica anteriormente inexistente, pelo que, a subsistirem, adquirem uma maior consistência e credibilidade. Só é legítimo ao Estado submeter alguém a julgamento pela prática de um crime havendo motivos suficientemente fortes para tal, motivos que justifiquem pois a ida de alguém a julgamento e que, funcionem quase como uma garantia de que, seguramente, face às provas que poderão ser reproduzidas e analisadas em audiência de julgamento, será condenado embora, tal possa não acontecer.

Assim há que ter em conta que, está vedado ao Juiz submeter uma pessoa a julgamento imputando-lhe factos sobre os quais, findo o inquérito ou a instrução, subsistam dúvidas razoáveis porque inexistem indícios suficientes da prática do ilícito como a lei o fórmula.

Como se escreve no Ac. TC n.º 439/2002, «se o Tribunal que pronunciar não demonstrar que ultrapassou as dúvidas sobre uma objectiva possibilidade de condenação através de um juízo probabilístico apoiado nos factos constantes da acusação, estará a enfraquecer intensamente de conteúdo a garantia processual, suportada pelo contraditório, consistente em poder infirmar a sustentabilidade da acusação e anulará, na prática, a possibilidade de o arguido impedir a sua submissão a julgamento».

Concretizando.

Da conjugação dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de instrução, dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de inquérito, dos documentos juntos aos autos, e da posição assumida pela Arguida no seu requerimento de abertura de instrução, resulta indiciado que em 10 de Agosto de 2010, a referida “ C... Lda.” e a sociedade “ A..., Lda.”, aqui denunciante, celebraram entre si um contrato-promessa, cuja cópia se encontra a fls. 7 e seguintes dos autos, relativo ao trespasse de um estabelecimento comercial denominado “ D...”, sito no (...), n.º 28, em Aveiro, pertencente a esta última sociedade comercial, pelo preço de € 25.000 (vinte e cinco mil euros), tendo a “ C... Lda.” pago, aquando da celebração do dito contrato-promessa, o montante de € 10.000 (dez mil euros), ficando acordado que os restantes € 15.000 (quinze mil euros) seriam pagos em duas prestações, a saber, € 5.000 (cinco mil euros) a pagar em 27-12-2010 e os restantes € 10.000 (dez mil euros) a pagar aquando da celebração do contrato definitivo.

Dúvidas também não restam que a Arguida B..., em representação da “ C... Lda.”, se dirigiu à Conservatória de Registo Comercial de Aveiro, onde manifestou o propósito de dissolver a referida sociedade.

Com efeito, a Arguida apresentou uma “Acta de Assembleia-Geral” da “ C... Lda.”, cuja cópia se encontra a fls. 145 e 146 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, da qual consta, designadamente: “Aos seis dias do mês de Julho de 2011, pelas 11h00, na sua sede social, reuniu a Assembleia-geral dos sócios da sociedade “ C..., Lda.”, supra identificada, com a seguinte ordem do dia: 1. Deliberar sobre a dissolução da sociedade; 2. Deliberar sobre a aprovação de contas e do balanço do exercício final, reportados à data da dissolução, com declaração de liquidação simultânea por inexistência de activo e de passivo. Encontrava-se presente a sócia detentora da totalidade do capital social, senhora D.ª B..., que está em condições de deliberar validamente, titular de uma quota de valor nominal de € 5.000 (cinco mil euros), a qual concorda unanimemente em reunir e deliberar, sem a observância de formalidades prévias, nos termos do Artigo 54.º do Código das Sociedades Comerciais, sobre assuntos constantes da ordem do dia, também por unanimidade acordada (…)”.

Na sequência da apresentação de tal documento na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, veio a “ C...Lda.” a ser dissolvida naquele mesmo dia 06 de Julho de 2011, tal como melhor resulta da certidão que se encontra junta a fls. 137 a 140 dos autos.

Assente esta factualidade, que não foi colocada em crise pela Arguida, e que se encontra sustentada nos documentos acima referidos, importa aferir da idoneidade da mesma para integrar os elementos consubstanciadores do crime que é imputado à Arguida, a saber, falsificação de documento, p. e p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alíneas a) e e), do Código Penal.

Dispõe este artigo, e no que ora nos interessa, que “1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime: a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo; (…) e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores (…) é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

O tipo de crime de falsificação de documentos visa proteger o bem jurídico da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental[1], atentas as duas funções que o documento pode ter, a “função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana” e a “função de garantia, pois cada autor documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs”[2].

Assim, e atenta a configuração da norma típica incriminadora do artigo 256.º do Código Penal, o crime de falsificação de documentos é um crime de perigo abstracto, pois após a falsificação do documento ainda não existe a violação do bem jurídico, mas o perigo presumido de violação deste.

Importa, antes de mais, delimitar o conceito de documento para efeitos de incriminação pelo crime de falsidade de documento, enquanto objecto de acção deste, ou seja, o meio por que é cometido. Assim, a lei penal define o conceito de documento na alínea a) do artigo 255º do Código Penal como “a declaração, corporizada em escrito ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da omissão, quer posteriormente (…)”.

Pela análise desta norma, constata-se a intrínseca importância do documento no tráfico jurídico probatório, que decorre essencialmente da circunstância de servir para conservar e reproduzir uma determinada representação de um facto fixado na presença deste e assim objectivado[3], ao qual se atribui força probatória, quer seja formal, referente à autenticidade do documento, quer seja material, referente ao seu conteúdo, à veracidade das declarações nele exaradas.

No caso em apreço, estamos perante um documento escrito, sendo que, para a definição de escrito, nos tenhamos de socorrer da concepção constante do artigo 363.º do Código Civil, que elenca as modalidades dos documentos escritos.

São documentos autênticos, nos termos da primeira parte da norma contida no n.º 2 do artigo 363.º do Código Civil, “os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública”.

São documentos autenticados, na formulação do n.º 3 da referida norma, “os documentos particulares (…) quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais” e são documentos particulares todos os demais, de acordo com a norma contida na segunda parte do n.º 2 do artigo 363.º do Código Civil.

No entanto, a lei civil reserva a força probatória plena para os documentos autênticos. Com efeito, os documentos autênticos e autenticados fazem prova plena dos factos neles atestados com base na percepção da entidade documentadora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 371.º e no artigo 377.º, ambos do Código Civil, sendo que os documentos particulares cuja autoria seja reconhecida presencialmente, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo de arguição e prova de falsidade daquele, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil.

Certo é que, em função das definições dadas, a noção de documento em direito civil diverge da noção de documento em direito penal porquanto, no direito civil, documento é o objecto em que se incorpora uma declaração, ao passo que, em direito penal, “o documento é a própria declaração, declaração esta que tem de ser idónea a provar facto juridicamente relevante”.

A declaração é a expressão de um pensamento humano, de natureza cognoscitiva que, como acto, pode ser de vontade, quando o declarante prossegue um dado efeito que se traduz na criação, modificação ou extinção de uma relação jurídica, de um direito subjectivo ou de um status, ou pode ser de ciência, quando o declarante manifesta uma cognição, representação ou convencimento próprio em face de uma determinada situação[4].

Assim, o objecto do crime de falsificação é o documento enquanto meio de prova de facto juridicamente relevante, que será “um facto que, por si só ou ligado a outros dá origem a relações jurídicas, as extingue ou altera”[5].

Aqui chegados, há que evidenciar que a Arguida, ao requerer o registo de tal dissolução (meramente decorrente de uma obrigação legal – art.º 160.º-1 do C. Sociedades Comerciais) não incorreu em qualquer (nova) declaração falsa, mas apenas a formulação de um pedido (neste caso meramente verbal) tendo por base a anterior deliberação que, de resto, pode até ser formulado por qualquer pessoa (cfr. Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução das Entidades Comerciais).

Nessa senda, não podemos deixar de evidenciar que a jurisprudência dos nossos tribunais superiores é vasta e unânime ao determinar que a declaração inverídica perante notário, no acto de celebração de escritura pública de dissolução da sociedade, segundo a qual esta não tinha passivo a liquidar, não é susceptível de constituir o crime de falsificação de documento (Ac. Relação do Porto de 14/04/2010, Proc. 5316/04.4 TDPRT – Artur Oliveira; Ac. Relação do Porto de 21/04/2010, Proc. 4307/06.5 TDPRT-A.P1 – Melo Lima; Ac. Relação do Porto de 04/05/2011, Proc. 663/07.6 TAFAF.P1 – Lígia Figueiredo; Ac. Relação de Coimbra de 12/07/2011 Proc. 1465/08.8 TALRA.C1 – Alice Santos e Ac. Relação de Lisboa de 19/10/2010, Proc. 2630/07.0 TMSNT Luís Espírito Santo, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Argumentam, para tanto, que na falsificação intelectual ou ideológica é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa.

Nessa medida, a alteração dá-se aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que foi realizada.

Ao invés, a escritura pública de dissolução da sociedade é um documento que não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado: É um documento exacto (regular) que contém uma declaração inverídica.

Ora, in casu, a Arguida declarou na acta da assembleia-geral, que deliberou pela dissolução da sociedade, que esta não tinha qualquer passivo a liquidar. E foi isso que o funcionário do registo comercial fez constar do documento. Portanto, o documento em si não apresenta qualquer mácula: reproduz fielmente o acto.

Por outro lado, arrazoam aqueles arestos que a assembleia e a acta que narra a deliberação tomada tem por objectivo a dissolução da sociedade, pelo que não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito que abala ou anula essa sua finalidade.

O elemento alterado – (in) existência de dívidas/passivo – não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projectar.

Com efeito, a acta não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar, pelo que não é meio de prova susceptível de ser usado para excepcionar eventuais débitos.

Assim, nem a dissolução nem a liquidação nem mesmo a partilha podem obstar a que o credor superveniente possa reclamar o seu crédito: encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação – art.º 1020.º do C. Civil.

Nesta norma (e noutras como o art.º 160.º-2, 162.º, 163.º e 164.º do C. Sociedades Comerciais, onde se ressalvam as acções pendentes ou de passivo ou activo supervenientes) manifesta-se o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves causados por uma partilha precipitada.

Por isso, pode-se afirmar que perante terceiros, especialmente os credores sociais, quer a decisão de dissolução, quer a de encerramento da liquidação é res inter alios acta e não lhes pode ser oponível, podendo estes, mesmo para além da liquidação e extinção da sociedade, exigir judicialmente os seus créditos.

Conclui-se, assim, que o bem jurídico protegido pela norma ínsita no artigo 256.º do Código Penal (a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos) não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina.

Pelo exposto, considerando quer a inexistência, no caso, de declaração falsa no sentido apontado no libelo acusatório, quer a irrelevância jurídica – no sentido do agente actuar intencionalmente com o propósito de causar prejuízo ao credor – da alegada declaração de inexistência de dívidas (por dela não decorrer, como se viu, a impossibilidade de satisfação e/ou reclamação judicial do crédito nem a cessação da obrigação por via da extinção da sociedade), e tendo em mente que a pronúncia ou não pronúncia do arguido no final da instrução depende, nos termos do art.º 308.º, n.º 1, do CPP, da existência ou não de indícios suficientes de se verificarem os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, não se pode concluir estarem reunidos os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, antes apontando os indícios para a forte probabilidade de, em julgamento, vir a Arguida a ser absolvida da prática do crime que lhe foi imputado na acusação deduzida.

Em conclusão, impõe‑se a não pronúncia da Arguida.


*

Nestes termos, e pelos argumentos acima invocados, decido não pronunciar a Arguida B....

*

Notifique.

*

Pedido de indemnização civil:

Em face do despacho que antecede e ponderando o disposto nos art.ºs 71.º e ss. do C.P.P. e art.º 287.º al. e) do C.P.C., declaro extinta a instância cível por impossibilidade superveniente da lide.

Notifique.

Custas a cargo da demandante – art.º 446.º do CPC.


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Oportunamente, arquive.»

2.2. Como se mostra por demais consabido, o âmbito do recurso é delimitado através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [cfr. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, pág. 335, bem como a jurisprudência uniforme do STJ - cfr. Ac. de 28 de Abril de 1999, in CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência aí citada -], mas isto sem prejuízo todavia das que assumam carácter de conhecimento oficioso.

In casu, porque não intercede qualquer fundamento para a imposta intervenção oficiosa, atentas as conclusões apresentadas pela assistente [controverteu adequadamente o Ministério Público da respectiva “concisão”, ut art.º 412.º, n.º 1, do Código Processo Penal, e do convite à recorrente no sentido de sanar o vício, aqui conforme subsequente art.º 417.º, n.º 3. Todavia, sem menosprezarmos que a fundamentação da peça recursiva se traduziu em 60 art.ºs depois quase “transpostos”, à guisa de conclusões, para 60 letras, porque se mostra em todo o caso perfeitamente delimitado o campo de discórdia que se pretende submeter à ponderação deste Tribunal, dispensaremos do sugerido convite – a propósito, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de processo Penal, UCE, pág. 1132 -], thema decidendum é o de aquilatar se dos autos emerge fundamento conducente à pronúncia da arguida, pois que indiciado se mostrará ser agente do propalado crime de falsificação de documento.

2.3. Dispõe o art.º 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.

Por sua vez, nos termos do art.º 283.º, n.º 2, do mesmo diploma adjectivo, Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Vale pois por dizer que, se no que concerne à condenação, em julgamento, é exigível a “prova”, rectius a convicção plena e não a simples admissão de maior probabilidade, a “certeza” dos factos, que não se concilia com a reserva da verdade contrária [O princípio de presunção de inocência constitui um princípio de prova directamente vinculante, que protege e garante à pessoa acusada ‘que não será julgada culpada enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma actividade probatória inequívoca’], já, ao nível, da acusação quanto da pronúncia, de acordo com os normativos sob referência, é bastante a indiciação suficiente, isto é, a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança [Num outro nível de exigência, que dir-se-ia praticamente similar ao grau de exigência que deve enformar a iuris dictio por sentença, a “forte indiciação” a que alude o art.º 202.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, no âmbito da prisão preventiva].

Mas, pergunta-se, na prática, em que termos se cumprirá este juízo de razoabilidade?
Em conformidade, entende-se, com a maior ou menor probabilidade da verificação do facto: ocorrerá suficiência, verificada que se mostre a maior probabilidade de verificação; ao invés, a indiciação mostrar-se-á insuficiente face a uma menor probabilidade de verificação do facto.

Em concreto: qual o grau de probabilidade de, em julgamento, vir a ser firmada a convicção da prática dos factos acusados – mais concretamente vir a ser considerado provado que a arguida recorrida praticou factos constitutivos do mencionado crime de falsificação de documento?

2.4. Pese embora a alegação da recorrente no sentido em que dos autos emergiriam suficientemente indiciados “factos” conducentes ao reclamado juízo pronunciatório da arguida, mormente do “prejuízo” que a conduta da mesma lhe determinou, verdade é que, com o despacho recorrido, entendemos que não se mostra curial indagar de tal verificação, pois a questão redunda, preliminarmente, em que sequer estamos perante um “documento” nos termos e para os efeitos de incriminação de acordo com o falado art.º 256.º, por uma sua eventual “falsificação”.

O despacho recorrido sustenta-se em jurisprudência pacífica ao nível dos nossos Tribunais da Relação, que colige, e relativamente aos quais nada temos em contrapor. Assim:

a) Escreveu, por exemplo, a 14 de Janeiro de 2010, o Ex.mo Desembargador Artur Oliveira, no âmbito do processo n.º 5316/04.4 TDPRT.P1:

«… 11. ii. Acresce que as declarações falsas prestadas pelos outorgantes ao notário no acto de formalização de uma escritura pública não são susceptíveis de integrar o crime de Falsificação de documento do artigo 256.º, do Código Penal.

12. Já houve tempos em que a Lei punia quem induzisse em erro um funcionário, levando-o a fazer constar de documento com fé pública um facto falso. O artigo 233.º, n.º 2, do Código Penal na versão anterior a 1995, punia “quem, induzindo em erro um funcionário, o levar a fazer constar de documento ou objecto equiparável, a que a lei atribui fé pública, algum facto que não é verdadeiro ou a omitir facto juridicamente relevante...”. Já então, não era o facto de se proferir uma declaração falsa que era penalizado, mas sim a indução em erro do funcionário.

[“Puniam-se aí os factos falsos que o funcionário era levado a omitir ou a fazer constar de documento da sua competência por meio de erro (…). Era um crime de engano de funcionário ou de convencimento erróneo. O agente do crime era outro, que não o funcionário, embora se mantivesse a incidência no plano documental que continuava a ser um instrumento público ou equiparável dirigido à protecção da própria verdade do documento público, que tem uma especial força probatória (…)” - M. Miguez Garcia, Direito penal - Parte especial, § 27º (crimes de falsificação documental), Porto, actualização relativa a Outubro de 2009].

13. Porém, o Código Penal de 1995 não incluiu na falsificação de documentos a chamada falsidade, falsificação indirecta ou falsa documentação indirecta.

[“Não existe, pois, actualmente, no sistema jurídico português nenhum tipo de crime que puna o terceiro que se serve do funcionário de boa fé para inserir no documento elementos inexactos ou falsos” - Helena Moniz, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo II, pág. 679 e Crime de falsificação de documentos, pág. 198. Tb. Figueiredo Dias/Costa Andrade, “O legislador de 1982 optou pela descriminalização do crime patrimonial de simulação”, CJ VII, tomo 3, pág. 21 e ss. Na jurisprudência destaque para o Acórdão desta Relação de 30.11.1994, processo 9410768, assim sumariado: “I - Não constitui falsificação de documento a declaração de aumento de capital de sociedade, com entradas em dinheiro, feita ao notário e exarada em escritura pública, pelas respectivas sócias, sem que tenha havido tais entradas; II - As falsas declarações prestadas ao notário constituem, in casu, simulação, não punível face ao actual Código Penal” (disponível in www.dgsi.pt); e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.11.1983, BMJ n.º 331, pág. 312: “I – O Código Penal de 1886 configurava os crimes de simulação e de falsificação como sendo completamente distintos quer no que respeitava aos bens jurídico-penais protegidos quer quanto à factualidade típica. II – O crime de simulação, tal como era previsto no artigo 455.º, do Código Penal de 1886, foi eliminado do Código Penal de 1982, não sendo confundível com o crime de falsificação previsto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, deste novo diploma”].

14. Não pudemos perder de vista que o bem jurídico tutelado pelo crime de Falsificação de documento [artigo 256.º, do Código Penal] é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental. Trata-se de proteger não os documentos em si, nem sequer a fé pública ou a confiança pública que deles emane, mas a força probatória do documento, a segurança e credibilidade dos meios de prova documentais no tráfico jurídico-probatório, a verdade da prova susceptível de resultar do documento [Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, 1999, pág. 680].

15. Compreende-se: numa sociedade como a nossa em que há uma obsessiva documentação dos actos praticados, a prova dos factos apoia-se muito na força e na credibilidade de elementos probatórios documentais.

Por isso, o legislador sente uma especial necessidade de proteger esse potencial probatório associado aos documentos e o particular crédito de que gozam nas relações comuns, criminalizando as condutas que quebram a genuinidade do suporte físico do documento ou viciam a declaração que nele deveria constar.

16. A doutrina e a jurisprudência têm considerado que a previsão incriminatória do artigo 256.º, do Código Penal, engloba tanto a falsidade material [quando o documento é total ou parcialmente forjado ou quando se alteram elementos constantes de um documento já existente - o documento não é genuíno] como a falsidade intelectual [quando o documento é genuíno mas não traduz a verdade por haver uma desconformidade entre a declaração e o que dele consta - o documento é inverídico].

17. Nesta – falsificação intelectual ou ideológica – é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa. A alteração dá-se aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que foi realizada. Esta modalidade de falsificação estará abrangida pela expressão “falsificar ou alterar documento” do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do CP.

18. Ora, não é disto que tratam os factos dados como provados nos autos. Como vimos, os arguidos declararam na escritura pública de dissolução da sociedade que esta não tinha qualquer passivo a liquidar [ponto 2.]. E foi isso que o emitente [ver artigo 255.º, alínea a)] (notário) fez constar do documento. Portanto, o documento em si não apresenta qualquer mácula: reproduz fielmente o acto.

19. Por outro lado, a escritura pública tinha por objectivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito [pontos 3. e 6.] que abala ou anula essa sua finalidade. O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projectar. A escritura pública outorgada não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova susceptível de ser usado para excepcionar eventuais débitos. Portanto, o bem jurídico protegido pela norma do artigo 256.º, do Código Penal [a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos, e em particular, que os outorgantes produziram perante o notário aquelas declarações] não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina.

20. Daí a conclusão segura de que a declaração inverídica feita pelo recorrente ao notário e inserida na escritura pública não é susceptível de integrar a prática de um crime de Falsificação de documento, do artigo 256.º, do Código Penal: o documento não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado. É um documento exacto [regular] que contém uma declaração inverídica.

21. Em síntese:

I. Não se provaram factos susceptíveis de revelar o elemento subjectivo do tipo [Falsificação de documento], a saber, a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um benefício ilegítimo [artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal] – razão pela qual a sentença recorrida será revogada e o recorrente absolvido da prática do crime pelo qual vinha condenado.

II. A escritura pública analisada nos autos não foi sequer objecto de falsificação material nem intelectual, pois reproduz fielmente as declarações prestadas no acto: as declarações inverídicas do recorrente perante o notário no acto da celebração da escritura pública de dissolução de sociedade segundo as quais esta não tinha qualquer passivo a liquidar não são susceptíveis de constituírem o crime da Falsificação de documento do artigo 256.º, do Código Penal.»

b) Sufragou o aresto do mesmo Tribunal do Porto, prolatado em 4 de Maio de 2011, pela Exma. Desembargadora Lígia Figueiredo, no recurso n.º 663/07.6 TAFAF.P1:

«Porém a verdade é que os factos constantes da acusação ainda que ficassem provados nunca permitiriam a condenação do arguido pela prática do crime de falsificação que lhe vinha imputado, porquanto efectivamente não integram os elementos do tipo de tal ilícito.

A acusação imputa aos arguidos a efectivação de uma declaração inexacta, como de facto é, a saber, a declaração da inexistência de passivo, quando na realidade existia um crédito por parte da assistente já reconhecido por sentença transitada em julgado e nessa medida imputou-lhes um crime de falsificação p.p. pelo art.º 256.º n.ºs 1 al. b) e 3 do Código Penal, – fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante.

Os arguidos declararam perante o notário que inexistia passivo, facto que aquela autoridade pública consignou no documento.

Tendo presentes a noção de falsificação material do documento, [3] afastada fica desde logo a integração da conduta dos arguidos em tal quadro, já que duvidas inexistem quanto à genuidade do documento.

Restaria então a hipótese de uma falsificação ideológica ou intelectual consubstanciada na desconformidade entre o documento e a declaração produzida, ou entre a declaração exarada e a realidade [4].

Porém, para que tal ocorresse era necessário que o facto exarado no documento além de falso, fosse também juridicamente relevante. Ora como é sabido a escritura pública de dissolução, enquanto documento autêntico nos termos do art.º 371.º do C Civil, apenas faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo notário, assim como dos factos atestados por com base nas percepções deste.

Daí que como se escreveu no acórdão da Relação do Porto de 19/10/2010, [5] “As declarações emitidas pelos sócios de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens a partilhar – são da mera responsabilidade daqueles, não representando a escritura prova plena quanto a esses factos. Trata-se de uma declaração res inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais.”

Também no ac. desta Relação de 21/4/2010, [6] e partindo do disposto no art.º 1020.º do C. Civil, onde se dispõe que «encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação», se escreveu “Com este normativo, se bem se ajuíza, o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves, causados por uma partilha precipitada, que os próprios sócios provocassem em muitos casos malevolamente. Destarte, com propriedade se poderá dizer que perante terceiros – especialmente credores sociais quer a decisão de dissolução quer a de encerramento da liquidação é res inter alios acta e não lhes pode ser oposta.”

Assim e como bem refere a sentença recorrida, não é verdade que a assistente tenha ficado impedida por via da conduta dos arguidos de obter a cobrança coerciva do seu crédito, o que também não ocorre face ao regime da dissolução e liquidação das sociedades comerciais previsto nos art.ºs 145.º e ss do CSC, maxime art.ºs 162.º e 163.º, pois uma vez que foi declarada também a inexistência de activo, e a acusação quanto a esta declaração não alega que a mesma não corresponda à realidade, nunca será por causa da declaração de inexistência do passivo que a assistente viu frustrada a cobrança do seu crédito.

Como tal, embora a declaração inserida através do notário na escritura seja um facto falso, o mesmo não tem in casu relevância jurídica para a assistente como a acusação imputa aos arguidos pelo que, não sendo nessa medida, um facto juridicamente relevante a actuação daqueles fica de fora do âmbito de alcance da norma do art.º 256.º n.º 1 al. b) do C. Penal.

(…)

___________________
[3] Cfr. Helena Moniz, comentário Conimbricense do código Penal, parte especial Tomo II, Coimbra editora 1999, págs. 682, 683.

[4] Cfr. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Livraria Almedina Coimbra 1993, pág. 229.

[5] Proferido no proc. 2630/07.0 TMSNT-A.L1-7 (relator Luís Espírito Santo) dgsi.pt.

[6] Proferido no proc. 4307/06.5 TDPRT-A.P1, (relator Melo Lima) dgsi.pt.»

c) Sustentou o Ex.mo Desembargador Melo Lima, neste último aresto citado como antecede:

«3.3.1. No que concerne ao crime de falsificação.

(…)
Qual elemento do tipo-de-ilícito exige-se que o facto que falsamente se declara seja facto juridicamente relevante.

O mesmo é dizer: «… a falsidade em documentos é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não de todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica» [8]

Ora: poderá entender-se que, in casu, em que ocorre uma simultaneidade de dissolução e liquidação [9] pudesse ser exigível que o reconhecimento de uma dívida implicasse a exigência do acautelamento do respectivo pagamento? De outro passo: o não reconhecimento da existência de uma dívida poderá determinar, como reclama a Assistente, que esta “não possa satisfazer nem reclamar judicialmente o seu crédito, mercê daquela declaração de dissolução”?

Assim aconteceria, relativamente ao primeiro ponto, ex vi legis, no caso de uma partilha imediata. [Artigo 147.º/1 do Código das Sociedades Comerciais; Artigo 1016.º/1 do Código Civil («É defeso aos liquidatários proceder à partilha de todos os bens sociais enquanto não tiverem sido pagos os credores da sociedade ou consignadas as quantias necessárias»)]

De todo o modo, contrariada a realidade ou simplesmente ignorado o crédito, nem a dissolução, nem a liquidação, nem a partilha realizadas podem obstar a que o credor superveniente possa reclamar o seu crédito:

«Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação» Artigo 1020.º do Código Civil. [10]

Com este normativo, se bem se ajuíza, o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves, causados por uma partilha precipitada, que os próprios sócios provocassem, em muitos caos malevolamente. [11]

Destarte, com propriedade se poderá dizer que perante terceiros – especialmente os credores sociais – quer a decisão de dissolução quer a de encerramento da liquidação é res inter alios acta e não lhes pode ser oposta.

Manifestamente, por isso, falece a razão à Recorrente como ao Exmo. Procurador da República quando identificam a relevância jurídica da suposta declaração falsa de inexistência de dívida, quer com a impossibilidade de satisfação e/ou reclamação judicial do crédito quer com a cessação da obrigação por via da extinção da sociedade (Supra I, 6.1.9): declarada ou não a dívida, o direito do credor perdura e pode ser judicialmente exigível mesmo para além da liquidação e extinção da sociedade – Artigo 1020.º do Código Civil.

Conjugadamente, tomando sob consideração: que a declaração posta sub iudicio recolhe, seja por referência à prova produzida, seja por referência à subjectividade do declarante, foros de credibilidade e razoabilidade quanto à convicção da sua veracidade; que, de todo o modo, a mesma não tem os efeitos jurídicos supostos na acusação/pronúncia; que subsistem dúvidas razoáveis quanto à intencionalidade da dissolução da sociedade (por se apresentar credível a justificação avançada com o desinteresse sobrevindo à morte de um dos três primitivos sócios), resta concluir no sentido da inexistência de indícios quanto à prática do denunciado crime de falsificação.
(…)

[8] HELENA MONIZ, Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial Tomo II, Coimbra Editora, 1999, Artigo 256º § 26.

No mesmo sentido, RAFAEL ESCOBAR JIMÉNEZ: «La mutatio veritatis debe recaer sobre extremos essenciales o capitales del documento, teniendo, en consecuencia, entidad suficiente para incidir negativamente sobre el tráfico jurídico, com virtud de trastocar los efectos normales de las relaciones jurídicas” Código Penal de 1995 (Comentarios y Jurisprudencia) Coordinación editorial: IGNACIO SERRANO BUTRAGUEÑO, Granada 1999, pág. 1596.

[9] Na Escritura de Dissolução sob referência os Arguidos declararam a “sociedade como dissolvida e liquidada para todos os efeitos legais”.

Dela emerge, ainda, a inexistência de fundamento para uma subsequente partilha na justa medida em que “o activo social foi absorvido pelo passivo, sendo assim inexistente o seu património”.[Supra II, 3, 3.1, i. als. c) e d)].

[10] Vide, ainda: Artigo 163.º/1 Código das Sociedades Comerciais.

[11] Com interesse, veja-se Raúl Ventura, Dissolução e Liquidação de Sociedades, Almedina, Coimbra 1987, págs. 469> 490.»

Confortados no expendido, a que nada em contrário aduz a recorrente, ou nós vejamos dever opor-se, mais não resta do que concluir com a decisão recorrida pela inverificação indiciária de factos susceptíveis de imporem a submissão a julgamento da arguida enquanto agente material do falado crime de falsificação de documento.

Na verdade, e como em síntese retorquiu o Ministério Público na 1.ª instância, uma primeira nota se impõe: a denunciada e adquirida actuação da arguida ao requerer o registo (meramente decorrente de uma obrigação legal – art.º 160.º/1, do Código das Sociedades Comerciais) da dissolução que havia sido objecto de deliberação da assembleia geral da sociedade em causa, a 6 de Julho de 2011, não incorreu em qualquer (nova) declaração falsa mas apenas na formulação de um pedido (neste caso meramente verbal) tendo por base a anterior deliberação que, de resto, poderia até ser formulado por qualquer pessoa (cfr. Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução das Entidades Comerciais).

Depois, e ante a aludida jurisprudência, a declaração inverídica perante notário no acto de celebração de escritura pública de dissolução da sociedade, segundo a qual esta não tinha passivo a liquidar, não é susceptível de constituir o crime de falsificação de documento pela primacial razão de que na falsificação intelectual ou ideológica é incorporada, no documento, uma declaração distinta da declaração que foi prestada, e por isso falsa. A alteração surgirá aquando da formação do documento, fazendo-se constar nele uma declaração que não foi produzida ou que é diferente da que é realizada. Ora, a arguida declarou na acta da assembleia-geral que deliberou pela dissolução da sociedade que esta não tinha qualquer passivo a liquidar. E foi isso, e apenas isso mesmo que declarou perante o oficial público e este incorporou na escritura outorgada. Logo, o documento em si não apresenta qualquer mácula: reproduz fielmente o acto.

Por outro lado, a mesma assembleia e a acta que narra a deliberação tomada tinha por objectivo a dissolução da sociedade, e não é a circunstância de conter uma declaração inverídica sobre a existência de um débito que abala ou anula essa sua finalidade. O elemento alterado não tem alcance suficiente para causar dano ou pôr em perigo a segurança jurídica probatória que o documento, pela sua natureza e características, está destinado a projectar. A acta não serve para infirmar a existência de créditos que sobre a sociedade se venham a reclamar: não é meio de prova susceptível de ser usado para excepcionar eventuais débitos.

Com efeito, nem a dissolução nem a liquidação nem mesmo a partilha podem obstar a que o credor superveniente possa reclamar o seu crédito: encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação – art.º 1020.º do Código Civil.

Nesta norma (e noutras como os art.ºs 160.º/2, 162.º, 163.º e 164.º do Código das Sociedades Comerciais, onde se ressalvam as acções pendentes ou de passivo ou activo supervenientes) manifesta-se o interesse do legislador em acautelar os credores sociais, dignos de protecção, que poderiam ficar sujeitos a prejuízos graves causados por uma partilha precipitada que os próprios sócios provocassem em muitos casos malevolamente. Daí que, perante terceiros, especialmente os credores sociais, quer a decisão de dissolução, quer a de encerramento da liquidação é res inter alios acta e não lhes pode ser oponível, podendo estes, mesmo para além da liquidação e extinção da sociedade, exigir judicialmente os seus créditos.

Inexistindo declaração falsa no sentido proposto pela recorrente, e, concedendo, sendo em todo o caso juridicamente irrelevante – no sentido de o agente actuar intencionalmente com o propósito de causar prejuízo ao credor – da alegada declaração de inexistência de dívidas (por dela não decorrer, como se viu, a impossibilidade de satisfação e/ou reclamação judicial do crédito nem a cessação da obrigação por via da extinção da sociedade), a outra pessoas ou ao Estado ou de alcançar para si ou para terceiro um beneficio ilegítimo, mais não cabe do que manter a decisão recorrida.


*

III. Dispositivo.

São termos em que negamos provimento ao recurso interposto.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 4 UCs.

Notifique.


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Brizida Martins (Relator)

Orlando Gonçalves


[1] Apud Helena Moniz, in O crime de falsificação de documentos, Coimbra Editora, 1999, reimpressão, pág. 65.
[2] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 680.
[3] Cfr., neste sentido, Vaz Serra, in Provas, direito probatório material, BMJ n.º 111, pág. 70.

[4] Cfr. Messineo, cit. J. Gonçalves Sampaio, in A prova por documentos particulares na doutrina, na lei e na jurisprudência, Almedina, Coimbra, 1987, pág. 51.

[5] Von Liszt, in Traité de Droit Pénal Allemand, Tome II, parte spéciale, 1913, p. 348, cit. Helena Moniz, ob. cit. pág. 167.