Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
815/11.4TBCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: DANO CORPORAL
TABELA DE INCAPACIDADES
SEGURO
NORMA IMPERATIVA
LIMITES
Data do Acordão: 04/14/2015
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA – COIMBRA – SEC.CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: DEC. LEI Nº 352/2007, DE 23/10; DEC. LEI Nº 146/93, DE 26/04; DECRETO-LEI Nº 10/2009, DE 12.01.
Sumário: I – O Decreto-Lei nº 352/2007, de 23.10, tem carácter imperativo, pelo que as incapacidades no domínio do direito civil passaram a ser obrigatoriamente calculadas de acordo com a sua Tabela II, impedindo que as partes possam fixar livremente formas de cálculo de desvalorização e respectivas percentagens para efeitos de indemnização por dano corporal.

II - As normas do art. 4º, nº 1 do Decreto-Lei nº 146/93, bem como a do art. 5º, nº 2 do Decreto-Lei nº 10/2009, ao estipular coberturas mínimas para o seguro desportivo obrigatório integram normas imperativas, pelo que não podem ser derrogadas ou restringidas por vontade das partes.

III - Uma cláusula de contrato de seguro desportivo em que, para além do mais, se estipula que “se o grau de Invalidez Permanente for inferior a 10%, não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização”, integra uma cláusula limitativa do objecto do contrato, uma vez que com ela pretende a Seguradora exonerar-se da responsabilidade na medida respectiva.

IV - Uma tal cláusula, na medida em que viola normas imperativas, é nula por contrária à lei: art. 280º, nº 1 do CC.

V - Mesmo que se entenda que tal cláusula traduz uma cláusula convencional limitativa da responsabilidade, sempre se imporia a sua nulidade, desta feita por contrária à ordem pública (art. 280º, nº 2 do CC) pois ao limitar a responsabilidade fere o princípio do integral ressarcimento do dano corporal, o qual é não só inerente à responsabilidade civil, mas principalmente ao estabelecimento da obrigatoriedade do contrato de seguro como proteção de danos físico-psíquicos, tidos pela ordem jurídica como invioláveis e tutelados constitucionalmente, independentemente do seu grau ou extensão.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I - HISTÓRICO DO PROCESSO

                1.            M... (de futuro, apenas Autor) instaurou ação contra a G..., Companhia de Seguros (de futuro, apenas Ré) pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 33.000,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e morais que sofreu em consequência de um acidente desportivo, sinistro esse que estava coberto por um contrato de seguro do qual a sua entidade patronal figurava como tomador e sendo o Autor também dele beneficiário.

                A Ré contestou excecionando que parte dos danos não se mostravam cobertos pelo seguro, com o limite do capital seguro e com a exclusão da indemnização. Para além disso, impugnou a factualidade alegada na petição.

                O Autor respondeu às exceções. Para além disso, requereu ainda a ampliação do pedido/causa de pedir e a condenação da Ré como litigante de má-fé.

                A Ré treplicou argumentando contra a pretendida ampliação do pedido e a litigância de má-fé.

                Proferido despacho saneador, instruídos os autos e realizada audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença que condenou a Ré a pagar ao Autor € 23.000,00, acrescidos de juros moratórios.

2.            Inconformada, dela vem a Ré apelar, formulando as seguintes CONCLUSÕES:

...

3.            O Autor contra-alegou e CONCLUIU:

...

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

4.         OS FACTOS [[1]]
...

                5.         O MÉRITO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 635º nº 3 e 4, 639º nº 1, 640º nº 1 e 608º n.º 2, ex vi do art. 663º nº 2, todos do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).

No caso, a questão a decidir concerne com a fixação da indemnização atribuída ao Autor.

5.1.     QUANTUM INDEMNIZATÓRIO

Resulta dos factos provados (que nenhuma das partes põe em crise), que o Autor, no âmbito dum jogo de futebol do campeonato da III divisão nacional, organizado pelas entidades competentes, sofreu uma forte torção do joelho esquerdo, do qual resultou uma rotura do ligamento cruzado anterior e menisco interno desse mesmo joelho.

Na perícia médico-legal a que o Autor foi sujeito no decurso dos autos, a avaliação e valoração dos danos foi efetuada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil (de futuro, apenas referida por TNI), constante do Anexo II ao Decreto-Lei nº 352/2007, de 23.10.

Concluiu-se por um “Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 9 pontos”, incapacidade esta a que o M.mº Juiz atendeu para fixar o quantum indemnizatório.

Na sentença, o M.mº Juiz considerou ainda nula a cláusula do artigo 2º nº 4.4 das cláusulas especiais e particulares do contrato.

A Recorrente sustenta a sua discordância do assim decidido em duas ordens de razões:
· por um lado, que a avaliação corporal do dano deverá ser feita com base na tabela anexa à apólice do contrato de seguro e não de acordo com a TNI.
· por outro lado, pugnando pela validade da cláusula do artigo 2º nº 4.4 do contrato, por a mesma não violar o art. 5º nº 2 do Decreto-Lei nº 10/2009, de 12.01.

5.1.1.     Se a avaliação da incapacidade deve ser efetuada de acordo com a tabela anexa à apólice do contrato de seguro ou com a TNI:

No tocante a invalidez permanente, refere-se no artigo 4º, 1., al. b), ii, das cláusulas gerais do contrato de seguro que “o montante da indemnização será obtido pela aplicação ao valor seguro, da respetiva percentagem de Invalidez Permanente estabelecida na Tabela de Desvalorização que faz parte integrante destas Condições Gerais”.

Nas condições gerais estabelece-se efetivamente uma “Tabela para servir de base ao cálculo das indemnizações devidas por invalidez permanente como consequência de acidente”, descriminando-se, no caso de Invalidez Permanente Parcial diversos tipos de lesões e a atribuição a cada uma delas de uma percentagem.

Logo na altura em que foi notificada do relatório da perícia médico-legal, a ora Recorrente veio reclamar contra o facto de tal perícia ter sido feita exclusivamente com base na TNI e não também com base na tabela de desvalorização anexa à apólice de seguro.

Considerando que tal questão não vinha contemplada na Base Instrutória, foi a reclamação indeferida.

Tal indeferimento não constituiu porém caso julgado formal, atento o disposto no art. 691º nº 3 do anterior CPC (em cuja vigência foi proferido o despacho de indeferimento) e art. 644º nº 3 do atual CPC.

Vejamos então.

É permitida às partes a livre fixação do conteúdo dos contratos, os quais, uma vez firmados, devem ser pontualmente cumpridos: art. 405º e 406º nº 1 do Código Civil (de futuro, apenas CC).

Contudo, essa autonomia da vontade e liberdade contratuais têm limites, não podendo desrespeitar leis imperativas, ou, no dizer do art. 405º nº 1 do CC, elas têm de se conter “dentro dos limites da lei”.

E, como refere Almeida Costa [[2]], tais limites da lei «(…) visam a tutela de interesses das partes — nomeadamente a correcção e a justiça substancial nas suas relações —, ao lado de valores colectivos — como sejam a salvaguarda de princípios de ordem pública e da facilidade e segurança do comércio jurídico. Postula-se modernamente uma concepção de contrato dominada por imperativos éticos e sociais. Sobressai o princípio intervencionista, em particular nos contratos que vão participando do chamado direito social, de que representam exemplos expressivos as relações de trabalho e as de arrendamento rural e urbano, assim como a esfera da defesa do consumidor.».

E, acrescentamos nós, disso é exemplo também o caso dos contratos de seguro, mormente os seguros obrigatórios como é o caso do seguro dito desportivo.

Será que para efeitos de indemnização por dano corporal, as partes podem fixar livremente quais as formas de cálculo de desvalorização e respetivas percentagens? Ou tal está subtraído à sua liberdade contratual?

A resposta é-nos dada pelo Decreto-Lei nº 352/2007, de 23.10, que aprovou a referida TNI e que de forma clara determinou que a avaliação do dano e o cálculo de incapacidades no âmbito do direito civil deixou de estar no domínio da livre disposição e contratação das partes (autonomia privada).

Tal diploma aprovou duas Tabelas, uma para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, e outra para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, estabelecendo a sua aplicação de forma imperativa.

E, como se extrai do seu preâmbulo, foi propósito firme do legislador em distinguir ambas as situações e corrigir os desvirtuamentos que se verificavam até então, ciente de que a anterior TNI vinha sendo «(…) utilizada não apenas no contexto das situações especificamente referidas à avaliação de incapacidade laboral, para a qual foi efectivamente perspectivada, mas também por vezes, e incorrectamente, como tabela de referência noutros domínios do direito (…)».

Aí se refere que, atendendo à complexidade da questão da avaliação médico-legal do dano corporal nos diversos domínios do direito — «Complexidade que resulta também da circunstância de serem necessariamente diferentes os parâmetros de dano a avaliar consoante o domínio do direito em que essa avaliação se processa, face aos distintos princípios jurídicos que os caracterizam».

«Por isso mesmo opta o presente decreto-lei pela publicação de duas tabelas de avaliação de incapacidades, uma destinada a proteger os trabalhadores no domínio particular da sua actividade como tal, isto é, no âmbito do direito laboral, e outra direccionada para a reparação do dano em direito civil.

(…)

Em segundo lugar, como anexo II, o presente decreto-lei introduz na legislação nacional uma Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil, que visa a criação de um instrumento adequado de avaliação neste domínio específico do direito, consubstanciado na aplicação de uma tabela médica com valor indicativo, destinada à avaliação e pontuação das incapacidades resultantes de alterações na integridade psico-física.

                (…)

Com a adopção desta nova tabela visa-se igualmente uma maior precisão jurídica e a salvaguarda da garantia de igualdade dos cidadãos perante a lei, no respeito do princípio de que devem ter avaliação idêntica as sequelas que, sendo idênticas, se repercutem de forma similar nas actividades da vida diária.».

O Decreto-Lei nº 352/2007, em vigor desde 21 de Janeiro de 2008, determinou expressamente que a TNI em direito civil seria aplicável a “todas as peritagens de danos corporais efectuadas após a sua entrada em vigor”: art. 6º nº 1 al. c).

Concluindo: o Decreto-Lei nº 352/2007, de 23.10, tem caráter imperativo, pelo que, as incapacidades no domínio do direito civil passaram a ser obrigatoriamente calculadas de acordo com a sua Tabela II, impedindo que as partes possam fixar livremente formas de cálculo de desvalorização e respetivas percentagens para efeitos de indemnização por dano corporal.

5.1.2.     Da validade da cláusula do artigo 2º nº 4.4. do contrato de seguro:

Estabeleceu-se no nº 4.4 do artigo 2º das cláusulas especiais e particulares, o seguinte: “Caso se verifique uma situação de Invalidez Permanente garantida ao abrigo da “Invalidez Permanente” ou “Morte ou Invalidez Permanente” fica estabelecido que o pagamento da indemnização far-se-á nos seguintes termos: se o grau de Invalidez Permanente for inferior a 10%, não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização;”.

Na sua sentença, o M.mº Juiz considerou nula esta cláusula, nos termos do art. 294º do CC, por a mesma violar a norma imperativa do art. 5º nº 2 do Decreto-Lei nº 10/2009, de 12.01.

Antes de mais, importa averiguar se tal cláusula integra uma cláusula limitativa de responsabilidade ou cláusulas limitativas do objeto do contrato.

«Esta distinção, teoricamente fácil, levanta, em certos casos, especiais dificuldades, revelando-se mesmo, por vezes, ilusória, podendo ser aproveitada como uma forma de contornar ilicitamente restrições impostas às cláusulas limitativas e de exclusão de responsabilidade e, portanto, em fraude à lei: em vez de se excluir a responsabilidade, exclui-se do contrato a obrigação, procurando o devedor, em ambos os casos, o mesmo resultado — furtar-se à obrigação de indemnização…». [[3]]

Ora, analisando a dita cláusula, apesar de aí se dizer que no caso de Invalidez “o pagamento da indemnização far-se-á nos seguintes termos” —— o que nos remeteria para uma cláusula de limitação da responsabilidade do pagamento da indemnização ——, o certo é que não se trata de um “pagamento”, ainda que de valor inferior ao que seria devido em condições normais.

O que se está a dizer é que se exclui, que se afasta a obrigação de indemnizar uma Invalidez Permanente inferior a 10% ou, numa formulação positiva, que o seguro só abrange o risco de Invalidez Permanente de grau superior a 10%.

Nesta perspetiva, já não se trata de uma cláusula limitativa de responsabilidade, mas antes de uma cláusula limitativa do objeto do contrato, «(…) pois não se invoca uma cláusula de irresponsabilidade para fugir ao cumprimento da obrigação, mas para se exonerar da responsabilidade, (…)». [[4]]

Ora, continuando com António Pinto Monteiro, «(…), não se poderá, através de cláusulas limitativas do objecto do contrato, excluir obrigações que sejam impostas por normas imperativas, ou que decorram de exigências de ordem pública, social ou contratual.». [[5]]

Já vimos que em causa está um contrato de seguro obrigatório, atualmente regido pelo Decreto-Lei nº 10/2009, de 12.01, e anteriormente, pelo Decreto-Lei nº 146/93, de 26.04.

Nos termos do Decreto-Lei nº 146/93, depois de se definir o objeto do contrato como a cobertura de “riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva” (art. 1º nº 2), impõe-se ainda no art. 4º nº 1 coberturas mínimas, garantindo “pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial” [al. a)].

Nada referindo a lei sobre percentagens de incapacidade/invalidez, só pode entender-se ser obrigatória a cobertura de uma qualquer percentagem, seja ela de que montante for. [[6]]

Quanto ao Decreto-Lei nº 10/2009, o diploma mantém a cobertura de “riscos de acidentes pessoais inerentes à actividade desportiva” (art. 5º nº 1), bem como as coberturas mínimas de “pagamento de um capital por morte ou invalidez permanente, total ou parcial” [art. 5º nº 2 al. a)].

Tratando-se de imposição de coberturas mínimas, estas disposições do Decreto-Lei nº 146/93 e do 10/2009 integram normas imperativas, significando isso que não podem ser derrogadas ou restringidas por vontade das partes. [[7]]

Na verdade, se é de admitir que nos seguros de responsabilidade civil as partes possam convencionar qual a extensão do dano a atender para efeitos de indemnização, já tal liberdade lhes está arredada no caso dos seguros obrigatórios em que se estipula coberturas mínimas: art. 138º nº 2 e art. 146º nº 3 do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04.

De chamar à colação o art. 6º do Decreto-Lei nº 10/2009 que, de forma incisiva, determina que “As apólices de seguro desportivo não podem conter exclusões que, interpretadas individualmente ou consideradas no seu conjunto, sejam contrárias à natureza da actividade desportiva ou provoquem um esvaziamento do objecto do contrato de seguro”.

Nesta medida, tal como se decidiu na douta sentença em crise, a referida cláusula é nula por contrário à lei: art. 280º nº 1 do CC.

A idêntica solução de nulidade se chegaria mesmo que se entendesse que a cláusula do nº 4.4 do artigo 2º das condições gerais e especiais do contrato integrava antes uma cláusula convencional limitativa da responsabilidade.

Sucede que as cláusulas limitativas de responsabilidade, por acordo prévio das partes, só são admitidas se não importarem “violação de deveres impostos por normas de ordem pública”: arts. 800º nº 2, ex vi do art. 809º nº 1 do CC.

Segundo João Baptista Machado [[8]], «Por ordem pública deve entender-se o conjunto dos princípios fundamentais imanentes ao ordenamento jurídico e formando as traves mestras em que se alicerça a ordem económica e social. Como tais, estes princípios são inderrogáveis pela vontade contratual. A ordem pública representa, assim, o próprio quadro de funcionamento normal das instituições e rege tudo o que o direito entende não dever abandonar à vontade dos indivíduos.

(…)

É que, se a proibição do abuso ou do excesso tem mais frequentemente a ver com o exercício de quaisquer direitos ou poderes, ela não pode deixar de repercutir-se também na invalidade de cláusulas de renúncia a faculdades que o direito reconhece justamente para evitar que algum dos contraentes fique sujeito a sacrifícios irrazoáveis ou inexigíveis.

Nesta categoria cabem os contratos ou as cláusulas «amordaçantes», ou seja, aquelas que limitam desmesuradamente (excessiva e irrazoavelmente) a liberdade pessoal ou económica de uma das partes, contendem com a «liberdade de consciência» das pessoas ou sujeitam estas a sacrifícios de todo irrazoáveis (injustificados) ou inexigíveis, ou a vinculações de todo incompatíveis com uma vontade racional.».

Já atrás referimos a enorme importância social [[9]] [[10]] desempenhada pelos seguros, a pontos tais que a lei vai impondo cada vez mais a obrigatoriedade da celebração de um contrato de seguro para o desempenho de determinadas profissões ou para a prática de certas atividades.

Tal cláusula sempre seria nula por contrária à ordem pública (art. 280º nº 2 do CC) pois ao limitar a responsabilidade fere o princípio do integral ressarcimento do dano corporal, o qual, é não só inerente à responsabilidade civil, mas principalmente ao estabelecimento da obrigatoriedade do contrato de seguro como proteção de danos físico-psíquicos, tidos por toda a ordem jurídica como invioláveis e tutelados constitucionalmente, independentemente do seu grau ou extensão.

5.1.3.     Quantum indemnizatório:

De tudo o que se disse resulta que, contrariamente à pretensão da Recorrente, não se pode fixar a indemnização devida ao Autor tomando por base a percentagem de desvalorização considerada na Tabela constante do contrato, antes se impondo a consideração dos 9 pontos percentuais alcançados na perícia médico-legal.

A medida encontrada para esses 9 pontos percentuais não é sequer posta em crise pela Recorrente e, também a nós, se nos afigura “justo e equitativo” o montante de € 20.000,00 fixado a esse título.

                6.         SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) O Decreto-Lei nº 352/2007, de 23.10, tem caráter imperativo, pelo que, as incapacidades no domínio do direito civil passaram a ser obrigatoriamente calculadas de acordo com a sua Tabela II, impedindo que as partes possam fixar livremente formas de cálculo de desvalorização e respetivas percentagens para efeitos de indemnização por dano corporal.
b) As normas do art. 4º nº 1 do Decreto-Lei nº 146/93, bem como a do art. 5º nº 2 do Decreto-Lei nº 10/2009, ao estipular coberturas mínimas para o seguro desportivo obrigatório integram normas imperativas, pelo que não podem ser derrogadas ou restringidas por vontade das partes.
c) Uma cláusula de contrato de seguro desportivo em que, para além do mais, se estipula que “se o grau de Invalidez Permanente for inferior a 10%, não haverá lugar ao pagamento de qualquer indemnização;”, integra uma cláusula limitativa do objeto do contrato, uma vez que com ela pretende a Seguradora exonerar-se da responsabilidade na medida respetiva.
d) Uma tal cláusula, na medida em que viola normas imperativas, é nula por contrária à lei: art. 280º nº 1 do CC.
e) Mesmo que se entenda que tal cláusula traduz uma cláusula convencional limitativa da responsabilidade, sempre se imporia a sua nulidade, desta feita por contrária à ordem pública (art. 280º nº 2 do CC) pois ao limitar a responsabilidade fere o princípio do integral ressarcimento do dano corporal, o qual, é não só inerente à responsabilidade civil, mas principalmente ao estabelecimento da obrigatoriedade do contrato de seguro como proteção de danos físico-psíquicos, tidos pela ordem jurídica como invioláveis e tutelados constitucionalmente, independentemente do seu grau ou extensão.

                III.      DECISÃO

7.            Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Coimbra em não dar provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente.

                                               Coimbra, 14/04/2015

Relatora, Isabel Silva

1ª Adjunto, Alexandre Reis

2º Adjunto, Jaime Carlos Ferreira

***

[[1]] São os factos constantes da decisão proferida pela primeira instância e que, por não impugnados e por não se verificar qualquer uma das circunstâncias referidas no art. 662º nº 2 do CPC, aqui cumpre manter.
[[2]] In “Direito das Obrigações”, 10ª edição reelaborada, 2006, Almedina, pág. 241/242.
[[3]] António Pinto Monteiro, “Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil”, reimpressão, Almedina, 2003, pág. 120.
[[4]] António Pinto Monteiro, obra citada, pág. 127.
[[5]] Obra citada, pág. 129.
[[6]] Também do art. 146º nº 5 do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16.04 (regime jurídico do contrato de seguro) resulta que, no tocante a seguros obrigatórios, as partes só podem convencionar o âmbito da cobertura no caso de um seguro que não esteja ainda regulamentado, o que não era o caso do presente seguro.

[[7]] Neste sentido, o acórdão desta Relação de Coimbra (TRC), já referido na sentença recorrida, acórdão de 08.09.2009 (processo 165/06.8TBGVA.C1), bem como, da Relação de Guimarães (TRG), acórdão de 15.01.2015 (processo 1266/09.6TBEPS.G1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, sítio a ter em conta nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.

Pronunciando-se sobre a bondade da solução do TRC, em detrimento da encontrada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.03.2009 (processo 08A4004), Margarida Lima Rego, “O Início da Cobertura no Seguro Desportivo”, pág. 224/226, in http://www.mlgts.pt/xms/files/Publicacoes/Artigos/2014/O_Inicio_da_Cobertura_no_Seguro_Desportivo.pdf.
[[8]] In “Obra Dispersa”, vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 1991, pág. 642-644.
No mesmo sentido, António Pinto Monteiro, obra citada, pág. 49 e seguintes.

[[9]] Pode ler-se no preâmbulo do Decreto-Lei nº 10/2009: «Com os seguros obrigatórios atende -se a uma necessidade social fundamental, a de assegurar que o beneficiário chegue, efectivamente, a usufruir da cobertura. É certo que um sistema de seguros não evita o risco, mas previne o perigo de as vítimas não obterem o ressarcimento.».

[[10]] Também Guilherme de Palma Carlos, em intervenção no “II Congresso Nacional de Direito dos Seguros”, Almedina, 2001, pág. 121: «(…), o seguro tem uma função de natureza económico-social, exercida sobre a comunidade, mas que se traduz na garantia da defesa de interesses individuais ou individualizáveis.

O fenómeno do seguro é, inegavelmente, a emanação de um problema de ordem comunitária que incide sobre a própria função do Estado e o condiciona, no sentido de uma efectiva adaptação do ordenamento jurídico à realidade concreta. Assim, e necessariamente, a noção do seguro tem de ser encarada num sentido colectivo, ultrapassada que está, de há muito, a visão meramente privatística.».