Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
323/17.0T8SRT.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
OMISSÕES
INCÊNDIO
NEXO DE CAUSALIDADE
DANOS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
Data do Acordão: 12/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - SERTÃ - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.483, 486, 487, 496, 563, 566 CC, 609 Nº2 CPC, DL Nº 220/2008 DE 12/11, DL Nº 555/99 DE 16/12
Sumário: I - Apesar de não haver na ordem jurídica uma norma especial a impor aos proprietários de um edifício o dever de limpar a fuligem que se vai depositando nas paredes das condutas de saída de fumos das lareiras, quando nelas são queimados combustíveis sólidos, este dever resulta do Regime Jurídico da Segurança Contra Incêndio em Edifícios [Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de Novembro e do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação [Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.

II – Provando-se que o incêndio na fracção de um prédio constituído em propriedade horizontal foi causado por fuligem incandescente que, provinda da conduta de saída de fumos da lareira de uma outra fracção, passou para a conduta de saída de fumos da lareira da fracção onde se deu incêndio, e que o proprietário das fracções, tanto daquela de onde proveio a fuligem como daquela onde se deu o incêndio, não procedeu à limpeza das conditas e que, se o tivessem feito, o incêndio não teria eclodido, é de afirmar o nexo de causalidade entre o acto omitido e os danos resultantes do incêndio.

III – Em acção de indemnização se ainda for possível fixar no incidente de liquidação a quantidade da condenação aplicar-se-á o n.º 2 do artigo 609.º do CPC; se não for possível, aplicar-se-á o n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil..

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 323/17.0T8SRT

Responsabilidade civil

Omissões

Nexo de causalidade

Condenação no que vier a ser liquidado

Indemnização em dinheiro segundo a equidade

Sumário:

I - Apesar de não haver na ordem jurídica uma norma especial a impor aos proprietários de um edifício o dever de limpar a fuligem que se vai depositando nas paredes das condutas de saída de fumos das lareiras, quando nelas são queimados combustíveis sólidos, este dever resulta do Regime Jurídico da Segurança Contra Incêndio em Edifícios [Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de Novembro e do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação [Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.

II – Provando-se que o incêndio na fracção de um prédio constituído em propriedade horizontal foi causado por fuligem incandescente que, provinda da conduta de saída de fumos da lareira de uma outra fracção, passou para a conduta de saída de fumos da lareira da fracção onde se deu incêndio, e que o proprietário das fracções, tanto daquela de onde proveio a fuligem como daquela onde se deu o incêndio, não procedeu à limpeza das conditas e que, se o tivessem feito, o incêndio não teria eclodido, é de afirmar o nexo de causalidade entre o acto omitido e os danos resultantes do incêndio.

III – Em acção de indemnização se ainda for possível fixar no incidente de liquidação a quantidade da condenação aplicar-se-á o n.º 2 do artigo 609.º do CPC; se não for possível, aplicar-se-á o n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil.

Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

N (…) e S (…) residentes (…) Sertã, propuseram, por si e em representação dos seus filhos menores, S (…) e S (…) a presente acção declarativa com processo comum contra C(…) e esposa, F (…) residentes em (…), Suíça, e a Companhia de Seguros (…), SA, com sede na Avenida(…), Lisboa, denominada actualmente Seguradoras (…)S.A., pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 21 636,00, a título de danos patrimoniais, e da quantia de € 10 000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora vincendos, calculados sobre o capital em dívida à taxa civil até efectivo pagamento.

As quantias pedidas destinam-se a ressarcir danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos pelos autores em consequência de um incêndio que eclodiu no dia 18 de Novembro de 2014, na habitação onde residiam.

Os autores imputam aos réus (…), proprietários da fracção onde habitavam aqueles, a responsabilidade pela eclosão do acidente.

A ré T (…) foi demandada com a alegação de que os primeiros réus, na qualidade de proprietários do imóvel onde habitavam os autores, transferiram a responsabilidade civil para ela, por contrato de seguro.

Os réus contestaram.

Os réus impugnaram a as alegações dos autores, tanto relativas às causas do incêndio como aos danos deles resultantes. Imputaram aos autores a responsabilidade pela eclosão do incêndio.

A ré T (…) reconheceu a eclosão do incêndio, mas impugnou as alegações relativas às causas e aos danos. Alegou em sua defesa que o contrato de seguro celebrado com o réu C (…), foi contrato de seguro multirriscos habitação, titulado pela apólice n.º 3324103, que entrou em vigor em 21.09.2013, mas que tal seguro não cobria os danos cuja reparação era pedida pelos autores.

Os autores responderam.

O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência foi proferida sentença que, julgando improcedente a acção, absolveu os réus dos pedidos.

Os autores não se conformaram com a sentença e interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo se desse provimento ao recurso e, em consequência, se anulasse a sentença, sendo a mesma substituída por decisão que julgasse procedente por provada a presente acção com a condenação do réu nos vários pedidos.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões consistiram em resumo:
1. Na alegação de que a sentença era nula por manifesta ausência de fundamentação;
2. Na impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
3. Na alegação de que, alterada a matéria de facto, era de julgar procedente a acção.

Os réus responderam, pedindo a manutenção da decisão recorrida.

Os primeiros réus começaram por alegar que os recorrentes não impugnaram a decisão relativa à matéria de facto e que, caso se entendesse que a impugnaram, o recurso deveria ser rejeitado por não cumprir as exigências previstas no artigo 640.º do CPC. Para a hipótese de este tribunal assim não o entender, sustentaram que a sentença não merecia qualquer reparo.

A ré Seguradora, pronunciando-se sobre a nulidade da sentença por ausência de fundamentação, disse que a mesma não se verificava. Quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, sustentou que a sentença não incorreu em erro na apreciação da matéria de facto. De seguida alegou que, uma vez que o fundamento para a alteração da decisão de direito era a modificação da decisão de facto, o que ela, recorrente, não concebia, defendeu a manutenção da decisão recorrida. Pronunciando-se sobre a cobertura do contrato de seguro, reafirmou o que havia alegado na contestação, ou seja, que o seguro não cobria os danos alegados pelos autores.


*

Síntese das questões suscitadas pelo recurso e pelas respostas ao recurso:

O recurso suscita:
1. A questão de saber se a sentença é nula por falta de fundamentação;
2. A questão de saber se o tribunal a quo errou na decisão relativa à matéria de facto;
3. Em caso de resposta afirmativa à questão anterior, saber se com a nova matéria de facto a sentença deve ser substituída por decisão que condene os réus nos pedidos.

A resposta dos primeiros réus suscita a questão de saber se os autores, recorrentes, não impugnaram a decisão relativa à matéria de facto ou, no caso de se entender que a impugnaram, se o recurso deve ser rejeitado por não ter cumprido as exigências previstas no artigo 640.º do CPC.

Quanto à ordem de conhecimento das questões, devemos começar pelas suscitadas na resposta, pois elas têm precedência lógica em relação às postas pelos recorrentes.

I)

Passemos, pois, à sua apreciação.

Os primeiros réus sustentam que os recorrentes não impugnaram a matéria de facto ou que, tendo-a impugnado, não cumpriram os requisitos legais da impugnação da decisão relativa à matéria de facto com base na seguinte alegação:
1. Os recorrentes fazem uma impugnação geral, vaga e indefinida, não precisando, com um mínimo de clareza e rigor, quais os pontos da matéria de facto que merecem a sua discordância e quais os exactos elementos probatórios – designadamente no que diz respeito à prova testemunhal produzida – que no seu entendimento mereciam diferente ponderação pelo tribunal a quo, ficando-se por alegações vagas e genéricas a este propósito;
2. Os apelantes limitam-se a enumerar factos que, na sua opinião, deveriam ter sido dados como provados, mas não especificam quais os pontos de facto da sentença recorrida que, em concreto, deveriam merecer resposta diferente por parte do tribunal e quais os elementos fornecidos pelo processo que impunham decisão diversa;
3. Para que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido aos recorrentes que concretizem os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados, especifiquem os concretos meios probatórios que imponham decisão diversa relativamente a esses factos e enunciem a decisão alternativa que propõe, o que os Apelantes não fizeram.

Apreciação do tribunal:

A resposta à questão de saber se os recorrentes não impugnaram a decisão relativa à matéria de facto é claramente negativa. Com efeito, tanto no corpo da sua alegação como nas conclusões, os recorrentes manifestaram inequivocamente a sua discordância em relação à decisão de facto, indicando a matéria que no seu entender devia ser julgada provada.

Quanto à questão dos requisitos da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, deve dizer-se que tem inteiro amparo nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC, a alegação dos recorridos segundo a qual, quando seja impugnada a decisão sob a matéria de facto, é dever do recorrente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios e prova que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão alternativa que propõe.

O que já não merece a concordância deste tribunal é a alegação de que os recorrentes não cumpriram os requisitos acabados de expor. Embora em termos pouco precisos e rigorosos, tais requisitos foram observados. Vejamos.

Comecemos pelo cumprimento da exigência de especificação dos pontos da matéria de facto que os recorrentes consideravam incorrectamente julgados. Esta especificação implica a identificação concreta dos pontos da matéria de facto que os recorrentes consideram incorrectamente julgados. Apesar de não haver uma fórmula sacramental ou rígida para cumprir esta exigência, ela pressupõe que os recorrentes identifiquem por referência à decisão relativa à matéria de facto os pontos que consideram incorrectamente julgados. É certo que, no caso, não há esta especificação. Mas é certo também que a decisão relativa à matéria de facto não contém, na parte relativa aos factos julgados não provados, a especificação/concretização das alegações de facto que julgou não provadas. Neste capítulo, a sentença julgou não provados “todos os demais constantes dos articulados não mencionados na resposta dada supra”. Reconhece-se que esta fórmula imprecisa não favorece o cumprimento do requisito mencionado na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º.

A verdade é que, apesar de os recorrentes não terem feito uma especificação precisa e clara da matéria de facto que consideravam incorrectamente julgada, ao especificarem os factos que, no seu entender, devem ser julgados provados, identificaram implicitamente os pontos da matéria de facto que estavam em causa na sua impugnação, concretamente os narrados na petição sob os artigos 17.º, 18.º, 21.º, 22.º, 23.º, 26.º, 27.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 38.º, 39.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º, 48.º, 49.º a 56.º e 59.º a 64.º. Com efeito, se estes artigos, por força da remissão genérica da decisão relativa à matéria de facto, são de considerar não provados pelo tribunal a quo e se os recorrentes os incluem nos factos a julgar provados, a conclusão só pode ser a de que a decisão sobre tais factos foi impugnada pelos recorrentes.

Quanto aos meios de prova que impõe decisão diversa, apesar de, nesta parte, o recurso também não primar pelo rigor, consegue perceber-se que tais meios de prova são constituídos pelo relatório da Polícia Judiciária apresentado com a petição, pelas declarações deles, autores, pelos depoimentos das testemunhas (…)e pelas fotografias tiradas aquando da inspecção à chaminé.

Assim, apesar dos termos pouco rigorosos e precisos do recurso na parte relativa à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, este tribunal, atendendo ao princípio da prevalência da substância sobre a forma e ao facto de conseguir identificar os factos impugnados, a decisão que os recorrentes pretendem em relação a eles e quais os meios de prova que impõem decisão diversa, não rejeita a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

II)

Resolvida a questão prévia suscitada pelos recorridos, estaria naturalmente indicado passar ao conhecimento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

Porém, antes de procedemos à análise crítica da prova produzida e de expormos a convicção que dela retirámos, importa dizer que nem todas as alegações que os recorrentes pretendem ver julgadas provadas compreendem factos. Vejamos.

Na impugnação estão em causa a decisão de julgar não provadas as alegações dos autores relativas às causas do incêndio que eclodiu na fracção autónoma onde habitavam os recorrentes [1.º direito] e a decisão de julgar não provadas as alegações relativas aos concretos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência desse incêndio.

Quanto às causas, os recorrentes pedem se julguem provado o que alegaram sob os artigos 17.º, 18.º, 23.º, 26.º, 34.º, 35.º, 36.º, 41.º, 42.º, 43.º. Implicitamente pedem a alteração do que foi julgado provado sob o n.º 4, designadamente na parte onde se afirmou que o incêndio ocorreu por causas não concretamente apuradas.

Quanto aos bens destruídos e respectivos valores, pedem se julgue provado o que alegaram sob os artigos 48.º e 49.º. Implicitamente pedem a alteração do que foi julgado provado sob o n.º 5, ou seja que os autores sofreram prejuízo patrimonial traduzido pela destruição de bens de sua propriedade em montante não concretamente apurado.

Quanto aos danos pessoais experimentados pelos autores em consequência do incêndio, pedem se julgue provado o que alegaram sob os artigos 51.º a 56.º e 59.º a 64.º. Implicitamente pedem se altere a decisão de julgar não provados estes factos.

Sucede que algumas das alegações que os recorrentes querem ver julgadas provadas compreendem juízos de valor de natureza jurídica que estão excluídas da decisão relativa à matéria de facto. Com efeito, apesar de o Código do processo Civil em vigor não conter uma norma como a do n.º 4 do artigo 646.º do CPC, segundo a qual tinham-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo [no sentido do tribunal que julga a matéria de facto] sobre questões de direito, a solução mantém-se válida no novo Código de Processo Civil face ao disposto no n.º 4 do artigo 607.º, na parte em que dispõe que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados…”.

Compreendem juízos de valor de natureza jurídica as seguintes alegações:
1. A do artigo 29.º da petição, segundo a qual “os primeiros réus, na qualidade de únicos proprietários de todas as fracções e, por conseguinte, de todo o edifício, incluídas as partes comuns, estavam e estão obrigados a proceder às necessárias alterações ao nível de construção civil a fim de impedir designadamente o retorno entre os colectores das várias lareiras”;
2. A do artigo 31 do mesmo articulado, segundo a qual “os primeiros réus estavam igualmente obrigados, à limpeza periódica dos colectores/chaminés, pelo menos uma vez por ano, evitando a acumulação de fuligem e alcatrão”;
3. A do artigo 32 do mesmo articulado, segundo a qual “estavam sempre obrigados na qualidade de únicos proprietários do edifício à limpeza das partes comuns designadamente na chaminé/colector geral, impedindo assim que fosse possível a circulação do fogo entre os vários colectores, criando descontinuidade de fuligem pelo menos no colector geral/ comum”;
4. A do artigo 33 do mesmo articulado, segundo a qual “na qualidade de proprietários estavam obrigados ao controlo da limpeza nos vários colectores e à entrega dos apartamentos aos arrendatários com os colectores limpos”;
5. A do artigo 39 do mesmo articulado, segundo a qual “os primeiros réus ao entregarem a referida fracção C no âmbito do arrendamento com os autores, sem que tivessem limpo os colectores não cumpriram a sua parte contratual no sentido que o apartamento não estava em perfeitas condições de habitabilidade, nomeadamente de segurança para os arrendatários ou para terceiros”;
6. A do artigo 42 do mesmo articulado, segundo a qual “tal conduta omissiva, ilícita e culposa dos primeiros réus, na qualidade de proprietários da totalidade do edifício, incluídas todas as fracções e partes comuns, nas circunstâncias acima alegadas, é causa directa e adequada no incêndio que deflagrou na fracção C, à altura arrendada aos autores e por conseguinte responsabilizando os mesmos civilmente pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelos autores”.
7. A do artigo 43 do mesmo articulado, segundo a qual “existe nexo de causalidade entre a conduta omissiva, falta de promoção da limpeza dos colectores o incêndio e os danos ocorridos”;
8. A artigo 44.º do mesmo articulado, segundo a qual “os primeiros réus na qualidade de proprietários em exclusivo do edifício, tinham obrigação de proceder à limpeza periódica das partes comuns nomeadamente na chaminé, o que não fizeram”;
9. A do artigo 50 do mesmo articulado segundo a qual “em consequência apesar de não estarem contemplados todos os bens destruídos, no tocante à relação de bens acima apresentada, contabiliza-se em 21.636,00€ (vinte e um mil seiscentos e trinta e seis euros) o prejuízo sofrido, causa directa do incêndio”.

Com efeito, a função dos meios de prova é demonstrar a realidade dos factos [artigo 341.º do Código Civil]. Daí que, socorrendo-nos das palavras de Michele Taruffo” “Por isso, apenas os factos (ou seja: os enunciados sobre factos) são objecto de prova. Os enunciados relativos aos aspectos jurídicos da controvérsia podem ser objecto de escolha, interpretação, de argumentação e de justificação, mas não podem ser provados” (Revista Julgar n.º 13, 2011, Narrativas Processuais).

É o que se passa precisamente com as alegações acima transcritas, as quais dizem respeito à questão de saber se os primeiros réus estavam sujeitos às obrigações a que se referem as alegações supratranscritas.

Em consequência este tribunal não irá proferir, em relação a elas, o julgamento de provadas ou não provadas.

Por outro lado, alguma das alegações que os recorrentes pretendem ver julgadas provadas compreendem claramente factos instrumentais, como sucede com a alegação feita sob os artigos 21.º e 22.º, segundo a qual “os autores não tinham acendido a lareira da sua fracção, nem nunca a acederam antes ou depois do incêndio, não tendo sequer adquirido lenha para o efeito”.

Sem prejuízo de este tribunal tomar em conta na formação da sua convicção tais factos e outros que resultem da instrução da causa, como lhe é consentido pelo artigo 607.º, n.º 4 do CPC, também não irá proferir em relação a eles a declaração de provado ou não provado, pois resulta da parte inicial do n.º 4 do artigo 607.º do CPC, que a declaração de provado ou não provado deve ter por objecto apenas os factos essenciais constitutivos da causa de pedir e das excepções [a favor desta interpretação citam-se Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, página 718].

Por último, os recorrentes pretendem se julgue provado o que alegaram sob o n.º 18 da petição, ou seja, “que decorre do relatório da polícia judiciária, consentâneo com os demais testemunhos, que o incêndio foi provocado por projecções de fuligem incandescente proveniente do colector inflamado e em deflagração”, quando tal pretensão não pode ser acolhida, pois o que deve ser julgado provado ou não provado são factos e não o que foi escrito no relatório da polícia judiciária. 

Assim, em matéria de alegações de facto essenciais sobre as causas da eclosão do incêndio na fracção habitada pelos autores [1.º direito], este tribunal irá pronunciar-se sobre as seguintes:
1. Na sequência do acendimento da lareira da fracção H, a fuligem/alcatrão alojado no colector da fracção incendiou-se, incendiando igualmente a chaminé comum do prédio, que por sua vez incendiou o colector da fracção C, com a consequente projecção de pedaços de fuligem incandescentes na lareira dos autores, incendiando um sofá que se encontrava ali à frente;
2. Na sequência as chamas alastraram por todo o apartamento, queimando e danificando em geral a pintura da fracção C e os haveres pessoais dos autores e dos seus três filhos menores;
3. Os primeiros réus nunca limparam os colectores/chaminés ou pelo menos dos dez anos que antecederam o incêndio;
4. Procederam à entrega dos apartamentos aos autores e aos arrendatários da fracção H) com os colectores completamente cheios/bloqueados com fuligem;
5. A não limpeza periódica dos colectores teve como consequência a acumulação anormal da fuligem, originando que a mesma se incendiasse na parte comum da chaminé através do colector da fracção H e que derivasse pela conduta da fracção C até à lareira daquela fracção, mediante a projecção de pedaços de fuligem onde se iniciou o incêndio no sofá dos autores.

Em matéria de alegações relativas aos danos patrimoniais irá pronunciar-se sobre as seguintes:
1. Em consequência do incêndio, os autores sofreram a perda dos objectos discriminados na relação que a autora apresentou no âmbito do inquérito crime [artigo 48.º da petição];
2. Na sequência do incêndio houve necessidade de proceder ao rescaldo do apartamento com a consequente inundação que resultou na perda de um colchão de casal, no valor de 300 euros [49.º da petição].

E em matéria de alegações relativas aos danos não patrimoniais (danos na pessoa dos autores) irá pronunciar-se sobre as seguintes:
1. Os autores e seus filhos menores sofreram o desgosto de terem ficado sem nada, relativamente a objectos pessoais, móveis, a maioria da sua roupa.
2. A maioria dos bens relacionados, designadamente móveis, quadros, roupa tinham para os autores e seus filhos um duplo valor, porquanto tratando-se de prendas ou bens relacionados com eventos marcantes como casamento, baptizados, tinham um valor profundamente sentimental.
3. Com o alastrar das chamas, os autores e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a dita fracção permanecendo na rua, com frio, só com a roupa que tinham no corpo.
4. Tendo acordado com o barulho das chamas, em sobressalto total.
5. Tendo sentido indisposição por inalação de fumo, tendo sido conduzidos ao centro de saúde por precaução onde foram observados e receberam algum conforto e apoio psicológico.
6. Na própria noite e na noite seguinte ao incêndio, permaneceram os autores e seus filhos menores no apartamento queimado, no quarto de casal, o único que não ardeu totalmente, em condições subhumanas, com inalação de fumo presente na fracção.
7. Relativamente aos filhos dos autores, em especial o menor S(…), a partir do incêndio têm muita dificuldade em dormir.
8. A partir do evento traumático não pode ficar sozinho à noite, tendo necessidade de tomar medicação até hoje para dormir.
9. Ficando em pânico cada vez que ouve falar ou vê um incêndio.
10.A autora S (…), a partir do incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais ou roupas, ficou em estado depressivo.
11.Tendo necessidade de tomar medicação para dormir após o sucedido.
12.Sem vontade de conviver com familiares e amigos até hoje, viu-se obrigada a tomar anti-depressivos.

III)

Feita esta selecção das alegações de facto relevantes, apreciemos a impugnação do segmento da decisão relativa às causas do incêndio.

Nesta matéria, o tribunal a quo entendeu que o incêndio eclodiu junto à lareira da sala, por razões não concretamente apuradas.

Justificou a decisão, dizendo:

…, o Tribunal teve o ensejo de demonstrar que todo o relatório elaborado o foi, sem quebra de respeito, por juízos pré-concebidos, buscando fundamento lógico-racional em pré-juízos, convicções pessoais, e putativas anteriores experiências em situações idênticas investigadas.

Desde logo e vai a nota que se impõe, estranha-se que as telas finais aprovados pelo Município da Sertã, atinentes ao imóvel não retratem a existência de lareiras no interior das fracções, sendo certo que as mesmas de facto existem, embora em tais telas não constem.

Estranha-se que o relatório final elaborado pela Polícia Judiciária aluda a um colector comum a todas as lareiras [ que supostamente não existem ] sendo certo que, como se recolhe da diligência oficiosamente determinada pelo Tribunal e cujos resultados se recolhem do auto de fls. 141, através da projecção de objectos de cor distinta através das saídas existentes no telhado, se verificou que o trajecto dos mesmos diverge caíndo o de cor vermelha na chaminé do 3.º andar; o de cor verde, no 2.º andar e finalmente o de cor azul caiu no 1.º andar.

Conclusão: o colector comum aludido no relatório final elaborado pela Polícia Judiciária não existe, cada uma das lareiras que, existindo, não deveriam existir, tem uma saída própria para o telhado.

O óbvio já se adivinha, tenham quais tenham sido as causas do incêndio que definitivamente ocorreu, as mesmas não podem, por impossibilidade física, de ter sido provocadas pela forma alegada, mas só alegada, pelos Autores. Donde a qualificação como não provada da factualidade alegada pelos Autores no que concerne à origem do incêndio, seja na falta de limpeza da chaminé por parte dos 1.ºs Réus”.

Os recorrentes pedem a alteração da decisão pedindo se julgue provado o que alegaram sobre as causas do acidente invocando para o efeito excertos das declarações deles autores [excertos devidamente identificados e transcritos], o relatório da polícia judiciária, apresentado com a petição, fotografias tiradas aquando da inspecção à chaminé, e excertos dos depoimentos de (…) [excertos devidamente identificados e transcritos].

Reapreciada a prova produzida, este tribunal entende que é possível formar com base nela uma convicção segura quanto às causas do incêndio, embora não coincidente inteiramente com a pretensão dos recorrentes. Vejamos.

Apesar de os autores não se terem apercebido do início ao incêndio [segundo o relato da autora foi ela a primeira a aperceber-se e quando se apercebeu do incêndio, este já lavrava na sala], há indícios credíveis de que ele teve origem na queda de fuligem incandescente na lareira da fracção onde eles residiam [1.º direito].

Esses indícios são constituídos, em primeiro lugar, pelo seguinte facto mencionado tanto pelo autor como pela testemunha (…)militar da GNR: mesmo depois de o fogo ser extinto caía matéria incandescente na lareira da fracção.

Se em relação às declarações do autor, ainda se podia pôr em causa a veracidade delas, dado o seu interesse na causa, já em relação ao depoimento de (…), este tribunal não encontrou razões para pôr em causa a veracidade do que ela afirmou. Na verdade, o militar da GNR esteve no interior da fracção habitada pelos autores, logo na noite do incêndio, numa altura em que os bombeiros se encontravam aí a fazer o rescaldo, e referiu que estes chamaram-lhe a atenção para o facto de estar a cair matéria incandescente, através da chaminé, para a base da lareira e que ele próprio viu a queda de tal matéria incandescente. Este tribunal ficou, assim, com a convicção segura que, ainda com o rescaldo do incêndio a decorrer, caía na lareira, vinda da respectiva conduta de saída de fumos, matéria incandescente.

Em segundo lugar não há o mais leve sinal de outra causa para o incêndio, designadamente curto circuito do sistema eléctrico da fracção habitada pelos autores ou fogueira acesa na lareira da mesma fracção. Quanto ao curto circuito, ele foi afastado expressamente por (…) inspector da PJ que procedeu à inspecção local. A este propósito referiu que examinou o quadro eléctrico e que não havia sinais, nele, de curto circuito. Quanto à inexistência de sinais de a lareira ter sido acesa pelos autores, a nossa convicção baseou-se nos depoimentos dos autores e no de (…). Aqueles referiram em termos convincentes que nunca acenderam a lareira. Este referiu que na noite em que esteve no apartamento não havia sinais de que a lareira tivesse sido acesa e que a única coisa que existia nela eram papéis queimados. Estas declarações mereceram-nos crédito pois caso os autores tivessem acendido a lareira, designadamente na noite em que se deu o incêndio, existiram necessariamente vestígios desse facto, designadamente lenha queimada ou cinzas e a testemunha (…)foi muito claro ao afirmar que a única coisa que viu na lareira foi papel queimado. Sobre a origem do papel queimado, disse que a autora lhe referiu, logo na noite do incêndio, que se tratavam de papéis que ela guardava numa caixa, na lareira.

Em terceiro lugar são constituídos pelo facto de o incêndio ter começado por queimar um sofá que estava junto à lareira. Este facto foi colhido no depoimento de (…), inspector da PJ, com base na inspecção a local. O depoimento mereceu crédito, atendendo à circunstância de provir de pessoa com experiência na investigação de incêndios.

Em quarto lugar, é constituído pelo facto de a fuligem incandescente ser matéria adequada a provocar um incêndio como o que atingiu a fracção onde residiam os autores. Sobre a adequação da fuligem incandescente para causar um incêndio, como o que atingiu a fracção, o tribunal deu crédito ao depoimento de (…), inspector da PJ, na parte em que afirmou que, com base na sua experiência profissional, trata-se de uma situação que acontece com regularidade.

Quanto à origem ou proveniência da fuligem incandescente, que caiu na lareira da fracção onde moravam os autores, e que deu origem ao incêndio, a convicção deste tribunal foi a de que ela teve origem no fogo que foi aceso na lareira do 3.º andar direito do prédio. Vejamos.

Em primeiro lugar um dos moradores do 3.º andar direito, (…) inquirido como testemunha, referiu – sem que este tribunal tenha encontrado qualquer razão para duvidar da veracidade do que declarou – que, na noite do incêndio, ele e os outros ocupantes da fracção acenderam a lareira por altura do jantar. Apesar de não saber indicar com precisão até que horas é que a lareira esteve a arder, referiu que às 22h30 já estava quase morta.

Em segundo lugar, sabe-se, pelo que disse a autora, que o prédio onde se deu o incêndio tinha 6 fracções destinadas a habitação, mas que só 3 estavam habitadas, concretamente o 1.º andar direito, o 1º andar esquerdo e o 3.º andar direito. Apesar de ignorarmos se os moradores do 1.º andar esquerdo acenderam a lareira nessa noite [os moradores não foram inquiridos e nenhuma testemunha se pronunciou sobre o facto], a verdade é que, ainda que o tivessem feito, seria impossível fisicamente que a matéria incandescente que causou o incêndio na fracção habitada pelos autores tivesse sido provocada pelo fogo aceso na lareira do 1.º esquerdo. E era fisicamente impossível porque a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º esquerdo era privativa desta lareira e a abertura exterior de tal conduta não se encontrava em nenhum local do telhado do prédio com a abertura exterior da conduta de saída de fumos da lareira do 1º andar direito.

Ao invés, a abertura exterior da conduta de fumos da lareira do 3.º andar direito - conduta que era privativa de tal lareira - terminava, na mesma zona do telhado onde terminava a abertura da conduta da lareira do 1.º andar direito e terminava ao mesmo nível desta, separada dela apenas por uma parede de tijolo. Além disso, as aberturas exteriores das condutas das lareiras da parte direita do prédio [1.º andar direito e 2.º andar direito e 3 andar direito] eram cobertas por uma estrutura metálica comum, que tinha a encimá-las um extractor de fumos.

A convicção do tribunal quanto aos factos que se acabam de expor baseou-se, em primeiro lugar, no depoimento de (…) empresário da construção civil que construiu o prédio em causa. A testemunha foi clara na afirmação de que as lareiras das várias fracções tinham condutas de saídas de fumo privativas, independentes, e que as aberturas exteriores das condutas de saída de fumos das lareiras da parte esquerda do edifício (1.º, 2.º e 3.º esquerdo) terminavam numa zona do telhado diferente daquela onde terminavam as aberturas exteriores das condutas de saída dos fumos das lareiras da parte direita do imóvel

Em segundo lugar, baseou-se na inspecção à chaminé e na experiência levada a cabo aquando desta diligência, experiência que corroborou as declarações da testemunha quanto à questão das condutas de saída de fugas serem privativas de cada lareira. Com efeito, em tal diligência, subiram ao telhado do prédio dois bombeiros da Sertã e foi retirada a cobertura da chaminé onde terminavam as condutas de saída de fumos das lareiras das fracções do lado direito. Com a retirada da cobertura ficaram visíveis 3 aberturas separadas uma das outras por parede de tijolo. Por cada uma dessas aberturas exteriores foram lançados, com o auxílio de uma corda, 3 objectos, um de cor vermelha, outro de cor verde e outro de cor azul. O objecto de cor vermelha caiu na chaminé do 3.º andar direito; o de cor verde e caiu no 2.º andar direito; o de cor azul e caiu no 1.º andar direito.

A experiência mostrou, sem qualquer dúvida, que as lareiras da parte direita do prédio têm, cada uma, uma conduta de saída de fumos privativa. Com efeito, se houvesse uma única conduta de saída de fumos para as 3 lareiras sem que o seu interior fosse dividido, os 3 objectos lançados não cairiam, cada um deles, numa lareira diferente. Assim, contrariamente ao que pretendem os recorrentes não está demonstrada que haja uma conduta de saída de fumos comum às 3 lareiras da parte direita do prédio. As aberturas exteriores das condutas, visíveis nas fotografias tiradas aquando da inspecção à chaminé, indicam claramente que o corpo das condutas é construído em tijolo, percorre a estrutura do edifício desde a lareira até ao telhado. No telhado, as aberturas exteriores das condutas terminam ao mesmo nível, embora sejam separadas entre si.

Porém, a circunstância de haver condutas privativas, não tornava fisicamente impossível que a fuligem incandescente, desenvolvida numa das condutas, passasse para as outras condutas. E não era impossível fisicamente pelo seguinte. É que, embora privativas de cada uma das lareiras, as aberturas exteriores das 3 condutas terminavam no mesmo local do telhado, estando umas ao lado das outras. Além disso a estrutura metálica que cobria as aberturas exteriores era comum, como é claramente visível nas fotografias tiradas aquando da inspecção ao local.

Daí que não fosse fisicamente impossível que a fuligem incandescente produzida na conduta de umas lareiras passasse através da sua abertura exterior para as aberturas exteriores das outras condutas, fazendo com que a fuligem depositada nas paredes destas também entrasse em combustão.

E a convicção deste tribunal é precisamente a de que o fogo que foi aceso na lareira do 3.º andar direito causou a combustão da fuligem depositada/acumulada nas paredes interiores da conduta de saída de fumos dessa lareira e que a fuligem a arder atingiu a parte de cima da conduta, passando através da abertura exterior dela para a abertura exterior da conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito (ou seja, para aquele onde residiam os autores), fazendo com que a fuligem depositada nas paredes desta também entrasse em combustão e caísse na lareira.

A nossa convicção baseou-se no depoimento de (…), inspector da PJ, que explicou circunstanciadamente, com base na sua experiência profissional e com base na inspecção que fez ao local, a formação da fuligem, a passagem da fuligem a matéria incandescente, as consequências que se produzem no interior das chaminés onde se acumulam fuligens quando esta é inflamada por acção do calor, designadamente explosões no interior da chaminé.

Em relação à inspecção ao local, a testemunha referiu um facto relevante para a convicção do tribunal. Referimo-nos ao facto de, na inspecção, ter visto, no extractor de fumos de metal que encimava a cobertura das aberturas exteriores das 3 condutas, sinais de aquecimento excessivo, imputável segundo a testemunha, ao efeito da explosão. Note-se que é visível nas fotografias tiradas aquando da inspecção à chaminé que as aberturas exteriores das condutas estão queimadas, sinal claro que se fez sentir no local uma temperatura muito elevada. Com efeito, se o tijolo que separa as aberturas exteriores das condutas está queimado, só podemos concluir que se produziu nesse local uma temperatura muito elevada, a qual só se explica pela deflagração da fuligem depositada nas paredes interiores das condutas das lareiras e pela subsequente explosão de que falou a testemunha. Note-se, ainda, que a passagem da fuligem incandescente de uma conduta para outra achava-se facilitada, no caso, pelo facto de as aberturas exteriores das condutas estarem lado a lado e cobertas por uma estrutura metálica comum, o que fazia com que a fuligem não saísse directamente para a atmosfera.

Diga-se, por fim, em abono da convicção do tribunal, que faz parte das regras da experiência comum que a fuligem é uma matéria inflamável, causa de muitos incêndios de chaminés.

Foi igualmente convicção deste tribunal que os primeiros réus não limpavam as condutas de saída de fumos da lareira do 3.º andar direito e do 1.º andar direito. E esta nossa convicção resulta do facto de a inflamação da fuligem só ser possível no caso de esta se acumular e só há acumulação quando ela não é retirada, removida.

Por todo o exposto, o tribunal altera a decisão relativa à matéria de facto, julgando provado:
1. Na sequência do acendimento da lareira do 3.º andar direito, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira dessa fracção incendiou-se e essa fuligem incandescente passou, através da abertura exterior dessa conduta, para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente;
2. Na sequência, as chamas alastraram à sala, danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos autores;
3. Os primeiros réus há tempo não apurado em concreto que não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito;
4. Procederam à entrega dos apartamentos aos autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras;
5. A falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse.      

Apreciemos, agora, a impugnação da decisão relativa aos danos. Comecemos pelas alegações relativas aos danos patrimoniais

Nesta matéria, o tribunal a quo julgou provado que, “em consequência desse incêndio, os ora autores sofreram prejuízo patrimonial traduzido pela destruição de bens de sua propriedade em montante não concretamente apurado”.

O tribunal a quo justificou a decisão dizendo: “No que ao demais alegado pelos Autores concerne, seja, no que concerne aos danos patrimoniais alegadamente e uma vez mais, só alegadamente sofridos, examinadas as telas finais do prédio, delas resulta que a maior das divisões da fracção ocupada pelos Autores tem a área de 17, 78m2.

Do relatório elaborado pela Polícia Judiciária, estribo da presente acção, resulta e citamos que “o fogo lavrou sem grande intensidade na sala tendo atingido uma ou outra divisão, apenas com fuligem.”14.

Desde logo se estranha a imensa panóplia de bens alegadamente destruídos pelo incêndio, sendo certo que o mesmo se circunscreveu à sala, com vestígios de fuligem nas divisões adjacentes. Diremos até que o alegado pelos Autores a este ponto conduziria à impossibilidade de acesso à sala, tal a quantidade de bens ali colocados, considerando a exígua dimensão da sala. Compreende-se a alegação mas não colhe…

Doutra banda, temos por meramente opinativo, que não pericial, o relatório supostamente pericial, doutamente ordenada a sua realização, sendo certo que o mesmo apenas relata a “opinião” dos senhores peritos no que concerne ao putativo valor de putativos bens que nem sequer dados lhes foram para examinar”.

Reapreciada a prova, este tribunal entende que há razões para alterar a decisão impugnada, embora não no exacto sentido pretendido pelos recorrentes.

Em matéria de danos patrimoniais, a alegação dos autores suscita essencialmente três questões de facto:
1. A primeira é a de saber se, em consequência do incêndio, os autores perderam os objectos que estão discriminados na relação junta com a petição e que a autora apresentou no inquérito criminal;
2. A segunda é a de saber se os objectos tinham o valor que os autores indicaram;
3. A terceira é a de saber se, na sequência do incêndio houve a necessidade de proceder ao rescaldo do apartamento com a consequente inundação que resultou na perda de um colchão de casal, no valor de 300 euros.

Em relação a estas 3 questões de facto, pode dizer-se desde já que reapreciada toda a prova, este tribunal não encontrou nem na prova documental nem nas declarações dos autores, nem nos depoimentos das testemunhas a confirmação de que os ora recorrentes perderam um colchão de casal, no valor de 300 euros, em consequência da acção de rescaldo do incêndio. Daí que seja de manter em relação a tal matéria - alegada na petição sob o artigo 49.º - a decisão de a julgar não provada.

Em relação à alegação sobre os bens destruídos, apenas a autora confirmou a destruição de todos os que estão na relação apresentada no processo criminal, ao dizer, quando instada sobre o conteúdo de tal relação, que a confirmava.

Ainda que não se desse qualquer crédito a esta confirmação da autora, - e como veremos não é esta a nossa posição -, havia razões para este tribunal não se ficar, como sucedeu com o tribunal da 1.ª instância, por uma decisão a julgar provado que “os ora Autores sofreram prejuízo patrimonial traduzido pela destruição de bens de sua propriedade em montante não concretamente apurado”. E havia razões porque tanto os autores como algumas das testemunhas inquiridas identificaram bens que foram destruídos pela acção do incêndio e este tribunal não encontra quaisquer razões para duvidar da veracidade do que declararam a tal propósito. Assim:
1. A autora identificou, como bens destruídos pela acção do fogo, um aparador, uma mesa, uma cristaleira com tudo o que se encontrava na sala, um LCD, computadores, cadeiras, espelhos, tapetes, quadros e roupas. Além de os identificar, referiu, em relação aos quadros, o número dos haviam sido danificados (5), os autores dos quadros e a forma como os adquiriu;
2. J (…), militar da GNR, que como já escrevemos acima esteve na fracção durante o rescaldo do incêndio feita pelos bombeiros, instado sobre os objectos que viu danificados pela acção do fogo, referiu o sofá junto à lareira, móveis de madeira, um computador derretido e quadros enegrecidos pelo fumo;
3. M (…), amiga dos autores, instada sobre os bens danificados pelo incêndio, referiu um LCD, um quadro estilhaçado, várias coisas de crianças, jogos electrónicos e computadores, o sofá, uma mesa grande madeira queimada, a cristaleira e roupa queimada num monte. O tribunal não encontrou razões para pôr em causa a veracidade das suas declarações, pois justificou o seu conhecimento com o facto de ter ido ao apartamento onde moravam os autores na manhã seguinte ao incêndio.
4. O (…), amiga dos autores, referiu que se deparou com tudo queimado, quadros, mobília dos meninos. Também em relação a esta testemunha, o tribunal não encontrou razões para duvidar do que disse pois também justificou o seu conhecimento com o facto de ter ido ao apartamento na manhã a seguir ao incêndio.

A verdade é que este tribunal não encontrou razões para não dar crédito à lista que a autora elaborou, considerando que, segundo disse, ela foi elaborada no dia a seguir ao incêndio, na sequência de um pedido feito pela GNR e tendo em vista a apresentação dela no âmbito do processo criminal. Não se ignora que seria possível uma prova diferente, como por exemplo, uma lista elaborada com a presença das autoridades ou de outras pessoas. Porém, não foi trazido ao conhecimento do tribunal qualquer facto que indicie que a autora quis enganar as autoridades ou aproveitar-se da situação, incluindo na lista bens que não foram destruídos. Numa situação como a que viveram os autores, vendo os seus haveres consumidos ou danificados pelo fogo, este tribunal presume que a preocupação deles, autores, foi a de levar ao conhecimento das autoridades os bens que foram destruídos ou danificados pela acção do fogo e não o de aproveitarem a situação para incluir nela bens que não haviam sido destruídos ou danificados.

Em consequência, altera-se a decisão de facto julgando-se provado que em consequência do incêndio os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7.

Em relação aos valores dos objectos destruídos, a prova foi incompleta e imprecisa.

Foi incompleta porque a prova produzida sobre os valores (perícia, declarações dos autores e depoimentos de testemunhas) não se pronunciou sobre o valor de alguns dos bens.

E foi imprecisa porque as referências aos valores feitas, quer na prova pericial quer pelos autores e testemunhas foram imprecisas e, nalguns casos, dubitativas.

Os peritos viram apenas alguns quadros, um computador portátil, parte de um móvel e um teclado, visto que os restantes já não existiam. Limitaram-se, em relação a alguns dos bens, a emitir parecer sobre a razoabilidade do valor indicado na lista. Em relação aos quadros não emitiram sequer parecer sobre a razoabilidade dos valores, dizendo que não se sentiam habilitados para o efeito.

A autora referiu-se aos valores de alguns dos bens, mas em termos imprecisos. Assim, referiu que o valor dos quadros oscilava entre os 800 e 1 500 euros, em relação aos móveis falou à volta de “mil contos”, em relação ao LCD à volta de 350 euros.

A (…) irmã da autora, referiu-se ao valor de um carrinho de bebé que havia dado à autora e a um LCD também oferecido, dizendo que o primeiro lhe havia custado perto de 300 euros o segundo que lhe custou entre 179 e 200 euros.

Na ausência de uma prova minimamente precisa e convincente do valor de cada um dos objectos, não colhe a pretensão dos recorrentes no sentido de julgar provado que os bens tinham o valor indicado na relação elaborada pela autora.

Porém, tendo em conta a multiplicidade de bens que foram destruídos e os valores que foram indicados pela autora e pela testemunha Andreia Raquel em relação a alguns deles, pode afirmar-se o valor total dos bens destruídos não será seguramente inferior a 10 000,00 euros.

Em consequência altera-se a decisão, julgando-se provado que em consequência do incêndio os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor embora não tenha sido concretamente apurado não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00).

Apreciemos por último as alegações relativas aos danos pessoais [alegações feitas na petição inicial sob os artigos 51.º a 56.º r 59.º a 64.º].

Também neste capítulo é entendimento deste tribunal que há razões para alterar a decisão proferida pelo tribunal a quo, embora também não no exacto sentido pretendido pelos recorrentes.

E há razões porque tanto os autores, mas de modo especial a autora, como algumas testemunhas confirmaram algumas de tais alegações e este tribunal não encontra quaisquer razões para duvidar da veracidade do que foi dito.

A autora declarou:
1. Que, em consequência do incêndio, ela e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a fracção, permanecendo na rua com frio, só com a roupa que tinham no corpo
2. Que por indicação dos bombeiros e por precaução ela e os filhos foram ao Centro de Saúde;
3. Que o filho S (…)traumatizado com o incêndio (segundo a autora, o menor foi retirado por uma janela, porque na altura já não conseguiam passar pelo corredor da fracção;

Este tribunal não encontra razões para duvidar da autora quando afirmou que, vendo a sala a arder, saiu com os seus filhos para a rua, permanecendo nela com frio, só com a roupa que tinham no corpo, e que, por indicação dos bombeiros e por precaução, ela e os filhos foram ao Centro de Saúde. Com efeito, é normal à luz das regras da experiência comum que, vendo a sala a arder e o resto da casa cheio de fumo, a autora saísse para a rua com os filhos, dois dos quais menores, como é normal que, por precaução, tivesse ido ao Centro de Saúde devido à inalação de fumos, como é normal que o autor  S(...), na altura ainda de tenra idade, ficasse traumatizado.

Como é normal que a autora tivesse ficado abatida e deprimida com a situação.

O impacto traumático do incêndio no menor S(…)foi confirmado por testemunhas que eram amigas dos autores e conheciam bem a criança, como sucedeu com (…)

Por outro lado, é de presumir, à luz das regras da experiência comum, que os autores bem como os menores tenham ficado desgostosos com a perda dos bens.

Do que não há prova é de que a partir do incêndio a autora ficou sem vontade de conviver com familiares até hoje. Ao invés, (…) amiga da autora, ao dizer, referindo-se à autora, que, embora tenha ficado abalada com a situação, era uma pessoa de muita garra, lançou sérias dúvidas sobre a veracidade da alegação de que a autora ficou sem vontade de conviver com familiares até hoje.

Do que não há prova é que na própria noite e na note seguinte, os autores (pais e filhos) permaneceram no apartamento queimado.

Por outro lado, apesar de a autora ter declarado que o menor  S(...) e ela própria passaram a tomar medicação para dormir, este tribunal entende que a prova apropriada para demonstrar estes factos é constituída pela prescrição médica respectiva, pois faz parte das regras da experiência comum que os medicamentos para dormir estão sujeitos a receita médica.   

Pelo exposto, altera-se a decisão no seguinte sentido:

Artigo 51.º da petição: provado que os autores (pais e filhos) ficaram desgostosos com a perda dos bens em consequência do incêndio;

Artigo 52.º: provado que alguns dos bens, designadamente móveis, alguns quadros, e roupas dos autores, haviam sido oferecidos, e alguns deles estavam relacionados com eventos marcantes, baptizado, como sucedia com a toalha do baptizado e as velas do baptizado;

Artigo 53.º: provado que a autora e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a dita fracção, permanecendo na rua com frio, só com a roupa que tinham no corpo.

Artigo 54.º: provado que a autora acordou com o crepitar das chamas do incêndio.

Artigo 55.º: provado que a autora e os filhos, em virtude de terem inalado fumo, foram conduzidos por precaução ao centro de saúde, onde foram observados e receberam algum conforto e apoio psicológico.

Artigo 59.º: provado que o menor  S(...), a partir do incêndio, tem dificuldade em dormir.

Artigo 62.º: provado que a autora ficou muito abalada após o incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais e roupa.

Quanto às alegações constantes dos artigos 56.º, 60.º, 61.º, 63.º e 64.º da petição, mantém-se a decisão de as julgar não provadas.


*

Julgada a impugnação da decisão relativa à matéria de facto consideram-se provados e não provados os seguintes factos:

Factos considerados provados:
1. Os primeiros réus são proprietários em exclusivo do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz urbana da freguesia da Sertã, sob o artigo (…) e descrito no registo predial sob o nº(…)/200787C, sito na (…) Sertã.
2. Por contrato de arrendamento, outorgado entre o autor N (…) e os primeiros réus, os autores e seus três filhos menores residiram entre 16 de Agosto de 2014 e início de 2016 na fracção autónoma designada pela letra C correspondente ao 1º andar direito, parte do prédio urbano supra identificado.
3. Por contrato de seguro titulado pela apólice (…), o primeiro réu, C (…), na qualidade de proprietário do imóvel supra identificado, celebrou com a companhia de seguros Tranquilidade um contrato de seguro multirriscos habitação, que entrou em vigor em 21.09.2013, regulado pelas Condições Gerais e Particulares juntas com a contestação sob os documentos 01 e 02 que se dão aqui por integralmente reproduzidas.
4. No dia 18 de Novembro de 2014, ou seja, passados cerca de 90 dias desde o início do contrato de arrendamento, por volta das 2/2.30 (duas horas/duas horas e trinta minutos) da madrugada, quando os autores estavam a dormir, eclodiu um incêndio na fracção C (1.º direito) do edifício supra identificado, junto à lareira da sala.
5. Na sequência do acendimento da lareira do 3.º andar direito, a fuligem acumulada na conduta de saída de fumos da lareira dessa fracção incendiou-se e essa fuligem incandescente passou, através da abertura exterior dessa conduta, para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente;
6. Na sequência, as chamas alastraram à sala, danificando a pintura da fracção e queimando haveres pessoais dos autores.
7. Os primeiros réus há tempo não apurado em concreto que não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito;
8. Procederam à entrega dos apartamentos aos autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras.
9. A falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse.
10. Em consequência do incêndio os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor, embora não tenha sido concretamente apurado, não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00).
11. Os autores (pais e filhos) ficaram desgostosos com a perda dos bens em consequência do incêndio.
12. Alguns dos bens, designadamente móveis, alguns quadros, e roupas dos autores, haviam sido oferecidos, e alguns deles estavam relacionados com eventos marcantes, baptizado, como sucedia com a toalha do baptizado e as velas do baptizado.
13. Com o alastrar das chamas, a autora e os seus filhos menores foram obrigados a abandonar a dita fracção, permanecendo na rua com frio, só com a roupa que tinham no corpo.
14. A autora acordou com o crepitar das chamas do incêndio.
15. A autora e os filhos, em virtude de terem inalado fumo, foram conduzidos por precaução ao centro de saúde, onde foram observados e receberam algum conforto e apoio psicológico.
16. O menor  S(...), a partir do incêndio, tem dificuldade em dormir.
17. A autora ficou muito abalada após o incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais e roupa.

Factos julgados não provados:
a) Que a inundação consequente ao rescaldo do apartamento tenha causado a perda de um colchão de casal no valor de € 300,00;
b) Que na própria noite e na noite seguinte ao incêndio, permaneceram os autores e seus filhos menores no apartamento queimado, no quarto de casal, o único que não ardeu totalmente, em condições sub-humanas, com inalação de fumo presente na fracção.
c) Que o menor S (…), a partir do evento traumático, não pode ficar sozinho à noite, tendo necessidade de tomar medicação até hoje para dormir e que fique em pânico cada vez que ouve falar ou vê um incêndio.
d) Que a autora teve necessidade de tomar medicação para dormir após o sucedido e que ficou sem vontade de conviver com familiares e amigos até hoje e viu-se obrigada a tomar anti- depressivos.


*

Descritos os factos, passemos à resolução das restantes questões suscitadas pelo recurso.
I) Nulidade da sentença

Como resulta do exposto acima, a primeira é a de saber se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação (artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC).

Pelas razões a seguir expostas, é de julgar improcedente este fundamento do recurso.

A alínea b) do n.º 1 do artigo 613.º do CPC diz que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Esta causa de nulidade está relacionada com o dever de fundamentação das decisões judiciais, enunciado, em termos gerais, no artigo 154º, do CPC.

Esta norma tem sido interpretada pelos tribunais nos casos submetidos à sua apreciação no sentido de que a sentença incorre na nulidade nela prevista quando não indica qualquer facto e/ou razão de direito que justifique a decisão. Fora do alcance da norma ficam os casos de fundamentação de facto e/ou de direito insuficiente e/ou errada.

No caso, é patente que a sentença indicou as razões de facto e de direito pelas quais julgava improcedente a acção.

Em consequência, improcede a arguição de nulidade da sentença.
II) Alteração da decisão absolutória

Os recorrentes pedem a alteração da decisão no sentido de se julgar integralmente procedente a acção. A sua pretensão labora com base nas seguintes premissas:
1. Em sede de facto, assenta no pressuposto de que a decisão relativa à matéria de facto foi alterada no sentido por si pretendido;
2. Em sede de direito, labora no pressuposto de que os primeiros réus, enquanto proprietários da totalidade das fracções do edifício, são responsáveis pela manutenção das partes comuns, donde se inclui a limpeza periódica da chaminé comum e que não cumpriram tal obrigação.

Apreciação do tribunal

Começando pela apreciação dos pressupostos de facto em que assenta a pretensão dos recorrentes, cabe dizer que, embora não tenha sido alterada no exacto sentido pedido por eles, a decisão relativa à matéria de sofreu significativas alterações. Assim:
· Em matéria de causas do incêndio que atingiu a fracção onde moravam os autores, passou-se de uma situação em que se ignorava a causa do incêndio para uma em que ficou provado que o incêndio foi causado por fuligem incandescente, que provinda da conduta de saída de fumos da lareira do 3.º andar direito, passou para a conduta de saída de fumos da lareira do 1.º andar direito, incendiando a fuligem nela acumulada, com a consequente projecção de fuligem incandescente para a lareira da fracção onde moravam os autores, incendiando um sofá que encontrava ali à frente;
· Provou-se que os primeiros réus há tempo não apurado em concreto que não limpavam as condutas de saída de fumos das lareiras do 1.º andar direito e do 3.º andar direito;
· Provou-se que procederam à entrega dos apartamentos aos autores e aos arrendatários do 3.º andar direito com fuligem acumulada nas paredes das condutas de saída de fumos das respectivas lareiras;
· Provou-se que a falta de limpeza periódica das condutas de saída de fumos das lareiras teve como consequência a acumulação de fuligem, originando que a mesma, sujeita a aquecimento, se incendiasse.

Com base nesta matéria pode dizer-se que, embora o incêndio que atingiu a fracção onde habitavam os autores tenha tido a sua origem directa num facto imputável aos moradores do 3.º andar direito, concretamente no facto de terem feito fogo na lareira desse andar, tal facto só causou o incêndio porque a fuligem libertada pela combustão de sólidos nas lareiras, como é o caso de lenha/madeira, acumulou-se nas paredes das condutas de saída de fumos de tais lareiras. Ora, a acumulação da fuligem já é facto imputável aos primeiros réus, na qualidade de proprietários das fracções em causa. E é-lhes imputável porque, em tal qualidade, tinham o dever de proceder à limpeza das paredes das condutas de evacuação de fumos e o de evitar a acumulação, nelas, de fuligem, o que não fizeram.

Com efeito, apesar de não haver na ordem jurídica uma norma especial a impor aos proprietários de um edifício o dever de limpar a fuligem que se vai depositando nas paredes das condutas de saída de fumos das lareiras, quando nelas são queimados combustíveis sólidos, este dever resulta, no entanto, do Regime Jurídico da Segurança Contra Incêndio em Edifícios [Decreto-Lei n.º 220/2008, de 12 de Novembro, redacção em vigor na altura do incêndio] e do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação [Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, na redacção em vigor na altura do incêndio].

Com efeito, segundo o n.º 3 do artigo 6.º do Regime Jurídico da Segurança Contra Incêndio em Edifícios, combinado com a alínea a) do n.º 1 do artigo 8.º do mesmo diploma, a manutenção das condições de segurança contra risco de incêndio em edifícios destinados a habitação é da responsabilidade dos respectivos proprietários, com excepção das suas partes comuns na propriedade horizontal, que são da responsabilidade do administrador do condomínio.

Por sua vez, nos termos do artigo 89.º do Decreto-Lei sobre Urbanização e Edificação, as edificações devem ser objeto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético. Segundo o artigo 2.º, n.º 1, alínea f), do mesmo diploma são Obras de conservação, as obras destinadas a manter uma edificação nas condições existentes à data da sua construção, reconstrução, ampliação ou alteração, designadamente as obras de restauro, reparação ou limpeza.

Ora, se a fuligem é inflamável e se a sua acumulação nas paredes das condutas de evacuação de fumos constitui um risco para a segurança do edifício e se o proprietário tem o dever de manter o edifício em condições de segurança contra o risco de incêndio, é de concluir que os primeiros réus, enquanto proprietários do edifício, tinham o dever de proceder à limpeza das condutas de evacuação dos gases das lareiras, o que não fizeram.

Nos termos do artigo 486.º do Código Civil, as simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.

Resulta da letra deste artigo que as omissões dão lugar à responsabilidade civil quando:
1. Exista o dever de praticar o acto omitido, por força da lei do negócio jurídico;
2. Se verificarem os restantes requisitos legais da responsabilidade civil por factos ilícitos, concretamente a culpa [visto que, segundo o n.º 2 do artigo 483.º do Código Civil, “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos previstos na lei” e o caso dos autos não é subsumível a nenhum deles] e o nexo de causalidade entre a omissão e o resultado danoso [visto que, segundo o artigo 563.º do Código Civil, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão].

Sobre o dever legal de praticar o acto omitido, cabe precisar, socorrendo-nos das palavras de Pedro Pita e Cunha Nunes de Carvalho, que “… a referência à lei como fonte do dever de garante, deve entender-se como referência a toda a ordem jurídica, e não apenas à lei civil, o que vem permitir a admissão como fontes do dever de agir no campo civil, de normas que imponham acções noutros ramos do direito…” [Omissão e Dever de Agir em Direito Civil, Almedina, página 214].

E assim sendo é de considerar verificada a primeira condição da responsabilidade prevista no artigo 486.º CC, consistente, no caso, no incumprimento do dever de os réus procederem à limpeza da fuligem que se depositava nas paredes das lareiras das fracções do edifício.

O incumprimento é de considerar culposo, com base no critério da apreciação da culpa enunciado no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, ou seja, tendo por referência a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso. Vejamos.

Como escreve Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª Edição, Reimpressão, Coimbra Editora, página 353, “com esta maneira de dizer quer-se visar o homem de diligência normal”. Isto é, o legislador toma como referência, como modelo ou padrão de conduta, para efeitos de apreciação da culpa, o comportamento do homem de diligência normal.

Esta diligência normal apura-se, por sua vez, perante “as circunstâncias de cada caso”. Citando de novo Inocêncio Galvão Teles, na obra indicada, páginas 353 e 354, a referência às circunstâncias de cada caso tem um duplo alcance. “Em primeiro lugar, significa que o próprio padrão a ter em conta varia em função do condicionalismo da hipótese e designadamente do tipo de actividade em causa, não podendo o modelo ser o mesmo conforme se trata da construção de um imóvel ou da condução de um processo judicial…”. Em segundo lugar, a alusão às circunstâncias de cada caso significa que, para se concluir se houve ou não culpa, se deve conjecturar como o homem-padrão (…) teria agido dentro do condicionalismo concreto da hipótese. Não se pode considerar uma conduta ideal considerada com abstracção desse condicionalismo, mas integrada nele”.

Sendo este o critério que serve de referência à apreciação da culpa, cabe perguntar o é que faria um proprietário de diligência normal nas circunstâncias do caso, ou seja, se tivesse dado de arrendamento para habitação algumas das fracções do prédio que lhe pertencia, sabendo que as fracções tinham lareiras que permitiam a combustão de lenha. E a resposta é a de que vigiaria o estado das condutas de evacuação de fumos e procederia à sua limpeza, no caso de notar que existia fuligem acumulada nas paredes das condutas.

Quanto ao nexo de causalidade entre a omissão e os danos, ele também é de afirmar. Com efeito, se os primeiros réus tivessem procedido à limpeza das condutas, o incêndio não teria eclodido, ou seja, o acto omitido era adequado a evitar os danos.

Assim com base na matéria de facto acima descrita e no disposto nos artigos 486.º, 487.º, n.º 2, e 563.º, todos do Código Civil, os primeiros réus estão constituídos na obrigação de indemnizar os danos causados aos autores pelo incêndio.

Passemos, de seguida, à determinação da medida da indemnização.

Os autores pedem a condenação dos réus no pagamento da quantia de 21.636,00 € (vinte e um mil seiscentos e trinta e seis euros), a título de danos patrimoniais.

Tendo em conta a regra essencial em matéria de medida da indemnização em dinheiro, enunciada no n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, segundo a qual, “sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos”, é seguro afirmar-se que não há prova de que a diferença entre a situação patrimonial dos lesados, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal [[encerramento da discussão em 1.ª instância] e a que teriam nessa data se não fosse o incêndio seria a de 21.636,00 €.

Com efeito os autores, ora recorrentes, laboram com base no pressuposto de que os bens que perderam em consequência do incêndio tinham o referido valor quando se provou que, em consequência do incêndio, “os autores sofreram a perda dos objectos indicados na relação junta com a petição sob o n.º 7, cujo valor embora não tenha sido concretamente apurado não é inferior a dez mil euros (€ 10 000,00)”.

A situação que se depara ao tribunal após o julgamento é a de que não se sabe o valor exacto dos danos causados pelo incêndio. Ao certo sabe-se apenas que o prejuízo não foi inferior a € 10 000,00.

Quando, no momento da decisão, o tribunal ignorar o valor exacto dos danos, coloca-se a questão de saber se deve condenar no que se vier a liquidar, ao abrigo do n.º 2 do artigo 609.º do CPC, segundo a qual “se não houver elementos para fixar a quantidade, o tribunal condena no que se vier a liquidar, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”, ou deve fazer aplicação do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, segundo o qual “se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.

A propósito do n.º 2 do artigo 609.º do CPC – aplicável ao acórdão proferido em sede de apelação por remissão do n.º 2 do artigo 663.º do CPC – cabe dizer que o segmento da norma constituído pelos dizeres “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade…” tem sido objecto de duas interpretações.

Segundo uma, a falta de elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação é a mesma falta que justifica o pedido ilíquido, ou seja, é a falta de elementos que procede da circunstância de não serem conhecidos ou de estarem em desenvolvimento à data da acção ou à data do julgamento da matéria de facto. Fora do alcance da norma estavam os casos em que a inexistência de elementos procede do insucesso da actividade probatória do interessado. Cita-se, a título de exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1995, publicado no BMJ, n.º 443, páginas 404 e 405, e o acórdão do STJ proferido em 28-04-2009, proferido no processo n.º 08B0782, publicado no sítio www.dgsi.pt. onde a este propósito se afirmou: “a possibilidade de se remeter para liquidação posterior o montante da indemnização, constante do nº 2 do artigo 661º do Código de Processo Civil (….), numa sentença que condene no pagamento de uma indemnização, não se destina a ultrapassar a falta de prova de factos oportunamente alegados para demonstrar os prejuízos. Antes se destina a permitir a quantificação de danos que não seja viável no momento da sentença, seja por estar dependente de cálculos a efectuar, seja por não terem ainda cessado os danos a ressarcir”.

Segundo outra interpretação [que é a dominante no STJ e que este tribunal irá seguir, atendendo ao disposto no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil e à circunstância de tal interpretação ser a que favorece o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei], a inexistência de elementos que é tida em vista pela norma tanto abrange a inexistência de elementos que tenha origem na impossibilidade de os determinar até ao encerramento da discussão em primeira instância, como a inexistência que proceda do insucesso da actividade probatória do demandante. Em ambos os casos não há elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação e a solução deve ser igual para eles. Cita-se, a título de exemplo, o acórdão do STJ de 6 de Dezembro de 2006, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano XIV, Tomo III/2006, páginas 154 a 156, o acórdão do STJ proferido em 11-07-2013, no processo n.º 5523/05.2TVLSB, publicado em www.dgsi.pt. [onde se afirmou que a jurisprudência largamente dominante do Supremo ia no sentido desta interpretação] e o acórdão do STJ proferido em 5 de Fevereiro de 2015, no processo n.º 4747/07.2TVLSB, publicado no sítio www.dgsi.pt. onde se afirmou: “desde que se prove a existência (qualitativa) de danos, sem que os autos permitam a sua imediata quantificação, com ou sem recurso à equidade (quando esta seja admissível), a acção declarativa deve terminar com uma sentença de condenação ilíquida”, bem como o acórdão do STJ proferido em 22-09-2016, no processo n.º 681/14.8TVLSB, publicado em www.dgsi.pt.

Precise-se que, quando esteja em causa, como sucede no caso, uma obrigação de indemnização, a falta que é compatível com a condenação ilíquida é a que diz respeito a elementos relativos à determinação da medida da indemnização em dinheiro. Se a falta incidir sobre outros elementos essenciais da obrigação de indemnização, designadamente sobre o dano, o nexo de causalidade entre o facto e o dano ou sobre a culpa, nos casos em que esta constitui pressuposto da obrigação de indemnização, então a consequência é a improcedência da acção. Com efeito, se a falta de elementos versar sobre a existência do próprio dano, sobre o nexo de causalidade entre o facto e o dano, nos termos exigidos pelo artigo 563.º do Código Civil, ou sobre a culpa do demandado, então tal significará que o demandante não provou, como lhe competia, nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, os factos constitutivos do seu direito e a consequência desta falta de prova é a improcedência da sua pretensão.

Vistas a hipótese do n.º 2 do artigo 609.º do CPC e a do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, não é isento de dúvida a aplicação daquela ou desta norma a situações em que não seja conhecido o valor ou o valor exacto dos danos a ressarcir.     

No entender deste tribunal, o campo de aplicação das duas normas é, em termos esquemáticos, o seguinte: se ainda for possível fixar no incidente de liquidação a quantidade da condenação aplica-se o n.º 2 do artigo 609.º do CPC; se não for possível, aplica-se o n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil.

A possibilidade de quantificação da condenação, apesar de não figurar na letra no n.º 2 do artigo 609.º do CPC, resulta da conjugação deste preceito com o n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil (quando esteja em causa a medida de indemnização) e ainda com os n.ºs 3 e 4 do artigo 360.º do CPC, relativos aos termos da liquidação, e com o princípio da limitação dos actos enunciado no artigo 130.º do CPC, segundo o qual não é lícito realizar no processo actos inúteis. Na verdade, se não for possível fixar a quantidade no incidente de liquidação, a condenação do que se vier a liquidar constitui um acto inútil, o que é proibido por lei.

A favor desta interpretação do n.º 2 do artigo 609.º do CPC citam-se o acórdão do STJ proferido em 27 de Junho de 2000, publicado no BMJ, n.º 498, Julho de 2000, páginas 222 a 225, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 17/06/2008, no processo n.º 08A1700, publicado em www.dgsi.pt.

Segue-se daqui que, quando não houver elementos para fixar a quantidade, a opção do tribunal pela condenação no que se vier a liquidar, nos termos do n.º 2 do artigo 609.º, ou pelo julgamento segundo a equidade, conforme prevê no n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil, há-de ser fundamentada. Socorrendo-nos das palavras do acórdão do STJ proferido em 27 de Junho de 2000 “… a opção por uma ou outra dessas soluções depende do juízo que se formar, em face das circunstâncias concretas de cada caso, sobre a possibilidade de determinação do valor exacto dos danos: se esse juízo for afirmativo será de aplicar o artigo 661.º, n.º 2 [o artigo em causa é relativo ao CPC e corresponde ao n.º 2 do artigo 609.º do CPC civil em vigor] e, de contrário, deve aplicar-se o artigo 566.º, n.º 3”.

Seguindo a interpretação que se acaba de expor, entendemos que, no caso, seria inútil condenar os réus no que se viesse a liquidar. E seria inútil porque não se vê que outra prova é que poderia ser feita para apurar o valor exacto dos danos. Recorde-se que a questão do valor dos bens foi objecto de prova pericial, mas os peritos não puderam examinar a esmagadora maioria dos bens porque os mesmos já não existiam.

Pelo exposto, este tribunal irá fixar a indemnização segundo a equidade ao abrigo do n.º 3 do artigo 566.º do Código Civil.

 Entendemos que é equitativo fixar a indemnização em € 15 000,00 com base nas seguintes circunstâncias:
1. Apurou-se que os bens não têm valor inferior a € 10 000,00;
2. Os peritos apesar de não procederem à avaliação dos bens em virtude de os mesmos não existirem foram de opinião que muitos dos valores indicados pelos autores era razoável.

Passemos, de seguida, à apreciação do pedido de indemnização de danos não patrimoniais.

Os factos relevantes para a decisão são os seguintes:
1. Os autores (pais e filhos) ficaram desgostosos com a perda dos bens em consequência do incêndio;
2. Alguns dos bens, designadamente móveis, alguns quadros, e roupas dos autores, haviam sido oferecidos, e alguns deles estavam relacionados com eventos marcantes, baptizado, como sucedia com a toalha do baptizado e as velas do baptizado;
3. O menor S(…), a partir do incêndio, tem dificuldade em dormir;
4. A autora ficou muito abalada após o incêndio, quer pelo trauma, quer pelo desgosto de ter ficado praticamente sem nada no tocante a objectos pessoais e roupa.

Na matéria ora em apreciação, o quadro legal a atender é constituído pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 496.º do Código Civil e pelo artigo 494.º do mesmo diploma.

O n.º 1 do artigo 496.º estabelece que, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito

Por sua vez, o n.º 4 do artigo 496.º do Código Civil estabelece que o montante da indemnização dos danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º.

O artigo 494.º refere como circunstâncias atendíveis o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e quaisquer outras que se justifiquem no caso.

Apesar de a letra da lei – n.º 4 do artigo 496.º - não dizer expressamente que o montante da indemnização dos danos não patrimoniais dever ser proporcional à gravidade dos danos, a proporcionalidade entre a gravidade dos danos e o montante da indemnização tem apoio tanto neste número como no n.º 1 do mesmo preceito. Tem apoio no n.º 1 porque, segundo esta norma, apenas são indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Tem apoio no n.º 4 porque, dizendo esta norma que o montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, não se concebe que haja equidade se o montante da indemnização não for proporcional à gravidade dos danos. Como escreve Maria Manuel Veloso, Danos Não patrimoniais (Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Volume III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, páginas 543 e 544: “A ponderação sobre a gravidade do dano não patrimonial que se reflecte na fixação do montante da indemnização deve ter em conta uma ideia de proporcionalidade. A danos mais graves correspondem montantes mais avultados”.

Tendo presente este quadro legal e os factos acima descritos, são configuráveis como danos não patrimoniais com gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, o desgosto sofrido pelos autores com a perda dos bens e a dificuldade do menor S(…)em dormir.

Apesar de relevantes, não são de grande gravidade. Em consequência julga-se equitativo atribuir a cada um dos autores 100 euros pelo desgosto sofrido com a perda dos bens e 250 euros para o menor S(…) pelas dificuldades em dormir.


*

Resta apreciar a responsabilidade da seguradora.

Os autores fundaram a responsabilidade da seguradora no facto de os primeiros réus, na qualidade de proprietários do imóvel, terem transferido para ela, por contrato de Seguro titulado pela apólice 0003324103, a responsabilidade civil.

Na contestação, a ré seguradora alegou que celebrou com o primeiro réu [e não como os dois primeiros réus] um contrato de seguro multirriscos habitação, titulado pela apólice n.º 3324103, que entrou em vigor em 21.09.2013, e regulado pelas Condições Gerais e Particulares que se juntam como docs. 01 e 02, mas que tal contrato não cobria os danos cuja indemnização era pedida pelos autores.

Apreciação do tribunal:

Pelas razões a seguir expostas é de julgar procedente, nesta parte, o recurso.

Com relevância para a decisão desta questão está provado que o primeiro réu celebrou com a companhia de seguros T (…) um contrato de seguro multirriscos habitação, titulado pela apólice n.º 3324103, que entrou em vigor em 21.09.2013, o qual é regulado pelas condições gerais e particulares que foram juntas com a contestação sob os documentos 1 e 2.

Do exame de tais documentos destacamos as seguintes cláusulas com relevância para a decisão:
1. Segundo as condições particulares, que é, segundo as definições da apólice [cláusula 1.ª, alínea d)], “o documento onde se encontram os elementos específicos e individuais do contrato, que o distinguem de todos os outros”, o seguro em causa nos autos cobre a responsabilidade civil do proprietário do edifício até ao montante de 100 000,00 euros, sem franquia.
2. Por sua vez, segundo a condição específica da apólice sobre responsabilidade civil do proprietário, a garantia abrange, até ao limite de capital seguro constante nas Condições Particulares, os danos patrimoniais ou não patrimoniais, directamente decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros, em consequência da propriedade do imóvel seguro, bem como decorrentes da sua qualidade de inquilino ou ocupante do local de risco.

Resulta destas cláusulas que, entre os riscos cobertos pelo contrato de seguro, está o risco de constituição, no património do segurado, de uma obrigação de indemnizar terceiros. O seguro em causa é, assim, também um seguro de responsabilidade civil, tal como este é definido no artigo 137.º da Lei do Contrato de Seguro [Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril].

Quanto ao âmbito do seguro [artigo 138.º da Lei do Contrato de Seguro], ou seja, quanto à obrigação de indemnizar cujo risco de constituição foi acordada [definida na condição específica da apólice sobre responsabilidade civil do proprietário acima transcrita], ela compreende claramente a obrigação de indemnizar que impende sobre o primeiro réu. Com efeito, a garantia da responsabilidade civil abrange a responsabilidade civil do proprietário por danos patrimoniais ou não patrimoniais, directamente decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros, em consequência da propriedade do imóvel e a responsabilidade civil do primeiro réu pelos danos causados aos autores decorre precisamente da propriedade do imóvel seguro. Se não fosse proprietário dele, concretamente do 3.º direito e do 1.º direito, não seria responsável pelos danos resultantes do incêndio.

Em consequência é de afirmar que a ré garante a obrigação de indemnização do primeiro réu.

Por fim cabe dizer que sobre o montante da indemnização pelos danos patrimoniais são devidos juros de mora legais, desde a citação até efectivo pagamento, por aplicação combinada do artigo 804.º, n.º 1, artigo 805.º, n.º 2, alínea b), do artigo 806.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil.

Sobre o montante da indemnização pelos danos não patrimoniais são devidos juros de mora legais desde a prolação desta decisão até ao efectivo pagamento, considerando a interpretação dos artigos 805.º, n.º 3, e 806.º, n.º 1, ambos do Código Civil, feita pelo acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2002 [DR 1.º Série-A, de 27-06-2002] e o facto de a indemnização dos danos não patrimoniais ter tido por referência o momento da prolação deste acórdão.


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Decisão:

Julga-se parcialmente procedente o recurso e, em consequência:
1. Revoga-se a decisão de julgar improcedente a acção e de absolver os réus do pedido;
2. Substitui-se a sentença por decisão a julgar parcialmente procedente a acção e a condenar os réus a pagar aos autores os seguintes montantes:
a) A quantia de quinze mil euros [€ 15 000,00], a título de indemnização de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora legais desde a citação até efectivo pagamento;
b) A quantia de cem euros [€ 100] a cada um dos autores N (…) e S (…), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento.
c) A quantia de duzentos e cinquenta euros [€ 250] ao autor S (…)a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora desde a data desta decisão até integral e efectivo pagamento;
3. Absolvem-se os réus da parte restante do pedido.


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Responsabilidade quanto a custas da acção e do recurso

Visto o n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de os autores e os réus terem ficado vencidos tanto na acção como no recurso, condenam-se os autores e os réus nas custas da acção e do recurso na proporção, respectivamente, de 48% para aqueles e de 52% para estes.

Coimbra, 10 de Dezembro de 2020

Emídio Santos ( Relator )

Catarina Gonçalves

Maria João Areias