Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
380/09.2TBAVR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
PRESUNÇÃO INILIDÍVEL
INIBIÇÃO
EXERCÍCIO
COMÉRCIO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 02/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO AVEIRO CBV
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 185, 186, 189 Nº2 C) CIRE
Sumário: 1.- As situações, elencadas nas diversas alíneas - a) a i) – do nº 2 do art. 186º do CIRE, configuram, só por si, verdadeiras presunções juris et jure de insolvência culposa, consagrando-se, assim, ali uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

2.- O incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial ( art.186 nº2 h) CIRE ) quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental.

3. Com a medida de inibição prevista na alínea c) do nº2 do Art. 189º do CIRE não se trata nunca de punir o dolo ou a culpa constitutiva ou agravadora da situação de insolvência, mas de tutelar um interesse colectivo axiológica e sistemicamente relevante.

4. A norma da alínea c) do nº2 do art.189 do CIRE não é materialmente inconstitucional, já que não se trata de uma medida arbitrária ou desproporcionada.

5. Na ponderação do período de inibição a fixar nos termos de tal normativo legal deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação culposa da insolvência.

Decisão Texto Integral: Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

I- RELATÓRIO

         1. No incidente pleno de qualificação da insolvência de D (…) Lda., os credores A (…), Ldª e DL (…) apresentaram alegações pugnando pela qualificação da insolvência como culposa alegando que:  pouco tempo antes da declaração da insolvência, o (único) gerente da insolvente, nessa qualidade, com a cumplicidade e vantagem patrimonial de  familiares, alienou três prédios da insolvente sem que na respectiva  contabilidade tenha entrado o produto dessa venda; a apresentação à insolvência assenta num plano estratégico previamente traçado destinado à subtracção patrimonial da aqui insolvente e de outras duas sociedades geridas pela mesma pessoa, em prejuízo de todos os credores; em Fevereiro de 2008, Arnaldo Oliveira, na qualidade de gerente da  insolvente, vendeu dois imóveis desta pelo preço individual e declarado de €  260.000,00, quando o valor de cada um deles era de € 375.000,00.

         2. O sr. administrador da insolvência juntou parecer alegando que procedeu à resolução incondicional do contrato de compra e venda de três prédios da insolvente realizada em Dezembro de 2008 a (…), que qualificou de ato celebrado a título gratuito porquanto, não obstante nela se ter declarado que a insolvente havia sido paga do preço declarado de € 65.000,00, o facto é que tal valor não entrou em qualquer conta da insolvente nem foi contabilizado porquanto, conforme lhe foi declarado pelo gerente da insolvente, o dito ato constituiria uma forma de dação em pagamento efectuada a um credor; mais alegou que as conclusões alcançadas em auditoria centrada à movimentação da conta de sócio do  gerente (…) – por ter constatado uma utilização da mesma como  plataforma de movimentos contabilísticos diversos e circunstancialmente avultados – não permitem fundamentar uma insolvência culposa por ausência de prova de qualquer prejuízo para os credores motivados por actos  de gestão do gerente (…) para além do ato que resolveu, subsistindo dúvidas cujo esclarecimento apenas se poderia alcançar através de auditoria a outras empresas que estão fora do seu domínio do administrador da insolvência nestes autos.

         Concluiu pela qualificação da insolvência com carácter fortuito.

         3. O Ministério Público emitiu parecer concluindo pela qualificação da insolvência como culposa com fundamento legal nas als. a), b) e d) do nº 2 do art. 186º do CIRE alegando que, conforme conclusões do relatório junto pelo sr. Administrador da insolvência, dele resulta que nem todos os movimentos registados nas contas de sócio encontram boa justificação nos elementos que lhe foram apresentados para consulta, havendo necessidade de proceder a uma auditoria mais extensa, pelo que nessa matéria vários aspectos ficaram por esclarecer; mais alegou que, conforme relatório de auditoria solicitada à Divisão de Justiça Tributária, o sócio gerente da insolvente transferiu três imóveis desta a favor de (…), acto que qualifica de comportamento grave susceptível de esvaziar o património da insolvente com prejuízo para os respectivos credores.

           

         4. A insolvente e o requerido (…) deduziram oposição, alegando que: a venda dos lotes a (…) foi celebrada no intuito de pôr termo a questões, atinentes com os ditos lotes, que eram objecto de discussão em acção judicial movida pela insolvente contra D (…)Ldª do credor DL (…), considerando que este e aquele tinham boas relações entre si e que, por causa daquelas questões, a insolvente estava impedida de dar a utilização devida aos referidos lotes, pelo que o pagamento do preço que na venda foi declarado apenas seria pago após a entrega, pela sociedade (…), do montante de € 64.447,65, conforme acordo realizado no âmbito da dita acção, mas que não chegou a ser concretizado/cumprido, ou após a venda a terceiros dos referidos lotes; mais alegou que, face às questões administrativas de licenciamento e exigência de alteração da solução urbanística, aqueles lotes não tinham qualquer valor comercial; os imóveis objecto das vendas realizadas em Fevereiro de 2008, já em declínio acentuado do mercado imobiliário, foram vendidos pelo preço efectivamente declarado e recebido, de € 260.000,00 cada um.

         Concluem pela ausência de factos susceptíveis de se subsumirem aos tipos das alíneas do art. 186º s. d), alegando que, através da compra e venda que foi objecto de resolução pelo sr. administrador da insolvência, o gerente da insolvente tudo fez para que um negócio ruinoso, por culpa exclusiva do credor DL (…) e da sociedade por este gerida, gerasse mais valias para a insolvente ou, pelo menos, não gerasse prejuízo, e os restantes bens vendeu-os a preços razoáveis numa fase de declínio do mercado, não se apropriando de bens da sociedade para si.

            5. Foi proferido despacho saneador, no qual foram aferidos pela positiva os pressupostos processuais da validade e regularidade da instância e seleccionada, organizada a matéria de facto considerada relevante para a  decisão da causa.

         6. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento e, a final, foi decidida a matéria de facto e proferida sentença na qual se decidiu_

         a) Qualificar como culposa a insolvência de D (…), Ldª.

         b) Declarar afectado pela qualificação o gerente (…)

         c) Declarar (…) inibido, pelo período de 60 (sessenta) meses, para o exercício do comércio e  para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de  sociedade comercial ou civil, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa.

         d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo requerido (…).

           

         7. Irresignado com o assim decidido, recorreu o requerido (…) o qual encerra o recurso de apelação interposto com as seguintes conclusões:

         A- No incidente de qualificação da insolvência, relativo à insolvência de D (…), Lda. visões das alíneas d) e h), nº2, do art.186º do CIRE, entendemos não ser, só por si, suficiente para qualificar a insolvência como culposa.

            B – Nas situações a que alude o art.186º, nº2 do CIRE, o que se pretendeu foi extrair uma conclusão jurídica para alcançar a situação definida no nº1, do art.186º, do CIRE ficcionando desde logo a verificação da situação de insolvência dolosa.

         C – Entendemos que o que nos termos da al.h), do nº2, do art.186º vem estabelecido como presunção inilidível da insolvência culposa é o incumprimento, em termos substanciais, da obrigação de manter a contabilidade organizada de molde a poder ser “lida” e entendida, não sendo pois, qualquer incumprimento, nem qualquer irregularidade contabilística que preencha a presunção em questão, o que no caso em apreço, não foi provado,

            D – e o que nos termos da al.d), do nº2, do art.186º vem estabelecido como tal, é que a disposição de bens tenha favorecido de tal forma o devedor ou terceiros que estes, deste acto, tenham tirado vantagens económicas, o que no caso concreto, não se provou que tenha acontecido.

         E – Embora a lei não preveja nem imponha as regras de dosimetria da fixação do tempo da inibição, temos para nós que, na sua fixação, o juiz deva ter em atenção a gravidade do comportamento e a sua efectiva relevância na verificação da situação de insolvência e, apesar de amparada no escopo da al.c), do nº2, do art.189º, não ultrapassar, em concreto, a linha dos direitos fundamentais do cidadão.

         F – A restrição de 60 meses imposta ao recorrente, não visa salvaguardar o interesse dos credores – sua função essencial – mas antes assume um caracter ou natureza sancionatória, na verdade uma pena, colide frontalmente com os ditames da restrição contidos no art.18º, nº2, da CRP e atenta contra os preceitos do art.26º da CRP que não consente que na restrição a um direito fundamental, violando os princípios da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade ali ínsitos

            G – e, por conseguinte, face a essa excessividade, tal decisão está eivada de inconstitucionalidade, também porque viola os princípios e direitos constitucionais protegidos e consagrados na Constituição, nomeadamente o direito ao trabalho (art.58º, nº1 da CRP) e com liberdade de escolha (art.47º, nº1 a CRP), o direito à iniciativa económica (art.61º, nº1 da CRP) e até à propriedade privada (art.62º, nº1da CRP), e está ferida de inconstitucionalidade,

         H – pelo que, não sendo revogada “in totum” a douta sentença sob recurso, deverá fixar-se a inibição pelo máximo de dois anos, nos termos da alínea c), do nº2, do art.189º”.

            8. Contra-alegou o Mº Pº, aduzindo que da verificação das situações previstas nas alíneas d) e h) do Nº2 do Art. 186º do CIRE em que se fundamentou a decisão recorrida para qualificar a insolvência culposa, resulta uma presunção inilidível, pelo que, quando se mostram verificados esses casos e os demais previstos no Nº2 do citado Art. 186º do CIRE, se impõe ao julgador, sem mais exigências, qualificar a insolvência como culposa, e que atenta a gravidade dos factos imputados ao requerido, nenhum reparo há a fazer ao período de inibição que lhe foi aplicada na sentença, pugnando, em consequência, pela confirmação da sentença recorrida.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso ( Arts. 684º, nº 3, 685º-A e 660º, nº 2, do CPC ), é a seguinte a questão a decidir:

I- Saber se com base na factualidade considerada provada na sentença recorrida poderão ter-se como verificadas as situações previstas na alíneas d) e h) do Nº2 do Art. 186º do CIRE conducentes à qualificação da insolvência como culposa. 

II- No caso de vingar a qualificação de culposa, se devem manter-se os efeitos de inibição pelo tempo decretado na sentença recorrida em relação ao seu gerente.

III – FUNDAMENTAÇÃO

A) De Facto

         Na sentença recorrida foi considerado assente o seguinte acervo fáctico:

         a) Na sequência da apresentação à insolvência por requerimento  apresentado em juízo em 30.01.2009, foi declarada a insolvência de D (…) Ldª por sentença transitada em julgado proferida em 02.02.2009.

         b) D (…) foi matriculada em 1997 na Conservatória do  Registo Comercial de Aveiro, tendo por objecto a construção civil, reparação  de edifícios, compra, venda e revenda de terrenos e edifícios, com o capital  social de € 60.000,00 distribuído por duas quotas sociais no valor de €  30.000,00 cada, uma titulada por D (…), Ldª, e outra titulada por A (…), designado gerente, cargo que até à declaração de insolvência exerceu cumulativamente com a gerência D (…) Ldª (processo de insolvência nº 382/09.9TBAVR), E (…), Ldª (processo nº 486/09.8TBAVR) e T (…), Ldª, e com a administração de A (…) SA e de B (…), SA.

            c) D (…) foi matriculada em 1995 na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro, tendo por objecto a construção civil, reparação de edifícios, compra, venda e revenda de terrenos e edifícios, com o capital  social de € 300.000,00 distribuído por duas quotas sociais no valor de €  150.000,00 cada, uma titulada pelo requerido, casado com (…), e outra titulada por esta, tendo sido designado gerente o  requerido, cargo que exerceu até à declaração de insolvência de D (…) de  Aveiro por sentença transitada em julgado proferida em 03.02.2009, na  sequência da apresentação à insolvência por requerimento de 30.01.2009.

            d) Foram apreendidos para a massa insolvente três lotes de terreno na  sequência da resolução, operada nos termos do art. 120º e ss. do CIRE pelo  sr. administrador da insolvência, do contrato designado de compra e venda  celebrado por escritura pública outorgada em 23.12.2008 entre a insolvente e (…) tendo por objecto aqueles lotes (descritos na Conservatória do Registo Predial de Aveiro, freguesia de Requeixo, sob as  fichas nº 2410, 2411 e 2412, artigos 718, 719 e 720), e cujos preços pelos valores ali declarados (€ 24.000,00, e 17.000,00 e 24.000,00) foram inscritos  na conta de sócio como pagamento da dívida da empresa ao sócio, que  passou a apresentar saldo credor (sobre a sociedade) no montante de €  61.372,26, e inscritas a crédito na conta 71113.

            e) O preço declarado na escritura de compra e venda aludida em d) não ingressou nos cofres/tesouraria/contas bancárias da insolvente.

         f) Por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada em 28.02.2008, D (…), representada pelo requerido, declarou vender  a (…) e (…) e estes declararam comprar a D (…),  pelo preço de € 260.00,00 (correspondente ao valor tributário), o prédio  urbano composto de moradia unifamiliar sita na Praia da Barra, descrito na  Conservatória do Registo Predial de Ilhavo sob a ficha nº 8220 e ali inscrito em benefício da vendedora pela Ap. 13 de 30.09.2003, e sobre o qual  incidem hipotecas inscritas em 18.11.2003, 21.10.2005 e 29.05.2007 a favor da Caixa Económica do Montepio Geral, cujo cancelamento o requerido declarou encontrar-se assegurado, prédio ao qual, pela mesma escritura, os compradores e o representante daquele Banco declararam atribuir o valor de € 325.000,00 e constituir e aceitar hipoteca em benefício do mesmo Banco para garantia integral do cumprimento das obrigações assumidas pelos compradores perante a dita instituição financeira por contrato de mútuo celebrado ao abrigo da linha de crédito à habitação – Montepio Habitação, até ao montante máximo de € 376.666,40, confessando-se os compradores/mutuários devedores àquela instituição da quantia de € 260.000,00 que naquele ato dela declararam receber a título de empréstimo para aquisição daquele imóvel; mais declararam vendedores e compradores que naquele contrato houve intervenção de mediador imobiliário (J(…), Ldª.

         g) Por escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca celebrada em 27.02.2008, D (…), representada pelo requerido, declarou vender a (…)e este declarou comprar a D (…), pelo preço de € 260.00,00 (correspondente ao valor tributário), prédio urbano composto de moradia unifamiliar sita na Praia da Barra, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ilhavo sob a ficha nº 6942 e ali inscrito em benefício da vendedora pela Ap. 13 de 18.11.2003, e sobre o qual incidem hipotecas inscritas em 18.11.2003, 21.10.2005 e 29.05.2007 a favor da Caixa Económica do Montepio Geral, cujo cancelamento o requerido declarou encontrar-se assegurado; mais declararam vendedores e comprador que naquele contrato houve intervenção de mediador imobiliário (J (…) Ldª).

         h) Na conta 25514 de D (…), Ldª (declarada insolvente no âmbito do processo nº 486/09TBAVR deste Juízo, da qual eram sócios o requerido, a sua esposa e a aqui insolvente, com quotas sociais de €  25.000,00, € 12.500,00 e € 12.500,00, respetivamente) consta inscrito um movimento  de abertura em 2007 de € 6.825,59 a crédito; os subsequentes movimentos em 2007 e 2008 são constituídos por pagamentos por conta, titulados por documentos de suporte contabilístico, apresentando um saldo credor (de D (…) sobre E (…)) de € 58.039,70.

         i) Na conta 25511 do requerido na D (…) consta inscrito um saldo inicial devedor (do requerido à sociedade) de € 50.246,40, um depósito de € 75.000,00 inscrito em 20.07.2007, que transforma a natureza da dita conta, de devedora, em conta credora sobre a sociedade, e que é reforçada em 26.02.2008 com a inscrição de um depósito de € 45.000,00, ambos titulados por cheques do requerido ao portador.

         j) D (…) instaurou ação contra DLSJ (…), Ldª (da qual o credor (…) é sócio-gerente) alegando que esta construiu um muro que invadiu os limites de um dos lotes que foram objeto da venda aludida em d) (lote nº 1), ação que correu termos sob o nº 5632/03.2TBAVR-B do 2º Juízo Cível do Tribunal de Aveiro, e que terminou neste Juízo por desistência do pedido apresentada pelo sr. administrador da insolvência no âmbito da audiência designada para o dia 17.12.2009 (fls. 614 do apenso D)

         l) À data da apresentação à insolvência D (…) não detinha qualquer património para além dos investimentos financeiros e empréstimos  imobilizados decorrentes do seu relacionamento com E (…), Ldª, da qual era sócia.

         m) No ano de 2007 a oferta para venda dos prédios objecto das escrituras aludidos em f) e g) estava publicitada em imobiliária pelo preço de

€ 325.000,00.

         n) O preço declarado nas referidas escrituras ingressou na contabilidade e contas da insolvente.

         o) (…) aceitou os prédios objecto da escritura aludida  em d) para garantia dos créditos de sociedade (…) Ldª (da qual aquele é  sócio gerente) sobre D (…)comprometendo-se perante o  requerido a proceder à venda dos ditos prédios, dando-lhe preferência na aquisição, e a devolver-lhe (ao requerido) o diferencial entre o valor da venda e o valor da dívida de D (…) a S (…) Ldª e das despesas decorrentes da escritura (IMT, IMI, despesas de notário, conservatória, outras e mais valias).

            p) Algumas das inscrições/registos a crédito e a débito na conta de  sócio do requerido da insolvente (25511) correspondem a movimentos/operações financeiras realizadas com terceiros em nome da insolvente ou que a ela foram reportadas através daquelas inscrições/registos, e inscritas na referida conta por indicação, nesse sentido, do requerido ao TOC da D (…), prática da qual resultou prejuízo/dificuldade para a compreensão/percepção dos referidos movimentos/operações, agravado pelo facto de do documento de suporte contabilístico das ditas inscrições – vg. cheques, talões de caixa ou de depósito, etc. – não constar anotada a causa ou fundamento dessas mesmas inscrições/movimentos, para cuja averiguação e sindicância seria necessário recorrer aos extratos bancários pessoais do requerido e à contabilidade das sociedades intervenientes ou afetadas por essas mesmas operações.

B) De Direito

         I- Encetaremos a apreciação do presente recurso pela abordagem dos requisitos para a qualificação da insolvência culposa com base na verificação das situações previstas na alíneas d) e h)  do Nº2 do Art. 186º do CIRE que constitui objecto das conclusões do recurso.

            De acordo com o Art.185º do CIRE (diploma a que nos referiremos na falta de qualquer outra referência expressa) a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita; quando culposa a relevância desta qualificação respeita à situação jurídica do insolvente ou das pessoas por ela abrangidas, nos termos previstos pelo art. 189º.

         Constando do artigo seguinte ao referido Art. 185º a definição de insolvência culposa, do que nele se dispõe resulta que a insolvência fortuita se delimita por exclusão de partes. 

         Foi intenção manifesta do legislador – preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março - evitar insolvências fraudulentas ou dolosas e por outro lado, incutir uma maior eficácia na responsabilização dos titulares de empresa e dos administradores de pessoas colectivas, através da instauração oficiosa do incidente limitado de qualificação da insolvência, destinado a averiguar se a insolvência é fortuita ou culposa, entendendo que é sempre culposa “ em caso de prática de certos actos, e presumindo a verificação de culpa grave em outras situações.

         Dispõe o Art. 186º que:

            "1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

         2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:

         a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

         b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

         c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

         d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

         e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

         f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

         g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

         h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido um contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

         i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188. °

         3- Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

         a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

         b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.

         4- ( ... )

         5- ( ...) “.

         Da concatenação de tais preceitos legais resulta que, sem prejuízo daquela noção geral, o legislador, a partir de certas condutas dos administradores (relacionadas com actos destinados a empobrecer o património do devedor ou com o não cumprimento de determinadas obrigações legais), estabeleceu, através do Nº 2 citado Artº 186º, presunções de insolvência culposa, impondo como pressuposto que o insolvente não seja uma pessoa singular.

         Ao utilizar a expressão “considera-se sempre”, o legislador quis deixar bem vincado que as situações elencadas nas diversas alíneas - a) a i) – do Nº 2 do citado Art. 186º configuram, só por si, verdadeiras presunções juris et jure de insolvência culposa.

         Consagra-se, assim, ali uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

         Significa tal que, não sendo o insolvente uma pessoa singular, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do Nº 2 do sobredito Art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa – neste sentido, entre muitos outros, Carvalho Fernandes/João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Júris, vol. II, págs.14, nota 5, e 15, nota 8; Teles de Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina, 2009, págs. 270/271; Carvalho Fernandes, in A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor, pág. 94, da revista Themis, edição especial, 2005”; Ac do STJ de 06-10-2011, Acs. RC de 21/4/2009, 17/2/2009, de 23/06/2009, de 28/10/2008 e de 19-01-2010, Acs. da Relação de Lisboa, de 22/01/2008 e 17/01/2012,todos disponíveis in www.dgsi.pt.

         É que, como refere Teles de Menezes Leitão, in ob.cit. pag. 272., “ Verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art. 186.º, n.º 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário.”

         Do que se deixa dito, resulta, pois, que ao contrário do propugnado pelo recorrente não é necessário que, uma vez verificadas as situações elencadas no Nº2 do citado Art. 186º, tenha de apurar-se que as mesmas provocaram a situação de insolvência ou que a tenham agravado.

         Na sentença recorrida foi considerado – a partir da factologia constante das alíneas d), e) e o) da fundamentação de facto que dela consta - integrar-se “ no contexto legal acabado de descrever, mais precisamente na previsão legal da al. d), a disposição do único activo da insolvente (terrenos para construção) em benefício de um credor da D (…), Ldª (também gerida pelo requerido), na precisa medida em que, como era seu propósito, e não obstante a formalização de (falsas) declarações de compra e venda, tal disposição correspondeu a efectiva dação em pagamento de dívida de terceiro por recurso a bens da aqui insolvente e, assim, a disposição de bens desacompanhada de qualquer fluxo financeiro em benefício desta, fluxo que deveria corresponder ao preço/produto da venda, que não ingressou nos cofres/tesouraria/contas bancárias da insolvente, mas que, potencialmente, conforme o acordado entre o comprador e o requerido, ainda poderia resultar em parcial proveito pessoal deste (pelo montante correspondente ao diferencial entre o declarado valor da falsa venda e o valor da dívida da D (…) ao credor desta).”

         Mais se considerando que “ tal operação, formalizada a pouco mais de 30 dias da apresentação da devedora à insolvência, integra ostensivo favorecimento de terceiro e, embora com deferimento no tempo, do próprio requerido, em detrimento dos credores da insolvente, através da disposição de bens desta sem o ingresso do correspondente valor nos respetivos cofres, quando era sobejamente conhecida do requerido a situação económica e financeiramente deficitária da insolvente (que, conforme alegado na petição inicial, vinha apresentando e acumulando consecutivos prejuízos desde há cerca de seis anos).

         Conduziu assim a uma efetiva e relevante diminuição do ativo da insolvente em consequência da disposição do único ativo de que dispunha para satisfação do seu passivo, disposição essa levada a cabo pelo requerido pouco antes da apresentação a juízo para declaração da insolvência, sem que para esta ou para os seus credores tenha resultado um qualquer proveito, atividade e valoração que não ficam prejudicadas pelo facto de o sr. administrador da insolvência ter procedido à resolução de tal negócio nos termos dos arts. 120º e ss”.

         Da mesma forma que, com base na factualidade contida na alínea p) da fundamentação de facto que consta da sentença consta foi considerado integrar-se “ ainda nas circunstâncias qualificativas do nº 2 do art. 186º, mais precisamente, na prevista pela al. h), os factos que no âmbito da audiência foram enunciados, atinentes com operações realizadas com terceiros, contabilisticamente traduzidas em entradas e saídas (à semelhança da dita falsa escritura de compra e venda, esta com subsequente parcial proveito pessoal para o requerido, conforme projetado por acordo inter partes), e que, ao invés de serem inscritas nas contas contabilisticamente próprias de acordo com a natureza de tais operações, eram diretamente inscritas na conta de sócio do requerido (por indicação deste ao TOC da insolvente) e, assim, contabilisticamente reportadas à insolvente, a coberto da personalidade coletiva desta, com prejuízo para a perceção das referidas operações, para cuja compreensão seria necessário recorrer aos extratos bancários pessoais do requerido e à contabilidade das sociedades intervenientes ou afetadas por essas mesmas operações.

            Conforme relatado e declarado pelo TOC (…) (que a solicitação do sr. administrador da insolvência procedeu à auditoria das contas de sócio do requerido), tal era um procedimento comum às sociedades geridas pelo requerido, que as geria como se de contas de casa se tratassem, por ausência de separação entre o sócio e a sociedade, fazendo da conta de sócio uso contabilisticamente indevido, na precisa medida em que esta se destina apenas a refletir os suprimentos que pelo sócio são efetivamente prestados à sociedade e os suprimentos que por esta lhe são restituídos, sendo que no âmbito de tal relação, e contrariamente à realidade da conta de sócio do requerido na sociedade, sequer é suposto existir saldo credor desta porquanto não é suposto que esta faça empréstimos ao sócio.

         De resto, organizada nestes moldes, a contabilidade não cumpre o desiderato que a justifica: obter cabal demonstração ou prova fiel e verdadeira sobre a posição financeira da empresa e do resultado das suas operações, para que sejam úteis aos investidores, financiadores, trabalhadores, fornecedores, administração pública e outros credores.”

         Não vindo postas em causa no presente recurso as circunstâncias fácticas que estribaram a decisão do tribunal a quo para qualificar a insolvência em causa como culposa, pois que nele não se impugna a factualidade considerada assente pelo tribunal recorrido, ter-se-á de considerar aceite pelo recorrente a globalidade dos factos assentes.

         Da análise de tal factualidade assente em que o tribunal recorrido se ancorou, resultam sem margem para dúvidas, concretizadas circunstâncias das quais legalmente derivam presunções inilidíveis de insolvência culposa, por referência às situações contempladas nas alíneas . d) e h) do Nº 2 do citado Art. 186º.

Tal resulta, indubitavelmente, da argumentação para tanto aduzida pelo tribunal recorrido, a qual corroboramos na íntegra, permitindo-nos, apenas, tecer algumas breves considerações sobre a circunstância prevista na citada alínea h) do Nº2 do Art. 186º.

            A contabilidade, através da escrituração, revela ao comerciante a sua situação económica e financeira (…) e põe-lhe em evidência os erros da sua actuação em certos aspectos do seu comércio, permitindo-lhe modificá-la, também lhe mostra os benefícios trazidos pela sua orientação em outros aspectos, animando-o a continuá-la. (…) É também uma garantia para quem contrata com os comerciantes, pois nela muitas vezes se fundam reclamações das pessoas que se sentem lesadas, e é nos seus lançamentos que vai buscar-se a prova. É igualmente obrigatória no interesse geral do público porque demonstra a maneira de negociar do comerciante, o seu procedimento honesto ou a sua má-fé nas transacções, sobretudo nos casos de falência em que se tem que reconstituir a sua vida mercantil, para averiguar se houve negligência, fraude ou culpa – neste sentido, vide Pires Cardoso, in Noções de Direito Comercial, 10.ª Edição, pág. 98 e 99.

            No caso dos autos provou-se que a contabilidade da insolvente, nos moldes em que se apresentava e que vêm descritos na factualidade provada  - alínea p) da factualidade provada - não cumpre o desiderato que a justifica: obter cabal demonstração ou prova fiel e verdadeira sobre a posição financeira da empresa e do resultado das suas operações, para que sejam úteis aos investidores, financiadores, trabalhadores, fornecedores, administração pública e outros credores, donde há que concluir que a insolvente não tinha a sua contabilidade organizada.

            Porém, isso, per se, não é suficiente para que se mostre preenchida a previsão da alínea h) do n.º 2 do citado artigo 186.º, pois é ainda necessário que o incumprimento de manter a contabilidade organizada se possa qualificar de substancial.

            Substancial significa aquilo que tem muita importância; que é considerável – neste sentido, vide Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, Verbo, Vol. II, pág. 3471.

            O incumprimento de manter a contabilidade organizada deve considerar-se substancial quando as omissões a esse nível atinjam um patamar que corresponde à não realização do que, em termos contabilísticos, é essencial ou fundamental.

            Se, como se extrai da factualidade provada, as operações realizadas com terceiros, contabilisticamente traduzidas em entradas e saídas, ao invés de serem inscritas nas contas contabilisticamente próprias de acordo com a natureza de tais operações, eram directamente inscritas na conta de sócio do requerido (por indicação deste ao TOC da insolvente) e, assim, contabilisticamente reportadas à insolvente, a coberto da personalidade colectiva desta, com prejuízo para a percepção das referidas operações, para cuja compreensão seria necessário recorrer aos extractos bancários pessoais do requerido e à contabilidade das sociedades intervenientes ou afectadas por essas mesmas operações, tal não pode deixar de comprometer seriamente os interesses que a obrigação de manter contabilidade organizada visa acautelar, pois, não permite obter de forma cabal demonstrar ou provar fiel e verdadeiramente a posição financeira da empresa e o resultado das suas operações, com utilidade para terceiros, pelo que não pode deixar de se entender que, como gerente da insolvente, o ora recorrente incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter a contabilidade organizada daquela.

         Assim sendo, dúvidas não restam, de que na situação em vertente se verificam as circunstâncias previstas nas alíneas d) e h) do Nº2 do Art. 186º qualificadoras da insolvência culposa da D (…), Lda., tal como concluiu o tribunal recorrido, improcedendo, portanto, as conclusões contidas nas alíneas A- a D- do recurso.

II- Vejamos, agora, se poderá proceder o recurso no tocante ao tempo da inibição do recorrente decretado na sentença, cujo encurtamento este pretende ver decidido para 2 anos em vez 60 meses fixados na decisão recorrida.

Preceitua o Art. 189º Nº2 que na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:

a) Identificar as pessoas, nomeadamente administradores, de direito ou de facto, técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas, afetadas pela qualificação, fixando, sendo o caso, o respectivo grau de culpa;

b) Declarar a inibição das pessoas afectadas para administrarem patrimónios de terceiros, por uma período de 2 a 10 anos;

c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;

d) Condenar as pessoas afectadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respectivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados.

As consequências da declaração de insolvência caracterizam-se pela patrimonialidade. Porém, no caso de qualificação da insolvência como culposa, aos efeitos patrimoniais da declaração de insolvência podem somar-se efeitos pessoais, quer relativamente à pessoa do devedor – se for uma pessoa física ou singular – quer no tocante aos administradores do devedor, quando este não tenha aquela qualidade – neste sentido Jorge Duarte Pinheiro, in Efeitos Pessoais da Declaração de Insolvência, Estudos em Memória do Professor Doutor José Dias Marques, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 207 e ss., efeitos esses, que atingem logo direitos fundamentais e mesmo direitos fundamentais que têm por objecto bens e direitos de personalidade.

         Quanto ao fundamento ou à razão material da inibição – que não é um conteúdo do estado de insolvência – defende  Oliveira Ascensão, in Direito Civil, Teoria Geral, 2ª edição, vol. I, Introdução, As Pessoas, Os Bens, Coimbra Editora, 2000 pág. 213 e Efeitos da Falência sobre a Pessoa e Negócios do Falido, RFDUL, vol. XXXVI, 1995, nº 2, págs. 326 e 327, que é uma coisa que se explica por si: a defesa geral da credibilidade do comércio e dos cargos cujo exercício é vedado ao atingido pela qualificação da insolvência. O CIRE, continuando uma larga tradição, denomina este efeito da qualificação da insolvência de inibição. Mas esta expressão não deve induzir a conclusão que se trata de uma incapacidade de exercício, já que não assenta numa verdadeira capitis diminutio nem é ordenada para a protecção do sujeito atingido por ela.

         Sugerindo, por isso, tal autor, in ob. cit. pag. 214, o seu enquadramento na categoria das incompatibilidades.

         Contra tal entendimento, e a sustentando a diversidade da inibição e da incompatibilidade, António Menezes Cordeiro, in Manual de Direito Comercial, I vol., 2001, Almedina, Coimbra, págs. 192 e 193. Cfr. também sobre a natureza e o alcance desta inibição, J. M. Coutinho de Abreu, in Curso, vol. II pág. 122 e ss., Luís A. Carvalho Fernandes, in Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, 2ª edição, Lex, Lisboa, 1985, págs. 310 a 313, A. Ferrer Correia, in Lições de Direito Comercial, Reprint, Lex, Lisboa, 1994, págs. 98 e ss. e José Gabriel Pinto Coelho, in Efeitos da Falência sobre a Capacidade do Falido segundo o Novo Código de Processo Civil, Estudos de Direito Comercial, vol. I, Das Falências, FDUL, Almedina, Coimbra, 1989, págs. 12 e ss.

         Salienta-se no acórdão desta Relação de Coimbra, de 07-02-2012, disponível in www.dgsi.pt, no qual, de forma exaustiva vem abordada a medida de inibição contemplada na citada alínea c) do Nº2 do Art. 189º, e que nos merece absoluto acolhimento e que por isso aqui seguimos e transcrevemos, que, a essa inibição “ É-lhe, por isso, absolutamente estranha qualquer finalidade sancionatória ou punitiva; não se trata nunca de punir o dolo ou a culpa constitutiva ou agravadora da situação de insolvência, mas de tutelar um interesse colectivo axiológica e sistemicamente relevante.”

         Pretende o recorrente que face à excessividade que representa a restrição por 60 meses que lhe foi imposta na sentença recorrida, tal decisão está eivada de inconstitucionalidade, também porque viola os princípios e direitos constitucionais protegidos e consagrados na Constituição, nomeadamente o direito ao trabalho.

         Conforme se defende, de forma lapidar, no último dos arestos citados, “ é claro que essa inibição colide com os direitos fundamentais da liberdade de trabalho, na dimensão de liberdade da escolha do género de trabalho, e da liberdade de iniciativa económica privada (artºs 47 nº 1, 58 nº 1 e 61 nº 1 da CRP) Direitos que também podem ser concebidos como manifestações do direito geral de personalidade ou mesmo como direito de personalidade a se - cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, in O direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, págs. 262 e Leite de Campos, in Lições de Direitos da Personalidade, separata do BFDUC, Coimbra, 1995, pág. 105 - mas dessa colisão não decorre, como corolário que não possa ser recusado, a ilegitimidade constitucional daquela norma da lei ordinária.

         Como a jurisprudência constitucional tem afirmado repetidamente, nem a liberdade de escolha da profissão nem a liberdade de iniciativa privada são direitos absolutos e legalmente incondicionáveis, antes estão, ambos, nos termos expressos pela própria Constituição, sujeitos, no seu exercício, às restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade dos interessados ou ao interesse geral (artºs 47 nº 1 e 61 nº 1) cfr., v.g., os Acs. do TC nºs 474/89 e 187/01, ATC, 14º vol., pág. 77 e ss., e www.tribunalconstitucional.pt., respectivamente.

         A liberdade de iniciativa económica privada – que se desdobra na liberdade de iniciar uma actividade económica (liberdade de criação de empresa ou de estabelecimento), e é neste sentido um direito pessoal, e na liberdade de organização, gestão e actividade da empresa (liberdade de empresa, do empresário ou liberdade empresarial), faceta em que assume a natureza de direito institucional – pode ser objecto de limites ou restrições mais ou menos extensos. O direito fundamental correspondente só pode exercer-se nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e mostra-se constitucionalmente funcionalizado ao interesse geral (artº 61 nº 1 da CRP). Não é, portanto, um direito absoluto, nem tem sequer os seus limites constitucionalmente garantidos Cfr. v.g., Acs. do TC nºs 76/85, ATC 5º vol., pág. 207 e 328/94, www.tribunalconstitucional.pt.. Não sendo um direito absoluto, é meramente consequencial a maior amplitude da liberdade de conformação do seu conteúdo do legislador ordinário.

         Não é, assim, de modo algum constitucionalmente inadmissível uma restrição desse direito para a qual possa ser dada uma razão material radicada no interesse colectivo ou geral como aquela que justifica, no caso de falência qualificada por dolo ou culpa grave, a inibição do administrador do ente administrado declarado insolvente.

         De resto, a medida responde mesmo a interesses ou exigências constitucionalmente atendíveis como a garantia do eficiente funcionamento dos mercados e do equilíbrio da concorrência entre as empresas (artº 81 f), 1ª parte, da CRP). A situação de insolvência perturba a eficiência do mercado e rompe o equilíbrio da concorrência entre as empresas, componente principal de uma economia de mercado. Neste contexto é constitucionalmente compreensível uma medida que, no limite, visa obstar a futuras insolvências em prejuízo definitivo de outros operadores económicos ou daqueles que, por qualquer título, estabeleçam vínculos de conteúdo patrimonial, v.g. os trabalhadores, com o insolvente.

         A liberdade de escolha da profissão ou trabalho assume-se como um direito subjectivo que não tem apenas um conteúdo negativo – de direito de defesa – mas inclui uma dimensão positiva ligada ao direito ao trabalho e, bem assim, um aspecto de liberdade no exercício da profissão, sem a qual, naturalmente, a liberdade de escolha nada valeria Acs. do TC nºs 328/94 e 446/91, www.tribunalconstitucional.pt..

         Mas este conteúdo da liberdade de escolha da profissão não impede, naturalmente, que, por exemplo, no tocante especificamente à profissão de comerciante, em princípio aberta a todas as pessoas singulares, a lei ordinária possa estabelecer proibições gerais – como ocorre com o comércio bancário ou com a actividade seguradora que só podem ser exercidas por sociedades anónimas autorizadas – ou incompatibilidades – como as que ferem os magistrados judiciais e do Ministério Público – ou impedimentos – como o que limita os agentes de comércio (artºs 14 nº 1 b) do RGIC, 7 nº 1 a) do DL nº 94-B/98, de 17 de Abril, 13 nº 1 do EMJ, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho, 60 nº 1 da LOMP, aprovada pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro e 253 do Código Comercial, respectivamente). Do mesmo modo, não vulnera aquela liberdade, a exigência de determinadas qualificações para o exercício de certa profissão ou de preenchimento de certos requisitos de idoneidade para aceder a esse exercício.

         E também não há razão sólida para concluir que a norma questionada se encontra ferida com a mácula da inconstitucionalidade por violação dos princípios, de matriz constitucional, da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade.

         Abstraindo da oscilação semântica do princípio constitucional estruturante da proibição do excesso ou, na acepção mais comum, das várias dimensões do princípio, igualmente estruturante, da proporcionalidade, a que, de resto, não é imune a própria jurisprudência constitucional Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, págs. 160 e ss. Este autor decompõe o princípio da proporcionalidade em sentido lato – ou como acha preferível, da proibição do excesso – em três subprincípios ou elementos: o princípio da idoneidade, o princípio da indispensabilidade ou da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito – ops. cit., págs. 162 e 163. Já, por exemplo, o Ac. nº 634/93 – ATC, 26º vol., págs. 205 e ss. – desdobra o princípio da proporcionalidade em três subprincípios: o princípio da adequação; da exigibilidade; o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, deve ter-se por certo que princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso representa, seguramente, um dos principais instrumentos de controlo da adequação substancial de medidas restritivas de direitos fundamentais e, por essa via, um limite externo à liberdade de conformação do legislador (artº 18 nº 2 da CRP).

         Perante o espaço de conformação do legislador e a função negativa de controlo que o princípio desempenha, o tribunal deve limitar-se a aferir se a regulação legislativa que estabeleça uma restrição do direito, da liberdade ou da garantia fundamental, é adequada ou idónea para a prossecução do fim visado pela lei, se é necessária ou indispensável por não existir meio menos lesivo para o direito, liberdade ou garantia restringida igualmente apto para a prossecução da finalidade visada, e, finalmente, se existe uma justa medida entre a restrição e o resultado que ela permite obter, de modo a que medida legal restritiva não se mostre desproporcionada, excessiva, desrazoável, relativamente ao fim alcançado.

         Já se isolou o fim prosseguido com a restrição: a credibilidade do comércio e dos cargos de gestão cujo acesso é vedado ao atingido pela qualificação. A medida restritiva – a inibição – é perfeitamente apta a realizar o fim visado com a restrição; não é possível fazer a prova da existência, para prosseguir o fim visado com a restrição, de outro meio alternativo menos restritivo ou agressivo que o utilizado; a comparação do entre o sacrifício imposto aos bens constitucionais e os benefícios ou vantagens prosseguidos e obtidos com a inibição mostra que esta é justa, adequada, razoável e proporcionada.

         A inibição revela-se, portanto, idónea ou adequada, indispensável ou necessária e proporcional.

         A regulação legislativa da inibição satisfaz o núcleo central dos requisitos exigidos às restrições dos direitos fundamentais tal como podem ser deduzidos do princípio da proibição do excesso ou da proporcionalidade.      Não há, assim, a mínima razão para estigmatizar a norma contido no artº 189 nº 2 c) do CIRE com o valor negativo da inconstitucionalidade O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta medida restritiva, tal como era configurada no artº 148 nº 1 do CPEREF, tendo concluído que era consentida pelo artº 47 nº 1 da CRP, não sendo arbitrária nem desproporcionada: Ac. nº 414/02, www.tribunalconstitucional.pt. Cfr., também, no mesmo local, o Ac. 464/02.”

            Na decisão recorrida ponderou-se, a propósito do período da inibição de 60 (sessenta) meses, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação, fundação, empresa pública ou cooperativa, que nela veio a ser fixada “ a gravidade do conjunto da conduta do requerido, consubstanciada nos factos supra analisados, nos quais no mínimo incorreu com culpa grave “.

         Em face dos factos considerados provados e que sustentam a qualificação como culposa da insolvência da D (…), Lda., para os quais se remete e que aqui nos escusamos de reproduzir, é indubitável que a conduta do recorrente, enquanto gerente da insolvente, se revela de gravidade bastante por forma a que, atenta a “ moldura “ da inibição prevista ( entre 2 e 10 anos ), se mostra proporcional, sensato e equilibrado o lapso temporal de 60 meses ( 5 anos ) que lhe foi fixado, pelo que, ao contrário do propugnado pelo recorrente, não se mostra tal restrição ferida de inconstitucionalidade, por violação dos preceitos legais contidos nos Arts. 18ª Nº2, 26º, 47º Nº1, 58º Nº1, 61º Nº1 e 62º Nº1 da CRP.

         Improcedem, assim, também as conclusões E- a H- do recurso.

         IV- Sumário ( Art. 713º Nº7 C.P.C. )

         1. As situações elencadas nas diversas alíneas - a) a i) – do Nº 2 do citado Art, 186º configuram, só por si, verdadeiras presunções juris et jure de insolvência culposa, consagrando-se, assim, ali uma presunção inilidível de culpa grave, como do nexo de causalidade entre esses comportamentos e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

         2. Com a medida de inibição prevista na alínea c) do Nº2 do Art. 189º do CIRE não se trata nunca de punir o dolo ou a culpa constitutiva ou agravadora da situação de insolvência, mas de tutelar um interesse colectivo axiológica e sistemicamente relevante.

         3. Não há razão para estigmatizar a norma contida em tal normativo legal com o valor negativo da inconstitucionalidade porque não se trata de uma medida arbitrária ou desproporcionada.

         4. Na ponderação do período de inibição a fixar nos termos de tal normativo legal deve levar-se em conta a gravidade da conduta da pessoa afectada com a qualificação culposa da insolvência.

         V- Decisão

         Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo apelante, confirmando-se a decisão recorrida.

         Custas pelo apelante.

  

Maria José Guerra (Relatora)

Albertina Pedroso

 Virgílio Mateus