Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
694/09.1GBAGD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: LEGÍTIMA DEFESA
Data do Acordão: 01/18/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÁGUEDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 32º, DO C. PENAL
Sumário: A exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º, do Código Penal, exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a actualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objectivos se referem à situação em que o agente actua e os dois últimos à acção de defesa.
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
           
1. No processo comum singular n.º 694/09.1GBAGD do Juízo de Instância Criminal de Águeda, por sentença datada de 4 de Julho de 2011,           
· foi o arguido A... ABSOLVIDO da prática, como autor material, de uma crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo artigo 143º do CP, julgando-se também improcedentes os pedidos cíveis interpostos nos autos pelo demandante B... e pelos HUC, EPE.

            2. Inconformado, o assistente B... recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
            «A) No dia 27 de Junho, o arguido ameaçou e injuriou o assistente quando este, chamou a atenção de um senhor, que não o arguido, porquanto uma bigota tinha sido colocada para lá do marco, já no seu terreno. O arguido irritado com a situação chamou vários nomes ao Assistente, e ameaçou-o de morte.
B) No dia 29 de Junho, dois dias depois do supra descrito, o Arguido, ainda irritado com a situação supra descrita, decide concretizar as suas ameaças, agredindo o Assistente, quando o mesmo se dirigia para um terreno seu, como habitualmente fazia, para roçar silvas.
C) Procedeu-se a julgamento e o tribunal absolveu o arguido dando valor absoluto e irrebatível apenas ao depoimento do arguido, depoimento esse, que não deve ser valorizado e contradiz não só depoimento do Assistente, coerente e consistente com todos os indícios conhecidos, designadamente as lesões relatadas nos relatórios médicos, bem como um ferro, pormenorizadamente descrito pela única testemunha presencial e a camisa que o assistente vestia quando foi agredido, objectos juntos aos autos e ainda o depoimento da testemunha G....
D) Foi absolvido o arguido porque o tribunal a quo, erradamente, salvo o devido respeito por opinião contrária, conclui pela legítima defesa e assim exclui a ilicitude.
E) Na verdade, não ficou provado em audiência de julgamento que o Assistente tenha avançado, com a foice ou qualquer outro objecto para o arguido, de modo a que este acreditasse que o ia ofender e assim que o arguido tenha agido com animus defendi.
F) Os meios de prova constantes no processo bem como a gravação realizada impõe decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
G) Não se conforma o recorrente com a douta sentença, por entender que o Tribunal a quo não procedeu a uma apreciação criteriosa da prova, antes, deu como assente a factualidade que aqui se impugna, verificando-se manifesto erro na valoração da prova, nos termos do artigo 410 n.°2 al.c) do C.P.P.
H) Da apreciação crítica de toda a prova produzida resulta que a fundamentação da convicção da sentença recorrida se alicerça em exclusivo, no depoimento do arguido.
I) Com a absolvição do arguido, foram violados os Artigos 31° e 32° do C.P.
J) Atento o exposto, deveria o Tribunal recorrido ter decidido pela condenação do arguido, ora recorrido, pela prática do crime de ofensas à integridade física simples p. e punido pelo n.°1 do art.143° do C.P. e consequentemente ser condenado ao pagamento do pedido de indemnização civil formulado.
NESTES TERMOS, nos melhores de Direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência ser o arguido recorrente condenado em conformidade com as alegações expostas».

            3. O arguido RESPONDEU ao recurso, entendendo que nenhuma censura pode ser acusada à douta sentença recorrida, que deverá manter-se.

            4. O Exmº Magistrado do Ministério Público de 1ª instância também RESPONDEU, concluindo que deverá ser o recurso julgado improcedente.

5. Admitido o recurso – conjunto - e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, a fls. 460-462, no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando a argumentação do Colega de 1ª instância.

            6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
 1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
             Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso[1], as questões a decidir consistem em saber se
· houve erro de julgamento, devendo antes ser condenado o arguido pelo crime pelo qual vem acusado;
· inexiste a comprovada situação de legítima defesa.

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA
            2.1. É o seguinte o elenco dos factos dados como provados na sentença recorrida:
1. No dia 29 de Junho de 2009, cerca das 18h00, quando o arguido se encontrava numa sua propriedade sita em …, Águeda, a apanhar figos de São João, foi abordado pelo Assistente B..., que tem um igualmente um terreno no local, e se encontrava munido de um instrumento agrícola em concreto não apurado, de formato compatível com uma foice;
2. tendo-se o arguido voltado, e vendo o Assistente com o instrumento agrícola dirigido a si com o braço levantado, o arguido, com o intuito de se defender, agarrou e empurrou o Assistente, tendo, de seguida, ambos caído no chão;
3. como consequência dessa conduta, o Assistente ficou com uma fractura ao longo da base da apófise odontóide, associada a muito discreto recuo do corpo C2 em relação à apófise odontóide, sem significativo compromisso do canal vertebral contíguo e ainda com uma ferida na face;
4. tal demandou para curar duzentos e dois dias de doença com igual período de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional;
5. o arguido é conhecido como pessoa que não é agressiva ou conflituosa, e de respeito;
6. o arguido aufere mensalmente € 4.950,00;
7. tem uma empresa de sistemas de rega que tem lucros anuais brutos de cerca de € 70.000,00;
8. reside em casa própria, que se encontra paga;
9. tem como habilitações académicas o 4º ano de escolaridade;
10. ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais;
*
11. em consequência do descrito em 2., B... recebeu tratamento médico nos Hospitais da Universidade de Coimbra, que ascendeu a € 4.262,47;
12. o demandante B..., em consequência do descrito em 2., foi suturado com pontos no sobrolho esquerdo no Hospital Distrital de Águeda, de onde foi transferido para os Hospitais da Universidade de Coimbra;
13. o demandante B... foi operado nos Hospitais da Universidade de Coimbra à fractura referida em 3. e posteriormente foi transferido para o Hospital Distrital de Águeda;
14. o demandante teve de utilizar colar de Zimmer no pescoço, o que lhe causou incómodo e vergonha;
15. o demandante B... despendeu nas deslocações com o táxi e taxas pagas nos Hospitais da Universidade de Coimbra, para consultas de ortopedia nos dias 17.08.2009 e 18.01.2010, quantia não inferior a € 139,98;
16. o demandante B... deslocou-se de táxi no dia 10.07.2009 para se deslocar do Hospital Distrital de Águeda para sua casa, despendendo € 7,50, bem como € 16,55 nas deslocações ao Centro de Saúde de Águeda;
17. o demandante despendeu € 60,00 numa consulta privada de oftalmologia em 21.12.2009;
18. o demandante foi operado às cataratas no olho esquerdo no Hospital Distrital de Águeda no dia 11.01.2010».

2.2. Já não resultou provado que:
«Para além daqueles que também já resultam logicamente excluídos pela factualidade provada, não se provaram os seguintes factos:
a). no dia 29.06.2009 houve uma troca de palavras entre o arguido e o Assistente;
b). o arguido atirou um ferro enferrujado com cerca de 20 cm de comprimento na direcção do Assistente, fazendo com que este ficasse atordoado e caísse ao chão;
c). aproveitando o facto de o Assistente estar caído no chão, o arguido desferiu vários pontapés que atingiram este em diversas partes do corpo;
d). o arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente o Assistente B..., bem sabendo que essa conduta era prevista e punida por lei penal;
g). o demandante despendeu € 10,00 em cada uma das três deslocações ao Gabinete Médico-legal de  Aveiro;
h). o demandante utilizou o colar de Zimmer durante dois meses;
i). o demandante, devido a fortes dores de cabeça e na coluna, durante quatro meses não conseguia levantar-se normalmente da cama, tendo que aguardar na cama sentado durante alguns minutos para erguer-se, com dificuldade;
j). em consequência da conduta do demandado, o demandante B... não voltou a ver bem da vista esquerda, por aquele lhe ter causado cataratas, sem possibilidade de melhorias;
l). ainda hoje o demandado não consegue roçar silvas, apanhar o pasto para os animais domésticos, plantar batatas, semear milho e feijões, em que tem de andar debruçado, sendo que tem dores no pescoço, não conseguindo rodar o pescoço sem incómodo e dores;
m). o demandante B... despendeu € 300,00 em pessoas que teve de contratar para realizar serviços agrícolas até Janeiro de 2010.
*
A demais matéria alegada é meramente conclusiva, de direito ou simplesmente irrelevante para a decisão da causa»

2.3. Motivou-se assim tal decisão probatória:
«Na ponderação da matéria factual, atendeu o Tribunal apenas à factualidade com interesse para as decisões de Direito plausíveis da causa, tendo sido desconsideradas todas as afirmações de pendor conclusivo e de matéria de direito.
Para a decisão da matéria de facto o Tribunal procedeu a uma análise global e criteriosa de toda a prova produzida, que foi interpretada, conjugada e ponderada segundo cânones de razoabilidade, adequação e sempre em observância das regras por que se pauta o processo penal.
Desde logo, e no que se refere à factualidade constante dos pontos 1 e 2 da matéria de facto dada como provada, as declarações do arguido e do Assistente estiveram entre si em contradição, aquele primeiro sustentando ter-se defendido de um ataque do Assistente e este último afirmando ter sido agredido pelo arguido.
Ponderando estes meios de prova, as declarações do arguido mostraram-se convictas, pormenorizadas e objectivas, localizando os factos no tempo e no espaço e esclarecendo o motivo da existência de uma discórdia prévia com o Assistente, relativa à colocação de uma rede num terreno, ponto por este último igualmente reconhecido.
Encontraram ainda apoio nos depoimentos de C..., tio do arguido, na parte em que confirmou a existência de um dissídio entre o Assistente e o arguido, dias antes, por causa da colocação de uma rede, bem como de D... e de F..., este filho do arguido, que, tal como a primeira testemunha, fizeram referência ao facto de, após, os factos, o arguido andar de um lado para o outro junto da casa do arguido.
Estes depoimentos foram entre si coerentes, revelando patente isenção, sendo que as testemunhas apenas descreveram factos dos quais mostraram ter efectivo conhecimento, relatando de modo claro a agitação do Assistente após os factos junto da casa do arguido, contrariando a versão trazida a julgamento pelo Assistente.
Já o Assistente, nas suas declarações, revelou ter um discurso não linear, não descrevendo os factos de modo encadeado, nem oferecendo justificação para os mesmos, acabando por enfatizar a alegada agressão pelo arguido, ter gritado e, logo a seguir, desmaiado.
Ainda que tenha encontrado apoio no depoimento de G..., sua esposa, de igual modo esta testemunha não revelou distanciamento dos factos, mostrou-se em partes hesitante e não ofereceu uma explicação para os factos por si relatados, que encontrasse apoio nas regras da experiência comum ou em qualquer acrescido meio probatório.
Tudo ponderado, as explicações oferecidas pelo arguido não se mostraram contrárias às regras do normal acontecer, antes o contrário, reveladoras que, em que as situações que têm por referente estremas de terrenos agrícolas são vivenciadas de forma muito intensa por quem vive da terra ou à mesma tem apego, bem como no relatado temperamento do Assistente, caracterizado com um vivenciar activo de questões relacionadas com aquele prédio (o que resultou dos depoimentos das testemunhas …).
Por sua vez, não obstante a fractura e ligeira deslocação do corpo C2, para além de se tratar de uma lesão perfeitamente compatível com uma queda num terreno agrícola, trata-se de lesão não impeditiva da movimentação do Assistente, mais a mais logo após os factos.
Por último, não são igualmente despiciendas as lesões do arguido referidas no relatório médico-legal de fls. 13 e ss., compatíveis com uma génese num instrumento cortante, conferindo, como tal, claro apoio à sua descrição dos factos.
Como tal (sendo que a testemunha  … nada demonstrou saber sobre os factos), não tendo resultado qualquer dúvida no espírito do Tribunal, foi a matéria de facto dada como provada no sentido da narração factual feita pelo arguido, em detrimento da versão dos factos trazida a julgamento pelo Assistente.
No que concerne à factualidade constante dos pontos 3 e 4 da matéria de facto, foi dada como provada com base nos relatórios médico-legais de fls. 118 e ss., 124 e ss. e 141 e ss., conjugados com os documentos de fls. 32, 33, 70 a 76 e 130, sendo a lesão, como já referido, compatível com uma queda num terreno agrícola, mais a mais atenta a idade do Assistente, nascido em 1941, conforme resulta dos referidos relatórios médico-legais.
O modo como o arguido é conhecido foi dado como provado com base nos depoimentos de … , entre si em harmonia.
As condições pessoais foram dadas como provadas com base nas próprias declarações do arguido, que se mostraram, neste segmento, objectivas e sinceras, merecendo o crédito do Tribunal, e a ausência de antecedentes criminais com base no teor do certificado do registo criminal de fls. 304.
Já no que diz respeito à matéria do pedido de indemnização civil formulado pelos Hospitais da Universidade de Coimbra, foi com base no depoimento de G..., do qual resultou que o arguido foi assistido junto dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde esteve internado (matéria igualmente alegada pelo demandante B... no seu pedido de indemnização e referida pelas testemunhas  … e B...), conjugado com as lesões dadas como provadas nos moldes e com os fundamentos analisados e os já aludidos documentos de fls. 130 e 194, que foi dada como provada.
Por sua vez e no que tange à matéria factual constante dos pontos 12, 13 e 14 dos factos provados, o Tribunal teve em consideração o teor dos documentos de fls. 70 e ss. e 130, que encontraram apoio ainda nas fotografias de 32, 33 e 211, assumindo ainda especial relevo o depoimento de G..., que relatou a factualidade em termos coincidentes com os dos referidos documentos.
A factualidade dada como provada nos pontos 15 e 16 da matéria de facto dada como provada com base nos documentos de fls. 206 a 210, que encontraram apoio ainda no documento de fls. 130 no tocante aos dias em que o demandante compareceu nos Hospitais da Universidade de Coimbra e ainda nos documentos de fls. 204 e 205 (atribuindo-se a referência a 17.01.2010 e não a 18.01.2010 a mero lapso de escrita).
Por último, a matéria de facto dada como provada nos pontos 17 e 18 baseou-se igualmente no depoimento de G..., pese embora apenas ter conhecimento da deslocação do demandante à consulta de oftalmologia, conjugada com o documento de fls. 210, conferindo apoio ao depoimento daquela primeira.
Já no que concerne à matéria de facto dada como não provada da acusação, decorreu, desde logo, dos moldes supra explanados em que foi valorada a prova, em termos de ter sido conferido crédito às declarações do arguido, em detrimento das do Assistente.
De resto, pese embora a alusão a um ferro, que se encontra referido a fls. 113, foi junto aos autos apenas em 27.01.2010, a requerimento do próprio Assistente (fls. 104), não se podendo concluir sequer que aquele concreto ferro estava no local dos factos.
Por sua vez, e no que concerne ao animus do arguido, conforme melhor será analisado infra, por se tratar da sede própria, resultou da demonstração da actuação do arguido a título de legítima defesa, termos em que não foi dado como provado a sua actuação com consciência e vontade de praticar o crime.
Quanto à matéria não provada do pedido de indemnização civil formulado por B..., do documento de fls. 210, referente a um consumo de gasóleo não se pode retirar ter sido gasto em qualquer deslocação do arguido – nada tendo sido demonstrado quanto ao concreto meio utilizado, tanto mais que há transportes públicos que ligam Águeda a Aveiro –, sendo que a cidade de Aveiro dista unicamente cerca de 23 km da cidade de Águeda, afirmando-se, por apelo às regras da experiência comum, excessivo o consumo de quase nove litros (conforme resulta desse talão) para fazer unicamente 46 km…
Da prova produzida em sede de audiência de julgamento não resultou igualmente qual o concreto período, em termos totais, em que o demandante usou o colar cervical de Zimmer.
Não resultou ainda qual o período concreto em que sofreu dores, se existiam e incidiam ao acordar, bem como se ainda hoje sente dores, sendo que os meios de prova produzidos (nomeadamente os depoimentos de  … e B..., limitados a um curto período temporal) não foram bastantes para conferir apoio e concretizar o depoimento de G..., que se mostram vagos neste segmento, termos em que a matéria factual foi dada como não provada.
Não foi ainda produzida qualquer prova no sentido do dispêndio da quantia de € 300,00 em pessoas para realizar trabalhos agrícolas, mas antes que foram amigos e familiares que prestaram esse auxílio, sendo apenas feita alusão, em termos muito pouco concretizados, à intervenção de terceiros, termos em que essa factualidade foi dada como não provada.
Por último, e no que concerne às cataratas a que o demandante foi operado, pese embora o documento de fls. 374 faça referência a uma origem traumática no olho esquerdo, do mesmo não resulta a demonstração de qual a efectiva e concreta causa das cataratas, esclarecendo se foi devida a efectivo trauma e, nessa hipótese, qual o tipo, em termos de se poder concluir ter sido conducente à opacificação do cristalino em que se traduz a catarata.
Ora, dos documentos clínicos constantes dos autos apenas resulta ter havido uma queixa de perda de visão em Outubro de 2009, que a consulta médica ocorreu em 21 de Dezembro e que a operação foi efectuada em 11.01.2010.
Não foi produzida qualquer prova, contudo, no sentido de demonstrar a antiguidade das cataratas, de molde a permitir fazer ligação aos factos em análise nos presentes autos e concluir que estiveram na sua génese ou agravação, tanto mais que da generalidade da prova produzida resultou que o Assistente se dedica à actividade agrícola, não sendo incomuns acidentes, seja com lenhos, seja com produtos químicos ou outros, e, como tal, traumáticos, ao nível ocular.
Por último, as referências de queixas da vista por parte das testemunhas G... e B... não permitiram lançar luz sobre esta matéria.
Tudo sopesado, na ausência de meios acrescidos de prova que permitam concluir sem espaço para dúvidas que a conduta do demandado esteve na génese das cataratas e sendo que as regras da experiência comum não permitem igualmente fazer extrair essa ilação, essa matéria factual foi dada como não provada».

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. Antes de mais, urge verificar se estão correctas as conclusões apresentadas.
Incidindo este recurso sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 412º, n.º 3 do CPP, incumbe aos recorrentes o ónus de especificar
a)- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)- as provas que devam ser renovadas.
Acentua depois o n.º 4 desse normativo que “quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 3 fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do artigo 364º, n.º 2, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
O artigo 417º, n.º 3 do CPP (na versão revista de 2007, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007 de 29/8) permite o convite ao aperfeiçoamento da respectiva peça processual se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 desse mesmo normativo.
Temos entendido o seguinte: se analisada a peça do recurso constatarmos que a indicação das especificações legais constam do corpo da motivação de forma assaz suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não deveremos, assim, ser demasiado formalistas ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente, note-se, as indicações previstas no n.º 2 e no n.º 3 do citado artigo 412º.
A este propósito, convém lembrar que as “conclusões aperfeiçoadas” têm de se manter no âmbito da motivação apresentada, não se tratando de uma reformulação do recurso ou da apresentação de um novo recurso - por outras palavras: o convite ao aperfeiçoamento, estabelecido nos n.º 3 e 4 do artigo 417.º, do C.P.P., pode ter lugar quando a motivação não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs. 2 a 5 do artº 412º do mesmo código, mas sempre sem modificar o âmbito do recurso.
Pelo que se o corpo da motivação não contém as especificações exigidas por lei, já não estaremos perante uma situação de insuficiência das conclusões, mas sim de insuficiência do recurso, insusceptível de aperfeiçoamento.
Contudo, no caso vertente, os recorrentes indicam no corpo da motivação as partes dos depoimentos gravados que crêem ter sido mal valorados pelo tribunal.
Como tal, e mesmo considerando que algumas das peças das alegações de recurso não primam pela perfeição processual, entendemos que o recurso conjunto satisfaz as condições mínimas para poder passar pelo crivo inicial.
Ou seja, e em conclusão:
Os recorrentes impugnam a MATÉRIA DE FACTO dada como provada, tendo sido cumprido – mesmo que deficientemente quanto à formulação das conclusões - o determinado nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP.
Não nos ancoraremos em argumentos formais e ouviremos a prova gravada quanto ao RECURSO.
E tal faremos até ancorados em recente e sábia decisão do STJ, datada de 1/7/2010 (Pº 241/08.2GAMTR.P1.S1).
Nesse aresto, assim se escreveu:
«O Tribunal da Relação, perante as falhas que apontou ao recurso quanto à impugnação da matéria de facto por confronto com as provas produzidas na audiência e documentadas em acta, falhas essas que revelariam um alegado mau cumprimento do disposto nos n.°s 3 e 4 do art.° 412.° do CPP, deveria ter mandado aperfeiçoar as conclusões do recurso antes de se pronunciar, corno tem sido jurisprudência constante deste STJ e do Tribunal Constitucional, para permitir um segundo grau de recurso em matéria de facto.
O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs de 26-9-01, proc. n.° 2263/01, de 18-10-01, proc. n.° 2374/01, de 10-4-02, proc. n.° 153/00, de 5-6-02, proc. n.° 1255/02, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.° 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 2951/05-5).
Assim decidiu que “(5) se o recorrente não deu cabal cumprimento às exigências do n.° 3 e especialmente do nº 4 do art. 412º do CPP, a Relação não pode sem mais rejeitar o recurso em matéria de facto, nem deixar de o conhecer, por ter por imodificável a matéria de facto, nos termos do art. 431º do CPP. (6) Este último artigo, como resulta do seu teor, não toma partido sobre o endereçar ou não do convite ao recorrente, em caso de incumprimento pelo recorrente dos ónus estabelecidos nos n. s 3 e 4 do art. 412º, antes vem prescrever, além do mais, que a Relação pode modificar a decisão da 1ª instância em matéria de facto, se, havendo documentação da provei, esta tiver sido impugnada, nos termos  do artigo 412º, n.º 3,  não fazendo apelo, repare-se, ao n.º 4 daquele artigo, o que no caso teria sido infringido. (7)- Saber se a matéria de facto foi devidamente impugnada à luz do n.º  3 do art. 412º é questão que deve ser resolvida à luz deste artigo e dos princípios constitucionais e de processo aplicáveis, e não à luz do art. 431º, al. b), cuja disciplina antes pressupõe que essa questão foi resolvida a montante. (8) Entendendo a Relação que o recorrente não forneceu os elementos legais necessários para reapreciar a decisão de facto nos pontos que questiona, a solução não é “a improcedência”, por imodificabilidade da decisão de facto, mas o convite para a correcção das conclusões. (Acs de 7-11-02, proc. n.º 3158/02-5 e de 15-5-03, proc. n.º 985/03-5)”.
E que, face à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade da norma do art. 412.°, n.° 2, do CPP, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas ais. a), b) e e) tem corno efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência (Ac. n.° 320/2002 do T. Constitucional, DR-IA, 07.10.2002), não pode manter-se a decisão da Relação que decidiu não tomar conhecimento dos recursos no que se refere à decisão de facto, por não terem os recorrentes dado cumprimento ao imposto nos n.° 3 e 4 daquele art. 412.°.
Em tal caso a Relação deve tomar posição sobre a suficiência ou insuficiência das conclusões das motivações e ordenar, se for caso disso, a notificação do recorrente para corrigir/completar as conclusões das motivações de recurso, conhecendo, depois, desses recursos. (Acs. de 12-12-2002, proc. n.° 4987/02-5, de 7-10-04, proc. n.° 3286/04-5, de 17- 2-05, proc. n.° 47 16/04-5, e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Só não será assim se o recorrente não tiver respeitado, de todo, as especificações a que se reporta a norma legal em causa, pois o conteúdo do texto da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação (cfr. os Acs. do STJ de 11-1-01, proc. n.° 3408/00-5, de 8-1 1-01, proc. n.° 2453/01-5, de 4-12-03, proc. n.° 3253/03-5 e de 15-12-05, proc. n.° 295 1/05-5).
Mas, se o recorrente, como é o caso dos autos, tendo embora indicado os pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa, com a indicação, nomeadamente, das testemunhas cujos depoimentos incidiram sobre tais pontos, que expressamente indicou (v.g., falta de vestígios de sangue na roupa, hora cm que ocorreu o homicídio e permanência do arguido no local de trabalho entre determinadas horas), só lhe faltando indicar “as concretas passagens das gravações em que funda a impugnação que imporia decisão diversa”, não se pode dizer que há uma total falta de especificações, mas, quanto muito, uma incorrecta forma de especificar. Tanto mais que, se o recorrente tem o ónus de indicar as concretas passagens das gravações, o tribunal tem o dever de atender a outras que considere relevantes para a descoberta da verdade (art.° 412.°, n.° 6, do CPP), sob pena do recorrente “escolher” a passagem que mais lhe convém e omitir tudo o mais que não lhe interessa, assim se defraudando a verdade material.
A Relação, ao proceder da forma como transcrevemos, não conheceu da impugnação da matéria de facto, já que a rejeitou por razões meramente formais e não deu oportunidade ao recorrente de corrigir os pequenos desvios em que, alegadamente, incorreu.
Portanto, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.°s 379.°, n.° 1, al. e) e 425.°, n.° 4, do CPP».

3.2. É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto sob dois prismas:
· primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada (O NOSSO CASO);
· e dos vícios – oficiosos - do n.º 2 do art. 410.º do C.P.Penal.
Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP.

3.3. Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do CPP que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
            Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
No fundo, por aqui não se pode recorrer à prova documentada.
A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes).
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.
Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cf. Acórdão do STJ de 9/7/1998, Processo n.º 1509/97).
Em matéria de vícios previstos no art. 410.º n.º 2 do CPP, cumprirá ainda dizer que, apesar de tudo o que tem sido dito e redito pacificamente na jurisprudência e na doutrina, continua a ignorar-se o melhor desses ensinamentos e a trazer aos recursos sempre o mesmo tipo de argumentação quanto à tipificação desses vícios.
Confunde-se sistematicamente o da al. a) (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) com problemas de insuficiência de prova; confunde-se o da al. b) - (contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão) - com o da errada convicção do tribunal ou com a insuficiente convicção ou mesmo com a insuficiente fundamentação; e o da al. c) - (erro notório da apreciação da prova) - com o problema da livre convicção do tribunal na apreciação das provas a tal sujeitas ou com o da errada ou insuficiente apreciação do valor delas.
E, para cúmulo dos cúmulos, só raramente se não faz tábua rasa da invocação de vícios fora do quadro resultante do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência.
Ora, analisando a decisão recorrida, não vislumbramos qualquer indício desses vícios do artigo 410º/2 do CPP.

3.4. Já o erro de julgamento – ínsito no artigo 412º/3 - ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Como bem acentua Jorge Gonçalves nos seus acórdãos desta Relação, «o recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt)».
E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, já aqui aludida, prevista no artigo 412.º, n.º 3, do CPP.
A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Conforme jurisprudência constante, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados[2].
            A delimitação dos pontos de facto constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso relativo à matéria de facto. Ao tribunal de recurso incumbe confrontar o juízo sobre os factos que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, e de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, a consultar em www. dgsi.pt).
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº 3 do mesmo diploma – tal não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas apenas um remédio jurídico votado a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente.
Já o deixámos escrito - o recurso, no que tange ao conhecimento da questão de facto, não é um segundo julgamento, em que a Relação, agora com base na audição de gravações, e anteriormente com base na leitura de transcrições, reaprecie a totalidade da prova.
E se é certo que perante um recurso sobre a matéria de facto, a Relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, não é menos verdade que deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
           
3.5. O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Os poderes do tribunal na procura da verdade material estão limitados pelo objecto do processo definido na acusação ou na pronúncia, guiado pelo princípio das garantias de defesa do artigo 32º da CRP.
Sobre o tribunal recai o dever de ordenar a produção da prova necessária à descoberta da verdade material, tanto relativamente aos factos narrados na acusação ou na pronúncia, como aos alegados pela defesa na contestação e aos que surgirem no decurso da audiência de julgamento em benefício do arguido.
Quanto à fundamentação da PROVA, há que atentar em certos princípios:
os dos artigos 124º, 125º e 126º do CPP (princípio geral da legalidade das provas);
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando, e só quando, o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável;
Não se procura uma verdade ontológica e absoluta mas apenas a verdade judicial e prática – não pode ser uma verdade obtida a qualquer preço mas apenas a que assenta em meios de prova que sejam legais;
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhes a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso;
Não satisfaz a exigência de fundamentação da decisão sobre Matéria de Facto a mera referência genérica aos meios de prova produzidos, importando fazer a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos que dos meios de prova relevaram ou que obtiveram credibilidade no espírito do julgador – não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
A liberdade das provas não é, pois, absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência
            Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
            A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
            Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cf. Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).
            Quer isto dizer que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º] – neste sentido, o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt).
A operação intelectual em que se traduz a formação da convicção não é, assim, uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis), e para ela concorrem as regras impostas pela lei, como sejam as da experiência, da percepção da personalidade do depoente – aqui relevando, de forma muito especial, os princípios da oralidade e da imediação – e da dúvida inultrapassável que conduz ao princípio “in dubio pro reo” (cf. Ac. do T. Constitucional de 24/03/2003, DR. II, nº 129, de 02/06/2004, 8544 e ss. e Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Ed., 1974, Reimpressão, 205).

3.6. Vejamos, então, se houve ou não erro de julgamento nestes autos.
Invocam o recorrente que foi erroneamente dada como provada a factualidade 1 a 4, 11, 12, 13 e 14.
Entende ele que foi sobrevalorizado o depoimento do arguido, tido por si por «estudado», em detrimento do do assistente.
Adianta que o seu depoimento em julgamento foi «objectivamente claro e inequívoco», sendo corroborado pelo depoimento de sua mulher G...e pelos relatórios médicos existentes nos autos.
O arguido nega que tenha dado pontapés ao assistente, dizendo que apenas lhe deu dois esticões.
Por seu lado, o assistente e a mulher referem a existência de tais pontapés e negam que o primeiro tenha querido agredir o arguido com uma foice.
Temos, pois, duas versões de um mesmo acontecimento.
A sentença deu como provada uma situação de legítima defesa por parte do arguido, o que excluiu a ilicitude da sua agressão ao recorrente.
Ouçamos de novo a fundamentação da sentença:
«Desde logo, e no que se refere à factualidade constante dos pontos 1 e 2 da matéria de facto dada como provada, as declarações do arguido e do Assistente estiveram entre si em contradição, aquele primeiro sustentando ter-se defendido de um ataque do Assistente e este último afirmando ter sido agredido pelo arguido.
Ponderando estes meios de prova, as declarações do arguido mostraram-se convictas, pormenorizadas e objectivas, localizando os factos no tempo e no espaço e esclarecendo o motivo da existência de uma discórdia prévia com o Assistente, relativa à colocação de uma rede num terreno, ponto por este último igualmente reconhecido.
Encontraram ainda apoio nos depoimentos de C..., tio do arguido, na parte em que confirmou a existência de um dissídio entre o Assistente e o arguido, dias antes, por causa da colocação de uma rede, bem como de D... e de F..., este filho do arguido, que, tal como a primeira testemunha, fizeram referência ao facto de, após, os factos, o arguido – aqui quereria dizer-se «assistente» (nota do relator) - andar de um lado para o outro junto da casa do arguido.
Estes depoimentos foram entre si coerentes, revelando patente isenção, sendo que as testemunhas apenas descreveram factos dos quais mostraram ter efectivo conhecimento, relatando de modo claro a agitação do Assistente após os factos junto da casa do arguido, contrariando a versão trazida a julgamento pelo Assistente.
Já o Assistente, nas suas declarações, revelou ter um discurso não linear, não descrevendo os factos de modo encadeado, nem oferecendo justificação para os mesmos, acabando por enfatizar a alegada agressão pelo arguido, ter gritado e, logo a seguir, desmaiado.
Ainda que tenha encontrado apoio no depoimento de G..., sua esposa, de igual modo esta testemunha não revelou distanciamento dos factos, mostrou-se em partes hesitante e não ofereceu uma explicação para os factos por si relatados, que encontrasse apoio nas regras da experiência comum ou em qualquer acrescido meio probatório.
Tudo ponderado, as explicações oferecidas pelo arguido não se mostraram contrárias às regras do normal acontecer, antes o contrário, reveladoras que, em que as situações que têm por referente estremas de terrenos agrícolas são vivenciadas de forma muito intensa por quem vive da terra ou à mesma tem apego, bem como no relatado temperamento do Assistente, caracterizado com um vivenciar activo de questões relacionadas com aquele prédio (o que resultou dos depoimentos das testemunhas … ).
Por sua vez, não obstante a fractura e ligeira deslocação do corpo C2, para além de se tratar de uma lesão perfeitamente compatível com uma queda num terreno agrícola, trata-se de lesão não impeditiva da movimentação do Assistente, mais a mais logo após os factos.
Por último, não são igualmente despiciendas as lesões do arguido referidas no relatório médico-legal de fls. 13 e ss., compatíveis com uma génese num instrumento cortante, conferindo, como tal, claro apoio à sua descrição dos factos.
Como tal (sendo que a testemunha  … nada demonstrou saber sobre os factos), não tendo resultado qualquer dúvida no espírito do Tribunal, foi a matéria de facto dada como provada no sentido da narração factual feita pelo arguido, em detrimento da versão dos factos trazida a julgamento pelo Assistente».
Isto quanto aos factos 1 e 2.
Note-se que mais à frente na fundamentação, deixa ainda escrito o seguinte, com relevo:
«Já no que concerne à matéria de facto dada como não provada da acusação, decorreu, desde logo, dos moldes supra explanados em que foi valorada a prova, em termos de ter sido conferido crédito às declarações do arguido, em detrimento das do Assistente.
De resto, pese embora a alusão a um ferro, que se encontra referido a fls. 113, foi junto aos autos apenas em 27.01.2010, a requerimento do próprio Assistente (fls. 104), não se podendo concluir sequer que aquele concreto ferro estava no local dos factos.
Por sua vez, e no que concerne ao animus do arguido, conforme melhor será analisado infra, por se tratar da sede própria, resultou da demonstração da actuação do arguido a título de legítima defesa, termos em que não foi dado como provado a sua actuação com consciência e vontade de praticar o crime.
O Tribunal não teve, pois, dúvidas em dar crédito à versão do arguido, em detrimento da do assistente – note-se que foi decisivo o facto de o assistente ter sido visto, após a agressão, a rondar a casa do arguido, assim se contrariando a sua versão.
E nós também não, ouvindo os trechos dos depoimentos das partes visadas (e apelidamos de convincente e escorreitamente encadeado o depoimento do arguido A...).
Já o depoimento do arguido foi eivado de contradições, a maior das quais foi esta:  – afinal desmaiou após a agressão fatal ou gritou antes pela mulher?
Nada nos pareceu genuíno nas suas declarações, portanto.
Quanto aos factos 3 e 4, também contestados no recurso, o Tribunal raciocinou assim:
«No que concerne à factualidade constante dos pontos 3 e 4 da matéria de facto, foi dada como provada com base nos relatórios médico-legais de fls. 118 e ss., 124 e ss. e 141 e ss., conjugados com os documentos de fls. 32, 33, 70 a 76 e 130, sendo a lesão, como já referido, compatível com uma queda num terreno agrícola, mais a mais atenta a idade do Assistente, nascido em 1941, conforme resulta dos referidos relatórios médico-legais».
Perante isto e os documentos analisados, nada há a apontar à prova dos factos em causa.
O facto 11 foi – e bem - provado pelo documento de fls 194 e os factos 12 a 14 foram provados pelos seguintes meios de prova:
«Por sua vez e no que tange à matéria factual constante dos pontos 12, 13 e 14 dos factos provados, o Tribunal teve em consideração o teor dos documentos de fls. 70 e ss. e 130, que encontraram apoio ainda nas fotografias de 32, 33 e 211, assumindo ainda especial relevo o depoimento de G..., que relatou a factualidade em termos coincidentes com os dos referidos documentos».
(…)
Da prova produzida em sede de audiência de julgamento não resultou igualmente qual o concreto período, em termos totais, em que o demandante usou o colar cervical de Zimmer».
Nada a apontar neste aspecto também, tendo o tribunal explicado minuciosamente a génese da sua convicção.
O tribunal recorrido não ficou com dúvidas que façam funcionar o princípio constitucional do «in dubio por reo».
A circunstância de existirem duas versões dos factos e de o tribunal recorrido ter optado por uma não autoriza a conclusão de que existe violação do princípio in dubio pro reo.
O princípio in dubio pro reo[3], com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997 -, sendo certo que a «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» - Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170.
A diversidade das versões expostas não faz, necessariamente, operar o princípio in dubio pro reo. Este pressupõe um juízo positivo de dúvida resultante de um inultrapassável impasse probatório.
Circunstância que não ocorre in casu, já que consideramos que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos – e provas bastantes - que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Não teve dúvidas, e nós também não, da situação de legítima defesa por parte do arguido.
Por outro lado, não nos esqueçamos que, tendo-se baseado a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende tais regras da experiência comum.
O QUE NÃO É O CASO…
Tal basta para infirmar as conclusões A a J do recurso, o que significa que fica intocável a factualidade dada como provada e não provada, improcedendo, nesta parte factual, o recurso que ora se analisa.

3.7. Haverá, de facto, legítima defesa?
Ou houve, face a esta matéria factual, uma situação de «excesso de legítima defesa»?
Quanto à causa de exclusão da ilicitude, há que dizer o seguinte:
Normatiza o art. 32.º do Código Penal: «Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro».
Adianta depois o artigo 33.º do mesmo diploma:
«1. Se houver excesso dos meios empregados em legítima defesa, o facto é ilícito mas a pena pode ser especialmente atenuada.
2. O agente não é punido se o excesso resultar de perturbação, medo ou susto, não censuráveis»[4].
A legítima defesa[5] – causa de exclusão da ilicitude tipicamente prevista na letra dos artigos 31º e 32º [Constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro], do CP - tem por requisitos, como claramente decorre do texto legal, a ocorrência de uma agressão (sendo ela toda a lesão ou perigo de lesão de um interesse próprio ou de outra pessoa protegido pelo ordenamento jurídico – H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal Parte General - 4ª edição - 1993, p. 303) levada a cabo por um comportamento humano voluntário e consciente, devendo esta ser actual, isto é, estar a realizar-se, em desenvolvimento ou iminente (a iminência da agressão afere-se, habitualmente, pela ocorrência de situação perigosa, a qual se caracteriza pela prática de actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes siga o acto agressivo, isto é, a agressão[6]), ilícita, ou seja, não ter o agressor direito a infligir ou a praticar a agressão, independentemente do facto de aquele se comportar dolosamente, com mera culpa ou se tratar de um inimputável (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado e Comentado - 8ª edição/1995, p. 277, entre outros), só evitável ou neutralizável através de uma acção ou acto de defesa, acto que, atenta a sua função, qual seja a de impedir ou repelir a agressão, deve limitar-se à utilização do meio ou meios, suficientes para evitá-la ou neutralizá-la, consabido que em consequência desse acto ir-se-ão atingir bens ou interesses do agressor.
A legítima defesa não é nem pode redundar numa acção punitiva, a ela se encontrando subjacente o princípio do maior respeito pelo agressor (cf. Jescheck, ibidem, 308).
Desta forma, «meios adequados» para impedir ou repelir a agressão, mas mais danosos (para o agressor) do que aqueles que, sem deixarem de ser adequados (suficientes, eficazes), causariam menores lesões ou prejuízos ao agressor, serão considerados desnecessários e, como tal, excluirão a justificação do facto praticado pelo agredido[7].
Igualmente, devem ser considerados inadequados os meios que, apesar de pouco danosos para o agressor, não dispõem de quaisquer possibilidades de impedir a agressão ou de dissuadir o agressor.
Por isso, tem-se decidido que o juízo sobre a adequação do meio de defesa não pode deixar de ter em consideração as circunstâncias concretas de cada caso: o bem ou interesse agredidos, o tipo e a intensidade da agressão, a perigosidade do agressor e o seu modo de actuar, a capacidade físico-atlética do agressor e do agredido, bem como os meios de defesa disponíveis e as demais circunstâncias relevantes ocorrentes (Cfr. Taipa de Carvalho, A Legítima Defesa (1995), 318 e H. Jescheck, ibidem, 308).
No fundo, trata-se de um juízo objectivo e ex ante, pelo que o julgador se terá de colocar na posição que assumiria uma pessoa prudente perante as circunstâncias concretas ocorrentes, sem esquecer que a exigência de utilização do meio menos gravoso para o agressor não pode levar a fazer recair sobre o agredido riscos para a sua vida ou integridade física, a significar que o defendente não está obrigado a recorrer a meios ou medidas cuja eficácia para a sua defesa é duvidosa ou incerta.
A defesa só é legítima se surgir como indispensável para a salvaguarda de um interesse jurídico do agredido ou de terceiro - o meio menos gravoso para o agressor. A necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido.
No que concerne ao elemento subjectivo, não obstante grande parte da nossa jurisprudência[8] e certo sector da doutrina continuem a exigir a ocorrência de animus defendendi, isto é, a vontade de defesa, muito embora com essa vontade possam concorrer outros motivos, tais como indignação, vingança e ódio (acs. do S.T.J., de 91.07.03, 92.06.25 e 93.01.21, proferidos nos processos n.ºs 41982, 42682 e 42837 e desta Relação de 84.10.10, sumariado no BMJ, 340, 448), a verdade é que se tem vindo ultimamente a entender, na esteira da doutrina mais recente (Taipa de Carvalho, ibidem, 375/387, Cavaleiro de Ferreira, Direito Penal (1992), 189/191 e Santiago Mir Puig, ibidem, 436.), que o elemento subjectivo da acção de legítima defesa se restringe à consciência da «situação de legítima defesa», isto é, ao conhecimento e querer dos pressupostos objectivos daquela concreta situação, o que se justifica e fundamenta no facto de a legítima defesa ser a afirmação de um direito e na circunstância do sentido e a função das causas de justificação residirem na afirmação do interesse jurídico (em conflito) considerado objectivamente como o mais valioso, a significar que, em face de uma agressão actual e ilícita, se deve ter por excluída a ilicitude da conduta daquele que, independentemente da sua motivação, pratica os actos que, objectivamente, se mostrem necessários para a sua defesa[9].
Decidiu, deste modo, o Acórdão da Relação de Coimbra de 17/9/2003 (Pº 2021/03, visitável em www.dgsi.pt e já referido em antecedente nota de rodapé:
«A exigência do animus defendendi revela-se, aliás, desprovida de sentido, uma vez que se ocorrem os requisitos da «situação de legítima defesa» – agressão actual e ilícita, verificando-se que o defendente não teve outro remédio que defender-se (necessidade de defesa) –, pouco importa, obviamente, que tenha sido motivado por indignação, vingança ou ódio (neste preciso sentido Quintero Olivares, Derecho Penal Parte General (1992), 461).
Por isso, o texto do art. 32º, do Código Penal, ao aludir «… ao facto praticado, como meio necessário, para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro», ao contrário do expressamente defendido por Leal Henriques/Simas Santos que ali detectam a exigência do animus defendendi, não significa outra coisa que a consciência da agressão e a necessidade de defesa».
Seremos forçados, neste particular, a defender uma tese algo mista, concordante com a doutrina de Fernanda Palma, exarada no artigo «Legítima Defesa», incluído na obra «Casos e Materiais de Direito Penal» (Coordenação de F. Palma/José Manuel Vilalonga e Carlota Pizarro de Almeida, Almedina, 2000, p. 167-168:
«A legítima defesa exige uma efectiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma protecção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma acção conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir».
Ora, a ausência dessa consciência impede a justificação por legítima defesa.
Diga-se ainda que legítima defesa e retorsão[10] são realidades jurídicas incompatíveis - enquanto na primeira, há defesa relativamente a uma agressão iminente ou em execução, na retorsão, o agente procura fazer represália, obter vindicta, tirar desforço, replicar.
Assim, e em suma, poderemos dizer que a exclusão da ilicitude de uma conduta, ao abrigo do artigo 32º do Código Penal, exige a presença de cinco requisitos objectivos e um elemento subjectivo, a saber, a agressão de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, a actualidade da agressão, a ilicitude da agressão, a necessidade da defesa, a necessidade do meio e o conhecimento da situação de legítima defesa, sendo que os três primeiros requisitos objectivos se referem à situação em que o agente actua e os dois últimos à acção de defesa.
Já haverá excesso de legítima defesa quando, pressuposta uma situação de legítima defesa, se utiliza um meio desnecessário para impedir ou repelir a agressão.
Ora, em face da matéria de facto provada e não provada [factos 2 e b), c) e d) dos não provados], de imediato se intui que os requisitos enunciados supra se mostram preenchidos, já que está demonstrada a existência de uma “agressão actual ou iminente” por parte do assistente relativamente à pessoa do arguido e a necessidade de tal defesa, como tal por si intuída (vejam-se as lesões do arguido, compatíveis com a defesa contra uma «arma cortante») e que não nos pareceu excessiva, apesar das sequelas da queda, com certeza não desejadas pelo arguido empurrante.

3.9. Resta-nos validar a absolvição decretada, naufragando o recurso, quer em termos criminais, quer em termos civis.


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            III – DISPOSITIVO
           
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo assistente B..., confirmando-se a sentença recorrida.

            Custas pelo assistente, fixando-se a taxa de justiça fixada em 5 UCs.



Paulo Guerra (Relator)

Cacilda Sena


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).
[2] Cf. Acórdão da Relação do Porto de 11/7/2001, processo n.º 01110407, lido em www.dgsi.pt/trp.
[3] Aludamos aqui ao teor do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.2008 (proc. 07P4198, em www.dgsi.pt, o qual cita profusamente Cristina Líbano Monteiro:
«De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da livre apreciação da prova (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997).
Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem).
Ademais, «são admissíveis [em processo penal] as provas que não forem proibidas por lei» (art. 125.º do CPP), nelas incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto conhecido»: art. 349.º do CC). Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contrarie o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a sua livre convicção (art. 127.º do CPP). Não estaria por isso vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido».
A este propósito, convém de resto recordar que «verificar cada um dos enunciados factuais pertinentes para a apreciação e decisão da causa é o que se chama a prova, o processo probatório» e que «para levar a cabo essa tarefa, o tribunal está munido de uma racionalidade própria, em parte comum só a ela e que apelidaremos de razoável». E isso porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador-juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável ("a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Daí que, nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade (repete-se: «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, «uma firme certeza do julgador», sem que concomitantemente «subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto»), não haja - seguramente - lugar à intervenção dessa «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que, fundada na presunção de inocência, é o "in dubio pro reo" (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência [aqui ausente] de uma firme certeza do julgador)».

[4] Como curiosidade histórica, deixam-se aqui expressas as asserções avançadas no Acórdão desta Relação de 17/3/2003, mais à frente novamente citado:
«O direito de legítima defesa está escrito em grandes caracteres nas doze tábuas e no Digesto, ou seja, na certidão de nascimento e na de óbito do espírito animador do direito romano. Lex duodecim tabularum furem noctu deprehensum perimittit occidere; interdin antem deprehensum, si telo se defedat (1. 4, § I. D. ad leg. Aquil.).
Trata-se de direito que, segundo a doutrina dos jurisconsultos romanos, se consubstancia
numa acção praticada contra a proibição de quem tem o direito de se lhe opor. – Vi facit tam is, qui quominus prohibeatur consecutus est, periculum puta adversário denuntiando, aut janua puta praeclusa. Prohibitus autem intelligitur quolibet actu, id est vel dicentis se prohibere, vel manum oponentis, lapillumve jactantis prohibendi gratia.
Definida assim a condição principal do exercício da legítima defesa, a injustiça da agressão, a 1. 2. Cod. ad leg. Corn. acrescenta a outra da iminência do perigo: o agredido deve ficar colocado na dubio vitae discrimine. E mesmo assim a dificuldade (não a impossibilidade) de evitar o perigo de outro modo a não ser com a morte ou o ferimento do agressor, é imposta como outra condição pela 1. 9. ff. ad leg.Corn.: Furem nocturnum si quis occiderit ita demun impune feret, si parewce ei sine periculo suo non potuit.
São estas as condições de facto atribuíveis ao agressor no direito romano; quanto ao agredido, duas regras determinam a natureza da sua reacção. Uma é a de uma certa proporção desta com a agressão sofrida. A outra diz respeito à subitaneidade da reacção defensiva.

Quanto ao fundamento filosófico da doutrina romana, Cícero e as constituições imperiais reconhecem que a legítima defesa não é senão uma forma especial de repressão do delito, uma espécie de «substitutivo penal» (Vide Júlio Fioretti, Sobre a Legítima Defesa (3ª edição – 1918), 28/30, que até aqui seguimos de perto.). Fundamento que se encontra de algum modo em Hegel ao sustentar que aquele que exerce a legítima defesa afirma o direito, porque anula a negação de direito que o outro tentava realizar com a agressão (Grundlinien der Philosophie des Rechts, § 127.), e que actualmente, a par da ideia de proporcionalidade e de razoabilidade, domina, ainda, o instituto da legítima defesa ( - Ao instituto da legítima defesa, tal como a todos os outros que constituem causa excludente da ilicitude e/ou da culpa, institutos aos quais servem de referência e justificação situações de conflito, encontra-se, subjacente o princípio da ponderação de interesses, princípio que, ao fim e ao cabo, constitui o fundamento último da justificação do facto, o qual se traduz, em sede legal, na indicação do valor ou do interesse prevalente, isto é, na eleição do valor ou do interesse cuja tutela o legislador quer ver salvaguardada, valor que, obviamente, é – objectivamente – o mais valioso – Cf. Giuseppe Bettiol, Instituições de Direito e Processo Penal (tradução de Costa Andrade – 1974), 137/141 e M. von Buri, «Stato di necessitá e legitima difesa», na Revista Penale, vol. XIII, 433/464)».
[5]Tal conceito deve assentar num fundamento de continuidade que interliga, por um lado, a protecção dos bens jurídicos beliscados pela agressão e, de outro, por derivação directa e imediata, a necessidade de defesa da ordem jurídica, «através da qual se justificará que se justifiquem bens jurídicos de valor superior aos postos em causa pela agressão”, reprovando-se a ideia de que a legítima defesa esteja cerceada por um critério de proporcionalidade entre os bens jurídicos sacrificados pela defesa e aquela que merecem ameaça por parte da inerente agressão.
[6] Uma defesa será, à partida, legítima até ao momento em que a mesma se revele imperiosa ou fundamental para travar definitivamente a respectiva agressão.
[7] Qualquer meio que transponha a barreira da estrita necessidade – necessidade do meio mas também necessidade da própria defesa - entrará num excesso de legítima defesa.
[8] Veja-se o que se deixa escrito no muito recente Acórdão da Relação de Évora de 18/3/2010 (Pº 341/08.9GCSLV.E1): «Já quanto à tese da legítima defesa, a questão que se coloca, de índole factual e de direito, passa por lembrar que a jurisprudência portuguesa continua, praticamente sem divergências, a exigir que o agente actue com animus defendi (rectius, defendendi) e que a sua actuação seja adequada a evitar a lesão iminente, para que possa ter-se por verificada aquela causa de exclusão da ilicitude» - contudo, não nos parece que a tese seja assim tão unânime como aqui se dá a perceber, a começar desde logo por esta Relação de Coimbra!
Já no STJ tem sido quase constante a exigência dessa intenção de defesa – para tal tese, o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual, correspondendo a intenção de defesa a um estádio de espírito, inapreensível sensorialmente, necessariamente resultante de factos objectivos que a indiciem, tal como a intenção de matar, integrando, pois, matéria de facto. Desta forma, o agente há-de ter consciência da legítima defesa, enquanto elemento subjectivo da acção, de afirmação de um seu direito, de realização, no conflito de valores e interesses jurídicos, de um interesse mais valioso, pese embora com aquela vontade ou intenção de defesa legítima possam concorrer outros motivos como o ódio, vingança ou indignação.
[9] Figueiredo Dias, e nós com ele, opina que «o conhecimento pelo agente dos elementos do tipo justificador há-de constituir a exigência subjectiva mínima indispensável á exclusão da ilicitude, o mínimo denominador comum de toda e qualquer acusa justificativa» (Direito penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, p. 371).
[10] Para se poder falar em retorsão é preciso que o agente se limite a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (e ao mesmo tempo agressor) empregando a força física. A atenuação da ilicitude da conduta do agente encontra fundamento na desculpação em virtude da especial situação emocional desencadeada pela provocação que a primeira ofensa corporal traduz (Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, pág. 221).