Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | ISABEL GAIO FERREIRA DE CASTRO | ||
Descritores: | DECISÃO SOBRE A LIBERDADE CONDICIONAL FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO RELATÓRIOS SOCIAIS PRESSUPOSTOS PARA A CONCESSÃO DA LIBERDADE CONDICIONAL | ||
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Data do Acordão: | 07/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 3 | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO | ||
Legislação Nacional: | ARTIGO 61.º DO CÓDIGO PENAL ARTIGOS 123.º E 410.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
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Sumário: | I - A falta de fundamentação das decisões que concedem, denegam ou revogam a liberdade condicional consubstancia uma irregularidade, não lhes sendo aplicáveis o regime específico das nulidades da sentença, previsto no artigo 379.º do C.P.P.
II - No caso da decisão sobre a liberdade condicional a impugnação da matéria de facto só pode ter lugar no caso de ser detectável um dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. III - Os segmentos relevantes para a decisão, comprovados e consentâneos com os restantes elementos probatórios, constantes dos relatórios sociais devem constar dos factos provados, sob pena de se configurar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do C.P.P. | ||
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Decisão Texto Integral: | * Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I. - RELATÓRIO 1. No âmbito do processo de liberdade condicional, …, por decisão proferida em 17.03.2025, foi decidido não conceder a liberdade condicional ao condenado/recluso … e, consequentemente, manter o cumprimento da pena de prisão em curso.
2. Não se conformando com tal decisão, dela veio o condenado recorrer, alinhando, após a motivação, as seguintes conclusões e petitório [transcrição[1]]:
“Em meio prisional integrou Programa de substituição opiácea por Metadona a 18.06.2020, dando continuidade ao programa iniciado na ET de ..., do qual teve alta a 27.10.24.” cfr. “4. Saúde” (sublinhado nosso). “(…)
“(…) O condenado parece possuir capacidades para refletir sobre os seus atos, embora seja um individuo com caraterísticas de imaturidade e vulnerável à influência de terceiros, mas que no geral tem vindo a evoluir de forma favorável, apostando na sua valorização pessoal e académica. A nível familiar, conta com o apoio incondicional da mãe, que entende a necessidade do filho se regenerar como cidadão.
9ª - A decisão recorrida enferma do vício de falta de fundamentação porquanto da “Motivação da Matéria de Facto” apenas constam conceitos genéricos, sem ter a devida consideração pela matéria constante dos relatórios da equipa técnica de tratamento prisional e reinserção social da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, transcrita em I) supra, bem como das declarações do recluso, as quais impõem decisão contrária;
10ª - A decisão recorrida fez tábua-rasa de que o recorrente tem vindo a investir no seu percurso prisional, investindo na sua formação, ocupação do tempo e tendo requerido colocação laboral.
11ª - O recorrente tem demonstrado bom comportamento durante o cumprimento da pena a que tem estado sujeito, no que à sua personalidade diz respeito, tendo em conta as funções de recuperação e ressocialização com vista à sua reinserção social;
12ª - Não se verifica qualquer perigo de que o recorrente venha a praticar algum crime no período em que se mantenha fora do estabelecimento prisional, já demonstrado nas saídas jurisdicionais de que já beneficiou;
13ª - O recorrente assume os crimes pelos quais se encontra condenado, verbalizando arrependimento, demonstra consciência da gravidade dos crimes praticados, mantém comportamento adequado e normativo e não apresenta sanções disciplinares há um ano e já cumpriu 2/3 da pena de prisão;
14ª - A liberdade condicional constitui um marco importante para permitir ao recorrente a sua readaptação e reintegração progressivas na vida em sociedade… tanto mais que, neste momento, possui uma oferta concreta de emprego fora do Estabelecimento Prisional;
15ª - Foram, desse modo, violadas pela decisão recorrida, além de outras, as normas legais constantes dos artigos 40º nº 1, 42º n 1, 61º a 64º, e 71º todos do CP; 154º, 179º, 235º nº 1, 236º nº 1, al. b), 238º nºs 2 e 3, e 239º, todos do CEPMPL; e constantes dos artigos 374º nº 2, 379º nº 1, al. a) e nº 2, 410º nº 1 e 2 als. a) e b), todos do CPP.
3. O Ex.mo Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Execução de Penas apresentou resposta ao recurso, …
4. Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, …
5. Foi cumprido o estatuído no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tendo o recluso/condenado manifestado a sua discordância quanto ao predito parecer.
6. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
* II. – FUNDAMENTAÇÃO 1. Decisão recorrida [transcrição]: «I.- RELATÓRIO:
O Ministério Público emitiu parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
9. No ano lectivo 2022/23, integrou o ensino recorrente, com frequência do 11.º ano de escolaridade e neste ano lectivo, 2023/24 frequentou o 12.º ano do ensino recorrente, bem como unidades de Francês, TIC e Artes Plásticas. 17. Em meio livre apresenta proposta de trabalho na empresa …
24. Vive com a mãe desde então, integrando ainda o núcleo familiar o seu irmão mais novo, que presentemente se encontra em situação de reclusão em .... III.- Motivação da matéria de facto:
Na avaliação da prevenção especial terá de se formular um juízo de prognose sobre o que irá ser a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e ao seu comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena. *
(…)».
2. Apreciação do recurso 2.1. Delimitação do objeto do recurso … A motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e terminar com a formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida. Por outro lado, o objeto dos recursos das decisões relativas à liberdade condicional está legalmente limitado nos termos do disposto no artigo 179º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (doravante CEPMPL), que estabelece o seguinte: “O recurso é limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional”. Assim, no caso concreto, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso que apresentou, e não se vislumbrando quaisquer [outros] vícios de conhecimento oficioso, as questões a apreciar são as seguintes: - Invalidade da decisão recorrida por falta de fundamentação; - Impugnação da matéria de facto; - Verificação do pressuposto material da concessão da liberdade condicional.
2.2. Mérito do recurso 1.ª Questão - Nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação O condenado/recluso alega que «a decisão recorrida enferma do vicio de falta de fundamentação porquanto da “Motivação da Matéria de Facto” apenas constam conceitos genéricos, sem ter a devida consideração pela matéria constante dos relatórios da equipa técnica de tratamento prisional e reinserção social da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, transcrita em I) supra, bem como das declarações do recluso, as quais impõem decisão contrária» [cfr. conclusão 9.ª], sendo certo que na motivação qualifica tal vício de nulidade [cfr. ponto 9]. Vejamos. A jurisprudência tem-se dividido quanto à questão da natureza das decisões que concedem, denegam ou revogam a liberdade condicional e às consequências processuais da inobservância nas mesmas do dever de fundamentação. Estatui o artigo 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa que “[a]s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. Densificando tal princípio em matéria processual penal, no artigo 97º, n.º 5, do Código de Processo Penal estabelece-se a regra geral, dispondo que “[o]s atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”, esclarecendo o n.º 1 do mesmo preceito que “[o]s atos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) [s]entenças, quando conhecerem a final do objeto do processo; b) [d]espachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior”. Nos artigos 374º, n.º 2, e 194º, n.º 6, são definidos regimes especiais de fundamentação para a sentença e para o despacho que aplica medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, fulminando a sua inobservância de nulidade. Por seu turno, especificamente, em matéria de execução de penas, o artigo 146º, n.º 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro, estabelece que “[o]s actos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. É, pois, inquestionável que, quer se trate de sentenças, quer de despachos [interlocutórios ou finais], os atos decisórios dos juízes têm que conter os respetivos motivos, de facto e de direito. Como se assinala, de forma impressiva, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2007[2], a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projeção exterior (extra processual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinam a decisão; em outra perspetiva (intra processual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo. A observância do dever de fundamentação das decisões constitui um pressuposto basilar de um processo justo e equitativo [artigo 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa] e do exercício cabal dos direitos de defesa [artigo 32º, n.º 5, do mesmo diploma fundamental]. Naturalmente, o dever de fundamentação não se impõe em todos os casos da mesma maneira. Defendem Jorge Miranda e Rui Medeiros[3] que a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão, perspetivada nas anteditas vertentes endo e extra processual. Com efeito, embora seja sempre exigível um substrato mínimo de enquadramento factual e jurídico, o dever de fundamentação de um despacho não reveste a mesma complexidade e grau de exigência que o de uma sentença. Ademais, o dever de fundamentação também variará consoante o tipo de despacho – interlocutório ou final –, se decide a questão pela primeira vez no processo ou se se reconduz a mera reapreciação do antes decidido, a fase do processo [sujeito ou não a segredo de justiça; se é anterior ou posterior à constituição de arguido e, como decorrência, se, em consequência do cumprimento do princípio do contraditório, há dialética argumentativa a apreciar], a maior ou menor controvérsia da questão de facto e/ou de direito a decidir, a natureza, mais ou menos, nuclear dos direitos, liberdades e garantias dos afetados envolvidos e o maior ou menor grau de compressão dos mesmos pela decisão, enfim, uma multiplicidade de fatores que relevam para aferir do grau de profundidade da fundamentação exigível. Como se afigura de meridiana clareza, as decisões referentes à liberdade condicional – concessão, denegação ou revogação – contendem com direitos elementares dos condenados, dos quais se destaca o direito à liberdade [deambulatória], consagrado no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, e, como tal, demandam especial cuidado na sua fundamentação. Porém, têm-se perfilado duas correntes na jurisprudência das Relações que apontam consequências distintas quanto à violação do dever de fundamentação consoante a natureza atribuída à decisão em causa e à respetiva amplitude da fundamentação exigível. Explicitando. Parte da jurisprudência defende que a decisão referente à liberdade condicional não reveste a natureza de sentença, pois, por um lado, não é legalmente qualificada como tal, assinalando-se que o artigo 485º do Código de Processo Penal, na redação anterior à Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro – que aprovou o predito CEPMPL – referia-se à decisão sobre a liberdade condicional designando-a por “despacho” e, atualmente, os artigos 177º, n.º 3, 178º e 179º, n.ºs 2 e 3, da referida Lei – que revogou aquele preceito [cfr. artigo 8º, n.º 2, al. a)] –, faz referência a “decisão do juiz” e, por outro lado, não conhece do objeto do processo penal, nem do objeto final do processo de execução de penas, pois insere-se num incidente processual e não tem caráter definitivo [cfr. artigo 180º do CEPMPL]. Ademais, inexiste qualquer normativo legal que discrimine os requisitos de forma e conteúdo em termos similares aos impostos para as sentenças/acórdãos nas disposições conjugadas dos artigos 374º, 375º, n.º 1, e 379º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Penal. Por tudo isso, nem do ponto de vista formal, nem teleológico, as decisões sobre a liberdade condicional configuram sentenças[4]. Como decorrência, e atento o princípio da tipicidade ou da legalidade consagrado em matéria de nulidades no artigo 118º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo o qual “a violação ou infração das leis de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei” e, nos termos do disposto no n.º 2, “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular”, não é aplicável à decisão sobre a liberdade condicional o regime específico das nulidades da sentença, previsto no artigo 379º do Código de Processo Penal e, não estando expressamente cominada a nulidade para a falta de fundamentação da decisão/despacho em causa, estar-se-á no domínio da irregularidade. O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida, conforme decorre do n.º 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal, ressalvando-se, porém, no n.º 2 deste preceito, a possibilidade de declaração e consequente reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se. Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Porém, se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já a irregularidade pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição. Assim, dentro da orientação que defende estarmos perante irregularidade, desenham-se dois caminhos: Em algumas decisões tem-se defendido que a irregularidade tem que ser suscitada, tempestivamente, perante a entidade competente – o tribunal de 1.ª instância –, sob pena de ficar sanada[5]. Noutras decisões, sufragando-se o entendimento que a falta de fundamentação da decisão inviabiliza que os destinatários – diretos [os sujeitos processuais] e indiretos [a comunidade] – compreendam cabalmente os motivos que lhe subjazem, aferindo da sua justeza, e que o tribunal superior a possa sindicar, comprometendo interesses coletivos fundamentais de um Estado de direito democrático, como a legitimação da atuação do poder judicial e a boa administração da justiça, o que extravasa os interesses individuais dos concretos sujeitos processuais, tem-se tomado posição no sentido de que a irregularidade deve ser declarada oficiosamente pelo tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos previstos no n.º 2 do artigo 123º, ou seja, declarando-se inválida a decisão em causa e todos os atos posteriores dela dependentes e determinando a sua substituição por outra que concretize e explicite no respetivo texto, ainda que de forma sumária, os fundamentos de facto e de direito que a sustentam[6]. A outra corrente sustenta, em resumo, que as decisões referentes à liberdade condicional não poderão deixar de qualificar-se materialmente como sentenças, tal é a importância do que decidem, devendo observar uma estrutura idêntica àquelas, sendo-lhes, por isso, aplicáveis as normas processuais reguladoras dos vícios de que as mesmas possam enfermar, designadamente, o de nulidade por falta ou insuficiência da fundamentação cominado no artigo 379º, n.º 1, al. a), por referência ao estabelecido no artigo 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal[7].
No caso em apreço nos autos, a decisão que se pronunciou sobre a liberdade condicional apresenta uma estrutura idêntica à de uma sentença, dela constando o relatório, o saneamento, a fundamentação, com a indicação dos factos considerados provados e não provados, a especificação dos motivos da decisão de facto e a apreciação de direito, concluindo-se com o dispositivo final. Independentemente da qualificação do referido ato decisório, o que interessa é, antes de mais, verificar se a decisão recorrida contém a fundamentação suficiente, indispensável à compreensão da decisão sobre a matéria de facto provada e à fundamentação jurídica. Ora, analisando a decisão, constata-se que nela são expressamente referidos, de forma clara, objetiva, concretizada e assertiva, os motivos pelos quais o tribunal a quo entendeu estarem provados os factos assim exarados, nomeadamente, com base no vasto acervo documental, nos esclarecimentos prestados em conselho técnico e nas declarações do recluso aquando da sua audição. Assim, ali se consignou o seguinte: «A convicção do tribunal no que respeita à resposta à matéria de facto provada resultou do teor da(s) certidão(ões) da(s) decisão(ões) condenatória(s) e do(s) cômputo(s) de pena(s), com homologação (…), do certificado de registo criminal do recluso, do teor da ficha biográfica, do teor dos relatórios da equipa técnica de tratamento prisional e reinserção social da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em que se confiou pela metodologia evidenciada e fontes consultadas, contendo avaliação da evolução da personalidade do recluso durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido, das perspectivas de enquadramento familiar, social e profissional do recluso e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, tudo conjugado com os esclarecimentos prestados em Conselho técnico e com as declarações do recluso prestadas em sede de audição.» E, no que tange à fundamentação jurídica, constata-se que, após efetuar o enquadramento legal do instituto da liberdade condicional e enunciar, de forma densificada, os respetivos pressupostos, o tribunal a quo reverteu tais considerações de caráter técnico jurídico ao caso concreto dos autos, analisando minuciosamente a factualidade provada e extraindo as conclusões que se impunham. É, pois, evidente que a decisão recorrida se mostra devidamente fundamentada, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito. Na verdade, apesar de o recorrente aludir à falta de fundamentação, como deflui da globalidade da motivação e das conclusões vertidas recurso, na verdade, aquele pretende expressar a sua discordância quanto aos factos considerados provados e à apreciação jurídica que dos mesmos foi efetuada, o que nos remete para o domínio das questões seguintes. Conclui-se, assim, que a decisão não padece de falta de fundamentação e, como tal, não enferma de qualquer vício. Improcede, pois, esta primeira questão.
2.ª Questão – Impugnação da matéria de facto Na senda do que supra se referiu sobre a natureza da decisão e em face do preceituado no artigo 179º, n.º 1, do CEPMPL, tem sido entendimento tendencialmente unânime da jurisprudência dos tribunais superiores que a impugnação da matéria de facto só pode ter lugar no caso de ser detetável um dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, os quais são, aliás, de conhecimento oficioso. Mas tal não significa que não seja sindicável superiormente o juízo em que se baseou a factualidade considerada relevante pela valoração dos dados recolhidos nos autos, sem prejuízo, naturalmente, dos princípios basilares da livre apreciação da prova e da oralidade e da imediação. O recorrente começa por assinalar uma contradição entre os pontos 5 e 8 dos factos dados como provados, alegando que «relativamente ao dia 30.04.2024, em ambos se dá como provado que o recluso se apresentou no estabelecimento prisional com 2 horas e 15 minutos de atraso, sendo, igualmente, ali referido “…tendo-se verificado o consumo de cocaína” e “a verificar-se consumo de heroína”, respetivamente» [cfr. conclusão 2.ª]. Embora não seja relevante para a economia da decisão recorrida, efetivamente, resulta do texto da mesma a sinalizada contradição. Todavia, trata-se, manifestamente, de um lapso de escrita no texto do ponto 8, pois no relatório elaborado pela DGRSP refere-se cocaína, tal como vertido no ponto 5. Assim, nem sequer se verifica o vício de contradição insanável entre os factos previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, porquanto a contradição é perfeitamente ultrapassável, devendo ser corrigido o ponto 8, passando a constar cocaína em vez de “heroína”. O recorrente «considera que foi incorretamente dado como “provado” o ponto 9. dos factos dados como provados na parte em que refere: “(…) e neste ano lectivo, 2023/2024 frequentou o 12º ano do ensino recorrente (…)”, pois não só frequentou, mas, também, “concluiu” o 12º ano de escolaridade, cfr. “Relatório Social para Concessão de Liberdade Condicional 2/3 da Pena”, datado de 04/02/2025, o que são realidades bem diferentes e que militam a favor do recluso, pelo que deverá tal segmento de facto ser alterado por esse Venerando Tribunal para: e no ano letivo, 2023/2024 concluiu o 12º ano de escolaridade» [cfr. conclusão 3.ª]. Efetivamente, consta do sobredito relatório que o recorrente “completou o 12.º ano de escolaridade no decorrer do ano letivo de 23/24”. Assim, conquanto, ao contrário do que sustenta o recorrente, tal pormenor não tenha a importância que aquele lhe atribui, por uma questão de rigor, no ponto 9, deverá substituir-se a menção “frequentou” por completou. O recorrente considera, ainda, que «foram erradamente dados como “provados” os pontos 27 e 28, os quais deverão ser alterados para “não provados”», porquanto, segundo alega, «o ponto 27. é infirmado pelos Relatórios da DGRSP e pelas suas declarações, o qual vem “denotando alguma capacidade de censura e de arrependimento” e, no que toca ao ponto 28., teve alta do programa de substituição opiácea por metadona em 27.10.2024, e conforme facto dado como “provado”9. “frequentouo 12º ano doensinorecorrente, bem como unidades de Francês, TIC e Artes Plásticas”, aliás, como o próprio refere, tem investido em manter-se ocupado e pediu colocação de trabalho». Impetra que impõem decisão diversa da recorrida, desde logo, as declarações do recluso, que se encontram gravadas através do sistema integrado de gravação digital, conforme consta do respetivo auto de audição de recluso, com a ref.ª 4015908, cujos excertos se encontram transcritos em I), dos quais decorre que «é perentório a afirmar que tem feito um esforço por se manter ocupado, em apostar no seu desenvolvimento pessoal e académico e demonstra reflexão crítica sobre os seus comportamentos que não deseja repetir». Não assiste, porém, razão ao recorrente. Com efeito, desde logo, o teor das declarações prestadas pelo recorrente/recluso tem que ser interpretado tendo em conta o contexto específico em que são produzidas – audição com vista à decisão sobre a liberdade condicional –, o que as condiciona sobremaneira, pois, como resulta das regras da experiência, os reclusos tendem a expressar aquilo que sabem que lhes é favorável, sendo a imediação, de que beneficia o tribunal a quo e de que este tribunal ad quem está privado, fundamental para percecionar da credibilidade do declarado. De todo o modo, todo o percurso de vida do recorrente e, particularmente, um episódio recente, descritos nos relatórios elaborados pela equipa técnica de tratamento prisional e reinserção social da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, infirmam aquelas declarações e evidenciam a realidade dos factos vertidos nos pontos 27 e 28. Note-se que no “Relatório Liberdade Condicional” do Estabelecimento Prisional ..., datado de 31.01.2025, refere-se que o recorrente «aparentava vir a encetar esforços, no sentido da construção de um percurso prisional evolutivo, tendo conseguido alcançar a concessão de medidas de flexibilização da pena. No entanto, por retrocesso comportamental, ao qual a problemática aditiva não é alheia, regrediu…», ali se mencionando que aquando da última licença de saída jurisdicional, além de se ter apresentado no estabelecimento prisional com 2 horas e 15 minutos de atraso, verificou-se também o consumo de cocaína. Ademais, no “Relatório Social para Concessão de Liberdade Condicional 2/3 da Pena”, datado de 04.02.2025, refere-se, além do mais, que o recorrente é «um indivíduo com caraterísticas de imaturidade e vulnerável à influência de terceiros». O recorrente sustenta, ainda, que não constam nem dos factos “provados”, nem dos factos “não provados” e que deverão passar a constar dos factos provados, porquanto revestem manifesto relevo para a boa decisão da causa, os excertos que transcreve de ambos os sobreditos relatórios [cfr. conclusão 8.ª]. Porém, mais uma vez, sem razão, porquanto tais extratos revelam-se irrelevantes nalguns casos, mostram-se prejudicados ou infirmados por outros noutros casos, não se impondo, em caso algum, a transposição da globalidade do conteúdo dos relatórios, que constituem meios de prova, para os factos provados/não provados, mas apenas dos segmentos que se mostram pertinentes, comprovados e consentâneos com os restantes elementos probatórios. Ademais, o recorrente não demonstra em que medida tais “excertos” constituem factos essenciais para a decisão, situação suscetível de configurar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de factoprovada, previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, nem este tribunal ad quem vislumbra a sua verificação, pois os factos exarados como provados são perfeitamente suficientes, não se detetando a omissão de indagação de quaisquer outros pertinentes para a decisão a tomar. Destarte, conclui-se que, com exceção da correção das concretas menções supra referidas relativamente aos pontos 8 e 9, que são irrelevantes, mantém-se intocada a factualidade provada.
3.ª Questão - Verificação do pressuposto material da concessão da liberdade condicional O recorrente alega, ainda, em síntese, que «a decisão recorrida fez tábua-rasa de que tem vindo a investir no seu percurso prisional, investindo na sua formação, ocupação do tempo e tendo requerido colocação laboral», que «tem demonstrado bom comportamento durante o cumprimento da pena a que tem estado sujeito, no que à sua personalidade diz respeito, tendo em conta as funções de recuperação e ressocialização com vista à sua reinserção social», que «Não se verifica qualquer perigo de que (…) venha a praticar algum crime no período em que se mantenha fora do estabelecimento prisional, já demonstrado nas saídas jurisdicionais de que já beneficiou», que «assume os crimes pelos quais se encontra condenado, verbalizando arrependimento, demonstra consciência da gravidade dos crimes praticados, mantém comportamento adequado e normativo e não apresenta sanções disciplinares há um ano e já cumpriu 2/3 da pena de prisão» e que «a liberdade condicional constitui um marco importante para permitir ao recorrente a sua readaptação e reintegração progressivas na vida em sociedade… tanto mais que, neste momento, possui uma oferta concreta de emprego fora do Estabelecimento Prisional». Vejamos se assiste razão ao recorrente. Para dilucidar a questão supra enunciada, tendo em perspetiva, por um lado, o teor da decisão recorrida e, por outro, os argumentos do recorrente, importa efetuar uma breve caraterização do instituto da liberdade condicional, em termos legais, doutrinários e jurisprudenciais. A liberdade condicional mostra-se regulada nos artigos 61º a 64º do Código Penal e 173º a 188º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL). Este instituto tem sido considerado, conquanto de forma não totalmente pacífica, como um incidente da execução da pena privativa de liberdade (ou modificação da sua execução)[8], conceção posta em crise pela redação dada ao artigo 61º do Código Penal pela Lei n.º 59/07, de 04/09, mormente com a consagração de que tendo a liberdade condicional uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, se considera extinto todo o período que ultrapasse aquele limite – no pressuposto de que não venha a ser revogada, obviamente –, pois estamos aqui verdadeiramente perante uma modificação posterior e substancial da condenação penal, traduzida na sua redução[9]. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade [cfr. artigo 40º, n.º 1, do Código Penal]. Estatui o artigo 42º, n.º 1, do Código Penal que “a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes». Em sentido convergente, dispõe o artigo 2º, n.º 1, do CEPMPL que «a execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade» A liberdade condicional surge como um mecanismo que tem como objetivo «criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão» [cfr. ponto 9 do preâmbulo do Código Penal] e do inerente afastamento da vida em meio livre[10]. Subjacente à filosofia deste instituto está a sua vocação para apontar ao condenado o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento, impondo-se-lhe como fator pedagógico de contenção e auto responsabilização pelo comportamento posterior.
Concretamente, estatui o artigo 61º do Código Penal, sob a epígrafe “Pressupostos e duração” [da liberdade condicional]: “1 - A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado. 2 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se: a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social. 3 - O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior. 4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena. 5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.”
Como sobressai do versado artigo 61º do Código Penal, a arquitetura do instituto da liberdade condicional assenta em pressupostos formais e materiais. Os pressupostos formais reconduzem-se ao consentimento do condenado e ao período da pena cumprido tendo em conta a duração desta. Por seu turno, os pressupostos materiais – especificados nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 61º – são variáveis em função da duração da pena e do período desta cumprido e nem sempre são sempre exigíveis. Com efeito, com a progressão do cumprimento de pena vão decrescendo proporcionalmente os requisitos materiais exigidos e quando se atinge os cinco sextos da pena superior a seis anos são, mesmo, dispensados, sendo, então, obrigatória a concessão da liberdade condicional. Assim, a liberdade condicional é facultativamente concedida quando: a) O condenado tiver cumprido metade da pena de prisão e no mínimo de seis meses, se: - For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes [cfr. al. a), do n.º 2, do artigo 61º]; e - A libertação for compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social [cfr. al. b), do n.º 2, do citado artigo]; b) Tiver cumprido dois terços da pena de prisão e no mínimo de seis meses, desde que, atentas as circunstâncias do caso, a sua personalidade e a evolução desta ao longo do cumprimento da pena, existiram fundadas razões para crer que, posto em liberdade, conduzirá a sua vida de forma socialmente responsável [cfr. n.º 3 do artigo citado). A liberdade condicional é obrigatoriamente concedida, ope legis, logo que o condenado cumpra cinco sextos da pena de prisão superior a seis anos [cfr. n.º 4, do citado artigo].
Por conseguinte, para o que releva no presente recurso, a concessão da liberdade condicional aos dois terços do cumprimento da pena, com o consentimento do condenado, depende apenas da satisfação das exigências de prevenção especial de socialização [prognose favorável sobre o futuro comportamento em meio livre], presumindo-se que, dado o significativo período de tempo de cumprimento de pena já decorrido, a libertação é compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social[11], por estarem já satisfeitas as exigências de prevenção geral.
A respeito do juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido/condenado, ensina Figueiredo Dias[12]: - No âmbito da suspensão da execução da pena [com regime paralelo ao da concessão da liberdade condicional]: «(...) o que aqui está em causa não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser lograda, o tribunal deve encontrar-se disposto a correr um certo risco – digamos: fundado e calculado – sobre a manutenção do agente em liberdade. Havendo, porém, razões sérias para duvidar da capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada»; - No domínio da concessão da liberdade condicional: « … devem ser aqui tomados em conta (…) as concretas circunstâncias do facto, a vida anterior do agente e a sua personalidade; e além destes, (…), também a evolução da personalidade durante a execução da prisão”, acrescentando que “decisivo devia ser, na verdade, não o “bom “comportamento prisional “em si” – no sentido da obediência aos (e do conformismo com) regulamentos prisionais –, mas o comportamento prisional na sua evolução, como índice de (re)socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade. Por outro lado – e aqui reside a diferença essencial –, (…) o prognóstico para efeito de suspensão de execução da prisão deve ter em conta a probabilidade de a suspensão ser suficiente para uma realização adequada das finalidades da punição (e portanto não só de prevenção especial, como de prevenção geral). Já, porém, o prognóstico para efeito de concessão da liberdade condicional deve, numa certa medida, ser «menos exigente» (o que não deixa de compreender-se, porque o condenado já cumpriu uma parte da pena e dela se esperará que possa, em alguma medida, ter concorrido para a sua socialização); se ainda aqui deve exigir-se uma certa medida de probabilidade de, no caso da libertação imediata do condenado, este conduzir a sua vida em liberdade de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, essa medida deve ser a suficiente para emprestar fundamento razoável à expectativa de que o risco da libertação já possa ser comunitariamente suportado.» Trata-se, no fundo, num caso e noutro, de uma avaliação de probabilidades de natureza qualitativa, tendo em conta os enunciados índices factuais, e não estatística ou matemática e, por isso, sujeita a uma variável e imprevisível margem de erro, tanto mais que depende exclusivamente do comportamento humano, consabidamente volúvel. Como assinalam M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio[13], «... [n]ão é necessário, alcançar uma certeza isenta de dúvidas ou mesmo exigir um alto grau de probabilidade de que a socialização em liberdade pode ser alcançada; há que aceitar um certo risco ...». Concretamente, a concessão da liberdade condicional depende, no essencial, da formulação de um juízo de prognose favorável especial-preventivamente orientado[14], necessariamente individualizado, assente na ponderação dos critérios estabelecidos na al. a), do n.º 2, do artigo 61º, orientada pelas regras da experiência comum, tendo em perspetiva razões de prevenção especial, tanto negativa – prevenção da reincidência –, como positiva – prevenção especial de socialização. E sendo o que releva no sobredito prognóstico a fundada expectativa de que, uma vez em liberdade, o condenado seja capaz de conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes, em caso de dúvida séria e inultrapassável – ainda que cientes de que se trata de uma previsão, e não de uma certeza, e que comporta uma incontornável margem de erro ou de risco, como antes se assinalou –, a liberdade condicional não deve ser concedida. Como explica Joaquim Boavida[15] «[n]a dúvida, a liberdade condicional não será concedida. É sabido que na fase de julgamento, a dúvida sobre a realidade de um facto é resolvida a favor do arguido, em decorrência do princípio in dubio pro reo. Na fase de execução da pena de prisão e da consequente apreciação da liberdade condicional esse princípio não tem aplicação. A lei exige, na alínea a) do nº 2 do artigo 61º do Código Penal, para que o condenado seja colocado em liberdade, que seja possível concluir por um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro sem reincidência, ou seja, exige um juízo positivo e só nesse caso a medida será aplicada. Portanto, em caso de dúvida séria, que não possa ser ultrapassada, sobre o caráter favorável da prognose, o juízo deve ser desfavorável e a liberdade condicional negada». Posto isto, volvamos ao caso dos autos. É inquestionável que se mostram preenchidos os pressupostos formais de que depende a concessão da liberdade condicional, porquanto o condenado/recluso deu o seu consentimento e estão cumpridos dois terços da pena de prisão. Questão controvertida é, como se sinalizou, se está preenchido o pressuposto material ou substancial, relativamente ao qual o recorrente diverge do decidido pelo tribunal a quo. Assim, o tribunal a quo entendeu que tal pressuposto não se verificava no caso concreto, mediante a seguinte ponderação: «A trajectória de vida do arguido indicia dificuldades de organização pessoal, de resolução de problemas, demonstrando tendência para actuar em função de necessidades pessoais e interesses imediatos, com fraca ponderação dos impactos e repercussões daí advindas, tendo a problemática aditiva condicionado o seu percurso de vida, com elevado nível de reincidência criminal e ausência de uma actividade laboral consistente. A sua reinserção social é projectada nos mesmos moldes dos anteriormente mantidos em momento precedente à reclusão, com fraca capacidade do arguido em promover a sua própria mudança e ultrapassar os obstáculos que possam surgir, o que aliado à problemática aditiva e à inconsistência laboral, nos levam a concluir que não se mostram identificados elementos suficientes que sejam reveladores de mudança de vida do recluso e da sua ressocialização. O recluso possui suporte familiar, o qual está disposto a apoiá-lo em meio livre, quer afectivamente quer em termos materiais, porém, tal apoio são factores pré-existentes à prática do crime e não foi suficientemente contentor a evitar a prática de novo crime por parte do condenado. Pelo que, o sucesso do processo de reinserção do condenado continua a depender essencialmente de si e das suas estratégias para prevenir a reincidência, da sua motivação para alterar padrões comportamentais desviantes, situação que se avalia ainda com reservas, nesta fase da execução da pena, tanto mais que apresenta recaída de consumo de cocaína em cumprimento da pena. Na realidade, a reincidência criminal do recluso e a sua dependência aditiva, impõe uma grande consolidação – manifestamente ainda não alcançada – da interiorização do desvalor da sua conduta e uma grande motivação de mudança para lograr atingir a sua reinserção social com sucesso, de forma a minimizar o risco de reincidência, patente também no facto de se percepcionarem fragilidades ao nível emocional e lacunas ao nível da capacidade do arguido antecipar as consequências e ser permeável a influências externas negativas. Impõe-se que o recluso consolide o seu percurso prisional com maior reflexão no cometimento do crime por que cumpre pena de prisão e realize um trabalho de responsabilização e consciencialização do mal cometido e das consequências para terceiros, com melhoramento da sua atitude face aos crimes, de modo a que futuramente quando confrontado com um quadro de iguais solicitações exteriores não reincida, até por que, não se trata do primeiro contacto do arguido com o sistema prisional, tendo já anteriormente cumprido pena de prisão. O recluso necessita de consolidar o seu percurso prisional e mostrar-se preparado para em liberdade manter comportamentos responsáveis, receando-se a repetição de conduta criminosa quando colocado em contexto facilitador. O tempo de pena já cumprido, por si só, não devem nem podem determinar a concessão da liberdade condicional, demandando uma melhor interiorização do desvalor dessas suas actuações. Na verdade, um comportamento prisional normativo não é garantia de comportamento conforme o direito fora de meio vigiado. Revela-se essencial que a função intimidadora da reclusão se observe e cujo devido efeito reeducativo se deverá aguardar, porquanto ainda não atingido pelo arguido, o qual, deverá aproveitar este período de privação de liberdade para se consciencializar igualmente na necessidade de mudança de comportamentos. No caso concreto, exige-se a demonstração de um percurso prisional consolidado, devidamente testado e revelador de que atingiu as diversas etapas do tratamento penitenciário e o tempo de pena já cumprido, por si só, não devem nem podem determinar a concessão da liberdade condicional. Concluímos que o condenado ainda não evidencia uma evolução suficientemente favorável para que lhe seja neste momento concedida a liberdade condicional, impondo-se uma consolidação do respectivo percurso prisional. O condenado carece de mais tempo de prisão, de modo a que pena produza o seu efeito inibitório de evitar que volte a delinquir, isto é, que reforce, pela consolidação de competências pessoais em meio prisional e provimento de modo mais consistente as suas necessidades de reinserção social, as naturais contra-motivações éticas no sentido do respeito pela lei e o direito. Em face do exposto, acompanha-se o entendimento unânime do Conselho técnico e o parecer do Ministério Público, no sentido de que não estão reunidas condições para que seja concedido ao recluso AA a liberdade condicional». Como se vê, o tribunal a quo sopesou devidamente todos os aspetos relevantes para aferir da verificação, in casu, do predito pressuposto material, mediante uma análise aprofundada dos factos provados nos autos, que se mostra perfeitamente assertiva e merece a nossa concordância. Ao invés, a argumentação recursiva do recorrente baseia-se em premissas factuais inexistentes ou que não permitem a ilação que delas extrai. Assim, a título meramente exemplificativo, veja-se que, ao contrário do sustentado pelo recorrente, este não tem demonstrado um “bom comportamento” durante o cumprimento da pena, pois do seu registo disciplinar constam já seis anotações, tendo-se verificado um retrocesso comportamental nos moldes descritos nos pontos 4 a 8 dos factos provados. Outrossim, embora não haja notícia da prática de crimes durante as licenças de saída jurisdicional de que beneficiou, na última – em 30.04.2024 – apresentou-se com significativo atraso no estabelecimento prisional e verificou-se que havia consumido cocaína. Estando a problemática aditiva a substâncias estupefacientes na génese dos seus comportamentos desviantes, aquela recaída constitui um indício da sua incapacidade de resistir a esse fator mobilizador da sua atuação criminosa. Ademais, a circunstância de o recorrente assumir os crimes pelos quais foi condenado, per se, não assume grande relevância – na verdade, trata-se de algo incontornável, uma vez que as decisões condenatórias transitaram em julgado. Por seu lado, a verbalização de arrependimento não consta do elenco de factos provados, com certeza porque não equivale a verdadeiro arrependimento e assim não foi considerado pelo tribunal a quo. Mas, ainda que constasse, a mera proclamação de arrependimento, desacompanhada de quaisquer atos que o demonstrem – nomeadamente, junto das vítimas, como pedidos de desculpa, tentativa de ressarcimento, etc. – não permitem concluir que se adquiriu consciência da gravidade dos crimes praticados. Destarte, afigura-se-nos que, efetivamente, não é, ainda, possível efetuar, com a necessária segurança, o prognóstico favorável de que, uma vez em liberdade, o condenado conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes. Aliás, o Conselho Técnico deu parecer desfavorável – por votação unânime dos seus quatro membros – à concessão da liberdade condicional, conforme se extrai da respetiva ata da reunião, tal como o Ministério Público e, sendo insofismável que a avaliação do tribunal relativamente à concessão da liberdade condicional pode divergir da que é feita pelo Conselho Técnico ou pelo Ministério Público, não se pode ignorar que o parecer das entidades que compõem aquele Conselho é particularmente relevante pela proximidade com o recluso e em razão das específicas competências de alguns dos seus membros[16]. Aqui chegados, somos a concluir que a decisão do tribunal a quo considerou a factualidade pertinente, que analisou acertadamente, observando o quadro legal que disciplina o regime da concessão a liberdade condicional aos dois terços da pena. Tal decisão, como vimos, em nada viola os normativos legais invocados pelo recorrente. Improcede, pois, esta última questão. *
III. – DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos supra expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em: A) - Determinar as seguintes correções no que tange à “Matéria de facto Provada”: - No ponto 8, deverá substituir-se a menção “heroína” por cocaína; - No ponto 9, deverá substituir-se a menção “frequentou” por completou; B) - Julgar improcedente o recurso interposto nos autos pelo condenado/recluso … e, em consequência, confirmar a decisão recorrida. * Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça na quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta [artigos 153º, n.ºs 1 e 5, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma]. * * (Elaborado e revisto pela relatora, sendo assinado eletronicamente pelas signatárias – artigo 94º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal)
Isabel Gaio Ferreira de Castro [Relatora] Maria José Guerra [1.ª Adjunta] Rosa Pinto [2.ª Adjunta] [1] Todas as transcrições a seguir efetuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correção de erros ou lapsos de escrita manifestos e, nalguns casos, a alteração da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade da relatora. |