Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1639/21.6T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR DEFICIENTE
OMISSÃO DE DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
NULIDADE DA SENTENÇA
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 186.º; 195.º; 590.º, 2, A) E B), 3 E 4 E 615.º, 1, D), DO CPC
Sumário: I – A petição só é inepta quanto à causa de pedir se esta faltar ou for ininteligível.

II– A causa de pedir é deficiente quando se reivindica uma porção de terreno integrante de um certo prédio, indicando-se genericamente a sua localização, mas sem se identificar fisicamente o respetivo polígono ocupado pelos réus, sendo suscetível de aperfeiçoamento, nos termos previstos no artigo 590.º, n.º 4 do CPC.

III – Se os Réus forem absolvidos da instância por ineptidão da petição inicial, a omissão de despacho de aperfeiçoamento constitui nulidade de sentença, por se ter conhecido prematuramente de questão da qual não se devia ter ainda tomado conhecimento – al. d), do n.º 2, do artigo 615.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator…………....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………José Vítor dos Santos Amaral

2.º Juiz adjunto……….Luís Filipe Dias Cravo


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(…)

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Recorrente ………………….. AA;

Recorridos…………………… BB;

…………………………………..CC; e

…………………………………..DD,

Todos na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de EE.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se numa ação declarativa de condenação e vem   interposto pelos Autores quanto à decisão que absolveu os Réus da instância, cujo teor é o seguinte:

«Da ineptidão da petição inicial:

Nos presentes autos, a A. AA, propôs uma acção de processo comum contra Herança aberta e indivisa, por óbito de EE, BB, CC e DD (tendo estas sido chamadas à acção através do respectivo incidente, na veste de herdeiras da herança aberta por óbito de EE).

Nos termos e com os seguintes fundamentos:

A A. alega ser proprietária de dois prédios rústicos, que melhor descreve no art. 1.º da respectiva petição inicial mais alegando que o R. BB - genro do falecido EE, tem vindo a ocupar parte da área dos referidos prédios rústicos.

Conclui a A. pedindo o seguinte:

“a) Declarar-se a AA. legítima proprietária e possuidora dos imóveis identificados no art. 1º da P.I.;

b) Condenarem-se o RR. a deixarem tais imóveis livres das suas pessoas e bens, bem como a absterem-se de praticar quaisquer actos que possam turbar a posse e o exercício do direito de propriedade da A. sobre o mesmos;

c) Condenarem-se os RR., solidariamente, no pagamento à A. de uma compensação pela ocupação abusiva dos imóveis supra referenciados em 1., a título de sanção pecuniária compulsória, no montante de 100,00 € mensais, desde Abril de 2020 até à data da sua efectiva entrega à A., totalmente livre da sua pessoa e bens.

d) Condenarem-se os RR. a repor, no local em que primitivamente se encontravam, os marcos que serviam para delimitar os terrenos referenciados no artigo 1.º desta PI.”

Os RR. apresentaram contestação, impugnando, em síntese os factos alegados pela A., mais invocando a ilegimidade passiva da 1.º ré (entretanto suprida através da intervenção provocada das respectivas herdeiras) e invocando ainda excepção de ineptidão da petição inicial.

 A A. exerceu o respectivo contraditório relativamente às excepções invocadas, concluindo pela respectiva improcedência.

Vejamos.

Há que ter presente, antes de mais que: “A protecção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão razoável que aprecie (…) a pretensão regularmente deduzida em juízo” – art.2º/1 CPC.

Há que ter em conta igualmente que o pedido e a causa de pedir têm que estar em conformidade com os preceitos legais aos mesmos respeitantes, nomeadamente o pedido tem que ser dotado de existência, inteligibilidade, determinação, compatibilidade, licitude, viabilidade, probidade e juridicidade e a causa de pedir deve reunir as características de existência, inteligibilidade, facticidade, concretização, probidade, compatibilidade com o pedido ou com outras causas de pedir alegadas me termos de acumulação legal, juridicidade e licitude.

Assim, e no que concerne a causa de pedir, o A., deve, expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à acção, não bastando a mera invocação de um determinado direito subjectivo e a formulação da vontade de obter do tribunal determinada forma de tutela jurisdicional, tendo igualmente que alegar a relação material de onde o A. faz derivar o correspondente direito e dentro dessa relação material a alegação dos factos constitutivos.

Desta forma e de acordo com o princípio do dispositivo, é sobre o A. que invoca a titularidade de um direito que recai o dever de alegação dos factos de cuja prova seja possível concluir pela existência desse direito.

Quem invoca um direito tem o ónus de alegar os factos constitutivos desse direito, do mesmo modo que quem se defende por excepção tem de alegar os factos extintivos, modificativos ou impeditivos que lhe subjazem.

Assim, a causa de pedir é consubstanciada tão só pelos factos que preenchem a previsão da norma que concede a situação subjectiva alegada pela parte e cabe precisamente ao A. especificar a causa de pedir, ou seja, a fonte desse direito, o facto ou acto de que no seu entender, o direito procede.

A falta de tal alegação, ou seja, a falta de causa de pedir determina a ineptidão da petição inicial e conduz à absolvição da instância, constituindo uma nulidade absoluta (art. 278.º/1 b) CPC).

Ora, na petição inicial apresentada pela A., esta pretende a declaração de que é “legítima proprietária e possuidora dos imóveis identificados no art. 1º da P.I” e a condenação dos RR. “a deixarem tais imóveis livres das suas pessoas e bens, bem como a absterem-se de praticar quaisquer actos que possam turbar a posse e o exercício do direito de propriedade da A. sobre os mesmos”;

Ora, em primeiro lugar o segundo pedido visa a declaração de uma realidade já existente e que os Réus não contestam, aceitando a propriedade (por aquisição derivada) dos prédios em causa. Ou seja, o pedido da forma como é feito pretende alcançar algo que a A. já tem assegurado na sua esfera jurídica, que é a declaração do direito de propriedade dos prédios referidos, que não é posta em causa pelos Réus (que apenas põem em causa e contestam que tenham invadido tais prédios e que tenham removido os respectivos marcos).

Por outro lado, resulta da exposição da situação efectuada na petição inicial que a A. pretenderá antes coisa diversa que é a reivindicação de uma determinada área destes mesmos prédios, que estará a ser ilicitamente ocupada pelos RR.

Sucede que a A. em momento algum peticiona a reivindicação de tais áreas, sendo que, de resto, nem sequer identifica nem descrevem as concretas áreas que estarão a ser ilicitamente ocupadas pelos RR, limitando-se a dizer, sem mais, que os RR. ocuparam áreas do terreno da A.

De igual modo não invoca a A. factos relativos não só à área dos seus prédios ocupada ilicitamente como também, não descreve a localização da mesma qual o prédio ou prédios, não refere quais nem quantos marcos existiam e onde se situavam – não obstante pedir igualmente a condenação dos RR. a repor os marcos no local originário – não referindo a A. igualmente que área de que terreno delimitavam tais marcos, não identificando, de igual modo, o proprietário do imóvel rústico que o R. alegadamente se propunha ampliar.

Ora, conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de de

05.04.2018, disponível in www.dgsi.pt: “- A ação de reivindicação é uma ação real, petitória e condenatória, destinada à defesa da propriedade, sendo a respetiva causa de pedir integrada pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada e pela violação desse direito pelo reivindicado (que detém a posse ou a mera detenção desta). O pedido é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.”

Ou seja, uma acção de reivindicação, como refere o referido Acórdão: “o Autor instaura uma determinada ação em que pede a condenação do Réu a reconhecer o seu direito de propriedade sobre determinado prédio e que dele faz parte integrante uma determinada parcela de terreno que alega estar a ser possuída pelo Réu e pede a condenação do último a reconhecer esse seu direito de propriedade sobre esse seu prédio, nele se incluindo aquela parcela de terreno e, bem assim a restituir-lhe essa parcela de terreno (pedidos típicos da reivindicação).”

Deste modo verifica-se desde logo que a A. não faz este pedido além de não identificar parcela ou parcelas de terreno (localização e áreas) ocupadas ilicitamente pelos RR., ou seja, não estamos perante um caso de alegação deficiente de factos, mas antes uma total ausência da mesma, a que acresce ainda a incongruência entre o pedido e a causa de pedir, pelo que a petição é inepta (art.186º/2 a) e b) CPC).

Face ao exposto e dada a manifesta ineptidão da petição inicial, declaro assim a nulidade de todo o processo, não conhecendo do pedido, e em consequência absolvo os RR. da instância (art.278º/1 b) e CPC).

Custas a cargo da A. (art.527º/1 CPC).

Fixo o valor da acção no valor indicado na petição inicial.

Registe e notifique.»

b) As conclusões recursivas são as seguintes:

«=A= Vem o presente recurso interposto do douto despacho/sentença que julgou procedente a excepção de ineptidão da petição inicial invocada, na contestação, pelo R., e que absolveu o mesmo do pedido, sem que tivesse havido lugar a uma ponderação crítica e efectiva das razões apostas pela A. à excepção aventada e sem possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do articulado em questão, a que alude o art.º 590.º/4 do CPC.

=B= O convite ao aperfeiçoamento visa suprir as excepções dilatórias do processo e/ou as irregularidades dos articulados, seja completando o que se mostra insuficiente ou corrigindo o que não se afigura correcto.

=C= Eis o regime que decorre do art.º 590.º/2/a) e b)/CPC e que, s.m.o., não está cumprido no caso vertente.

=D= O Tribunal a quo podia e devia (poder/dever vinculado) ter convidado a aqui recorrente a aperfeiçoar a sua petição inicial.

=E= Não o tendo feito, cometeu uma nulidade insanável que influenciou directamente a apreciação do mérito da causa e está na sua origem e efeito.

Termos em que, requer a revogação da decisão sub judice, por nula, devendo ser esta mandada substituir por outra que convide a A. a aperfeiçoar a sua Petição Inicial. JUSTIÇA!»

c) Não há contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

As questões que este recurso coloca são as seguintes:

(I) Em primeiro lugar, cumpre verificar se a petição padece de ineptidão por falta de causa de pedir.

(II) Em segundo lugar, caso a primeira questão seja respondida afirmativamente, cumpre ponderar se o tribunal, antes de decidir que a petição padecia de ineptidão, devia ter convidados os Autores a corrigirem a petição, nos termos previstos no artigo 590.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC.

III. Fundamentação

a) Matéria processual a considerar

Consta da petição o seguinte:

 «(…) 16. Em data que a A. não consegue precisar, mas no lapso temporal que mediou entre a outorga da escritura atrás junta sob o documento n.º 5 e a data de .../.../2021, que o R. BB - genro do falecido EE, ao que se sabe, com conhecimento e aprovação da Ré Herança e sem oposição desta -, tem vindo a ocupar parte da área dos prédios rústicos supra descritos no art. 1º desta P.I.

17. Tendo removido e dado descaminho os marcos ali existentes, que delimitavam a área do terreno da A. – marcos que, desde tempos imemoriais, sempre ali estiveram colocados (vide conjunto documental fotográfico, recolhido em 11.04.2021, que aqui se junta e dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais sob o n.º 6).

18. Pretendendo, com tal comportamento, ampliar, de forma absolutamente ilegítima e sem qualquer fundamento, a área de um imóvel de natureza rústica que confronta de Norte com os imóveis da A., fazendo sua uma parte dos imóveis rústicos da A., que bem sabe não lhe pertencer a si próprio, nem à Ré Herança.

(…)

25. Passou a ocupar habitualmente uma faixa de terreno daqueles imóveis rústicos, passando a lavrá-los e a cultivá-los.

26. Recusando-se determinadamente a desocupá-los e a deixar de os lavrar e cultivar.

27. Tal recusa do R. em deixar os imóveis é absolutamente injustificada e infundada.

28. Por outro lado, a falta de fruição e utilização em geral daquele espaço causa à A. um lucro cessante de pelo menos 100,00 € mensais, equivalente ao valor de utilidade e produtos hortícolas que aproveitaria no mesmo.

29. O supra exposto configura, por parte dos RR., a privação parcial da posse e violação flagrante do direito de propriedade, relativamente à A., dos seus imóveis supra identificados no art. 1º, contra a sua vontade – arts. 1278º e 1251º do Código Civil; 383º e seguintes e 393º do Código Processo Civil –.

30. Pretende assim a A., com a presente acção, ver declarado o seu direito de propriedade sobre os imóveis supra referidos no artigo 1º, e ver restituída à sua pessoa a respectiva posse e domínio, com a consequente saída dos RR. da parte por si ocupada dos mesmos, assim como a retirada dos bens da sua pertença que aí mantenha.

Termos em que deverá a presente acção vir a ser declarada procedente, por provada, e por via dela:

a) Declarar-se a AA. legítima proprietária e possuidora dos imóveis identificados no art. 1º da P.I.;

b) Condenarem-se o RR. a deixarem tais imóveis livres das suas pessoas e bens, bem como a absterem-se de praticar quaisquer actos que possam turbar a posse e o exercício do direito de propriedade da A. sobre o mesmos;

c) Condenarem-se os RR., solidariamente, no pagamento à A. de uma compensação pela ocupação abusiva dos imóveis supra referenciados em 1., a título de sanção pecuniária compulsória, no montante de 100,00 € mensais, desde Abril de 2020 até à data da sua efectiva entrega à A., totalmente livre da sua pessoa e bens.

d) Condenarem-se os RR. a repor, no local em que primitivamente se encontravam, os marcos que serviam para delimitar os terrenos referenciados no artigo 1.º desta PI.»

b) Apreciação das questões objeto do recurso

1 – Vejamos a petição padece de ineptidão por falta de causa de pedir.

(I) A resposta não se afigura isenta de dúvidas porquanto na petição inicial não se identifica a «coisa», indicando os limites materiais ou a configuração geométrica da parte do prédio que os Réus estarão a ocupar, situando essa parcela no contexto predial ali existente, quer relativamente ao prédio dos réus ou em relação com outros prédios com os quais possa confrontar.

A melhor forma ou uma boa forma de o fazer consistiria em apresentar uma representação gráfica dos terrenos representativos da realidade predial local com indicação dos limites e áreas objeto de reivindicação, de modo a que não houvesse qualquer dúvida sobre aquilo que se reivindica.

No caso dos autos, se, por hipótese, o tribunal julgasse o pedido procedente tal como está formulado na petição e fosse necessário executar a sentença, esta seria inexequível, porquanto não se conseguiria determinar o objeto a entregar aos Autores, uma vez que a sentença não o definia, mostrando onde começava e acabava fisicamente.

O Prof. Alberto dos Reis em situação algo semelhante pronunciou-se pela ineptidão nos seguintes termos:

«O Supremo Tribunal de Justiça em acórdão de 14 de março de 1902 ( Col. Of., 2.º, pág. 206 ) julgou inepta uma petição para acção de reivindicação de terrenos, por se não especificarem os limites e a extensão dos mesmos; e a Relação de Luanda, em acórdão de 8 de agosto de 1908 ( Gaz., n.º 22, pág. 746 ), decidiu que a falta de designação precisa do prédio cuja mera posse se pretendia justificar, importa ineptidão.

(...) parece-nos que, nos casos concretos acima referidos, a petição era inepta. Sabia-se qual o efeito jurídico que o autor pretendia obter: reivindicação num caso, justificação de posse noutro; mas não se sabia qual o objecto material sobre que esse efeito jurídico havia de recair e esta incerteza conduzia à ineptidão designada na al. a) do artigo 193.º. Pedir a reivindicação ou a posse, sem se identificar a coisa que se reivindica ou cuja posse se pretende obter, equivale a não formular o pedido, visto que a reivindicação e a posse não podem ser reconhecidas em abstracto, hão-se referir-se concretamente a determinado objecto material» - Comentário ao Código de Processo Civil...Vol. 2.º. Coimbra/1945, pág. 363, nota 1.

(II) Afigura-se, porém, que no presente momento histórico esta solução é demasiado drástica, pois o processo civil atual tende a evitar ao máximo a inutilização dos atos processuais e, por outro lado, no caso dos autos não estaremos perante um caso de ineptidão, pelas seguintes razões:

(a) A lei alude a petição inepta e a petição deficiente, podendo esta última, ao contrário da primeira, ser aperfeiçoada.

Se a petição não sendo inepta por falta causa de pedir, ainda assim carece de aperfeiçoamento, então isso tem de significar que a petição tal como está, mesmo que provada a respetiva factualidade, levaria à improcedência da ação, pois se esta deficiência não levasse à improcedência não se justificava o convite ao aperfeiçoamento.

Vejamos então.

Nos termos do n.º 2 do artigo 186.º do CPC, «Diz-se inepta a petição:

a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir;

b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir;

c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.»

Por conseguinte, se a causa de pedir não faltar de todo, existirá apenas deficiência.

A respeito da deficiência da causa de pedir, Alberto dos Reis disse o seguinte: «Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar ineptidão: é o caso de a petição ser omissa quanto ao pedido ou à causa de pedir; mas à parte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a acção naufraga.» -  Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Ed. – Reimpressão, 1982, pág. 372.

E, mais adiante, «Por vezes torna-se difícil distinguir a deficiência que envolve a ineptidão da que deve importar improcedência do pedido. Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão. São os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descambam na ineptidão por omissão de causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre o que haja de assentar o reconhecimento do direito» -  Ob. Cit. pág. 374.

 (b) No presente caso, a ineptidão só poderá estar nos casos da al. a) do artigo 186.º do CPC, isto é, na falta ou ininteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, mais concretamente, na falta de causa de pedir.

«A causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido» - Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio Nora. Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 245.

E, como explicita Miguel Teixeira de Sousa, «Um facto é um elemento de uma cadeia temporal com todos os componentes que o demarcam dos demais. Porém, muito raramente os factos se acham isoladamente presentes na causa de pedir. O mais frequente é a formação desta por um composto fáctico que esgota um acontecimento ou deste é uma parcela» – Sobre a Teoria do Processo Declarativo. Coimbra Editora, 1980, pág. 159.

Afigura-se que apesar da indefinição ou omissão da identificação da porção de terreno reivindicada, não ocorre falta da causa de pedir porquanto na petição se alude com alguma concretização a essa porção de terreno, embora insuficiente para a identificar de modo a permitir proferir um a decisão, pois não identifica fisicamente o respetivo polígono ocupado pelos réus.

Com efeito, essa porção de terreno pertence aos prédios dos artigos matriciais ...00 e ...12 da matriz rústica da freguesia ..., do município ..., e situa-se na confrontação deste prédio com o prédio dos Réus, o qual é identificado na fotografia aérea junta como documento n.º 6 da petição e, por fim, está ocupada pelos Réus desde data desconhecida, mas posterior à data da compra dos prédios, em 06/11/2020.

A causa de pedir invocada padece de melhor determinação física (a fotografia não identifica as partes ocupadas), definição esta necessária para a procedência do pedido, caso a razão esteja do lado dos Autores.

Concluindo, há causa de pedir, mas esta é deficiente e não permite julgar a ação procedente, caso assista razão aos Autores.

Vejamos a seguir as consequências processuais que derivam desta conclusão.

2. Vejamos agora se o tribunal devia ter convidado os Autores a corrigir a petição, nos termos previstos no artigo 590.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC.

A resposta é afirmativa.

Com efeito, nos n.º 3 e 4 do artigo 590.º do Código de Processo Civil determina-se o seguinte:

«3. O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

4. Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.»

Esta redação mostra que o juiz deve convidar as partes a aperfeiçoarem os articulados.

Neste sentido Paulo Pimenta, quando refere que «…o legislador quis tornar claro que, verificadas as circunstâncias previstas no n.º 4 do art. 590.º, o juiz não pode deixar de proferir despacho de pré-saneador, sob pena de tal omissão configurar uma nulidade (art. 195.º)» - Processo Civil Declarativo. Almedina, 2014, pág. 224.

Como no caso dos autos ocorre tal omissão, a sentença padece de nulidade, cumprindo declará-la, para que seja dado cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 590.º do Código de Processo Civil na parte relativa à necessária indicação da situação física e configuração geométrica da porção de terreno que os Réus estarão a ocupar e que pertencerá aos prédios dos Autores.

A nulidade só se torna patente com a tomada da decisão e como refere o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, em casos similares (Nulidades do processo e nulidades da sentença: em busca da clareza necessária  https://blogippc.blogspot.com/2020/09/ - consultado em 18 de novembro de 2020), esta nulidade dá-se na própria decisão porquanto o juiz se pronuncia sem estarem reunidas as condições processuais para o efeito, isto é, sem ter convidado a parte a aperfeiçoar a petição, ocorrendo então um excesso de pronúncia porque o juiz conheceu de questão da qual não podia tomar (nesse momento) conhecimento – al. d) do n.º 2 do artigo 615.º do CPC.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, revoga-se a decisão recorrida para que os Autores sejam convidados a aperfeiçoar a petição de modo a identificarem fisicamente a porção de terreno que reivindicam.

Custas por quem for responsável a final


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Coimbra, 14 de março de 2023