Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/11.1 GTCTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: RECURSO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
DEFICIÊNCIA OU FALTA DE GRAVAÇÃO
NULIDADE
ARGUIÇÃO
SENTENÇA ORAL
TRANSCRIÇÃO
Data do Acordão: 09/07/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2º JUÍZO DO TRIBUNAL JUDICIAL DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 363º, 364º E 389º- A CPP
Sumário: I- Pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia das cassetes/CDs pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo de recurso da sentença,
II- No caso de se pretender interpor recurso de sentença proferida oralmente nos termos do artº 389º-A do CPP, cabe aos serviços do Tribunal recorrido efectuar a correspectiva transcrição, depois confirmada pelo juiz que elaborou a decisão, de forma a ser assegurado o direito de recurso.
Decisão Texto Integral: I – Relatório.

1.1. O arguido A..., entretanto já mais identificado, submetido a julgamento no Tribunal a quo, porquanto acusado pelo Ministério Público, acabou condenado pela prática, sob a forma consumada, em autoria material e concurso real de infracções, dos crimes assacados, isto é, a) de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível através das disposições conjugadas dos art.ºs 292.º e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de cinco meses, b) bem como de um outro de desobediência, previsto e punível através dos art.ºs 152.º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada, e 348.º e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), acrescendo a sanção acessória de proibição de conduzir veículos automóveis pelo período de seis meses, e a que, c) em cúmulo jurídico de imediato operado se fez corresponder a pena principal única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à razão diária de € 7,00 (sete euros), ou seja, na multa global de € 980,00, bem como a pena acessória única de 11 (onze) meses de proibição de conduzir veículos automóveis.

1.2. Desavindo com o teor do sentenciado, recorre o arguido, extraindo do requerimento com que minutou tal desavença, a seguinte ordem de conclusões:

1. Existe uma gravação deficiente das declarações oralmente produzidas em audiência pelas testemunhas B... (de quem nada se ouve) e C… (gravado de modo manifestamente baixo, com ruídos, o que afecta na sua clareza e compreensão as perguntas formuladas), que coarcta ao arguido a possibilidade de sindicar por via de recurso a matéria de facto acolhida na decisão recorrida, sendo que as declarações em causa foram um dos meios de prova que a alicerçaram.

2. O que gera a nulidade dessa peça processual nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

3. O M.mo Juiz a quo considerou indevidamente provado que “… o arguido fez nove tentativas de exame para pesquisa de álcool no sangue dando sopro insuficiente o que impossibilitou a obtenção de qualquer resultado; apesar de advertido de que incorria em crime de desobediência caso não se sujeitasse a exame pesquisa de álcool no sangue; advertência essa efectuada por militares da GNR devidamente fardados; apesar de advertido que incorria num crime de desobediência caso não se sujeitasse a exame para pesquisa de álcool no sangue, das diversas tentativas efectuadas resultou sopro insuficiente, o que impossibilitou obter qualquer resultado…”.

Com efeito,

4. Analisando-se as passagens do depoimento que infra se transcreve, verifica-se que o agente da GNR não podia ver o ar expirado pelo arguido sair pelo lado, pois o ar é incolor e certamente que o arguido não estava a soprar de boca aberta, pois tem de soprar na boquilha do aparelho.

5. Afirmou a testemunha C…, no seu depoimento prestado no dia 03/03/2011, gravado no CD respectivo desde minutos 16.26.06 a 16.31.26:

(P): Queria que nos dissesse o que aconteceu na primeira vez em que o mandaram parar?

(T): O sr. conseguiu fazer o teste. Salvo erro tentou 8 ou 9 vezes e não conseguiu fazer.

(P): Porque é que o sr. A...não conseguiu fazer nada?

(T): Não soprava com força suficiente.

(P): Foi advertido na altura?

(T): … (imperceptível).

(Def.): Disse que ele não conseguia fazer não que ele não queria?

(T): O ar saía e lado… (imperceptível.)

(Def.): Disseram-lhe para ir ao hospital fazer exame?

(T): … (imperceptível).

5. O recorrente jamais se recusou a efectivar o teste de alcoolémia.

Porém, não conseguiu expelir o ar em quantidade suficiente para a realização, com êxito, do teste em analisador quantitativo.

Ora, nessa situação, e de acordo com o preceituado nos art.ºs 4.º da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, e 153.º, n.ºs 7 e 8, do Código da Estrada, deveria ter-se procedido a análise sanguínea ou mandar submeter o suspeito a exame médico.

Só, então, acaso o arguido se recusasse a submeter à colheita de sangue, é que haveria efectiva e definitivamente uma recusa em termos de a considerar penalmente relevante, ou seja, potenciadora da prática, pelo arguido, do apontado crime de desobediência.

6. O arguido confessou a prática do crime de condução em estado de embriaguez, tendo justificado o motivo que o levou a ingerir bebidas alcoólicas, isto é uma festa de despedida de solteiro de um amigo.

Daí pode-se concluir que o arguido não é pessoa com hábitos de abuso de bebidas alcoólicas.

Por outro lado, o arguido é empresário, revendendo produtos alimentares, por toda a região da Beira Interior.

O que faz, com o auxílio de uma carrinha frigorífica, a qual conduz.

O arguido não tem quaisquer empregados que o auxiliem no exercício do seu comércio.

Aquando da aplicação da pena e sanção acessória, o Tribunal a quo não ponderou tais condições pessoais.

Com a inibição de condução o arguido não poderá desenvolver a sua actividade e por consequência não poderá pagar as suas responsabilidades para com a banca, designadamente credito habitação, crédito pessoal, leasing, etc.

Aplicar-lhe 6 meses de inibição de veículo automóveis pelo crime de condução sobre o efeito do álcool significa enviá-lo para o desemprego e a sua empresa para a insolvência.

7. A decisão recorrida omite a menção aos factos “não provados”, designadamente os constantes dos art.ºs 2.º; 3.º; 4.º; 7.º; 8.º e 9.º da contestação do recorrente.

Cominando-a, consequentemente, com o vício de nulidade, ex vi das disposições conjugadas dos art.ºs 379.º, n.º 1, alínea a) e 374.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

Terminou pedindo que atenta a violação dos normativos legais indicados seja decretada a nulidade do acto praticado; subsidiariamente, a sua absolvição quanto ao mencionado crime de desobediência; acaso deva manter-se a respectiva condenação, bem como pela prática do crime de condução em estado de embriaguez, seja sempre ponderada a redução das penas acessórias parcelares e única devidas.

1.3. Cumprido o disposto pelo artigo 413.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, respondeu o Ministério Público sustentando da emergência das duas nulidades opostas – de deficiente gravação de parte da prova produzida, bem como de omissão de pronúncia sobre factos não provados –, donde que a dever proceder o recurso.

1.4. Admitido, foram os autos remetidos a esta instância.

1.5. Aqui, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer conducente a idêntico provimento.

Acatou-se o estipulado pelo artigo 417.º, n.º 2, do último diploma citado.

Sem réplica do recorrente, no exame preliminar a que alude o n.º 6 deste mesmo inciso, consignou-se nenhuma circunstância impôr a apreciação sumária do recurso, ou obstar ao seu conhecimento de meritis, donde que a dever prosseguir seus termos com a recolha dos vistos devidos e sujeição à presente conferência.

Cabe, pois, apreciar e decidir.


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II – Fundamentação de Direito.

2.1. Como constitui jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, e nas quais deve sintetizar as razões do pedido [artigo 412.º, n.º 1, do mesmo diploma], que se delimitam o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal ad quem.

In casu, diremos afoitamente que atenta desde logo a solução a dar à primeira das questões opostas pelo recorrente – de gravação deficiente de declarações orais prestadas no decurso da audiência – se mostrará prejudicado o conhecimento das demais que elenca no recurso interposto.

Na verdade:

2.2. Conforme o estabelecido nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devam ser renovadas.

4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

E, nos termos do disposto no artigo 363.º, do mesmo diploma (na redacção introduzida através da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), “As declarações prestadas oralmente em audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade”, estando a forma da documentação descrita no artigo 364.º.

Ou seja, perante o novo regime, quer a omissão total ou parcial da gravação, quer a sua imperceptibilidade (quando esse segmento da prova for essencial ao apuramento da verdade) constitui nulidade, a qual tem influência na decisão da causa, na medida em que o recorrente fica impossibilitado de cumprir o ónus de especificação previsto no citado artigo 412.º[1].

No caso vertente, na motivação, o recorrente invocou que mormente os depoimentos das duas testemunhas de acusação inquiridas e, aliás, as suas próprias, não eram perceptíveis no registo magnetofónico, sendo que aquelas foram decisivas na fundamentação da motivação probatória da decisão recorrida, nomeadamente no segmento conducente à sua condenação pela prática do crime de desobediência.

Quid iuris?

Com o novo regime da documentação das declarações prestadas em audiência, a prova deixou de ser transcrita e, sendo impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, o tribunal procede à audição ou à visualização da gravação magnetofónica ou audiovisual (cfr. art.º 412.º, n.º 6, do Código de Processo Penal).

Como sabemos, a gravação dos depoimentos orais prestados em audiência destina-se, para além do mais, a habilitar o tribunal de recurso a apreciar se a matéria de facto foi julgada em conformidade com a prova produzida.

Incumbindo a um funcionário judicial a gravação da prova e, sendo os meios técnicos utilizados do próprio tribunal, quando um sujeito processual solicita cópia da gravação tendo em vista o recurso, confia que a gravação da prova está em perfeitas condições técnicas e que o registo magnético é totalmente perceptível.

Ainda que se entenda que uma actuação prudente implicará a verificação imediata da qualidade da gravação, afigura-se-nos que pretendendo o recorrente impugnar a matéria de facto, não lhe é exigível que proceda à audição dos respectivos suportes magnéticos no prazo de 10 dias a contar da data em que lhe foi entregue a cópia das cassetes/CDs pelo Tribunal, podendo fazê-lo dentro do prazo da apresentação da motivação do recurso[2].

Na situação vertente, auditando-se o CD contendo a gravação da prova é possível concluir, por um lado, que as declarações do arguido e sobremaneira os depoimentos das testemunhas de acusação inquiridas se mostram imperceptíveis, e, por outro lado, também se constata que o M.mo Juiz a quo, ao proferir oralmente a decisão recorrida, se arrimou na motivação probatória nesses mesmos depoimentos (minutos 3,04 e segs.).

Nesta perspectiva, coarctando-se ao arguido a possibilidade de sindicar perante este Tribunal ad quem a matéria de facto como pretende, lesam-se os seus direitos de defesa com tutela no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da república Portuguesa, o que urge obstar.

Vale por dizer, consequentemente, que deste modo procede a arguida nulidade e se deve proceder a novo julgamento.


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2.3. Pese embora corolário seja, como acima já dito, a prejudicialidade das demais questões suscitadas, duas notas se impõem, todavia:

2.3.1. Uma primeira, relembrando que o artigo 374.º, do Código de Processo Penal – epigrafado Requisitos da sentença –, após determinar no seu n.º 2 que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, …”, prevê como causa de “Nulidade da sentença”, no subsequente art.º 379.º, n.º 1, alínea a), exactamente a falta das “menções referidas no n.º 2… do artigo 374.º”.

Apreciando aquele primeiro normativo, escreve Paulo Pinto de Albuquerque[3] que a fundamentação enuncia, nomeadamente, os factos não provados da contestação penal, constituindo nulidade da sentença, também exemplificativamente, a omissão dos factos não provados[4].

O recorrente convoca tal vício, a que nada opõe o Ministério Público. Por isso, não sendo curial apreciar da sua concreta emergência ou não, deverá a 1.ª instância obstar a uma sua possível verificação.

2.3.2. Segunda nota a reter, a de que atenta a forma de processo seguida, e visto o seu regime específico, a sentença proferida o foi verbalmente e ditada para a acta.

Tal tipo de sentença assenta no pressuposto da emergência da celeridade processual, mas sem que tal regime possa pôr em causa os direitos de defesa. Daí que o direito ao recurso não seja posto em causa pelo modelo agora implementado (é assim, aliás, em modelos processuais penais onde vigoram soluções aproximadas ao regime agora implementado, como no novo CPP suíço no seu artigo 82.º ou no § 275 do STPO, germânico).

Neste sentido é importante atentar nos números 3 e 4 do artigo 389.º do diploma adjectivo penal[5].

A afirmação inequívoca de que a sentença oral é sempre documentada, nos termos dos artigos 363.º e 364.º do Código de Processo Penal, impõe que a sentença oral fique sempre e integralmente registada no sistema de gravação do Tribunal.

Como consequência directa deste normativo o exercício constitucional do direito de recurso está garantido. Se e quando os sujeitos processuais pretenderem recorrer da sentença, no prazo legalmente estabelecido para a interposição do recurso, poderão fazê-lo sem qualquer limitação.

O que os sujeitos processuais podem fazer, desde que presentes no momento da proferição/leitura da decisão, é prescindir do direito de recorrer e nessa medida prescindirem da entrega da cópia da sentença que ficou registada no sistema.

Relativamente à questão do exercício do direito de recorrer e sobretudo o modo como o recurso é posteriormente conhecido pelo Tribunal Superior, é evidente que aquele conhecimento do recurso terá que incidir sobre a transcrição do registo da sentença oralmente proferida a ser efectuado pelos serviços do Tribunal e depois de confirmada pelo juiz que elaborou a decisão.

Efectuada esta operação que naturalmente irá permitir, efectivamente, a garantia do direito constitucional ao recurso através o seu conhecimento pelo Tribunal Superior, a plenitude do direito de recorrer fica assim consagrada.

Nos presentes autos não foi concretizada a transcrição do registo da sentença – que se encontra, todavia, disponibilizada. Logo, acaso algum dos sujeitos processuais venha a pretender exercitar o direito ao seu recurso, importa que, então, os serviços do Tribunal recorrido efectuem a correspectiva transcrição, de forma a ser assegurado o direito de recurso nos termos expostos.


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III – Decisão.

São termos em que pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso e, em consequência, declarar a invalidade do julgamento, bem como da sentença dele dependente, determinando-se a realização de novo julgamento.

Sem tributação.

Notifique.


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Coimbra, 7 de Setembro de 2011



[1] Anteriormente, o STJ havia fixado jurisprudência no acórdão n.º 5/2002, de 27 de Junho, publicado no Diário da República, I.ª Série, A, de 17 de Julho de 2020, precisando que “A não documentação das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, contra o disposto no artigo 363.º do Código de Processo Penal, constitui irregularidade, sujeita ao regime estabelecido no artigo 123.º do mesmo diploma legal, pelo que uma vez sanada o tribunal já dela não pode conhecer.”

[2] Neste sentido, entre outros, os Acórdãos da RC de 1 de Julho de 2008 e de 15 de Abril do mesmo ano, bem como da RP de 5 de Maio de 2009, todos disponíveis em www.dgsi.pt e, ainda, o Acórdão da RC de 2 de Junho de 2009, relatado pela Ex.ma Desembargadora Elisa Sales, no âmbito do processo n.º 2489/06. 5 TALRA.C1.

Por outro lado, precisando diferentes entendimentos que acerca do tema se foram perfilhando, pode ler-se o acórdão datado de 1 de Junho de 2001, relatado pelo Ex.mo Desembargador Calvário Antunes, no recurso n.º 1/06.5 IDGRD.C1, deste Tribunal da Relação, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrc.
 
[3] In Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição revista e actualizada, pág. 943.
[4] Ibidem, pág. 959.

[5] No sentido a seguir, veja-se o Acórdão desta RC, datado de 18 de Maio pretérito, relatado pelo Ex.mo Desembargador Mouraz Lopes, no recurso n.º 137/10.8 GASBC.C1.