Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
27/22.1GAMMV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO POR FALTA DE PRESSUPOSTOS DO CRIME
CASO JULGADO FORMAL
APRESENTAÇÃO DE NOVA ACUSAÇÃO
PROCESSO AUTÓNOMO
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE MONTEMOR-O-VELHO
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 248.º, N.º 1, E 311.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – O despacho de rejeição da acusação por falta de narração de factos integrantes do elemento subjectivo do crime imputado, apenas faz caso julgado formal, porque não aprecia o mérito da causa, não tendo, por isso, efeito extintivo do procedimento criminal.

II – Rejeitada uma acusação, pública ou particular, por falta de narração de elementos típicos do crime imputado, é permitida a apresentação de nova acusação que corrija os lapsos e omissões verificados na primeira.

III – Tendo sido respeitado o prazo constante do n.º 1 do artigo 284.º do C.P.P. aquando da dedução da primeira acusação, é este o prazo a considerar para concluir pela tempestividade da apresentação da segunda acusação, que se destina, apenas, a corrigir aquela.

IV – Porém, a renovação da acusação terá que ser feita em processo autónomo porque, não tendo sido interposto recurso do despacho de rejeição, significa que o recorrente se conformou com o mesmo.

Decisão Texto Integral:

            I- Relatório

            1. … a Mma. Juiz decidiu indeferir a nova acusação particular apresentada, no mesmo processo, pelo assistente … contra os arguidos …, deduzida após a rejeição de uma primeira acusação particular por aquele apresentada, considerada manifestamente infundada, por referência ao preceituado no artigo 311.º, nºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do mesmo diploma legal, por não conter a narração dos factos constitutivos do crime nela imputado aos arguidos.


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            2. Inconformado com o despacho assim proferido, dele recorreu o assistente …, que, no termo da respectiva motivação, formulou as seguintes conclusões (transcrição):

            “1º …, assistente nos autos na sequência da notificação para o efeito, em tempo (10.11.2022), apresentou acusação particular nos autos, …

                    …

                    5º Contudo, por douto despacho de 23.03.2023, Referência: 90823713, de fls… o Tribunal de 1ª Instância determinou o seguinte:

            “Em jeito de conclusão, quanto a este Tribunal, não obstante o despacho de rejeição da acusação, por esta ser tida por manifestamente infundada, não fazer caso julgado material, por falta de previsão legal nesse sentido, não é admissível que, nessa sequência, o Ministério Público ou a assistente apresentem nova acusação, sanando a falha que conduziu àquela rejeição.

                    Como assim, uma vez que a acusação particular é apresentada no prazo estipulado pelo artigo 284.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e este já se mostra ultrapassado, inexistindo outra norma que admita a sua apresentação neste momento, a acusação particular apresentada a 14-03-2023 é extemporânea.

                    Pelo exposto, por extemporânea, rejeita-se a acusação particular apresentada pelo assistente a 14 de março de 2023.”

                    …

                    11º Ora o assistente apesar muito respeitar o julgamento efetuado pelo Tribunal de 1ª Instância, não se conforma, nem concorda com as decisões proferidas porque conforme suprarreferiu entender que tem a possibilidade de apresentar nova acusação em que a deficiência verificada.

                    …


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            3. A Exma. Procuradora da República junto da primeira instância respondeu ao recurso …

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            4. Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora Geral … emitiu parecer …

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            5. Cumprido o disposto no Art. 417º nº2 do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer.

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            II-  Fundamentação

            Delimitação do objecto do recurso

            …

            Assim sendo, estando a apreciação do recurso balizada pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir no presente recurso consiste em saber se, após a dedução de acusação particular, a qual foi rejeitada, por não conter a narração do elemento subjectivo do crime imputado, o assistente pode deduzir, no mesmo processo, uma nova acusação suprindo as omissões da primeira peça processual.


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            B) Da decisão recorrida

            Para a apreciação do presente recurso, importa ter presente o despacho recorrido e outros elementos relevantes do processo, a saber:

            1. No final do inquérito a Digna Magistrada do MºPº proferiu despacho no qual deduziu acusação, em processo comum singular, contra a arguida … nela lhe imputando os factos aí descritos susceptíveis de integrar a prática pela mesma de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 155º, nº1 al. a), por referência ao artigo 153º nº1 do Código Penal, e, ainda, ordenou a notificação do assistente …, para, querendo, deduzir acusação pelos crimes de injúria por ele denunciados, …

               2. Notificado o assistente nos termos do disposto no art. 285º, nº1 do CPP, veio o mesmo deduzir acusação particular contra os arguidos …, nela lhes imputando a prática, a cada um deles, de um crime de injúria, …

            2.1. O Ministério Público acompanhou tal acusação particular …

            3. Remetidos os autos para julgamento ao Juízo de Competência Genérica ..., a Mma. Juiz titular do mesmo proferiu o seguinte despacho … que e transcreve:

               “…

                    2. Da acusação particular e do pedido de indemnização civil

               O assistente … deduziu acusação particular na qual imputa aos arguidos … a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1 do Código Penal.

                    Perante isto, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de que acompanha a acusação particular deduzida pelo assistente.

                    O artigo 311.º, do Código de Processo Penal, determina que «Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer».

               Lida a acusação particular constata-se que não é referido que os arguidos tivessem conhecimento de que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

              

                    Tratando-se de um elemento constitutivo do crime de que os arguidos foram acusados (concretamente do tipo da culpa) e que estes elementos são cumulativos, a sua falta conduz a considerar-se que os demais factos não constituem a prática de qualquer crime, não sendo sequer admissível a correcção deste vício.

                    …

                    Em suma, a acusação particular é manifestamente infundada, porque os factos nela indicados não constituem crime – artigo 311.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal. Em conformidade, deve a acusação particular ser rejeitada, em obediência ao artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal.

                    (…) “.

                    3.1. No mesmo despacho, a Mma. Juiz recebeu a acusação deduzida pelo Ministério Público …

            4. O assistente … apresentou o requerimento que constitui a Refª 7934249, no qual argumenta que deveria ter-lhe sido concedida a possibilidade de colmatar a deficiência da acusação apontada no despacho que a rejeitou, e, firmando-se na jurisprudência vertida no ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 1.01.2021, considerando que tal despacho não formou caso julgado material, veio apresentar nova acusação particular, colmatando a falta apontada.

            5. Sobre tal requerimento recaiu o despacho ora recorrido que constitui a Refª 90823713, cujo teor de transcreve:

               Da acusação particular de 14-03-2023

                    Por requerimento de 14-03-2023, veio o assistente apresentar nova acusação particular, suprindo a falha apontada no despacho de 23-01-2023, …

                    Cumpre apreciar e decidir.

                    Em primeiro lugar, não se conformando o arguido com o despacho proferido a 23-01-2023, a forma de reagir àquele teria sido através do recurso, …. O assistente optou por apresentar uma nova acusação particular, sendo que o Tribunal não lhe dirigiu qualquer convite para o efeito, nem a lei, salvo melhor entendimento, o admite, pelo que carece de fundamento legal a pretensão legal ora apresentada.

                    Em segundo lugar, o assistente sustenta a apresentação de nova acusação particular no entendimento de que o despacho proferido a 23-01-2023 não formou caso julgado material sobre a questão..

                    …

                    O despacho previsto no artigo 311.º, do Código de Processo Penal, concretamente o despacho que rejeite uma acusação por a considerar manifestamente infundada, efectivamente, não faz caso julgado material, pois que não conhece do mérito da causa. …

                    Todavia, faz caso julgado formal, na medida em que o Tribunal aprecia, abstractamente, a acusação apresentada e, a partir daí, esgota-se o poder desse Tribunal em apreciar de novo as questões especificamente analisadas e, não havendo recurso, a decisão torna-se, naquele processo, definitiva.

                    Como já se disse, se o assistente não concordou com o despacho de 23-01-2023 poderia ter recorrido do mesmo, pois que essa é a forma legalmente prevista para reagir.

                    A apresentação de nova acusação particular além de não estar prevista na lei e, por conseguinte, não ter sustentação legal, não foi apresentada na sequência de qualquer convite feito por este Tribunal.

                    A apresentação espontânea de nova acusação particular não corresponde a uma forma de reacção ao despacho de rejeição de uma primeira acusação particular, com fundamento em a mesma ser manifestamente infundada.

                    …

                    Sem prejuízo do que se disse acima sobre os conceitos de caso julgado formal e material, independentemente do enquadramento conceptual que se faça de uma decisão num ou noutro, a resposta sobre se se deve admitir uma nova acusação parte da interpretação da lei.

                    …

                    Para terminar, impõe-se ter presente que, do que se trata no caso em apreço, é da falta de um elemento do tipo subjectivo, sem o qual os factos narrados na acusação particular não constituem crime. Com efeito, na acusação particular inicialmente apresentada faltavam os elementos respeitantes à consciência da ilicitude. Quanto a esta e situações idênticas de omissão de indicação de elementos do tipo, o artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do Código de Processo Penal, determina expressamente que a acusação é rejeitada, nada havendo na lei que admita a posterior apresentação de acusação.

               Diferente seria a situação de os factos narrados na acusação constituírem crime, mas verificar-se uma deficiência na indicação de algum dos factos, hipótese em que, aí sim, por força do disposto nos artigos 118.º, n.º 1, 122.º, n.º 2, 283.º, n.º 3, 284.º, n.º 2, primeira parte, e 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, seria de admitir que o vício detectado fosse corrigido. É que neste caso, por expressa previsão legal, a falta de indicação dos elementos conduz à nulidade, e como a mesma não consta do elenco das nulidades insanáveis do artigo 119.º, deve ter-se por sanável, nos termos dos artigos 122.º, n.º 2, e 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. Se mais do que isso, a falha se reportar a elementos sem os quais os factos nem sequer são crime, então, a lei, também expressamente, determina que a consequência é a rejeição da acusação.

                    …

                    Em jeito de conclusão, quanto a este Tribunal, não obstante o despacho de rejeição da acusação, por esta ser tida por manifestamente infundada, não fazer caso julgado material, por falta de previsão legal nesse sentido, não é admissível que, nessa sequência, o Ministério Público ou a assistente apresentem nova acusação, sanando a falha que conduziu àquela rejeição.

                    Como assim, uma vez que a acusação particular é apresentada no prazo estipulado pelo artigo 284.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e este já se mostra ultrapassado, inexistindo outra norma que admita a sua apresentação neste momento, a acusação particular apresentada a 14-03-2023 é extemporânea.

                    Pelo exposto, por extemporânea, rejeita-se a acusação particular apresentada pelo assistente a 14 de Março de 2023.

                    Notifique.”


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               C) Da apreciação do recurso

              

            A tese do assistente recorrente, ancorada na jurisprudência que emana dos acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 12.01.2021 ( Proc. 482/19.7T9FAR-E1) e de 10.04.2018 ( Proc. 1559/16.6BGABF.E1) e também do ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 8.05.2018 (Proc. 542/16.6GCVIS.C1), e, ainda, do acórdão do Tribunal Constitucional nº 246/2017 ( Proc. 880/2016) …

            No mesmo sentido, entende a Exma. Procuradora Geral-Adjunta no parecer emitido no presente recurso, sufragando a jurisprudência citada pelo recorrente, e, ainda, a que resulta do acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.01.2021 ( Proc. 99/19.6GASAT.C1). 

               Pois bem.

            A questão que, desde logo, se coloca nos presentes autos é, como decorre do que vem dizer-se, a de saber se em caso de juízo de rejeição da primeira acusação particular que foi deduzida pelo assistente  - com base  na insuficiência da descrição dos factos que integram o elemento subjectivo do crime nela imputado aos arguidos, tornando-a, por isso, manifestamente infundada - se torna possível ao assistente formular e apresentar uma nova acusação particular com vista a suprir a falha apontada à primeira.

            Como se reconhece no despacho recorrido, nas situações como a que se coloca nos presentes autos, o despacho  que rejeitou a primeira acusação particular deduzida pelo assistente -  por manifestamente infundada -  por não proceder à apreciação do mérito da causa, mas antes versando sobre a existência de um vício da acusação – falta de narração dos factos integrantes do elemento subjectivo do crime nela imputado aos arguidos – derivado da sua estrutura deficiente, apenas faz caso julgado formal e não tem efeito extintivo do procedimento criminal.

            No acórdão n.º 246/2017, de 17 de Maio de 2017, do Tribunal Constitucional, proferido no âmbito do Proc. n.º 880/2016,  disponível na Internet em https://www.tribunalconstitucional.pt, entendeu-se que não viola o princípio ne bis in idem (artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República), nem afronta qualquer outro princípio ou norma constitucional, a interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição daquele elemento típico, sujeitando-se o arguido a julgamento pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.

            No reforço da ideia de que inexiste violação do ne bis in idem, enfatizou-se no referido ac. do Tribunal Constitucional, citando Inês Ferreira Leite, in [Ne (Idem) Bis In Idem – proibição de dupla punição e de duplo julgamento: contributos para a racionalidade do poder punitivo público, vol. I, AAFDL, Lisboa, 2016, passim, com citações a itálico]:

                    Reconhecendo-se no despacho recorrido, como já referido, que a decisão de rejeição da acusação particular apresentada em primeiro lugar pelo assistente, por esta ter sido entendida como manifestamente infundada, não faz caso julgado material, sustentou-se no mesmo a rejeição da segunda acusação apresentada pelo assistente por se considerar que não existe previsão legal que permita, nessa situação, que o assistente ( ou o Ministério Público ) apresentem nova acusação, sanando a falha que à levou à rejeição da primeira, aduzindo, ainda, que a acusação particular é apresentada no prazo estipulado pelo artigo 284.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e este já se mostra ultrapassado, inexistindo outra norma que admita a sua apresentação neste momento, sendo, por isso extemporânea a acusação particular deduzida pelo assistente em segundo lugar.

            Na verdade, no caso em vertente, a decisão de rejeição apenas afirmou que a acusação particular não tinha condições para ser aceite em fase de julgamento, pois que lhe faltavam elementos que permitiam conhecer da existência do crime nela imputado aos arguidos.

            Tal decisão pronunciou-se, pois, sobre aspectos de cariz formal, nela se assumindo implicitamente que não se podia conhecer do mérito da causa e que o decidido vale apenas para o processo.

            Não houve decisão sobre o mérito da causa e só o caso julgado que a ela anda associado – caso julgado material – teria força dentro do processo e fora dele.

            Se é certo que o caso julgado material em processo penal impede a prolação de nova decisão que seja idêntica quanto à identidade do arguido e quanto ao objecto do processo, não é menos verdade que, na presente situação, a identidade apenas existe em relação aos arguidos, uma vez que, no que concerne ao objecto do processo, varia entre factos que não constituem crime – os da primeira acusação particular deduzida – e factos que podem constituir crime, constantes da acusação particular reformulada que o despacho recorrido rejeitou.

            Daqui decorre, como consequência natural, que a reformulação da acusação não constitui, nem violação de caso julgado – formal ou material –, nem violação do princípio ne bis in idem.

            Quanto ao mais que constitui fundamento da rejeição da segunda acusação particular apresentada pelo assistente aduzido no despacho recorrido, adiantaremos que, sendo certo que não existe disposição legal que preveja que, nas situações como a que se mostra equacionada nos autos, o Ministério Público ou o assistente possam apresentar nova acusação no caso de verem rejeitada uma primeira acusação por eles apresentada, a verdade é que, também não existe disposição legal que o proíba.

            Daí que, no seguimento do entendimento sufragado no referido ac. do Tribunal Constitucional nº 246/2017 ( Proc. 880/2016), se nos afigure que, perante a insuficiente descrição de um elemento típico – seja ele objectivo ou subjectivo - que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, seja de aceitar uma solução que permita a correcção de lapsos e omissões, por forma a evitar que se frustrem os objectivos do sistema processual penal, que o legislador ordinário, certamente, não pretenderia e que, também, a Constituição não impõe.

                    Por isso, como nele se adianta, temos por razoável que, por forma a permitir a correção de lapsos e omissões detectadas numa primeira acusação apresentada, com vista a ultrapassar a “não-aptidão” da mesma, se permita, a apresentação de uma nova acusação, assegurando-se ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa.

            Entendimento este ao qual não constitui óbice o facto de o sistema processual penal estipular prazo para a dedução da acusação particular ( artigo 284.º, n.º 1, do CPP), porquanto, tendo sido respeitado tal prazo aquando da dedução da primeira acusação particular apresentada pelo assistente, é este o prazo que para o efeito do disposto naquela disposição legal se deve levar em conta para efeitos de considerar a apresentação tempestiva ou não da acusação particular e não o prazo em que venha a ser apresentada a nova acusação reformulada, a qual se destina, apenas, a corrigir a apresentada em primeiro lugar.

            Em face do que se deixa dito, não conduzindo a dedução de nova acusação particular por banda do assistente à violação de quaisquer prazos peremptórios (funcionando estes, por regra, em favor do arguido e dos seus direitos de defesa), e mostrando-se, em tese, legalmente admissível, essa nova acusação para julgamento, sendo certo, principalmente, que, como já adiantámos, a reformulação do libelo acusatório efectuada na presente situação não constitui violação de caso julgado – formal ou material –, nem do princípio ne bis in idem, há que concluir que nada obsta a que seja de permitir ao assistente a apresentação de uma segunda acusação particular apresentada com vista à correcção da primeira.

            Aderindo, neste particular, aos entendimentos sufragados nos acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 12.01.2021 (Proc. 482/19.7T9FAR-E1) e de 10.04.2018 (Proc. 1559/16.6BGABF.E1) e também dos acórdãos deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 8.05.2018 (Proc. 542/16.6GCVIS.C1) e de 13.01.2021 (Proc. 99/19.6GASAT.C1), todos disponíveis in www.dgsi.pt.

            Questão que agora importa equacionar e decidir é a de saber e a apresentação dessa nova acusação pode ser feita no mesmo processo em que a primeira foi rejeitada – como ocorre no caso em vertente -, fazendo os autos recuar a uma fase processual distinta e anterior àquela em que o mesmo se encontra.

            Adiantando-se, desde já, que tal não nos parece ser de sufragar.

            Isto porque.

            Como se perfilha no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.03.2021, Proc. 80/18.2PZLSB.C1, disponível em www.dgsi.pt/jtrc, o qual seguimos de perto, sendo o processo penal constituído por uma sucessão de actos processuais lógica e cronologicamente imbricados, legalmente regulamentados e organizados em fases sequenciais, cada uma delas com a sua função específica, após a remessa dos autos para julgamento, se a acusação - pública ou particular -  vier a ser rejeitada, a única possibilidade de reacção nesse processo contra o correspondente despacho será através de recurso procurando convencer do bem fundado da acusação deduzida, uma vez que não prevendo a lei a possibilidade da reabertura do inquérito senão nos casos em que tenha havido arquivamento (art. 279º, nº 1, do CPP), não pode o MºPº ou o assistente sanar os vícios de que a acusação padeça, praticar novos actos de inquérito ou alterar a acusação.

               Daí que, o caminho a seguir pelo MºPº ou pelo assistente que pretendam renovar a acusação que viram ser-lhe rejeitada tenha de passar por apresentarem a nova acusação corrigida não no mesmo processo em que foi rejeitada a primeira acusação por eles apresentada, mas sim, em processo autónomo.

            Neste sentido se decidiu no ac. deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 22.3.2023, disponível in www.dgsi.pt., quando nele se afirma que não estando o MºPº ou o assistente “  impedido de renovar a acusação na parte em que não foi recebida, completando-a de modo a conferir-lhe viabilidade. Simplesmente não o poderá fazer no mesmo processo, ficando salva a possibilidade de o fazer com base em certidão que para o efeito deverá requerer”.

            Entendimento esse que, como se enfatiza no citado aresto, em nota de rodapé, foi o seguido no processo subjacente ao recurso para o Tribunal Constitucional no qual foi proferido o acórdão n.º 246/2017, de 17 de Maio de 2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 880/2016, referido supra, porquanto a nova acusação veio a ser deduzida em inquérito tramitado com número diverso, daí decorrendo que o próprio MºPº entendeu que o processo inicial não comportava a dedução de nova acusação por impedimento legal.

            No caso em vertente, o assistente veio apresentar a nova acusação particular (corrigida) tendo-o, porém, feito no mesmo processo em que vira ser-lhe rejeitada a acusação particular por si primitivamente apresentada, com fundamento em que a mesma era manifestamente infundada.

            Não estando, pelas razões já aduzidas, o assistente impedido de apresentar essa nova acusação particular (corrigida), não podia, porém, fazê-lo – como fez - no mesmo processo em que foi decidida a rejeição da primeira acusação por si apresentada, decisão essa com a qual se conformou, uma vez que dela não interpôs recurso.

            Assim, em face de tudo quanto vem de dizer-se, ainda que por diferentes fundamentos dos aduzidos no despacho recorrido, é de manter o mesmo, julgando improcedente o recurso.


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            III- DECISÃO

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem a 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra, em:

1. Julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente …, e, consequentemente:

a) Manter, ainda que por diferentes fundamentos, o despacho recorrido.

            b) Custas do recurso a cargo do assistente, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça– artigos 515º, nº1, b) do Código de Processo Penal, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este Regulamento.


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Coimbra, 22 de novembro de 2023

                    ( Texto elaborado pela relatora e revisto pelas signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

( Maria José Guerra  – relatora)

( Maria Teresa Coimbra – 1ª  adjunta)

(Rosa Pinto – 2ª adjunta)