Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1254/19.4T8CBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CRISTINA NEVES
Descritores: EXCEPÇÃO EXTINTIVA DO DIREITO INVOCADO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ALEGAÇÕES GENÉRICAS E JUÍZOS VALORATIVOS
FIANÇA
SUB-ROGAÇÃO DO FIADOR EM CASO DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 07/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 6.º, 7 E 11.º DO RCP
ARTIGOS 592.º; 593.º; 631.º, 1 E 644.º DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 5.º, 1 E 2; 296.º E SEG.S; 411.º; 412.º, 1; 530.º, 7; 552,º, 1, D); 571.º, 2; 572.º, C); 607.º, 4; 640.º, 1 E 2 E 805.º, 1, DO CPC
Sumário:
I-À parte que pretenda invocar uma excepção extintiva do direito contra si peticionado, cabe o ónus de alegar, conforme o exigem os artºs 5, nº1, 571, nº2 e 572, al. c) do C.P.C e, consequentemente, de provar, de acordo com o artº 342, nº2, do C.C., os factos constitutivos dessa excepção.

II- Factos constitutivos são realidades da vida que correspondem ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido, conforme decorre do disposto nos artºs 5 nº 1 e 552, nº1, al. d), do C.P.C.

II-A alegação de meras conclusões genéricas e de juízos valorativos não integra defesa por excepção, por ausência de factos, não sendo estas conclusões nem passíveis de prova (cfr. artºs 411 e 412, nº1, do C.P.C.), nem de inclusão na matéria de facto provada ou não provada, como decorre expressamente do disposto no artº 607, nºs 3 e 4, do C.P.C.

III-Sendo incluída na matéria de facto, juízos conclusivos e genéricos, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, ao abrigo do disposto no artº 662, nº2, al. c), do C.P.C. considerar por não escritos estes pontos da matéria de facto.

IV-A fiança constitui uma garantia pessoal do cumprimento de obrigação alheia, respondendo o fiador, salvo estipulação em contrário (cfr. artº 631, nº1, do C.C.), nos mesmos termos que o devedor principal, abrangendo tudo aquilo a que esse devedor está obrigado perante o credor.

V-Nessa medida, cumprida a obrigação alheia pelo fiador, este fica sub-rogado por via legal, conforme decorre do disposto no artº 644 do C.C., nos direitos do credor sobre o devedor, tendo o direito de exigir ao devedor por si afiançado, tudo o que pagou, acrescido dos juros que a dívida principal venceria, independentemente de qualquer declaração do credor nesse sentido (cfr. artºs 592 e 593, nº1 do C.C.) e independentemente de interpelação do afiançado.

Decisão Texto Integral:

Proc. Nº  1254/19.4T8CBR - Apelação

Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra– Juízo Central Cível de Coimbra-J2.

Recorrente: S..., Lda.

Recorridos: AA e BB

Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves

Juízes Desembargadores Adjuntos: Henrique Antunes

                                        Sílvia Pires


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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



RELATÓRIO

AA, e mulher, BB, intentaram acção, que correu termos na forma comum contra, S..., Lda., peticionando a condenação desta R. a pagar aos AA.

a. a quantia de € 1.194.702,60;

b. juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data dos pagamentos efectuados pelos Autores à S..., SA, até integral pagamento aos Autores, computando-se os juros já vencidos até à data de entrada da presente acção, na quantia de € 727.924,29.

Fundamentam o seu pedido, no direito de regresso que lhes assiste por terem sido condenados como fiadores da R. e devedores solidários, a pagar à firma S..., SA, ., no âmbito do processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ..., os montantes de € 43.894,21 (quantia líquida), 146.821,37 € (quantia liquidada em execução de sentença) e juros de mora no valor de € 5.245,34.

A estes valores acrescem valores pagos no decurso deste processo e respectivos apensos, assim descriminados:

a) custas de parte do Processo nº 757/11.... (Consignação em Depósito) pagas à S..., SA, no montante de € 1.542,75;

b) custas de parte do Processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ..., pagas à S..., SA, no montante de € 2.321,91;

c) taxa de justiça devida pelo Apenso de prestação de caução (apenso ao processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ...), no montante de € 490,02;

d) custas finais devidas no apenso de prestação de caução (apenso ao processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ...), no montante de € 470,00;

e) custas e multa, suportadas no mesmo apenso C do processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ..., no montante global de € 192,00.

Mais alegam terem pago no âmbito desta fiança, os seguintes valores:

f) € 124.699,47 (em cumprimento do “Contrato de Compra e Venda e Fiança”);

g) € 83.300,97, em pagamento das obras elencadas no Orçamento nº ...6 e respectivo Recibo, emitidos pela “H..., Lda;

h) € 289.073,33, referente às seguintes despesas, em nome da ré ou destinadas ao imóvel, objecto do acima referido contrato de “Compra e Venda e Fiança”:

i. Alvará de Licença de Construção, no montante de € 194,53;

ii. Obras elencadas no Recibo nº ...65, realizadas por “M..., Lda”, no montante global de € 189.667,90;

iii. Obras mencionadas no Recibo nº ...68, realizadas por “M..., Lda”, no montante global de € 99.210,90.

i) e juros no montante de € 727.924,29 (setecentos e vinte e sete mil, novecentos e vinte e quatro euros e vinte e nove cêntimos), sobre tais quantias, assim descriminados:

i. sobre a quantia de € 43.894,21, os juros legais, contados desde 2/11/1995 até 20/12/2018 ascendem ao montante global de € 55.049,35;

ii. sobre a quantia de € 146.821,37, os juros legais contados desde 08/03/2012 até 29/10/2018, ascendem ao montante de € 39.871,05;

iii. sobre a quantia de € 5.245,34, os juros legais contados desde 08/03/2012 até 20/12/2018, ascendem ao montante de € 1.424,43;

iv. sobre a quantia de € 5.016,68, os juros legais contados desde 08/03/2012 até 20/12/2018, ascendem ao montante de € 1.362,34;

v. sobre a quantia de € 5.016,68 os juros legais contados desde 08/03/2012 até 20/12/2018, ascendem ao montante de € 1.362,34.

vi. sobre a quantia de € 124.699,47, os juros legais, contados desde 28/10/1994 até 20/12/2018 ascendem ao montante global de € 169.030,98;

vii. sobre a quantia de € 83.300,97, os juros legais, contados desde 30/05/1996 até 20/12/2018 ascendem ao montante global de € 99.678,17;

viii. sobre a quantia de € 289.073,33, os juros legais, contados desde 15/11/1995 até 20/12/2018 ascendem ao montante global de € 361.507,97.


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Válida e regularmente citada, veio a R. contestar, invocando a pendência de causa prejudicial por o crédito em causa estar a ser discutido no processo nº 3410/12.... do Juízo Central Cível ... - Juiz ..., com sentença ainda não transitada por dela ter sido interposto recurso; por excepção invoca a prescrição dos créditos peticionados, o pagamento das quantias devidas à S..., SA; por impugnação alega não serem estes devidos, nem existir mora, por nunca ter sido interpelada pelos AA. para pagamento dos créditos aqui peticionados.

Conclui pela improcedência da acção e pela procedência do pedido de condenação dos AA. como litigantes de má-fé e, consequentemente, em multa, nos termos do nº 1 do art. 542º do CPCP e indemnização à R. a fixar nos temos do art. 543º do CPC.


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Foi proferido despacho a considerar prejudicado o pedido de suspensão da instância por questão prejudicial, devido à prolação de decisão transitada em julgado no âmbito da ação 3410/12.... do Juizo Central Cível ...- Juiz .... Após, procedeu-se à elaboração do despacho saneador, tendo sido julgados prescritos os seguintes créditos peticionados pelos AA.:

i. 43.894,21;

ii.  € 124.699,47;

iii.  € 83.300,97;

iv. € 289.073,33.

Foram declarados igualmente prescritos todos os juros reportados a período posterior a 28-2-2014, e ainda os incidentes sobre:

-a quantia de € 43.894,21, juros legais desde 2/11/1995 até 20/12/2018- o montante global de € 55.049,35;

-a quantia de € 124.699,47, juros legais contados desde 28/10/1994 até 20/12/2018- o montante global de € 169.030,98;

-a quantia de € 83.300,97, juros legais contados desde 30/05/1996 até 20/12/2018, o montante global de € 99.678,17;

-a quantia de € 289.073,33, juros legais, contados desde 15/11/1995 até 20/12/2018, o montante global de € 361.507,97.


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Realizada audiência de discussão e julgamento foi proferida a seguinte decisão:

“Na parcial procedência da causa, condeno a ré no pagamento aos autores da quantia de 152 066,71 ( cento e cinquenta e dois mil e sessenta e seis euros e setenta e um cêntimos) ( somatório de € 146.821,37 + € 5.245,34), acrescida de juros de mora dos 5 anos que antecederam a citação – ié, juros reportados a período posterior a 28-2-2014 e demais juros vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento, liquidando-se os vencidos à data da propositura(19-2-2019) em 30 280,02 € ( trinta mil, duzentos e oitenta euros e dois cêntimos); e do mais anteriormente não declarado já prescrito se absolve a ré.

Custas por autores e ré na proporção do vencimento e decaimento.


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Não conformada com esta decisão, veio a R. interpor recurso, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:

A) O Tribunal deu como não provado que:

Conforme resultou demonstrado no processo acção declarativa nº 3410/12...., do Juízo Central Cível ... – Juiz no âmbito de vários negócios desenvolvidos em conjunto, todas as quantias foram pagas quer pela ré, quer pelo falecido CC, incluído todas as quantias devidas aos autores pela fiança prestada no âmbito do Doc. 14 junto com a p.i., dado que o A. marido e o falecido CC, à data sócio e gerente da R., desenvolveram vários negócios em conjunto, alguns em sociedades de que ambos eram sócios, de que resultavam fluxos financeiros mútuos.

B) Enunciando, de seguida, a douta sentença recorrida que “Quanto aos negócios subjacentes, dos depoimentos das várias testemunhas perpassa a existência de uma teia complexa de relações negociais, com alguma promiscuidade no que concerne à figura do administrador da aqui ré e os da própria ré, também em torno de parcerias havidas com o autor marido, mas na sua vaguidade e generalidade não são de molde a considerar verificados concretos negócios e compensação de valores minimamente circunstanciados – não criando convicção de que ocorreram pagamentos ou compensações afectas a essas quantias pagas no âmbito da finança, tendo o tribunal que se ater aos factos que simplesmente ressaltam da escritura de compra e venda e decisões que correram anteriormente de que resultou a condenação solidária do autor marido e ré – sendo na verdade todos os depoimentos demasiados genéricos e imprecisos, sem qualquer arrimo factual documentado:”

C) Contudo, entende a Recorrente que a fundamentação da resposta a este ponto da matéria de facto não está correta porquanto se entende que os depoimentos das testemunhas DD e EE não são nem vagos, nem genéricos, sendo sustentados por suporte documental.

D) Dos depoimentos destas testemunhas resulta, de forma absolutamente sólida e bastante concreta, que a Recorrente nada ficou a dever aos Recorridos relativamente às quantias que estes pagaram no âmbito da fiança.

E) Isto por resultar totalmente inequívoco que entre o Recorrido AA e o legal representante da Recorrente, CC, foi feito um acordo de compensação de créditos que permitiria àquele pagar parte da divida que tinha para com este de forma faseada e não de uma só vez.

F) Tanto assim que foi esta a convicção com que ficou sociedade S..., SA, ., como resulta claro da sentença junta como o Doc. 2 da p.i., pois conforme ai se refere a fl. 2.

G) Acresce que é também isto que resulta da defesa apresentada pelos Recorridos nesse processo conforme consta de fls. 3 e 4 do Doc. 2 junto com a p.i..

H) Com efeito, resulta dai, sem qualquer margem para dúvida, que os Recorridos contestam como se devedores principais se tratassem, que de facto eram, o que vem ao encontro dos depoimentos das testemunhas DD e EE.

I) Esta posição dos Recorridos é reforçada e sustentada no facto de estes, para além de contestarem como se devedores principais de tratasse, ainda terem, também, deduzido pedido reconvencional, onde peticionam que ai A/Reconvinda seja condenada a pagar-lhes as quantias ai referidas;

J) Resulta de fls. 16 e 17 do Doc. 2 junto com a p.i, que os aqui Recorridos assumiram pessoalmente, como sua e não enquanto fiadores, a divida de 32.000.000$00 e que, apenas e tão só por isso, foram condenados a pagar a mesma, porquanto, se assim não fosse, ser-lhe-ia aplicável o benefício do prazo previsto no artigo 782º do Código Civil.

K) Aliás, só assim faz sentido que tenham sido os aqui Recorridos, na decorrência do acordo que estabeleceram com a Recorrente e/ou com o seu legal representante, CC, a tomarem, com exclusividade, em mãos o acompanhamento da ação, ou seja, a escolha de advogado, a contestação e, bem assim, toda a sua demais tramitação até ao final.

L) Tudo isto acaba por ser confirmado pela testemunha dos Recorridos FF quando esta afirma porque o processo era, era deles e, portanto, forma eles que suportaram todos os custos. “(o sublinhado e o negrito são nossos)

M) Ou seja, esta testemunha, tal qual as testemunhas DD e EE e, bem assim, decorre do Doc. 2 junto com a p.i. veio afirmar taxativamente que os Recorridos pagaram as quantias em causa porquanto “o processo era deles”.

N) Significa isto que, da conjugação dos depoimentos destas três testemunhas com o teor do Doc. 2 junto com a p.i. tem que ser dado como provado que: “No âmbito de vários negócios desenvolvidos em conjunto, todas as quantias foram pagas quer pela ré, quer pelo falecido CC, incluído todas as quantias devidas aos autores pela fiança prestada no âmbito do Doc. 14 junto com a p.i., dado que o A. marido e o falecido CC, à data sócio e gerente da R., desenvolveram vários negócios em conjunto, alguns em sociedades de que ambos eram sócios, de que resultavam fluxos financeiros mútuos.”

O) Dando-se este ponto como provado a decisão de direito tem, naturalmente, que ser diametralmente oposta àquela de que se recorre.

P) Com efeito, em face do que fica provado a Recorrente e/ou o seu legal representante, CC, pagaram aos Recorridos, por via da compensação de créditos entre eles acordada as quantias aqui em causa.

Q) Encontrando-se já paga a divida, como ficou provado, não poderia a Recorrente, como foi, voltar a ser condenada a pagar a mesma, pelo que, tem a sentença que ser revogada na sua totalidade e substituída por outra que absolva aquela integralmente do pedido.

R) Caso assim não se entenda, o que só por mero dever de patrocínio se admite, sempre se dirá que, em face da matéria de facto dada como provada na sentença de que se recorre, jamais a Recorrente poderia ser condenada a pagar “juros de mora dos 5 anos que antecedem a citação – ié, juros reportados a período posterior a 26-2-2014 (…) liquidando-se os vencidos à data de propositura (19-2-2019) em 30.280,02 € (trinta mil, duzentos e oitenta euros e dois cêntimos)”.

S) Com efeito, para haver condenação no pagamento de juros de mora tem o devedor que estar em mora o que, no caso concreto, relativamente ao período em causa tal não aconteceu e, nem tão pouco, ficou provado.

T) Ora, conforme resulta do nº 1 do artigo 805º do Código Civil “O devedor fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado a cumprir”.

U) No caso concreto, conforme resulta de fls. 3 da sentença recorrida, a recorrente na sua contestação veio impugnar que estivesse em mora quanto ao pagamento das quantias peticionadas até à data em que foi citada para a presente ação.

V) Tendo a Recorrente, conforme se demonstra, impugnado que se encontrasse em mora quanto pagamento das quantias peticionadas até à citação para a presente ação cabia aos Recorridos fazer prova dessa mora e, bem assim, do momento da constituição da mesma, o que não fizeram;

W) Compulsada toda a matéria dada como provada, de parte alguma da mesma resulta que os Recorridos, até à citação para a presente ação, alguma vez tenham interpelado extrajudicialmente a Recorrente para proceder ao pagamento das quantias em que foi condenada, pelo que, consequentemente, não se encontra provado, qualquer momento anterior à citação como data da constituição em mora.

X) Nesta conformidade, nos termos do supra citado nº 1 do artigo 805º do Código Civil, a haver mora por parte da Recorrente, esta só se constituiu na mesma quando foi citada para a presente ação, ou seja, em 19/02/2019, pelo que até esta data não são devidos quaisquer juros a esse título, porquanto, nos termos do nº 1 do artigo 806º do Código Civil “ Nas obrigações pecuniárias a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.”

Y) Assim, não pode a sentença, na parte em que condenou a Recorrente a pagar “juros de mora dos 5 anos que antecedem a citação – ié, juros reportados a período posterior a 26-2-2014 (…) liquidando-se os vencidos à data de propositura (19-2-2019) em 30 280,02 € (trinta mil, duzentos e oitenta euros e dois cêntimos)” deixar de ser revogada e substituída por outra que a absolva nesta parte.

TERMOS EM QUE deverá dado provimento ao recurso revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra que absolva Recorrente do pedido, com as legais consequências dai decorrentes, com o que se fará JUSTIÇA!


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Pelos AA. foram interpostas contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso. Mais requereram a dispensa do remanescente da taxa de justiça devida (artº 6, nº7 do RCP).


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QUESTÕES A DECIDIR


Nos termos do disposto nos artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.

Nesta medida, as questões a decidir são:
a) Se se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso relativamente à impugnação da matéria de facto e se esta deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente;
b) Se, nessa medida deve a acção ser considerada improcedente por o crédito reclamado ter sido compensado por crédito da R. sobre os AA;
c) Se em qualquer caso, os juros são devidos apenas a partir da citação por não ter sido interpelada pelos AA. para cumprir, em data anterior à citação.


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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
O tribunal recorrido considerou a seguinte matéria de facto, que se reproduz:

A) Por acórdão proferido pela ... Secção Cível do Venerando Tribunal da Relação ..., no processo nº 586-A/19...-Apelação, em recurso interposto de decisão proferida em Incidente de liquidação de sentença, foram os aqui autores condenados a pagar à sociedade “S..., SA”, a quantia de € 146.821,37 (cento e quarenta e seis mil, oitocentos e vinte e um euros e trinta e sete cêntimos) (conforme doc. 1 da pi.) (alínea A) dos factos assentes)

B) Tal liquidação de sentença, respeitava à sentença proferida no processo nº ...6, que correu termos na ... Vara Cível de ..., ... Secção, na qual foi decidido o seguinte ( cf. doc. 2) “Por todo o exposto:

a) Julga-se extinto pela compensação o crédito da autora de Esc. 32.000.000$00 até ao montante do contracrédito dos réus a fixar em liquidar em sede de liquidação de sentença;

b) Condena-se os réus, solidariamente, a pagar à autora a parte excedente referida em a) (outrossim a fixar em sede de liquidação de sentença), acrescida de juros à taxa legal, desde a data do trânsito da sentença da respectiva liquidação até integral pagamento;

c) Absolvem-se os réus do demais peticionado pela Autora na acção;

d) Absolve-se a autora do demais peticionado pelos réus na reconvenção.

Custas por autora e réus, provisoriamente em partes iguais, fazendo-se o respectivo rateio, de acordo com a sucumbência, na liquidação de sentença.” ( alínea B) dos factos assentes).

C) Esta sentença, proferida pela ... Vara, ... Secção, viria a ser integralmente confirmada por douto Acórdão prolatado pelo Tribunal da Relação ... (Apelação nº 4364-05) ( cf. doc. 3 da pi ). .” ( alínea C) dos factos assentes).

D) Consta da sentença proferida nesse processo nº ...6, que correu termos na ... Vara Cível de ..., ... Secção (cf. doc. nº 2 da pi), que os aqui autores foram condenados naquela acção, na qualidade de fiadores da aqui ré, S..., Lda. , fiança, essa, que os autores haviam prestado no âmbito de contrato de compra e venda de um imóvel, a favor da aqui ré.” ( alínea D) dos factos assentes).

E) Em tal acção – na qual era autora a S..., SA  e réus a aqui ré e os aqui autores, ficou assente (e assim o foi confirmado em sede de recurso), nomeadamente o seguinte (cfr. Doc. nº 2 da pi):

“(…) C) Por instrumento de 28 de Outubro de 1994, outorgado no ... Cartório Notarial ..., a autora ( a dita sociedade S..., SA, ) transmitiu o aludido prédio, bem como as benfeitorias nele implantadas, à ré S..., Lda. ( aqui ré), pelo preço de 65.000.000$00, livre de quaisquer ónus ou encargos, conforme certidão de fls. 22 a 29, que aqui se dá por reproduzida. .”

“D) O preço seria pago da seguinte forma:

a) VINTE E CINCO MILHÕES DE ESCUDOS no acto;

b) QUARENTA MILHÕES DE ESCUDOS em cinco prestações anuais, iguais e sucessivas, com início em trinta e um de Outubro de mil novecentos e noventa e cinco;

c) A anualidade será acrescida do valor dos respectivos juros, calculados à taxa anual de dez por cento, salvo se forem praticadas pela generalidade das Instituições de Crédito “prime rate”, de valor reconhecidamente inferior àquela. (…)

F) Pelos aí réus AA e mulher foi declarado, nessa escritura que se constituíam fiadores e principais pagadores da sociedade ré.”

G) Através do cheque nº ...05, emitido a .../.../1995, sobre a Caixa Geral de Depósitos, o Réu AA pagou à Autora, por conta da primeira prestação devida (das 5 subsequentes ao acto), a importância de Esc. 8.800.000$00 (oito milhões e oitocentos mil escudos). (…)” ( € 39.903,83).

F) Em resultado da sentença proferida naquela acção (doc. nº 2), confirmada por acórdão do Tribunal da Relação ... (cf. doc. nº 3) os aqui autores foram solidariamente condenados a pagar àquela S..., SA, o quantitativo que viesse a ser apurado em liquidação de sentença. .” ( alínea F) dos factos assentes).

G) A solidariedade na obrigação de pagamento, por parte dos aqui autores, decorria do facto de os mesmos haverem prestado fiança à S..., Lda., , ré na presente acção.” ( alínea G) dos factos assentes).

H) Instaurado, pela S..., SA, o incidente de liquidação de sentença (Processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ...), viria a ser – após recurso – proferido acórdão (doc. nº 1 da pi), pelo qual foi decidido o seguinte: “V- Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação e revogar correlativamente a sentença recorrida, liquidando o crédito dos RR. sobre a A. em € 12.793,95, e condenando-se os RR. ( aqui autor e ré) a pagar à A. a diferença entre o crédito desta que ascendia a € 159.615,32 (32.000.000$00), e o crédito acima referido, - isto é o montante de 146.821,37 €.”.” ( alínea H) dos factos assentes).


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I) A ré, no ano de 1994 adquiriu o “prédio urbano, sito nos ..., designado por Lote ..., freguesia ... (GG), concelho ...” (cfr. Doc. 14 da pi).” ( alínea I) dos factos assentes), sendo:

-- por escritura publica de 28-10-1994, (doc. 14)

“HH, casado, natural de ..., freguesia ..., residente na ..., ..., em ..., titular do bilhete de identidade n°. ..., datado de 20/8/1990, emitido em ... pelo Centro de Identificação Civil e Criminal, e - - -

- - - II, casada,

natural de ..., freguesia ..., residente na Urbanização ..., .... Andar-A, freguesia ..., concelho ..., titular do bilhete de identidade n°. ..., datado de 1/7/1992, emitido em ... pelo Centro de Identificação Civil e Criminal, que outorgam na qualidade de Administradores, em representação da sociedade anónima "S..., SA, .", Pessoa Colectiva ..., com sede na Rua ..., ..., freguesia ..., em ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o número zero oito mil trezentos e vinte e dois, com o capital social de QUATROCENTOS MILHÕES DE ESCUDOS, qualidade e suficiência de poderes que verifiquei em face da Certidão Comercial, que ARQUIVO. - - -

- - - SEGUNDO - - -

- - - CC, casado, natural da freguesia ... (JJ), concelho ..., residente na Urbanização ..., ....

direito, na ..., concelho ..., titular do bilhete de identidade n°. ..., datado de 9/12/1986, emitido em ... pelo Centro de Identificação Civil e Criminal, que outorga por si e na qualidade de procurador, com poderes para o acto, de KK, casado, natural da freguesia ..., concelho ..., residente no Bairro ..., em ..., conforme verifiquei pela fotocópia da procuração, que ARQUIVO, ambos gerentes, em representação da sociedade comercial por quotas ”S..., Lda., “, Pessoa Colectiva ..., com sede na Rua ... a LL, lote ..., primeiro, sala ..., em ..., concelho ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial ... sob o número zero nove mil trezentos e sessenta e três, com o capital social de DEZ MILÕES DE ESCUDOS, tendo eu, MM, verificado a invocada qualidade e a suficiência de poderes para este acto, em face da Fotocópia da Certidão Comercial, que ARQUIVO - - -

- - -TERCEIROS - - -

- - - AA, natural da freguesia ..., concelho ..., contribuinte fiscal n*. ..., e mulher BB, natural da freguesia ..., concelho ..., contribuinte fiscal nº. ..., casados segundo o regime da comunhão de adquiridos, residentes na Urbanização ..., na ..., .... - - -

- - - Verifiquei a identidade dos terceiros outorgantes por conhecimento pessoal e a dos restantes pela exibição dos referidos bilhetes de identidade. - - -

- - - E PELOS PRIMEIROS OUTORGANTES FOI DITO:

- - - QUE a sua representada é dona e legítima possuidora do lote de terreno para construção urbana, com a área de seis mil e quinhentos metros quadrados, com benfeitorias realizadas, sito nos ..., designado por ..., freguesia ... (GG), concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número zero mil cento e quarenta e um, da dita freguesia, onde a respectiva aquisição se acha registada a favor da referida sociedade pela inscrição G-um, Omisso na respectiva matriz mas feita participação para a sua inscrição em dez de Outubro corrente; - - -

- - - QUE, pela presente escritura, em nome da sociedade que representam, vendem ã sociedade representada do segundo outorgante, 1ivre de quaisquer ónus ou encargos, o citado lote de terreno, bem como as benfeitorias nele implantadas; - - -

- - - QUE ; p preço da venda é de SESSENTA E CINCO MILHÕES DE ESCUDOS; - - -

- - - QUE o preço será pago da seguinte forma: - - -

- - - a)- VINTE E CINCO MILHÕES DE ESCUDOS neste acto,; -

- - - b)- QUARENTA MILHÕES DE ESCUDOS em cinco prestações anuais, iguais e sucessivas, com início em trinta e um de Outubro de mil novecentos e noventa e cinco. - - -

- - - c)- A anualidade, será acrescida do valor dos respectivos juros, calculados à taxa anual de dez por cento, salvo se forem praticadas pela generalidade das Instituições de Crédito "prime rate", de valor reconhecidamente inferior àquela. - - -

- - - QUE, declaram que se encontram totalmente preenchidas as condições exigidas pelo Município ..., as quais se encontram registadas na inscrição de aquisição a favor da referida sociedade. - -

- - - QUE, expressamente, autorizam a alienação pela compradora do identificado prédio, antes de efectuado o pagamento integral do preço, transferindo, assim, para a responsabilidade exclusiva dos terceiros outorgantes, que, desta forma, se constituem fiadores da representada do segundo outorgante, designadamente o pagamento do remanescente do preço.

 DISSE O SEGUNDO OUTORGANTE: - - -

- - - QUE, para a sociedade sua representada, aceita a venda nos termos exarados, destinando o imóvel a REVENDA.-

A presente aquisição encontra-se ISENTA do Imposto Municipal de Sisa, porque a sociedade compradora se encontra colectada em IRC pela actividade de "Prédios, Revenda dos adquiridos para esse fim", tendo exercido normal e habitualmente essa actividade no ano transacto, conforme verifiquei pela fotocópia da Certidão emanada da Repartição de Finanças de ..., que ARQUIVO. - -

- - - EXIBIRAM: - - -

- - - a)- Certidão emitida pela citada Conservatória, em 14/10/1994, por onde verifiquei os invocados elementos de registo predial, - - -

- - - b)- Duplicado do Modelo cento e vinte e nove, comprovativo da omissão na matriz do referido imóvel e o consequente pedido para a sua inscrição. -- -

- - - Esta escritura foi lida aos outorgantes e aos mesmos explicado o seu conteúdo, em vos alta e na presença simultânea de todos

- - - E PELOS TERCEIROS OUTORGANTES FOI DITO:

- - - QUE, pela presente escritura se constituem fiadores e principais pagadores da sociedade representada do segundo, o outorgante, e aceitam também este contrato.”

--- tal prédio veio a ser alienado, em 18 de Setembro de 1998, cf. escritura doc. 1 da contestação.

J) Por via da acção declarativa nº 3410/12...., do Juízo Central Cível ... – Juiz ..., os aqui autores peticionaram da aqui ré o valor de € 1.417.514,00; a aqui ré e demais réus foram absolvidos de todos os pedidos formulados- cf. doc. 3,- e não se conformando os autores com tal decisão, apresentaram recurso da mesma para o Tribunal da Relação ..., recurso este improcedente, mantendo-se a decisão de 1ª instância.” ( alínea J) dos factos assentes).

Da factualidade controvertida:

K) No âmbito do recurso da decisão final do incidente de liquidação de sentença (Processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ...), e por forma a poder beneficiar do efeito suspensivo do mesmo e, assim, evitar a execução da sentença por parte da autora, os aqui autores prestaram caução da quantia de € 148.706,64 (montante correspondente ao liquidado em 1ª instância), através de garantia bancária, conforme documento junto sob nº 4 da pi.

L) E, ulteriormente ao trânsito em julgado do douto acórdão que decidiu, em derradeira instância, o incidente da liquidação de sentença, os Autores intentaram, contra aquela S..., SA, “Consignação em Depósito”, que correu termos na ... Secção da ... Vara Cível de ... sob o Processo nº 757/11...., no âmbito da qual efectuaram depósito da supra mencionada quantia de € 146.821,37 (que os aqui autores haviam sido solidariamente condenados a pagar àquela S..., SA) – cfr. Documentos nºs 5 e 6 da pi.

M) No âmbito deste procedimento de “Consignação em Depósito” – já após o trânsito em julgado da liquidação, –, os aqui Autores viriam a celebrar acordo com vista à extinção do litígio, o que formalizaram mediante requerimento subscrito por ambas as partes naqueles autos de Consignação em Depósito, homologado por douta sentença (Documentos nºs 7 e 8 da pi).

N) Tendo os autores pago, definitivamente, à S..., SA, em resultado da fiança prestada à Ré, S..., Lda., , tal quantia de € 146.821,37 (cento e quarenta e seis mil, oitocentos e vinte e um euros e trinta e sete cêntimos).

O) A que acresceram os juros de mora, no montante de € 5.245,34 (cinco mil, duzentos e trinta e quatro euros e trinta e quatro cêntimos) – cfr. Documento nº 7;

P) Os autores procederam ainda ao pagamento das seguintes quantias:

a- As custas de parte do Processo nº 757/11.... (Consignação em Depósito) que os autores pagaram àquela S..., SA, no montante de € 1.542,75 (mil, quinhentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos);

….

d- As custas finais devidas no Apenso de prestação de caução (apenso ao processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ...), no montante de € 470,00 (quatrocentos e setenta euros), conforme cópia da Guia e comprovativo de pagamento, junto sob documento nº 11;

4.2 – FACTUALIDADE NÃO PROVADA:

Com relevo para a causa não se provaram os seguintes factos:

1- Conforme resultou demonstrado no processo acção declarativa nº 3410/12...., do Juízo Central Cível ... – Juiz ..., no âmbito de vários negócios desenvolvidos em conjunto, todas as quantias foram pagas quer pela ré, quer pelo já falecido CC, incluindo todas as quantias devidas aos autores pela fiança prestada no âmbito do Doc. 14 junto com a p.i., dado que o A. marido e o falecido CC, à data sócio e gerente da R., desenvolveram vários negócios em conjunto, alguns em sociedades de que ambos eram sócios, do que resultavam fluxos financeiros mútuos.

2- Que os autores procederam ainda ao pagamento das seguintes quantias:

a- As custas de parte do Processo nº 757/11.... (Consignação em Depósito) que os autores pagaram àquela S..., SA, no montante de € 1.542,75 (mil, quinhentos e quarenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos);

d- As custas finais devidas no Apenso de prestação de caução (apenso ao processo nº ...96 da ... Secção da ... Vara Cível de ...), no montante de € 470,00 (quatrocentos e setenta euros), conforme cópia da Guia e comprovativo de pagamento, junto sob documento nº 11.”


***

IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


Insurge-se a R. contra a decisão incidente sobre a matéria de facto, alegando que o tribunal deveria ter considerado provado o ponto 1 da matéria de facto considerada como não provada, invocando o depoimento das testemunhas DD e EE, a primeira nora do falecido sócio gerente da R. e o segundo, seu filho, alegando que destes depoimentos resultou que foi acordado entre o A. marido e o seu sogro e pai, respectivamente, que aquele pagaria à S..., SA ., o valor em dívida à R., por conta de um dívida deste A. marido ao sócio gerente da R., compensando assim os respectivos créditos. Concluem que este acordo justifica que apenas os AA. tenham deduzido contestação nos autos movidos pela S..., SA e referidos na alínea A) da matéria assente, como devedores principais, não tendo a R. contestado nesse processo.

Por último alega que do depoimento da testemunha FF decorre que o processo era deles (os ora AA.), pelo que deveriam ser eles a pagar as respectivas custas processuais, o que também inculca a ideia de que nada era devido pela ora R. a estes AA., sendo eles as verdadeiras partes naquele processo que correu termos na ... Vara Cível, sob o nº 586/1996.

Destes depoimentos e do teor do doc. 2 junto com a p.i. (certidão do processo acima referenciado), considera a R. que deve ser considerado provado que:

No âmbito de vários negócios desenvolvidos em conjunto, todas as quantias foram pagas quer pela ré, quer pelo falecido CC, incluído todas as quantias devidas aos autores pela fiança prestada no âmbito do Doc. 14 junto com a p.i., dado que o A. marido e o falecido CC, à data sócio e gerente da R., desenvolveram vários negócios em conjunto, alguns em sociedades de que ambos eram sócios, de que resultavam fluxos financeiros mútuos.”

Decidindo:

Se se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso relativamente à impugnação da matéria de facto;

Dispõe o artº 640º, nº 1, do Código de Processo Civil, que:

«Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

Quanto ao ónus de especificação dos meios probatórios, dispõe o seu nº2, al. a) que «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

No que respeita à observância dos requisitos constantes deste preceito legal, após posições divergentes na nossa jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se no sentido de que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.» [1]

Assim, “O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC.

A saber:

- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;

- A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa;

- E a decisão alternativa que é pretendida.[2]

Nestes termos, do disposto no artº 640 do C.P.C., conforme se refere em Ac. do STJ 16/12/20[3], resulta a imposição de dois ónus ao recorrente: “- um ónus principal, consistente na delimitação do objecto da impugnação (indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados) e na fundamentação desse erro (com indicação dos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação que impunham decisão diversa e o sentido dessa decisão) – art. 640.º, n.º 1, do CPC; e - um ónus secundário, consistente na indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados – art. 640.º, n.º 2, al. a), do CPC.

Mais refere o aludido aresto que “Este ónus secundário não visa propriamente fundamentar e delimitar o recurso, mas sim facilitar o trabalho da Relação no acesso aos meios de prova achados relevantes.” pelo que, deve a relação proceder à apreciação da impugnação quando, “apesar da indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevantes na localização pelo tribunal dos excertos de gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento – como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com a indicação do início e termo dos depoimentos, com a indicação do início das passagens dos depoimentos com a referência ao tempo de gravação e ainda com a transcrição de excertos desses depoimentos.”

Assim sendo, só se justifica a rejeição do recurso quanto à matéria de facto quando “(i) falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (arts. 635.º, n.os 2 e 4, 639.º, n.º 1, 641.º, n.º 2, al. b), do CPC); (ii) quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), sendo de admitir que as restantes exigências das als. b) e c) do art. 640.º, n.º 1, em articulação com o respectivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.”[4]

Examinadas as alegações, mostra-se cumprido o disposto neste preceito legal quanto à impugnação do ponto 1 da matéria de facto não provada, indicando em concreto o apelante nas suas alegações, os meios de prova concretos que fundamentariam posição diferente e a concreta redacção que lhes haveria de ser dada. Nada obstando á apreciação deste fundamento de recurso, cabe-nos decidir se

Se a matéria de facto deve ser alterada, por o tribunal a quo ter efectuado uma errónea apreciação da prova produzida.

Nada obstando à apreciação da impugnação deduzida pelo recorrente, pretende este que seja dado como provado o ponto 1 que o tribunal a quo considerou não provado por, em seu entender, tal suposto facto resultar provado pelo depoimento das testemunhas que indica e pelo documento nº 2 junto com a p.i. e, ainda, por se tratar de facto essencial para se considerar extinto por compensação o crédito invocado pelos AA.

Sem razão, no entanto. Os meios de prova apresentados pelas partes destinam-se à prova de factos e de entre estes dos factos que tenham sido alegados nos articulados. Com efeito, do disposto nos artsº 5, nº1, 411 e 412 nº1 do C.P.C. resulta, em primeiro lugar, que a parte que pretenda deduzir e ver apreciada uma determinada pretensão em juízo, seja por via de acção, seja por via de reconvenção, ou que pretenda opor uma determinada excepção à pretensão contra si deduzida, tem o ónus de alegar os factos constitutivos da sua pretensão ou da excepção oposta. Deste ónus de alegação excluem-se apenas os factos compreendidos no nº2 do artº 5 do C.P.C., ou seja, os factos instrumentais, os complementares ou concretizadores dos factos constitutivos alegados pelas partes e os factos notórios que não carecem nem de alegação, nem de prova. Na definição propugnada por Castro Mendes[5], factos instrumentais são os que interessam indirectamente à solução do pleito por servirem para demonstrar a verdade ou falsidade dos factos essenciais. Por sua vez, para Teixeira de Sousa[6], são aqueles que indiciam os factos essenciais. Por outras palavras, são factos secundários, não essenciais, mas que permitem aferir a ocorrência e a consistência dos factos principais. Em relação aos factos complementares acrescenta este autor que “não se pode admitir que os factos complementares que sejam alegados na sequência do convite ao aperfeiçoamento sejam factos integrantes da causa de pedir. Esta causa petendi tem de constar da petição inicial, sob pena de ineptidão deste articulado (art. 186.º, n.º 2, al. a), nCPC); assim, se a petição não é inepta por conter uma causa de pedir, nenhum facto que seja adquirido durante a tramitação da causa pode integrar essa mesma causa de pedir. O que já está completo na petição inicial não pode ser completado por nenhum outro facto.[7]

Distinguem-se uns e outros, na medida em que são “factos principais aqueles que integram o facto ou factos jurídicos que servem de base à acção ou à excepção os quais se podem dividir em essenciais ou complementares (ou concretização dos que as partes alegaram), sendo os primeiros aqueles que constituem os elementos típicos do direito que se pretende fazer actuar em juízo, e os segundos aqueles que, de harmonia com a lei, lhes dão a eficácia jurídica necessária para fazer essa actuação, deixando-se registado que se são complemento ou concretização dos essenciais, em boa verdade e rigor lógico não se podem provar os segundos sem que os primeiros o estejam.”[8]

Assim, os factos complementares ou concretizadores são aqueles que especificam e densificam os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor - a causa de pedir - ou do reconvinte ou a excepção deduzida pelo R. como fundamento da sua defesa, e, nessa qualidade, são decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção. Ou, nos dizeres de Orlando Moreira e Castro[9]são factos complementares aqueles que, sendo essenciais para a procedência do direito invocado pelo autor ou da excepção deduzida pelo réu, não individualizam a situação jurídica alegada, exercendo apenas uma função de complemento das pretensões das partes (completam uma pura insuficiência de factos). A sua falta não acarreta a ineptidão da petição inicial ou a nulidade da excepção (art. 186.º, n.º 2 al. a)), mas pode levar à improcedência da pretensão.

Quer isto dizer, que pretendendo o R. invocar uma excepção extintiva do crédito contra si invocado, cabe-lhe o ónus de alegação expressa dos factos essenciais dessa excepção (artº 5, nº1 do C.P.C. e 342 nº2 do C.C.). Só alegados estes factos, poderá então ser produzida prova destinada a convencer da sua veracidade.

No entanto, a R. não alegou qualquer facto extintivo deste crédito, conforme resulta dos artºs 96 e 97 da sua contestação[10], mas apenas conclusões vagas e genéricas, porque não alicerçadas em qualquer facto, incumprindo, assim, o ónus que para si resultava do disposto nos artsº 571, nº2 e 572 al. c) do C.P.C.

As meras conclusões e juízos valorativos não constituem factos e não são estas susceptíveis de produção de prova, quer testemunhal, quer documental, nem podem ser introduzidos por via da instrução da causa factos essenciais que teriam de ter sido oportunamente alegados, por a tal obstar o disposto no artº 5, nº1 e 572, al. c), do C.P.C. Acresce que os depoimentos indicados pelo recorrente, da nora e filho do falecido sócio gerente da R., não coincidem sequer com a alegação vaga e genérica de uma suposta compensação de créditos, pois que, embora de forma igualmente vaga e genérica, pretenderam aqui introduzir um facto não alegado, ou seja a existência de um mútuo da sociedade aos AA., alegadamente compensado com o crédito ora reclamado. Ainda que este depoimento se não revelasse vago, genérico e pouco fidedigno, não poderiam ser introduzidos por esta via, factos essenciais, não tempestivamente alegados nos articulados.

Nesta medida a parte que pretenda deduzir defesa por excepção, tem de alegar os respectivos factos, essenciais à sua procedência. Factos, conforme nos ensina LEBRE DE FREITAS[11], são realidades que correspondem “ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido”, conforme decorre do disposto nos artºs 5 nº 1 e 552, nº1, d), do C.P.C. Não se confundem com alegações vagas e genéricas e estas não são susceptíveis nem de prova, nem de inclusão na matéria de facto provada ou não provada, como decorre expressamente do disposto no artº 607, nº4 do C.P.C.

A respeito do cumprimento do dever de fundamentação constante deste preceito legal, refere Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação ao artº 607 do C.P.C.[12], que esta factualidade deve “ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa (…) Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.”

São, pois, os factos jurídicos concretos que devem ser considerados na decisão recorrida, estando vedado ao juiz consignar na decisão a proferir meras juízos conclusivos e genéricos.

Assim, embora não conste do novo C.P.C. norma idêntica à que constava do artº 646 nº4 do C.P.C. (D.L. 329-A/95), deste preceito resulta que se mantém a obrigação de “em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjectivação.”[13]

Nestes termos e, à semelhança do que constava deste preceito e decorre actualmente do disposto nos artºs 607, nº 4 e 662, nº2, c), do C.P.C., deve o Tribunal da Relação considerar por não escritos os pontos da matéria de facto que contenham matéria de direito, juízos conclusivos e genéricos.

Impõe-se assim, a improcedência da pretensão da R., por não ser admissível a inclusão de uma conclusão vaga e genérica na matéria de facto e impõe-se ainda, a eliminação do ponto 1, da matéria de facto não provada, com o mesmo fundamento.     


***

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


Fundamenta o apelante a sua discordância em relação ao decidido, na alegada extinção do crédito reclamado, em momento prévio à acção, quer pelo pagamento (não concretizado) quer por compensação com outros créditos detidos pela R. sobre os AA. (igualmente não concretizados).

Não foram, no entanto, alegados factos e, consequentemente nenhum resultou provado, que pudesse sustentar este alegado pagamento e esta alegada compensação que, refira-se ainda, é totalmente contraditória com a alegação da mesma R. de que os AA. não seriam devedores solidários por força da fiança prestada, mas devedores principais, por a R., neste negócio, ser um mero “testa de ferro” dos AA. Trata-se de alegação repetida em sede de recurso, absolutamente contraditória com a pretensa compensação de créditos, incompreensível e que pretende fazer tábua rasa da sentença proferida no processo nº ...96 que correu termos na ... Vara Cível de ... contra AA. e R. É que nesses autos, os ora AA, foram condenados com a ora R., na qualidade de fiadores e como devedores solidários, sem que nesses autos tivesse sido invocada pela ora R. qualquer acordo simulatório ou qualquer (outra) causa de invalidade ou nulidade do negócio acordado com a S..., SA .

É, pois, questão que se mostra afastada do âmbito deste recurso.

Alega ainda a R. que não se encontra em mora, uma vez que não foi interpelada para cumprir, invocando o disposto no artº 805, nº1 do C.P.C.

Não é, no entanto, assim, conforme resulta do disposto no artº 644 do C.C. A obrigação que aqui se peticiona não é um direito novo dos AA., mas antes corresponde a um crédito que lhes foi transmitido por via do pagamento efectuado ao credor, na qualidade de fiadores da ora R.

Com efeito, a fiança constitui uma garantia pessoal do cumprimento de obrigação alheia, respondendo o fiador, salvo estipulação em contrário (cfr. artº 631 nº1 do C.C.), nos mesmos termos que o devedor principal, abrangendo tudo aquilo a que esse devedor está obrigado perante o credor.

Assim, cumprida a obrigação alheia pelo fiador, este fica sub-rogado, conforme decorre do disposto no artº 644 do C.C., nos direitos do credor, tendo o direito de exigir ao devedor por si afiançado, tudo o que pagou, acrescido dos juros que a dívida principal venceria.

É este um dos efeitos típicos da sub-rogação, conforme decorre do disposto no artº 593 do C.C. Opera-se a sub-rogação quando um terceiro que cumpre uma dívida alheia, adquire os direitos do credor originário sobre o respectivo credor. Sendo admissíveis duas espécies de sub-rogação, consoante a fonte de onde derivam, a convencional ou a legal, a fiança constitui o exemplo típico de sub-rogação legal, ou seja, o fiador que pagou obrigação alheia fica investido, por força da lei (cfr. artº 644 do C.C.), nos direitos do credor sobre o devedor, independentemente de qualquer declaração do credor nesse sentido (cfr. artºs 592 e 593, nº1 do C.C.) e independentemente de interpelação do afiançado.

O cumprimento pelo fiador da obrigação do devedor principal, opera a transmissão do crédito do credor para o fiador, com todos os seus atributos ou qualidades. Como nos ensina ALMEIDA COSTA “em consequência de ficar sub-rogado, a partir do cumprimento, nos direitos do credor, assiste ao fiador a faculdade de reclamar ao devedor os juros a que o credor teria direito, desde essa data, caso a prestação não houvesse sido efectuada[14].  Ou seja, na sub-rogação, inclui-se não só o capital mas também os juros a que o credor tinha direito, incluindo qualquer privilégio ou cláusula penal” que “acompanham a sub-rogação operada a favor do fiador solvens.[15]

Em relação às demais despesas suportadas pelo não pagamento atempado do crédito pelo devedor principal, ou em relação aos juros legais, se a dívida principal não vencesse juros, não estão estas incluídas no âmbito da sub-rogação nos direitos do credor, pelo que apenas poderiam ser reclamadas com fundamento noutros institutos jurídicos como o instituto do enriquecimento sem causa. Por assim ser, considerou a decisão recorrida que “já não pode subsumir-se à fiança assumida no “contrato de compra e venda e fiança” junto como Doc.14 da p.i. as restantes quantias mencionadas: está em causa a aquisição do imóvel, bem como o pagamento do preço do mesmo, tendo-se os aqui autores constituído fiadores, perante a vendedora S..., SA, ., apenas no respeitante ao pagamento do remanescente do preço- ou seja, a fiança constante do Doc.14 junto com a p.i. apenas abrange o remanescente do preço do negócio aí em causa, - ficando pessoalmente obrigados perante a credora, sociedade S..., SA, ..- e assim das quantias peticionadas pelos AA. as únicas que resultam da fiança e, por isso, estariam ao abrigo da mesma, será o valor de € 146.821,37 referentes ao remanescente do valor em dívida, que aqueles afirmam ter pago ao beneficiário da fiança, ou seja, à S..., SA, . e os € 5.245.34 referentes a juros de mora, pagos à S..., SA, .”

Quer isto dizer, que não constituindo este um direito novo, mas antes a transmissão de um crédito já existente e satisfeito pelo fiador em cumprimento da obrigação do devedor principal e, uma vez que o fiador fica sub-rogado pelo que haja pago nos direitos do credor sobre o devedor, assiste-lhe o direito de peticionar os juros que esta dívida venceria, caso não tivesse sido satisfeita pelo seu património, desde a data do pagamento pelo fiador ao credor e até integral pagamento pelo afiançado.

Improcede, assim, a apelação interposta pela R.    


***

Com as contra-alegações do recurso interposto, vêm os recorridos requerer que seja “determinada a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º n.º 7 do Regulamento das Custas Processuais, porquanto a conduta processual de ambas as Partes foi adequada, não tendo perturbado ou dificultado o normal decurso da lide, ao que acresce que, in casu, inexiste correspondência entre a taxa de justiça (se fixada estritamente pelo valor da acção) e a utilidade económica do pedido e/ou a complexidade do pleito”.

Conforme decorre do AUJ nº1/2022 de 3 de Janeiro (publicado no Diário da República nº 1/2022, Série I de 2022-01-03), aos recorridos assiste o direito de peticionarem a dispensa do remanescente da taxa de justiça, nas próprias alegações de recurso, pois que este direito apenas preclude com o trânsito em julgado da decisão final do processo. Sem prejuízo, obviamente, de o juiz da causa, ou o colectivo de juízes no Acórdão a proferir, emitir pronúncia oficiosa sobre esta questão, dispensando o remanescente da taxa de justiça, se considerarem verificados os pressupostos contidos no artº 6 nº7 do RCP. Pressupostos estes, que demandam a apreciação da especificidade da causa, de forma a apurar se o valor tributável do processo e, consequentemente a taxa devida, equivalem à actividade processual despendida, ou pelo contrário, se existe uma manifesta desproporção entre uma coisa e a outra.

Com efeito, resulta do disposto no artº 11 do RCP que a base tributável do processo corresponde ao valor da causa determinado de acordo com as regras fixadas nos artºs 296 e segs. do C.P.C. e com a regras especiais fixadas no RCP.

No entanto, conforme se refere em Ac. do TRL de 27/02/2018[16] a “taxa de justiça assume, hoje, natureza bilateral ou correspectiva, constituindo contrapartida devida pela utilização do serviço público da justiça por parte do respectivo sujeito passivo.” Nesta medida, enquanto contrapartida do serviço que é prestado pelo Estado, casos existem em que o valor da causa e, consequentemente, o valor da taxa de justiça aplicável é manifestamente desproporcionado ao “custo do serviço e a sua utilidade para o utente”.

Nestes casos, o legislador fez consignar no nº 7 do artº 6 do RCP, a faculdade de o juiz da causa dispensar, total ou parcialmente, o remanescente da taxa devida, se da especificidade da situação, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, concluir pela existência de um desequilíbrio ostensivo entre o valor da taxa, o serviço prestado e as utilidades que dele se pretendem retirar.

No que se reporta à complexidade da causa, os critérios que permitem considerar uma causa como especialmente complexa, resultam do artº 530, nº7, do C.P.C., ou seja:

- articulados ou alegações prolixas;

- questões jurídicas complexas;

- audição de um elevado número de testemunhas, análise de meios de prova complexos ou a realização de diligências de prova morosas.

Não foram apresentados articulados extensos nos presentes autos, nem estes encerram qualquer questão jurídica complexa. Pelo contrário, apesar do valor elevado do pedido e consequentemente da causa, as questões jurídicas a decidir, quer quanto à prescrição, quer quanto aos valores integrados na sub-rogação legal de créditos, são bastantes simples, não exigindo nem uma aturada análise técnica, nem jurídica.  

Quanto à prova, essencialmente documental, revelou-se de idêntica simplicidade. Jà a produção de prova testemunhal ocupou uma única sessão, sendo a prova relevante, essencialmente, a documental.

Em sede de recurso, as questões a decidir são igualmente simples, como o são as conclusões recursivas.

Por último, nenhuma das partes usou de meios processuais morosos ou deduziu incidentes anómalos.

Nesta medida, mostram-se verificados os pressupostos para dispensa da totalidade do valor do remanescente da taxa de justiça.    


***


DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação, em julgar improcedente o recurso interposto pela R., confirmando na íntegra a decisão proferida em primeira instância.
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As custas do recurso fixam-se pela R. (artº 527 nº1 do C.P.C.)
Dispenso o remanescente da taxa de justiça devida, ao abrigo do disposto no artº 6, nº7 do RCP.

Coimbra 12/07/23



[1] Ac. STJ de 01.10.2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ana Luísa Geraldes; Ac. STJ de 14.01.2016, proc. n.º 326/14.6TTCBR.C1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ de 11.02.2016, proc. n.º 157/12.8TUGMR.G1.S1, Mário Belo Morgado; Ac. STJ, datado de 19/2/2015, proc. nº 299/05, Tomé Gomes; Ac. STJ de 22.09.2015, proc. 29/12.6TBFAF.G1.S1, 6ª Secção, Pinto de Almeida; Ac. STJ, datado de 29/09/2015,proc. nº 233/09, Lopes do Rego; Acórdão de 31.5.2016, Garcia Calejo, proc. nº 1572/12; Acórdão de 11.4.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 449/410; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Clara Sottomayor, proc. nº 1060/07.
[2] Ac. STJ. de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, proc. nº 861/13.3TTVIS.C1.S
[3] Ac. do STJ de 16/12/20, de que foi Relator Bernardo Domingos, proferido na Revista nº 8640/18.5YIPRT.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt.

[4] Ac. do STJ de 09-06-2021, proferido na Revista n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1, de que foi relator Ricardo Costa, disponível in www.dgsi.pt
[5] CASTRO MENDES, João, Direito Processual Civil, II Vol., Coimbra Editora, pág 208.
[6] TEIXEIRA DE SOUSA, Miguel, Introdução ao Processo Civil, Lex editora, 2000, pág. 52.
[7]TEIXEIRA DE SOUSA, MIGUEL, “Algumas questões sobre o ónus de alegação e de impugnação em processo civil”, in Scientia Jurídica, Tomo LXII, n.º 332, 2013, pág. 396.
[8] Ac. do TRC de 07/11/17, proferido no proc. nº 1335/13.8TBCBR.C1, disponível para consulta in www.dgsi.pt
[9] CASTRO; Orlando Patrício Correia Alves Moreira O REGIME DA ALEGAÇÃO DOS FACTOS NO PROCESSO CIVIL DECLARATIVO (EVOLUÇÃO E PARADIGMA), Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Forenses, orientada pelo Senhor Professor Doutor Luís Miguel Andrade Mesquita, apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Maio de 2016.
[10] Alegou a R. em tais artigos o seguinte:

96ª

Finalmente, quanto às quantias constantes dos art. 13º, 14º e als. a), b) e c) do art. 22º todos da p.i., as mesmas, conforme resultou demonstrado no processo identificado no art. 1º desta contestação foram pagas e/ou compensadas aos AA., quer pela R., quer pelo já falecido CC, no âmbito de vários negócios

desenvolvidos em conjunto.

97º

Com efeito, o A. marido e o falecido CC, à data sócio e gerente da R., desenvolveram vários negócios em conjunto, alguns em sociedades de que ambos eram sócios, do que resultavam fluxos financeiros mútuos, no âmbito dos quais, como amplamente comprovado e demonstrado na ação identificada no artigo 1º desta contestação, todas as quantias devidas aos AA. pela fiança prestada no âmbito do Doc. 14 junto com a p.i. foram liquidadas.
[11] LEBRE DE FREITAS, José, Ação Declarativa Comum, À Luz do Código de Processo Civil de 2013, pág. 41. Neste sentido, vide ainda PIMENTA, Paulo, Processo Civil Declarativo, 2ª edição, Almedina, pág. 153.
[12] ABRANTES GERALDES et ALL, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 17[12].
[13] Acs. do STJ de 12-07-2018, Revista n.º 88/14.7TJPRT.P3.S2 e de 12-01-2021, Revista n.º 2999/08.0TBLLE.E2.S1, disponíveis em www.dgsi.pt
[14] ALMEIDA COSTA; Mário Júlio, Direito das Obrigações, Almedina, 12ª edição revista e actualizada, 9ª reimpressão, pág. 899.
[15] ANTUNES VARELA, João de Matos, Das obrigações em Geral, vol. II, 5ª edição, Almedina, Coimbra, págs. 496.
[16] Proferido no proc. nº 5988/09.3TVLSB.L1-7, de que foi relatora Cristina Coelho.