Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1478/10.0TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
UNIÃO DE FACTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Data do Acordão: 04/17/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE 3º J C
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.12, 2009, 2020 CC, DL Nº 322/90 DE 18/10, LEI Nº 135/99 DE 28/8, LEI 7/2011 DE 11/5, LEI Nº 23/2010 DE 30/8
Sumário: 1.- Para obter o direito à pensão de sobrevivência, no âmbito da Lei 7/2001, de 11.5, por morte do companheiro/a, a/o requerente, em situação de união de facto, terá de provar, cumulativamente, todos os seguintes requisitos: - que vivia com o titular do direito á pensão há mais de dois anos, na altura da morte do mesmo, em condições análogas às dos cônjuges; - que essa pessoa, na altura, não era casada, ou, sendo-o, se encontrava então separada judicialmente de pessoas e bens; - que carece de alimentos; - que não é possível obter tais alimentos de nenhuma das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do art. 2009º, do C.C., nem da herança do seu/sua falecido/a companheiro/a, por falta ou insuficiência desta.

2.- A lei não exige que a requerente dos alimentos à data do falecimento do seu companheiro fosse divorciada, solteira ou viúva há mais de 2 anos,

3.- A Lei 23/2010, de 30.8, passou a reconhecer ao membro sobrevivo de união de facto e independentemente da necessidade de alimentos o direito à protecção social por morte do beneficiário, designadamente à prestação de sobrevivência, não contendo nenhuma disposição transitória no sentido de apenas ser reconhecido o direito à atribuição dessa pensão aos membros sobrevivos da união de facto desde que esta haja cessado por morte do beneficiário ocorrida já na vigência dessa lei.

4.- A situação jurídica que importa considerar é, a de membro sobrevivo de uma união de facto dissolvida, constituindo a existência de uma união de facto e a sua dissolução por óbito do beneficiário do regime de segurança social meros pressupostos da constituição do estado pessoal de membro sobrevivo de união de facto;

5.- Por isso, ainda que o óbito do beneficiário haja ocorrido em momento anterior ao início de vigência desta lei, uma vez constituída a situação jurídica de membro sobrevivo de união de facto dissolvida por morte, não deixa de se lhe aplicar, a pensão de sobrevivência, nos termos do art. 12º, nº 2, 2ª parte, do CC.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. C (…), divorciada, residente na Marinha Grande, propôs a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária contra Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Nacional de Pensões, com sede em Lisboa, pedindo seja declarado que a autora é titular das prestações por morte, no âmbito do regime da segurança social decorrente da morte de J (…) e o réu condenado a reconhecê-lo.

Para tanto alegou, em síntese, que no dia 10 de Maio de 2010 faleceu J (…), com quem a autora viveu desde o mês de Novembro de 1996 até à data da sua morte, partilhando a mesma cama, tomando as suas refeições, passeando e saindo juntos, tendo o mesmo circulo de amigos, cada um contribuindo com o que auferia para a aquisição de todos os bens alimentares, móveis e outros para a habitação. Mais alegou que os seus pais já faleceram, não tem filhos e não obstante ter irmãos, os mesmos não têm condições para a auxiliar economicamente, o mesmo sucedendo com o seu ex-cônjuge. Que a autora encontra-se reformada auferindo reforma de 303,23 €, acrescida de complemento de reforma para idosos no montante de 70 €, sendo a sua reforma insuficiente para fazer face às suas despesas de alimentação, vestuário, electricidade, gás, renda de casa e demais encargos e despesas indispensáveis para a sua subsistência, não existindo bens na herança do falecido.

Contestou o Réu, impugnando alguns dos factos alegados pela autora, por não serem factos pessoais ou de que deva ter conhecimento. Mais alegou não ser aplicável o regime que decorre da Lei 23/2010 de 30.8 por se tratar de óbito ocorrido antes da sua entrada em vigor. Concluiu no sentido do pedido de reconhecimento da qualidade de titular de prestações por morte da Segurança Social, ser julgado de acordo com a prova que vier a ser produzida em audiência de julgamento.

*

A final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, e, consequentemente, foi o Réu absolvido do pedido.

*

2. A A. apresentou recurso, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. O Réu contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II Factos Provados

1. No dia 10 de Maio de 2010 faleceu J (…), com última residência habitual na Rua (...) Marinha Grande, no estado de divorciado.

2. A Autora actualmente encontra-se reformada, auferindo, mensalmente reforma de € 303,23 acrescida de complemento de reforma para idosos no montante de € 70,00.

3. O falecido J (...) era beneficiário da Instituição de Segurança Social.

4. A autora viveu durante 15 anos com o então falecido J (…), até à data da sua morte, na mesma habitação.

5. A autora e J (…) viveram juntos durante 15 anos, como se de dois cônjuges se tratasse.

6. Partilhavam a mesma cama, relacionando-se afectiva e sexualmente.

7. Tomando as refeições em conjunto.

8. Passeando e saindo juntos.

9. Tendo o mesmo círculo de amigos.

10. Cada um contribuindo com o que auferia para a aquisição de todos os bens alimentares, móveis, electrodomésticos e outros que existem na morada onde viviam.

11. O falecido cuidava da Autora quando esta se encontrava doente e ela dele.

12. Auxiliando-se mutuamente no dia-a-dia.

13. Eram desde há 15 anos reconhecidos e tratados como marido e mulher, por todos com quem se relacionavam.

14. Eram maiores e não existia entre ambos qualquer tipo de relação de parentesco.

15. Ambos gozavam de boa saúde, quer física como mental.

16. A mãe e o pai da Autora já faleceram.

17. Não tem filhos.

18. O seu irmão (…) é reformado auferindo 1018,24 € de pensão de reforma e a sua mulher é florista.

19. A sua irmã (…), é reformada e viúva, auferindo 248,36 € de pensão de reforma.

20. A sua irmã (…) é reformada e é viúva, auferindo 727,68 € de pensão de reforma.

21. A autora tem de suportar a alimentação, o vestuário, calçado, renda de casa e ainda as despesas de saúde.

22. A autora gasta em alimentação mensalmente quantia não concretamente apurada.

23. Para vestir e calçar modestamente, necessita também de quantia não concretamente apurada.

24. De electricidade paga mensalmente quantia não concretamente apurada.

25. Em relação ao gás e água, gasta sensivelmente por mês a quantia de € 30,00.

26. Vive em casa arrendada suportando renda mensal no montante de € 280,00.

27. E, tudo isto, é única e exclusivamente custeada pela reforma da Autora, em virtude do falecimento do seu companheiro, J (…)

28. Vivendo no presente a Autora com graves dificuldades monetárias e económicas.

29. Não existem bens na herança do falecido.

30. A autora é divorciada.

31. O ex-cônjuge da autora é trabalhador por conta de outrem auferindo cerca de 500,00€ mensais.

32. O Agregado familiar do ex-cônjuge da Autora é composto por si, mulher e por dois filhos menores.

33. Tal agregado familiar consume tudo o que aufere.

Resultou ainda do teor do documento de fls. 72 a 73 que:

34. A autora casou com (…) em 8 de Dezembro de 1979, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença de 9 de Outubro de 2008 transitada em julgado em 20 de Outubro de 2008.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade a única questão a decidir é a seguinte.

- Requisitos constitutivos do direito à pensão de sobrevivência nos casos de união de facto.

2.1. Para rejeitar a pretensão da recorrente a sentença recorrida argumentou que:

“Ora, pese embora da matéria de facto provada resulte que a autora e o falecido J (…) tenham vivido em condições análogas às dos cônjuges durante 15 anos, o certo é que tal união de facto não é juridicamente relevante, atento o disposto nos artºs1º nº1 e artº 2º alinea c) da Lei 7/2001 de 10 de Maio ou no artº 1º nº2 e 2º alinea c) na redacção introduzida pela Lei 23/2010 de 30.08, pois tal união de facto apenas assume relevância após o transito em julgado da sentença que decretou o divórcio entre a autora e (…).

Tendo o companheiro da autora, J (…) falecido em 10 de Maio de 2010 e o divórcio da autora com (…) sido decretado em 20 de Outubro de 2008, tal período de união de facto não perfaz mais de dois anos, prazo legalmente exigido, quer ao abrigo da lei antiga quer na redacção introduzida pela Lei 23/2010 de 30.08, o que necessariamente acarreta a improcedência da acção”.

Todavia não podemos acompanhar este discurso argumentativo. Vejamos.

A questão que aqui se coloca, primacialmente, é saber se tendo o companheiro da A. falecido em 10.5.2010 e o divórcio da A. com (…) sido decretado em 20.10.2008, tal período que não perfaz mais de dois anos, acarreta desde logo a improcedência da acção.

Coloquemos em primeiro lugar a situação de alguém que viva em união de facto, e que pretende exigir alimentos á herança do falecido. Tal situação vem regulada no art. 2020º, nº 1, do CC, que aí dispõe que “Aquele que, no momento da morte de pessoa não casada ou separada judicialmente de pessoas e bens, vivia com ela há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges, tem direito a exigir alimentos da herança do falecido, se os não puder obter nos termos das alíneas a) a d) do artigo 2009º”.

Face ao texto legal, a concessão desse direito a alimentos, fica dependente da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

i) que o membro da união de facto falecido não seja casado à data da sua morte, ou sendo-o se encontre nessa altura separado judicialmente de pessoas e bens; ii) que o requerente de alimentos tivesse vivido em condições análogas às dos cônjuges com o falecido há mais de dois anos, à data da morte deste; iii) que o requerente careça de alimentos; iv) que o requerente não tenha possibilidade de obter os alimentos de que carece, nem do seu cônjuge ou ex-cônjuge, nem dos seus descendentes, ascendentes ou irmãos (vide A. Varela, CC Anotado, Vol. V, nota 2. ao referido artigo, pág. 620).

Por conseguinte, em relação ao primeiro requisito, a pretensão alimentícia só pode ser exercida em relação à herança do companheiro/companheira, que tenha falecido no estado de solteiro, viúvo, divorciado ou de separado judicialmente de pessoas e bens, não contra a herança de pessoa casada, ainda que separada de facto.

Ou seja, o texto da norma exige, tão-só, que na data do seu falecimento o autor da herança, o companheiro/companheira, não seja casado. O que é compreensível, pois não seria natural e lógico, colocar em igualdade ou confronto, quanto ao direito a alimentos, o legítimo cônjuge sobrevivo e o concubino.

Mas o legislador, aliás, já não teve qualquer pejo em permitir que pessoa casada faça por testamento disposição que assegure alimentos a favor do simples cúmplice adúltero, nos termos do art. 2196º, nº 1, b), do CC.

Contudo aquele citado art. 2020º já não exige que o falecido durante os últimos dois anos da união de facto não o possa ser, isto é, que nesse período de dois anos tenha que ser solteiro, viúvo ou divorciado – veja-se neste sentido os Ac. do STJ, de 18.3.1986, BMJ, 355, pág.392, e da Rel. Porto, de 11.4.1985, CJ, T. 2, pág. 232. 

O que se entende perfeitamente, pois a união de facto é um estado de facto que corresponde a uma situação de comunhão de leito, mesa e habitação (cfr. Pereira Coelho, D. Família, Vol. I, 4ª Ed., pág. 52). E essa vivência, obviamente não ocorre só entre pessoas não casadas, podendo ocorrer, como demonstra abundantemente a realidade, em que os membros da união de facto são ambos casados, ou só um deles está ligado pelo casamento.

Idêntico raciocínio se deve formular relativamente ao membro sobrevivo da existente união de facto. Nada na lei autoriza a pensar que também ele tenha, nesse período final de dois anos da união de facto, de ser solteiro, viúvo ou divorciado. Não é, assim, a situação de casado, nesse período final de dois anos da união de facto, que vai descaracterizar a mesma.

Existindo o estado de facto de comunhão análoga ás dos cônjuges não é pelo facto de um dos membros da união de facto ser casado durante esses referidos dois últimos anos que deixa de existir a situação de união de facto, ou tal membro sobrevivo fica sujeito a perder o seu direito a alimentos. Condição única para os reclamar da herança do falecido é que este fosse não casado á data do seu decesso. Tanto é assim, que o membro sobrevivo da união de facto só pode reclamar direito de alimentos à herança, como se mencionou a propósito do quarto requisito legal, caso não os possa obter do seu cônjuge, nos termos do art. 2009º, nº 1, a), do CC.

Este contexto legal não se alterou, no que respeita à união de facto regulada pelo legislador com a publicação das Leis 135/99, de 28.8 - atentos os arts. 3º, f), respeitante à protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pelo regime geral da segurança social, 6º, nº 1, e 2º c), e 7/2001, de 11.5.

Quanto a esta, desde logo aplicável ao caso dos autos, dispunha o art. 1º (na redacção anterior ao DL 23/2010, de 30.8) que:

1- A presente lei regula a situação jurídica de duas pessoas, independentemente do sexo, que vivam em união de facto há mais de dois anos.

2- Nenhuma norma da presente lei prejudica a aplicação de qualquer outra disposição legal ou regulamentar em vigor tendente à protecção jurídica de uniões de facto ou de situações de economia comum.

E o art. 2º (na mesma redacção anterior) dispunha o seguinte:

São impeditivos dos efeitos jurídicos decorrentes da presente lei:

c) Casamento anterior não dissolvido, salvo se tiver sido decretada separação judicial de pessoas e bens;

E o art. 3º (na mesma redacção anterior) rezava que: 

As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a:

e) Protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social e da lei;

Enquanto o art. 6º, nº 1, (na mesma redacção anterior) estipulava que:

Beneficia dos direitos estipulados nas alíneas e) … do art. 3º, no caso de uniões de facto previstas na presente lei, quem reunir as condições constantes do art. 2020º do Código Civil (…).

Como se vê e decorre do citado art. 2º, e), o regime não mudou, pois apenas continua a ser impeditivo dos efeitos jurídicos da aludida lei, designadamente da protecção na eventualidade de morte do beneficiário, pela aplicação do regime geral da segurança social, ao membro sobrevivo de tal união de facto, que o casamento anterior do falecido beneficiário não esteja dissolvido. Continua a não exigir-se, assim, quer quanto ao companheiro/companheira falecida, quer quanto ao outro membro sobrevivo da união de facto, que nos últimos dois anos de tal união algum dos “cônjuges de facto” seja solteiro, viúvo ou divorciado. Ponto é que o falecido, na data do seu falecimento o seja (ou sendo casado tenha sido decretada a separação judicial de pessoas e bens) – vide neste sentido Pereira Coelho, ob. cit., pág. 68 e 83/84.

Desta sorte, o argumento da sentença recorrida não merece acolhimento, pelo facto de a ora recorrente estar divorciado há cerca de 19 meses antes da data do falecimento do seu companheiro J (…), nem tal matéria (apurada nos factos 1., 30. e 34.) descaracteriza a realidade existente entre ele e a A., que viveram em união de facto durante 15 anos, como decorre patentemente da factualidade provada (factos 4. a 13.). Período de tempo este, que a interpretação feita na sentença recorrida acaba por injustamente “apagar” da vida pessoal e social da A. e seu ex-companheiro.

Não sendo este um obstáculo à concessão do direito peticionado pela A., resta ver se os restantes requisitos se verificam. E por antecipação a resposta é afirmativa.
Como se sabe o DL 322/90, de 18.10, definiu e regulamentou a protecção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral de segurança social (art. 1º), consubstanciando tal protecção, em termos gerais, na atribuição das prestações pecuniárias denominadas pensões de sobrevivência e subsídio por morte (art. 3º) aos cônjuges e ex-cônjuges, e outras categorias de parentes (art. 7º). No art. 8º estendeu aquele diploma o direito às prestações por morte dos beneficiários da segurança social às pessoas que se encontrem na situação prevista no nº 1 do art. 2020º do CC, subordinando a prova da verificação daquela situação e a determinação das condições de atribuição das prestações a um processo a definir através de decreto regulamentar.
Esse diploma foi o D. Regulamentar 1/94, de 18.1. Aí se reiterou que tem direito às prestações por morte a pessoa que, no momento da morte de beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens, vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges (art. 2º), ficando a respectiva atribuição dependente de sentença judicial que lhe reconheça o direito a alimentos da herança do falecido nos termos do disposto no artigo 2020º do Código Civil, e no caso de não ser reconhecido tal direito, com fundamento na inexistência ou insuficiência de bens da herança, o direito às prestações dependia do reconhecimento judicial da qualidade de titular daquelas, obtido mediante acção declarativa interposta, com essa finalidade, contra a instituição de segurança social competente para a atribuição das mesmas prestações (art. 3º, nº 1 e 2).
A situação foi objecto de novas abordagens legislativas através das referidas Lei 135/99, e Lei 7/2001, esclarecendo esta no art. 6º, nº 2, que “Em caso de inexistência ou insuficiência de bens da herança, ou nos casos referidos no número anterior, o direito às prestações efectiva-se mediante acção proposta contra a instituição competente para a respectiva atribuição”.
A interpretação das normas legais que se acabaram de referir, sobre os pressupostos legais da atribuição das prestações por morte do beneficiário da segurança social à pessoa que com ele vivesse em união de facto, desembocou em duas correntes jurisprudenciais, uma que cremos francamente minoritária, que partindo da interpretação restritiva da remissão feita pelo art. 6º da Lei 7/2001 para o art. 2020º do CC, da natureza da pensão de sobrevivência e do princípio constitucional da proporcionalidade, entende que na acção instaurada contra a instituição de segurança social competente o autor não tem de alegar e provar a necessidade de alimentos, mas apenas a situação da união de facto, ou seja, que no momento da morte do beneficiário não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens vivia com ele há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges (vide Ac. do STJ de 20.4.2004, CJ, T II, pág. 30).
Outra, francamente maioritária, defendendo que o direito às prestações por morte do beneficiário da segurança social não casado ou separado judicialmente de pessoas e bens conferido a quem com ele vivesse há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges depende da alegação e prova, na acção instaurada contra a instituição competente, não apenas da situação de união de facto, mas também dos demais requisitos previstos no nº 1 do art. 2020º do CC, com referência ao art. 2009º, nº 1, a) a d) do mesmo diploma legal, designadamente da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter da herança do falecido, do cônjuge ou ex-cônjuge, dos descendentes, dos ascendentes e dos irmãos (Ac. do TC nº 195/03 (DR, II, de 22/05/2003, pág. 797), Acds. do STJ de 23.5.2006, CJ, T. 2, pág. 100, de 24.4.2007, Proc.07A677, de 24.5.2007, Proc.07A1655, de 28.6.2007, Proc.07B2319, de 13.9.2007, Proc.07B1619, de 23.10.2007, Proc.07A2949, de 28.2.2008, Proc.07A4790, e de 27.5.2008, Proc.08B1201, todos disponíveis em www.dgsi.pt).   

Corrente esta que se exprime assim. Para obter o direito à pensão de sobrevivência, por morte do companheiro, a requerente, em situação de união de facto, terá de provar, cumulativamente, todos os seguintes requisitos:

- que vivia com o titular do direito á pensão há mais de dois anos, na altura da morte do mesmo, em condições análogas às dos cônjuges;

- que essa pessoa, na altura, não era casada, ou, sendo-o, se encontrava então separada judicialmente de pessoas e bens;

- que carece de alimentos;

- que não é possível obter tais alimentos de nenhuma das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do art. 2009º, do C.C., nem da herança do seu falecido companheiro, por falta ou insuficiência desta.

E que consideramos ser a de seguir, por mais rigorosa e adequada aos textos legais.          

Ora, tendo em conta os factos provados, além dos apontados, ainda os indicados em 2., 3., 16. a 29., e 31. a 33., concluímos que a recorrente logrou provar todos os requisitos legais, pelo que tem direito a ver reconhecida a sua pretensão.

Consequentemente, o recurso procede.

2.2. Acrescente-se, ainda, que por outra razão o recurso teria de proceder.

Em 30.8.2010 foi publicada a Lei 23/2010, que alterou o art. 2020º, nº 1, do Código Civil, a referida Lei 7/2001, de 11.5, e o art. 8º do DL 322/90, de 18.10.

O art. 2020º, nº 1, do CC, passou a dispor que “O membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido”.

Por força da alteração introduzida pela Lei 23/2010, os art. 1º, 2º, 3º e 6º, da Lei 7/2001 passaram a ter a seguinte redacção:

Art. 1º:

1- A presente lei adopta medidas de protecção das uniões de facto.

2- A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas, que independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

Art. 2º:

Impedem a atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto:

c) Casamento não dissolvido, salvo se tiver sido decretada a separação de pessoas e bens;

Art. 3º:

1. As pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a:

e) Protecção social na eventualidade de morte do beneficiário, por aplicação do regime geral ou de regimes especiais de segurança social e da presente lei;

Art. 6º:

1- O membro sobrevivo da união de facto beneficia dos direitos previstos nas alíneas e), f) e g) do art. 3º, independentemente da necessidade de alimentos.

Do ponto de vista substantivo, a Lei 23/2010 veio, assim, ampliar os direitos do membro sobrevivo das uniões de facto ao nível das prestações sociais por óbito do companheiro falecido - na medida em que passou a dispensar todos os requisitos que eram exigidos por referência ao art. 2020º do CC, que, por sua vez, remetia para as quatro primeiras alíneas do art. 2009º, como até a necessidade de alimentos. O direito a tais prestações passa agora a bastar-se com a prova da união de facto, do requerente com a pessoa falecida, por mais de dois anos e da qualidade de beneficiário da segurança social por parte do membro falecido.
Essa Lei nada dispôs sobre a data da sua entrada em vigor, pelo que, decorrida a vacatio legis, começou a vigorar em 4.9.2010. Encontrando-se a presente acção pendente quando entraram em vigor as alterações (e aditamento) à Lei 7/2001, operadas pela Lei 23/2010, e tendo o companheiro da A. falecido antes dessa entrada em vigor, face ao art. 15º do referido DL 322/90 que dispõe que as condições de atribuição das prestações são definidas à data da morte do beneficiário, coloca-se a questão da aplicabilidade ou não de tais alterações, põe-se um problema de aplicação da lei no tempo. A Lei 23/2010 não contém qualquer norma desse teor que resolva a questão.
Há, pois, que recorrer às normas essencialmente constantes dos arts. 12º e 13º do CC. No tocante aos aludidos requisitos substantivos - dispensabilidade de alegação e prova da necessidade de alimentos e da impossibilidade de os obter da herança ou das pessoas indicadas nas a) a d) do nº 1 do art. 2009º do CC, bastando, por isso a prova da união de facto – consideramos tratar-se de norma inovadora, e não interpretativa.
Na esteira dos Acds. do STJ de 7.6.2011, Proc.1877/08.7TBSTR, de 16.6.2011, Proc.1038/08.5TBAVR, e de 6.7.2011, Proc.23/07.9TBSTB, todos em www.dgsi.pt, para cuja argumentação remetemos, entendemos ser essa a solução correcta.
O art. 12º, nº 1, 1ª parte, do CC, preceitua que a lei só dispõe para o futuro, estabelecendo a regra geral da não retroactividade, que contudo vem logo exceptuada na 2ª parte do mesmo nº 1. E o nº 2, 2ª parte, estabelece que “… mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”.

É certo que o falecimento do J (...) ocorreu em 10.5.2010, o que face ao mencionado art. 15º do DL 322/90 parece obstar á aplicação da lei nova. Contudo, como diz o apontado Ac. do STJ de 7.6.2011, o momento do óbito é o momento despoletador do direito à atribuição da pensão de sobrevivência, não constituindo, porém, elemento constitutivo desse direito. Sublinha-se mesmo aí que “afinal a situação jurídica que importa à lei é tão somente a de membro sobrevivo da união de facto (e não união de facto dissolvida no domínio da lei nova). Tal situação prolonga-se no tempo independentemente do momento em que se constituiu, ficando consequentemente sujeita ao domínio da LN, pois ela autonomiza-se - abstrai - da realidade que a desencadeou: a dissolução por morte de uma união de facto pré-existente”. Ou, como foi salientado no indicado Ac. do STJ de 16.6.2011, na actual redacção da lei, o que define, no essencial, a situação jurídica em análise é o facto do unido sobrevivo ter vivido em união de facto com o falecido beneficiário durante mais de dois anos. É este o facto constitutivo da situação jurídica; a morte apenas permite desencadear o exercício do direito à pensão de sobrevivência. Segue este aresto, como vemos, a mesma linha de raciocínio do anteriormente referido. Ou, ainda, na formulação do mencionado Ac. do STJ de 6.7.2011, sem prejuízo do disposto no art. 15º do DL 322/90, o universo de pessoas que a lei tem em vista e quer proteger é o dos vivos, das pessoas que ficam, e não o do beneficiário que partiu.
Sintetizando, podemos afirmar que o facto constitutivo essencial do direito às prestações por morte não é só a morte do beneficiário unido de facto. É a situação jurídica do unido de facto sobrevivente, desencadeada pelo mencionado decesso, mas que deste se autonomiza, subsistindo no tempo. Situação jurídica esta que, assim, se enquadra na previsão da aludida 2ª parte do nº 2 do transcrito art. 12º do CC.
Assim, julga-se que, apesar da morte do J (…) ter ocorrido em 10.5.2010, antes, pois, da entrada em vigor das alterações de natureza substancial introduzidas na Lei 7/2001 pela Lei 23/2010, tais alterações são aplicáveis ao caso em apreciação.
Do ponto de vista formal/processual, nos termos do art. 2º-A, nº 1, 2 e 4, da Lei 7/2001, aditado pela Lei 23/2010, a união de facto pode ser provada por qualquer meio legalmente admissível, nomeadamente por declaração emitida pela Junta de Freguesia competente, que nesta hipótese, deve ser acompanhada de outros documentos aí referidos. No caso não interessa saber se é aplicável, também, a lei nova.
Como acima referido, os factos provados atrás enunciados mostram que a recorrente e o falecido J (…) viviam em união de facto, sendo este beneficiário da segurança social. Pelo que, repete-se, pela aplicação da Lei 23/2010, também a pretensão da autora/apelante teria de proceder.

3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):

i) Para obter o direito à pensão de sobrevivência, no âmbito da Lei 7/2001, de 11.5, por morte do companheiro/a, a/o requerente, em situação de união de facto, terá de provar, cumulativamente, todos os seguintes requisitos: - que vivia com o titular do direito á pensão há mais de dois anos, na altura da morte do mesmo, em condições análogas às dos cônjuges; - que essa pessoa, na altura, não era casada, ou, sendo-o, se encontrava então separada judicialmente de pessoas e bens; - que carece de alimentos; - que não é possível obter tais alimentos de nenhuma das pessoas referidas nas alíneas a) a d) do art. 2009º, do C.C., nem da herança do seu/sua falecido/a companheiro/a, por falta ou insuficiência desta;

ii) A lei não exige que a requerente dos alimentos à data do falecimento do seu companheiro fosse divorciada, solteira ou viúva há mais de 2 anos,

iii) A Lei 23/2010, de 30.8, passou a reconhecer ao membro sobrevivo de união de facto e independentemente da necessidade de alimentos o direito à protecção social por morte do beneficiário, designadamente à prestação de sobrevivência, não contendo nenhuma disposição transitória no sentido de apenas ser reconhecido o direito à atribuição dessa pensão aos membros sobrevivos da união de facto desde que esta haja cessado por morte do beneficiário ocorrida já na vigência dessa lei;

iv) A situação jurídica que importa considerar é, a de membro sobrevivo de uma união de facto dissolvida, constituindo a existência de uma união de facto e a sua dissolução por óbito do beneficiário do regime de segurança social meros pressupostos da constituição do estado pessoal de membro sobrevivo de união de facto;

v) Por isso, ainda que o óbito do beneficiário haja ocorrido em momento anterior ao início de vigência desta lei, uma vez constituída a situação jurídica de membro sobrevivo de união de facto dissolvida por morte, não deixa de se lhe aplicar, a pensão de sobrevivência, nos termos do art. 12º, nº 2, 2ª parte, do CC.

IV - Decisão

Em face do exposto, julga-se o recurso procedente, e, em consequência, declara-se que a autora/recorrente tem a qualidade de titular das prestações por morte no âmbito do regime da segurança social, decorrente da morte de J (...), e o réu condenado a reconhecê-lo.

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Custas pelo réu. 

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Moreira do Carmo ( Relator )

Carlos Marinho

Alberto Ruço