Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
377/22.7T8MGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DESPACHO DE CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DA PETIÇÃO INICIAL
CASO JULGADO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
DECISÃO INEXISTENTE
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 595.º, 3; 613.º, 1 E 3 E 644.º, 2 E 3, DO CPC
Sumário: I - Apesar, do tribunal, em momento anterior à prolação da decisão recorrida, ter proferido decisão que julgou improcedente a exceção dilatória da nulidade do processo por ineptidão da p. inicial, a mesma não formou caso julgado formal quanto à questão concretamente apreciada, pois até ao momento em que foi interposto este recurso aquela ainda era suscetível de ser impugnada.
II - O convite ao aperfeiçoamento da p. inicial à Autora em momento subsequente à decisão que jugou não ocorrer ineptidão da mesma, não encerra a virtualidade que a Ré lhe assaca, pois entre estas duas decisões não existe qualquer contradição, tanto mais que só o julgamento de ineptidão é que inviabiliza a prolação de despacho de aperfeiçoamento.

III - O singelo facto de ter sido proferida, em 21.11.2022, a decisão que julgou não ocorrer a ineptidão da petição inicial, era impeditivo de nova apreciação da questão que concretamente já tinha apreciado, o que decorre do esgotamento do poder jurisdicional do juiz nos termos do art.º 613º, n.º 1 e 3 do C. P. Civil.

IV - A sentença proferida por quem não dispunha de poder jurisdicional para o efeito revela-se inexistente não produzindo quaisquer efeitos jurídicos.

Decisão Texto Integral: Relatora: Sílvia Pires

Adjuntos: Cristina Neves

                Fernando Marques da Silva


                                   Autora: G... Lda

                                   Ré: AA

                                                           *

Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora intentou a presente ação declarativa de condenação, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de €22.629,54, acrescida de juros de mora vencidos desde 21/12/2021 e vincendos até integral pagamento, que atualmente se computam no valor de € 411,67.
Para fundamentar a sua pretensão alegou a prestação de serviços à Ré, como resultado do orçamento por si elaborado e por solicitação desta, que se traduziram na incorporação de materiais na obra que identifica, não tendo a Ré pago uma fatura, com vencimento em 21.12.2021, no valor de € 22.629,54.

A Ré na sua contestação, além do mais, invocou a ineptidão da p. inicial, alegando:
21º. Verifica-se, pois, apenas e só a enunciação de uma factura, todavia a. não invoca os factos essenciais que servem de fundamento à sua pretensão: sejam as cláusulas contratuais pertinentes à demonstração das obrigações constituídas e seus efeitos (ou consequências), sejam as condutas da demandada que esta tenha efetuado.
22º. Ou seja, como a A. não concretiza as obrigações que do alegado orçamento invocado decorrem para a R. (essa é que seria a causa de pedir), não é possível saber se o montante inscrito na factura é, ou não, devido.
23º. A omissão de tais factos essenciais constitui, indubitavelmente, falta (total) de causa de pedir.

Em 22.11.2022 foi proferido o seguinte despacho que não foi objeto de recurso:
 I - DA INEPTIDÃO DO REQUERIMENTO INICIAL
Em contestação a Ré AA deduziu oposição por excepção dilatória, invocando a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial, tendo invocado, em apertada síntese, a ausência de causa de pedir.
Em contraditório, a Autora pugnou pela improcedência da excepção arguida.
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Prescreve o artigo 186.º, n.º 1, al. a) do CPC que diz-se inepta a petição em que “falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”.
A este propósito Alberto dos Reis define a causa de pedir como “o facto real que concretamente se alega para justificar o pedido”, razão pela qual se “hão-de expor os factos concretos em que se funda esse direito, os factos materiais que sejam suficientes para caracterizar e especificar a causa de pedir”. Em sentido semelhante, Lebre de Freitas identifica a causa de pedir como os “factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma”, correspondendo esta “ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido” (Lebre de Freitas, “A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013”, Coimbra Editora, 2013, p. 41).
Constatamos pela leitura da petição inicial que a Autora invoca como causa de pedir a prestação de serviços de empreitada, com a incorporação de materiais discriminados em facturas, encontrando-se uma das facturas por pagar.
Por outro lado, a Ré não só impugna o pedido apresentado, como também deduz reconvenção, alegando má execução dos trabalhos realizados pela Autora e cujo pagamento peticiona, revelando dessa forma ter interpretado correctamente a petição apresentada.
Improcede, assim, a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir.
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II - DO CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO:
A - Nos termos do artigo 552.º, n.º 1, al. d) do CPC, o autor, com a Petição Inicial, deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.
Prevê o artigo 5.º, n.º 1 do CPC que compete às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir.
Constituem factos essenciais todos os factos sem os quais a acção ou excepção improcede. Com efeito, escreve Lebre de Freitas/Isabel Alexandre “o Juiz não pode considerar, na decisão, factos principais diversos dos alegados pelas partes” (in “Código Processual Civil Anotado”, Vol. 1.º, Coimbra Editora, p. 15).
Constata-se que apesar da Autora referir ter prestado serviços no âmbito de um contrato de empreitada, não especifica que materiais foram incorporados, nem que obras realizou na obra da Ré, com relevância para a procedência da acção aos trabalhos discriminados na última factura, cujo pagamento peticiona.
Nesses termos, ao abrigo do artigo 590.º, n.º 4 do CPC, convida-se a Autora:
1 - A identificar o momento em que apresentou orçamento e respectivo valor;
2 – A descrever que obras foram contratadas com a Ré;
3 - A descrever – no que respeita à factura cujo pagamento peticiona – que materiais foram incorporados em obra e que trabalhos foram realizados por conta dessa factura;
Adverte-se que a remissão de factos essenciais para documentos corresponde à não alegação desses factos.
Prazo: dez dias.
Notifique.
*
Após, tem o Réu a possibilidade de exercer o contraditório, tendo para o efeito o prazo de 10 dias, cfr. artigo 590.º, n.º 5 do CPC.

A Autora, na sequência do convite que lhe foi dirigido, apresentou articulado, esclarecendo a que respeita a fatura cujo pagamento reclama.
 A Ré, no exercício do contraditório, impugnou a factualidade alegada pela Autora.

Foi proferido despacho que não admitiu o pedido reconvencional, fixou o valor da causa e em face deste, julgando o tribunal incompetente determinou a sua remessa à distribuição junto da Instância Central.

 Após distribuição no juízo central, depois de dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido saneador-sentença que decidiu:
 - Julga-se verificada a invocada exceção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, por falta de causa de pedir, com consequente absolvição da Ré da instância.

                                                           *

A Autora interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
1- Decisão surpresa é aquela que comporta uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever, quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado no processo.
2- O conhecimento oficioso, pelo juiz, da nulidade de todo o processado por ineptidão da petição inicial, após a pronuncia do tribunal sobre tal matéria de direito -decisiva para a sorte do pleito -, constituiu uma decisão surpresa, que ofende o princípio consignado no Art° 3°, n° 3 do Código de Processo Civil.
3- A decisão a quo é um caso flagrante de violação do princípio do máximo aproveitamento dos atos processuais que conforma o nosso processo civil - apesar de tal princípio não constar expressamente de nenhum artigo do Código de Processo Civil, são vários os seus afloramentos, por exemplo:
Arts.º 6º, nº 2, 195º, nº 2, 595º, nºs 2, 3 e 4, 614º, e 615º, todos do Código de Processo Civil.
4- Nos presentes autos veio a Ré invocar a excepção de ineptidão da petição inicial. A tal propósito, em 22/11/2022, Ref.ª Citius 101966259, pronunciou-se o tribunal no sentido da improcedência de tal alegação atenta a impugnação e a dedução de reconvenção por parte da Ré, revelando ter correctamente interpretado a petição apresentada.
5- Deste modo, o referido despacho aplicou o estatuído no n.º 3 do Artigo 186 do CPC.
6- O referido despacho não foi sujeito a qualquer reclamação ou recurso, cristalizando-se na Ordem Jurídica, formando caso julgado.
7- Acontece, porém, que veio o tribunal em decisão final entender que procede a excepção dilatória invocada pela Ré. Deste modo, a decisão agora em crise declarou verificar-se a ineptidão da petição inicial, declarando nulo todo o processado e absolvendo da instância a Ré.
8- Tal decisão viola a autoridade do caso julgado, uma vez que não acata a decisão proferida em momento anterior (em 22/11/2022, Ref.ª Citius 101966259), e que é vinculativa.
9- O transito em julgado, conforme decorre claramente do art. 628º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insuscetível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário. Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
10- Ao proferir decisão onde concede provimento à alegação da verificação da excepção de ineptidão da petição inicial, depois de já ter sido proferido despacho que decidiu pelo não provimento, o tribunal deixa de respeitar o que já tinha sido decidido e que já havia transitado em julgado, violando o disposto no artigo 613º, nº 1, 2 e 3 do CPC, lesando o principio da expetativa das partes que confiaram no que pelos despachos fora já decidido, devendo, pois, o Tribunal da Relação dar acolhimento ao disposto no artigo 620º, nº 1 do CPC.
11- A razão de ser do caso julgado reside precisamente na necessidade de impedir que o tribunal contrarie ou contradiga uma decisão anterior, que foi o que veio a acontecer nos presentes autos, quando o tribunal vem proferir a decisão agora recorrida.
12- Existe violação do caso julgado formal, previsto no art. 620º, do Código de Processo Civil, quando o Tribunal, no mesmo processo, com as mesmas partes e reportando-se aos mesmos factos, verificados e atendidos já na primeira decisão, volta a decidir a mesma questão, nesse mesmo contexto processual, de forma diversa.
13- Assim, não podia o tribunal vir proferir decisão contrariando um anterior despacho proferido em 22-11-2022 e já transitado em julgado, sob pena de violação do caso julgado, o que claramente aconteceu nos presentes autos.
14- Pelo que ao decidir como decidiu, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 580º, 581.º e 613º, ambos do CPC.
15- Acresce que, mesmo aceitando-se a existência de deficiência na elaboração da petição inicial (e do Articulado de aperfeiçoamento), o que só por mera cautela de patrocínio se concede, a Ré percebeu perfeitamente qual o alcance do peticionado pela Autora.
16- Basta a mera leitura da contestação/Reconvenção da Ré para se perceber o alcance do seu conhecimento, para cujo teor se remete expressamente.
17- A tal propósito cumpre analisar a Lei, chamando-se à colação o Art. 186. °, n.° 3, do Código de Processo Civil,
18- Ora, no caso concreto, a Autora/recorrente alegou sucintamente os factos que fundamentam a sua pretensão, isto é, os factos de que afirma derivar o seu crédito sobre a ré.
19- E a verdade é que a autora alegou ser uma sociedade comercial que se dedica à atividade de construção civil e que celebrou com a Ré – na sequencia de orçamento para construção de moradia - contrato de fornecimento e execução de serviços de construção civil, na sequência do qual foi emitindo faturas conforme iam sendo incorporados os materiais e serviços na referida obra, sendo que ficou em falta o pagamento da ultima fatura no montante de € 22.629,54. A Ré, não obstante ter sido interpelada por forma a proceder ao pagamento do montante em dívida não liquidou a referida fatura.
20- Daí não se poder falar de falta absoluta de causa de pedir, e só esta poderia conduzir à ineptidão da petição inicial, sendo que a Ré impugnou e reconveio, demonstrando ter compreendido o pedido a Autora.
21- Ao decidir como decidiu, não aplicando a lei, o Tribunal a quo violou o Art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil
22- Ainda que o tribunal não tivesse pronunciado como se pronunciou acerca da alegada ineptidão da p.i. (em 22/11/2022, Ref.ª Citius 101966259), certo é que, houve Despacho Saneador (em 28/01/2023, Ref.ª Citius 102548785), e nesse sentido, está precludido a possibilidade de conhecimento posterior da referida excepção de ineptidão da petição inicial.
23- Ao pronunciar-se, como o fez o tribunal violou o disposto no n.º 2 do Artigo 200 do Código de Processo Civil.
24- Em síntese: não há ineptidão da petição inicial, mas se existir essa matéria, já há muito foi julgada e transitou em julgado; se mesmo assim for este Colendo Tribunal decidir pela ineptidão, o Venerando Tribunal a quo deveria ter notificado a Autora para corrigir a petição inicial e se pronunciar quanto à exceção; e, por último, mesmo que se entenda a ineptidão da petição inicial de tal modo grave e insanável, nos termos do Art. 186.°, n.° 3, do Código de Processo Civil, a mesma terá de se considerar sempre e forçosamente sanada
25- A decisão proferida a 20/09/2023, Ref.ª Citius 104751328, pelo Juízo Central Cível ... – Juiz ... viola o disposto nos Artigos 580, 581, 613, 186 n.º 3 e 200 n.º 2, todos do Código Processo Civil e, como tal deverá considerar-se nula.
Conclui pela procedência do recurso.

A Ré apresentou resposta, concluindo pela seguinte forma:
1. Na sentença judicial posta em causa pela recorrente foi julgada verificada a invocada excepção dilatória de nulidade de todo o processo por ineptidão inicial, por falta de causa de pedir, com consequente absolvição da R. da instância.
2. Somos da opinião que o recurso interposto carece de fundamento e de razões concretas e objectivamente válidas que importem a anulação do julgado,
3. Cinge-se a questão objecto das alegações de recurso apresentadas pela A., aqui recorrente, à eventual nulidade do douto Saneador-Sentença proferido pelo Tribunal “a quo”, com referência 104751328.
4. Alega a recorrente que foi objecto de uma decisão surpresa, tanto mais que nos autos já havia ocorrido a pronuncia sobre a alegada excepção dilatória de ineptidão da petição por inexistência de causa de pedir.
5. Refere a recorrente que tal pronuncia recaiu no despacho datado de 22/11/2022, com ref. Citius 101966259, e que aqui se dá por reproduzida.
6. Lendo o aludido douto despacho conclui-se, sem margem para duvidas que, o pronunciamento sobre tal temática, processual foi meramente genérico.
7. Ou seja, lendo o referido despacho, secundado por meros dois parágrafos.
8. É o próprio Tribunal “a quo” que, por iniciativa sua, convida a. a aperfeiçoar a sua petição inicial de forma objectiva e concreta, aperfeiçoamento esse assente na alegação de factos essenciais que constituem a causa de pedir, mais tendo advertido que a remissão de factos essenciais para documentos corresponderia à não alegação desses factos.
9. Ou seja, se duvidas houvessem que a pronuncia quanto à ineptidão da causa de pedir havia sido genérica, as mesmas teriam sido dissipadas, porquanto é o próprio Tribunal “a quo” que convida a. a apresentar a sua petição inicial aperfeiçoada, com assento tónico e decisivo na necessidade de se terem que concretizar os factos essenciais da mesma (causa de pedir).
10. Já a ora R., em cumprimento do contraditório, voltou a defender-se por excepção, pugnando pela ineptidão da petição inicial.
11. Posto isto, é consabido que a decisão, em sede de despacho saneador, que tenha por objecto a ineptidão da petição inicial, só forma caso julgado formal se tiver havido pronunciamento concreto e específico; inversamente, não forma caso julgado se o pronunciamento for de carácter genérico.
12. Ora, foi exactamente o que ocorreu nos presentes autos, conforme acima se verteu.
13. A este propósito já se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 14-07-2021, no processo 56347/19.8YIPRT.P1.S1 e acessível em www.dgsi.pt.
14. Em conclusão, o douto despacho datado de 22/11/2022, com ref. citius 101966259, não formou caso julgado, e, como tal, o Tribunal “a quo” poderia ter-se pronunciado e julgado verificada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial não tendo, por isso, violado qualquer norma ou comando jurídico.
15. Num segundo segmento das suas alegações de recurso, vem a A. e recorrente confirmar que deu cumprimento ao aperfeiçoamento da sua petição inicial, conforme o douto despacho de 27/11/2022 (que a mesma alega já ter transitado em julgado), mais pugnando pela nulidade do Douto Saneador/Sentença por violação do artigo 186º, nº3 do CPC e que a mencionada petição inicial não era inepta, pois havia observado a menção aos factos essenciais.
16. Todavia, também aqui não poderemos concordar com o exposto pela recorrente já que, não se tendo formado o supra mencionado caso julgado, nenhuma norma processual o Juiz “a quo” violou, tanto mais que o mesmo se pronunciou quanto à suscitada questão de ineptidão da petição inicial de forma concreta e específica.
17. Posto isto, e sem prescindir, ainda se dirá que a ora R. apelada louva-se na cuidada e igualmente meticulosa fundamentação do Tribunal “a quo”, a qual, de forma absolutamente lúcida e dotada de uma clareza expositiva ímpar, arrepia o alegado pela Apelante em sede de recurso.
18. De facto e em boa verdade, a Apelante limita-se a discordar do sentido e interpretação levada a efeito pelo Tribunal “a quo”, mas tal não constitui em si qualquer erro ou a violação de qualquer preceito processual.
19. Em suma, falecem in tottum as razões aventadas pela Apelante, não devendo ser concedido provimento ao recurso na exacta medida em que a sentença não merece a censura ou o reparo que a Recorrente lhe aponta.
Conclui pela improcedência do recurso.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, as questões a apreciar são:
O tribunal recorrido podia, depois de ter proferido a decisão de 22.11.2022, em que não julgou verificada a exceção dilatória da nulidade do processo por ineptidão da p. inicial, ter proferido o despacho recorrido em que declarou inepto aquele mesmo articulado?

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2. Os factos
Os factos a considerar para a decisão deste recurso são os acima relatados.

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3. O direito aplicável
O recurso interposto visa a decisão que, julgando inepta a p. inicial, contrariou a decisão anteriormente proferida que tinha julgado a mesma questão em sentido oposto, ou seja, que não se verificava a exceção dilatória da nulidade do processo por ineptidão da p. inicial.
O recorrente defende que a decisão proferida viola o caso julgado formado pela anterior que decidiu em sentido oposto.
A Ré, pugnando pelo bem fundado da decisão recorrida, defende que a decisão anterior não formou caso julgado porquanto não contem em si um pronunciamento específico sobre a questão, limitando-se a um pronunciamento genérico.
Vejamos:
Dispõe o art.º 595º, n.º 3, do C. P. Civil:
1 - O despacho saneador destina-se a:
a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
...
3 - No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença.
...
Da leitura do despacho proferido em 22.11.2022, acima transcrito, conclui-se, sem qualquer esforço, que o mesmo não encerra em si qualquer declaração genérica, porquanto apreciou concreta e detalhadamente a petição inicial para aferir da sua possível ineptidão por falta de causa de pedir, o que manifesto no seguinte trecho:
Constatamos pela leitura da petição inicial que a Autora invoca como causa de pedir a prestação de serviços de empreitada, com a incorporação de materiais discriminados em facturas, encontrando-se uma das facturas por pagar.
Por outro lado, a Ré não só impugna o pedido apresentado, como também deduz reconvenção, alegando má execução dos trabalhos realizados pela Autora e cujo pagamento peticiona, revelando dessa forma ter interpretado correctamente a petição apresentada.
Improcede, assim, a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial por inexistência de causa de pedir.
A ineptidão da petição inicial gera a nulidade do processado, a qual deve ser oficiosamente conhecida no despacho saneador se não o foi em momento anterior. A decisão, em sede de despacho saneador, de tal matéria, forma caso julgado formal se tiver havido pronunciamento concreto e específico; inversamente, não forma caso julgado se o pronunciamento for de carácter genérico.[1]
No entanto, e apesar, do tribunal, em momento anterior à prolação da decisão recorrida, ter proferido decisão que julgou improcedente a exceção dilatória da nulidade do processo por ineptidão da p. inicial, a mesma não formou caso julgado formal quanto à questão concretamente apreciada, pois até ao momento em que foi interposto este recurso aquela ainda era suscetível de ser impugnada. Assim, a decisão proferida em primeiro lugar não era passível de apelação autónoma – art.º 644º, n.º 2 e n.º 3, do C. p. Civil -, só podendo ser impugnada no recurso que viesse a ser interposto da decisão proferida e prevista no n.º 1 do mesmo preceito, neste caso a agora impugnada, pelo que só com a interposição deste recurso adquiriu a força de caso julgado.
O convite ao aperfeiçoamento da p. inicial à Autora em momento subsequente à decisão que jugou não ocorrer ineptidão da mesma, não encerra a virtualidade que a Ré lhe assaca, pois entre estas duas decisões não existe qualquer contradição, tanto mais que só o julgamento de ineptidão é que inviabiliza a prolação de despacho de aperfeiçoamento.
O singelo facto de ter sido proferida, em 21.11.2022, a decisão que julgou não ocorrer a ineptidão da petição inicial, era impeditivo de nova apreciação da questão que concretamente já tinha apreciado, o que decorre do esgotamento do poder jurisdicional do juiz nos termos do art.º 613º, n.º 1 e 3 do C. P. Civil.
Dispõe o art.º 613º, do C. P. Civil:
1. Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
2. É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes.
3. O disposto nos números anteriores, bem como nos artigos subsequentes, aplica-se, com as necessárias adaptações aos despachos.  
Mantém-se consagrado neste artigo o princípio da extinção do poder jurisdicional quanto à matéria da causa, nos termos do qual o juiz não pode alterar a decisão proferida, incluindo os seus fundamentos. O princípio da extinção do poder jurisdicional justifica-se por uma razão doutrinal – o juiz, ao decidir, cumpre um dever jurisdicional – e por uma razão pragmática – assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional.
Pese embora a sua importância, este princípio não é absoluto, comportando desvios, nomeadamente a retificação de erros materiais, o suprimento de nulidades e o esclarecimento de dúvidas ou a reforma da decisão, entre outros, situações que não ocorrem neste caso.
Mas, tendo, apesar de tudo, sido proferida nova decisão sobre a mesma questão, qual é o vício que a afeta?
A sentença proferida por quem não dispunha de poder jurisdicional para o efeito revela-se inexistente não produzindo quaisquer efeitos jurídicos. [2]
A sentença inexistente é um acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica da sentença. [3]
A decisão proferida pelo juiz revela-se, assim, inexistente, logo incapaz de produzir quaisquer efeitos jurídicos.
A inexistência dessa decisão, proferida em violação do princípio da extinção do poder jurisdicional do juiz consagrado no art.º 613º do C. P. Civil, impedindo a produção pela mesma de quais­quer efeitos jurídicos, determina a procedência do recurso.

                                               *

Decisão:
Nos termos expostos, atendendo à inexistência jurídica da decisão recorrida, determina-se que os autos prossigam a sua tramitação.

                                                           *

Custas do recurso pela Ré.

                                                           *
                                                                                          20.2.2024


[1] Acórdão do S. T. J. de 14.7.2021 relatado por Maria da Graça Trigo e acessível em www.dgsi,pt.
[2] Neste sentido o acórdão do S. T. J. de 6.5.2010, relatado por Álvaro Rodrigues, acessível em www.dgsi.pt e no qual consta:
         Tal falta de jurisdição, repetimos, por se tratar de vício essencial da sentença determinante da invalidade desta, não constitui uma nulidade mas inexistência jurídica da citada decisão proferida pela Relação e da qual o Autor havia reclamado, embora sob a designação de nulidade.
         Na verdade, e de acordo com o ensino dos saudosos Mestres de Lisboa, Professores Paulo Cunha e Castro Mendes, embora o legislador tenha traçado um apertado numerus clausus das nulidades da sentença/acórdão, aplicáveis também, até onde seja possível, aos despachos jurisdicionais ( artº 666º, nº 3), a verdade é que outros vícios podem afectar as decisões judiciais, englobando categorias diferentes, que Castro Mendes classificava como vícios de essência, de formação, de conteúdo, de forma e de limites ( C. Mendes, Direito Processual Civil, edição policopiada da AAFDL, vol. III, 1973, pg 369).
         O preclaro Professor denominava de vícios de essência, aqueles que, atingindo a sentença nas suas qualidades essenciais, a privam até da aparência de acto judicial e dão lugar à sua inexistência jurídica (ibidem).
         O Prof. Paulo Cunha dava vários exemplos de casos de inexistência jurídica de sentenças, sendo um deles, quanto ao que ora nos interessa, o de a sentença ser proferida por quem não tem poder jurisdicional para o fazer e o de, já depois de lavrada a sentença no processo, o Juiz lavrar segunda sentença (Paulo Cunha, Da Marcha do Processo: Processo Comum De Declaração, Tomo II, 2ª edição, pg. 360).

[3] Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Volume V, pág. 113, ed. 1952, Coimbra.