Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
295/13.0TBPNI-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA DOMINGAS SIMÕES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CONTRATO DE MÚTUO
EXEQUIBILIDADE
OBRIGAÇÃO
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LOUSÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: RT.ºS 408.º, N.º 1, IN FINE E ART.º 1142.ºDO CÓDIGO CIVIL E AL.C) DO N.º 1 DO ART.º 46.º DO CPC 1995/1996
Sumário: I. A suficiência do título traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida; numa outra formulação, o título executivo há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda - trata-se do documento capaz de, por si só, revelar, com um grau de razoável segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo.

II. Estando em causa invocados contratos de mútuo -contrato real “quoad constitutionem”, no sentido de que só se completa pela entrega da coisa- a conclusão do próprio contrato e, consequentemente, a vinculação do mutuário à obrigação de restituir, depende da disponibilização pelo mutuante das quantias neles referidas (cfr. art.ºs 408.º, n.º 1, in fine e art.º 1142.º, ambos os preceitos do Código Civil).

III. Se dos escritos particulares subscritos pelo devedor/executado dados à execução não resulta ter sido efectuada a entrega/disponibilização dos montantes alegadamente mutuados, os mesmos não se apresentam como constitutivos/certificativos da obrigação que o credor pretende coactivamente realizar, logo, não se encontram revestidos de força executiva para efeitos do disposto na al.c) do n.º 1 do art.º 46.º do CPC 1995/1996.

III. A possibilidade do exequente fazer prova complementar dos pressupostos processuais específicos de exequibilidade da obrigação, nos termos consagrados no art.º 804.º, disposição com alcance geral, conforme sem dissêndio vem sendo reconhecido, não cobre nem supre a ausência no próprio título da demonstração da obrigação exequenda

Decisão Texto Integral:
I. Relatório

O A..., SA com sede na Rua (...), Funchal, veio instaurar acção executiva comum contra B..., residente no Largo d (...), Peniche, tendo em vista a cobrança coerciva da quantia de €7 547,17 (sete mil, quinhentos e quarenta e sete euros e dezassete cêntimos), dando à execução dois documentos particulares.

Em sede de requerimento executivo alegou, em síntese, ter concedido ao executado um empréstimo no valor de € 6 000,00 nos termos do acordo com ele celebrado e datado de 1/4/2009, data em que lhe foi disponibilizado o aludido montante.

Nos termos do acordo celebrado, a quantia mutuada seria reembolsada ao banco exequente em 84 prestações mensais e sucessivas. Sucede, porém, que a partir de 3 de Março de 2011 o executado deixou de proceder ao pagamento das prestações acordadas, vencendo-se todas as que se encontravam ainda em dívida, ascendendo a dívida de capital ao montante de € 4 879,37, a que acrescem os juros à taxa de 12% e uma sobretaxa de 4%, que liquidou em € 1806,45, sendo ainda devido imposto de selo à taxa em vigor.

Mais alegou ter celebrado com o mesmo executado um segundo contrato de mútuo em 13/1/2010, nos termos do qual lhe concedeu um empréstimo no valor de € 817,69, quantia que foi creditada na conta à ordem do mutuário naquele mesmo dia.

Nos termos contratualmente fixados, o valor mutuado seria reembolsado ao banco exequente em 24 prestações mensais e sucessivas, obrigação que o executado deixou de cumprir a partir de 1/11/2010, vencendo-se todas as prestações, sendo a dívida de capital de €547,09, sobre o qual são devidos juros, que liquidou em €232,76, e imposto de selo à taxa em vigor.

*

Ordenada a penhora do salário do executado, conforme requerido, e citado este, deduziu oposição à execução e à penhora, o que fez com os fundamentos que sinteticamente se alinham:

- os documentos particulares dados à execução pelo banco exequente -dois contratos de crédito pessoal- não satisfazem o requisito da exequibilidade, por deles não resultar a constituição ou reconhecimento da obrigação, uma vez que dos mesmos não consta terem sido efectivamente entregues ao executado as quantias neles mencionadas;

- acresce que, sendo reclamadas quantias para além das prestações alegadamente não pagas, previstas em cláusulas indemnizatórias, como é o caso da sobretaxa de 4%, duvidosa é a sua exigibilidade no âmbito da acção executiva, por não ser certo que o executado tenha tido consciência das mesmas, apesar da sua assinatura no contrato;

- o banco exequente cobra juros sobre juros, ainda para mais sobre prestações que somente se venceriam no futuro, ao abrigo de cláusulas de duvidosa legalidade, posto que, estando-se perante contratos de adesão, vale o princípio “in dubio pro consummatore”;

- trata-se de cláusulas manifestamente abusivas, leoninas, e, nessa medida, nulas, que deveriam ter-se por excluídas dos contratos, nos termos dos art.ºs 8.º, al. c) e 12.º da LCCG (DL 446/85);

- o executado não é responsável pela quantia exequenda e nada deve, porque nada recebeu, desconhecendo a origem da dívida reclamada, já que assinou os contratos a pedido do seu então cônjuge C..., não se tratando de uma dívida comunicável;

- ademais, aquando do divórcio, assumiu aquela C... o pagamento de todos os empréstimos, uma vez que todo o activo do casal lhe foi adjudicado na partilha;

- é em todo o caso questionável a possibilidade de tais créditos terem sido aprovados, atendendo a que ambos os mutuários se encontravam na altura desempregados;

- o executado é ainda parte ilegítima porquanto, constando dos contratos dados à execução como mutuária o então seu cônjuge C..., a execução teria que ter sido instaurada contra ambos.

Com tais fundamentos requereu fosse declarada extinta a execução e levantada a penhora ordenada sobre o seu salário.

Convocando o disposto no art.º 819.º do CPC, requereu ainda a condenação do banco exequente nos termos ali previstos, devendo acrescer-lhe condenação como litigante de má-fé, por ter vindo a juízo deduzir pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar.

*

Notificada a instituição bancária exequente, apresentou contestação, peça na qual defendeu a exequibilidade dos contratos de mútuo dados à execução, por deles decorrer a constituição da obrigação sem necessidade de documentação complementar (ex. extracto de conta). Assim não se entendendo, alegou competir ao executado/oponente a prova de que as quantias neles referidas não foram depositadas em conta dos mutuários, sendo certo que, atentos os princípios da colaboração e cooperação na descoberta e apuramento da verdade, se disponibilizou para apresentar toda a documentação entendida como necessária, desde que devidamente acautelado o seu dever de sigilo bancário, salvo se do mesmo fosse dispensada.

No que concerne à alegação de que estaria em causa a cobrança de juros sobre juros, esclareceu que, tratando-se de mútuo oneroso, é aplicável o disposto no art.º 1147.º do CC, pelo que são devidos os juros acordados, não se verificando qualquer capitalização de juros (cálculo de juros sobre juros).

Mais invocou não estar o executado de boa-fé ao suscitar a questão de eventual falta de consciência na subscrição do contrato, o que sempre consubstanciaria um claro exemplo de “venire contra factum proprium”.

Pugnou ainda pela improcedência da arguida excepção da ilegitimidade passiva, esclarecendo encontrar-se legalmente impedido de demandar a segunda mutuária, por ter sido entretanto declarada insolvente (cf. art.º 88.º do CIRE).

Impugnou por fim a demais factualidade alegada pelo oponente, sublinhando que as quantias mutuadas foram depositadas em conta de que o próprio era titular, sendo irrelevante o que quer que seja que tenha acordado com o seu ex-cônjuge em sede de assunção do passivo do casal.

Refutando a final a imputação como litigante de má-fé, alegou ser o oponente quem afinal litiga com má-fé material e instrumental, não só por saber que não lhe assiste o direito que ajuizou, como pelo mau uso dos meios processuais, concluindo pela improcedência da oposição e condenação daquele em multa a arbitrar de harmonia com o prudente arbítrio do Tribunal e indemnização a seu favor, esta a liquidar a final nos termos do disposto nos art.ºs 456.º n.º 1 e 457.º do C.P.C.).

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Findos os articulados proferiu a Mm.ª juíza a quo despacho saneador, no qual julgou improcedente a arguida excepção dilatória da ilegitimidade passiva e, na consideração de que o processo continha todos os elementos de molde a permitirem a prolação de decisão conscienciosa sobre o mérito, dele passou a conhecer, julgando procedente a oposição por não reconhecer força executiva dos documentos particulares dados à execução, cuja extinção consequentemente determinou.

Inconformado, apelou o banco exequente e, tendo produzido doutas alegações, rematou-as com necessárias conclusões, das quais se extraem, por relevantes, as seguintes:

i. Veio o Tribunal a quo julgar procedente a Oposição à Execução apresentada pelo Recorrido e, em consequência, declarar extinta a execução com o consequente levantamento das penhoras.

ii. A fundamentação da decisão recorrida assentou no entendimento de que dos documentos juntos pela Autora/Recorrente não se extrai que os créditos foram efectivamente concedidos, ou seja, entendeu o Tribunal “a quo” que pela Recorrente não foi junto qualquer suporte documental complementar aos contratos juntos como título executivo, de onde resulte que os mesmos tenham sido efectivamente concluídos.

iii. Concluindo o Tribunal “a quo” que tais documentos não têm força executiva, decidiu pela procedência da oposição à execução determinando, em consequência, a extinção da execução e o inerente levantamento das penhoras.

iv. Ressalvando-se o devido respeito pela opinião do Ilustre Julgador “a quo”, vem a Autora/Recorrente interpor recurso da Sentença proferida, porquanto crê que a sua decisão quanto à matéria de facto não tem qualquer apoio na prova documental produzida, não resultando a sentença da melhor interpretação da matéria assente e, consequentemente, da melhor interpretação da lei ao caso aplicável.

v. Com o devido respeito, entende a aqui Recorrente que andou mal o Tribunal “a quo” quando decidiu pela falta de força executiva dos títulos apresentado à execução, pois que deveria a efectiva conclusão dos contratos ter sido dada como provada, uma vez que dos documentos juntos aos autos ficou inteiramente evidente que os contratos foram aceites, assinados, tendo em consequência, e em simultâneo, sido mutuado o valor solicitado pelo Recorrido.

vi. E, bem assim, se concluindo pela força executiva dos documentos particulares dados à execução, sem necessidade de prova complementar, pois toda a prova produzida aponta em sentido contrário ao decidido, bem como as disposições legais aplicáveis.

vii. Senão vejamos: da simples leitura de ambos os títulos apresentados à execução se conclui que estamos perante dois contratos de mútuo, nomeadamente contratos de crédito pessoal, celebrados entre o mutuante, aqui Recorrente, e os mutuários, sendo um deles aqui Recorrido.

viii. Tais contratos preenchem em toda a sua essência o disposto na redacção anterior da alínea c) do n.º 1 do artigo 46.º do C.P.C., consistindo em documentos particulares, assinados pelos devedores, que importam a constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante é determinado nos termos do anterior artigo 805.º do C.P.C.

ix. Razão pela qual não compreende a aqui Recorrente como pôde vir o Executado arguir a inexistência e/ou inexigibilidade do aqui título executivo, e até o Tribunal “a quo” decidir pela falta de força executiva de tais documentos particulares.

x. Nos presentes autos a obrigação/dívida é, “ab initio”, certa, exigível e líquida, estando reunidos os requisitos da obrigação exequenda.

xi. Toda a execução tem por base um título que, além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objectivos e subjectivos, conforme dispunha o artigo 45.º n.º 1 do C.P.C.

xii. Assim, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 46º do C.P.C, enquadramos os documentos apresentados no requerimento executivo na alínea c) do aludido artigo.

xiii. Além de que, na eventualidade de ser manifesta a falta ou insuficiência do título executivo, o Juiz sempre deverá indeferir liminarmente o requerimento executivo, nos termos do disposto no anterior artigo 812º-E, n.º 1, alínea a) do C. P.C, sendo que nos presentes autos tal não sucedeu, pelo que se conclui pela clara suficiência dos títulos executivos apresentados à execução.

xiv. Não obstante, sempre se dirá que estes títulos executivos negociais particulares têm a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal, consubstanciando-se na assinatura dos devedores, e o segundo pressuposto será de natureza substantiva, ou seja, a referência a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético.

xv. Com efeito, o título executivo apresenta-se como requisito essencial da acção executiva e há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, ou seja, é um documento susceptível de, por si só, revelar, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo.

xvi. Pelo que dúvidas não restam quanto ao facto de tal documento constituir prova do acto constitutivo da dívida, na medida em que nos dá a relativa certeza ou probabilidade julgada suficiente da existência da dívida (a existência da obrigação por ele constituída ou nele certificada).

xvii. Sem prejuízo de no processo executivo se equacionar certa possibilidade de o Executado provar que, apesar do título, a dívida não existe, entenda-se, a obrigação nunca se constituiu, ou foi extinta, ou foi modificada posteriormente. O que nos presentes autos também não se verificou.

xviii. Assim, e em jeito de conclusão, se dirá que os títulos executivos apresentados aos autos são, sem dúvida, o meio probatório da relação obrigacional creditícia existente entre as partes.

xix. Concluindo-se pela sua suficiência para a presente acção executiva, posto que apresentam os requisitos externos de exequibilidade que a lei prevê. Verificados esses requisitos, por reconhecida se tem a exequibilidade, presumindo-se a existência do direito que o título corporiza (a obrigação exequenda tem de constar do título e a sua existência é por ele presumida/o título executivo constitui base da presunção da existência – e titularidade – da obrigação exequenda e não apenas da existência do facto que a constituiu);

xx. Sendo só susceptível de ser afastada pela prova da inexigibilidade ou inexistência do direito, a alegar e provar pelo Executado em oposição à execução. Prova essa que não se apresentou nos presentes autos. Pelo que, da análise dos títulos apresentados à presente execução se demonstra, sem necessidade de outras indagações, tanto o fim como os limites da acção executiva.

xxi. Razão pela qual, e contrariamente ao que sucede quando se dá à execução um Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente, não se exige, perante um Contrato de Mútuo, documentação complementar (ex. extracto de conta).

xxii. Pois o mútuo verifica-se em simultâneo com a assinatura/conclusão do contrato de empréstimo.

xxiii. Ressalvando-se sempre que a lei só previa tal necessidade de junção de prova complementar para os casos do anterior artigo 46.º n.1 b), por força do disposto no artigo 50.º do C.P.C., nos termos da sua redacção anterior. Pois, entende-se, que o Contrato de Mútuo assinado pelo Executado é prova bastante da existência da dívida, cujo valor aqui se peticiona.

xxiv. Caso assim, não se entenda, sempre se dirá que a ser verdade - que não é - que não foram depositadas as quantias objecto dos Contratos de Mútuo celebrados, e aqui títulos dados à execução, sempre se dirá que deveria o Executado ter feito prova do mesmo, pois o ónus de provar pertence-lhe, podendo para o efeito ter junto os extractos à data da celebração e conclusão dos contratos.

Prova que também não se verificou!

xxvi. Porém, equacionando a Recorrente a possibilidade de não ser perfilhado o entendimento supra exposto, o que por mera cautela de patrocínio se considerou, desde logo se disponibilizou a Recorrente, atentos os princípios da colaboração e cooperação na descoberta e apuramento da verdade, a apresentar comprovativo de depósito, devendo para tal ser notificada para o efeito, salvaguardado que estivesse o dever de sigilo bancário.

xxvii. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo fez completa tábua rasa de todo o supra exposto. Ignorando, em particular, a demonstração de cooperação e boa-fé da Recorrente para junção dos comprovativos de depósito aos autos, sendo agora a Recorrente surpreendida com o proferido Saneador-Sentença.

xxviii. Com a entrada em vigor do novo C.P.C., por via da Lei 41/2013 de 26 de Junho, foi consagrado o Princípio da Gestão Processual. Erigiu-se assim um “dever”, cujo destinatário principal é o Juiz. A gestão processual é assumida como um autêntico dever do Juiz, e não como um simples princípio meramente orientador ou programático, exigindo-se ao Juiz uma postura activa na condução do processo e na promoção do seu andamento célere.

xxix. Com efeito, o Juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los.

xxx. Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” desprezou, em toda a sua essência, o presente princípio.

Embora alicerçado em conceitos indeterminados, que têm sempre associadas uma ampla margem de discricionariedade, o dever de gestão processual não pode ser exercitado de forma arbitrária, subordinado que está ao Princípio do Contraditório (artigo 3.º n.º 3 do C.P.C.), como da igualdade das partes (artigo 4.º do C.P.C.).

xxxi. Além de que sempre se dirá que o aludido princípio está balizado pelo próprio fim da sua atribuição, entenda-se, a rápida e justa resolução do litígio, nomeadamente o respeito dos direitos de cada uma das partes. O que, no entender da Recorrente, infelizmente não se viu reflectido na presente decisão.

xxxii. Prevê ainda o artigo 7.º do C.P.C. um princípio que deve presidir a toda a actuação em juízo, entenda-se o Princípio da Cooperação.

xxxiii. Nas palavras do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, “este dever (trata-se, na realidade, de um poder-dever ou dever funcional) desdobra-se, para esse órgão, em dois deveres essenciais: um é o dever de esclarecimento ou de consulta, isto é, o dever de o Tribunal esclarecer junto das partes as eventuais dúvidas que tenha sobre as suas alegações ou posições em juízo, de molde a evitar que a sua decisão tenha por base a falta de esclarecimento de uma situação, e não a verdade sobre ela apurada; o outro é o dever de prevenção ou de informação, ou seja, o dever de o tribunal prevenir as partes sobre eventuais deficiências ou insuficiências das suas alegações ou pedidos e de as informar sobre aspectos de direito ou de facto que por elas não foram considerados (…)”.

xxxiv. Pelo que sempre se dirá que o ónus de prova atribuído a uma das partes não exclui o dever geral de cooperação para a descoberta da verdade que impende sobre todas as pessoas, incluindo as partes na causa, consagrado amplamente no artigo 519.º do C.P.C.

xxxv. Assim, ao abrigo dos princípios do inquisitório e da cooperação devia ter o tribunal a quo, considerando os contratos, aqui títulos executivos juntos aos autos, solicitado à aqui Recorrente os esclarecimentos suplementares sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurassem pertinentes, nomeadamente, o extracto de conta que se disponibilizou a juntar. E, bem assim, ser considerado em sede de audiência de julgamento o depoimento testemunhal das testemunhas arroladas pela Recorrente, bem como o depoimento de parte requerido por esta.

xxxvi. Os princípios enunciados reflectem-se em várias disposições legais, entre elas os artigos 590.º, 591.º, 417.º, entre outras.

xxxvii. Nunca foi a aqui Recorrente notificada para apresentar o comprovativo de depósito e extracto de conta do Recorrido, como em plena demonstração de boa-fé se disponibilizou.

xxxviii. Tem plena consciência a Recorrente que o convite do Juiz para as partes aperfeiçoarem os articulados se trata, no caso do n.º 3 do artigo 590.º do C.P.C., de um despacho de aperfeiçoamento não vinculado, cuja omissão não provoca qualquer nulidade ou sanção.

xxxix. Pois tinha o Juiz em sua disposição a faculdade de convidar a Recorrente a suprir insuficiências ou irregularidades, que assim o Juiz considerasse verificadas. E que, em bom rigor, in casu, se revelavam da maior conveniência de economia de meios e custos, e bem assim, de celeridade processual, eficácia e prontidão na realização da justiça. Bem como se revelava essencial para a boa decisão da causa.

xl. Com efeito, e salvo melhor entendimento, não deveria o Tribunal a quo ter extinto a execução sem que fosse dada a oportunidade à aqui Recorrente de juntar aos autos os documentos que, no entender do Tribunal “a quo”, confeririam força executiva aos títulos executivos juntos.

xli. Mesmo não perfilhando a Recorrente de tal opinião. Pois, como já exposto, os documentos particulares juntos aos autos são títulos bastantes, sendo, sem dúvida, o meio probatório por excelência da relação obrigacional creditícia existente entre as partes.

xlii. Não obstante, se reitera que a Recorrente sempre se disponibilizou para junção dos mesmos, desde que salvaguardado o dever de sigilo bancário. Pois prevê o artigo 78.º do Decreto-Lei 298/92 de 31 de Dezembro, o Dever de Segredo, do qual resulta que estão sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias, não sendo lícito aos mandatários revelar ou utilizar tais informações. Não se enquadrando o caso dos presentes autos em quaisquer das excepções previstas no artigo 79.º do aludido Decreto-lei.

xliii. Razão pela qual não juntou a ora Recorrente o extracto de conta e demais documentos comprovativos da existência da dívida, cujo pagamento aqui se peticiona.

xliv. Pelo que se conclui, com o devido respeito, que o Tribunal “a quo” não devia ter extinto a execução sem que fosse autorizado o levantamento do segredo profissional e, em consequência, notificada a Recorrente para juntar aos autos os demais documentos comprovativos de depósito e extracto de conta.

xlv. Não devendo o Tribunal a quo decidir conforme decidiu e proferiu em saneador-sentença, pois não dispunha no processo de todos os elementos necessários a uma decisão conscienciosa.

xlvi. Pelo que, ao julgar totalmente procedente a oposição, declarando, em consequência, extinta a execução, ordenando o consequente levantamento das penhoras, o respeitável Tribunal “a quo” e, consequentemente, a Sentença ora apelada, violaram o previsto nos artigos 217.º e 342.º do Código Civil, bem como o princípio da apreciação da prova”.

Com os aludidos fundamentos, pretende a revogação da sentença apelada e sua substituição por outra que julgue a oposição improcedente, determinando o prosseguimento da execução.

O executado não contra alegou.

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Questão prévia: delimitação do objecto do recurso

No ponto II das suas alegações, que epigrafou “DOS CONCRETOS PONTOS DE FACTO QUE A APELANTE CONSIDERA INCORRECTAMENTE JULGADOS”, consignou a recorrente entender ter ocorrido erro de julgamento “quando o Tribunal respondeu à matéria de facto da seguinte forma:

Mas dos documentos juntos à execução como título executivo, não se extrai que os créditos foram efectivamente concedidos, nascendo para o executado a respectiva obrigação de restituição.

Sucede que também não é junto qualquer suporte documental complementar aos contratos juntos como título executivo, de cuja análise ressume a conclusão de que a exequente aceitou a concessão desses créditos nos valores de 6.000,00 € e 817,69 € na sequência da verificação da condição imposta, e de que disponibilizou ao executado tais quantias”.

Ora, como é bom de ver, e resulta claro dos termos da alegação, não está em causa a decisão sobre a matéria de facto -a apelante não impugna nenhum dos factos constantes do elenco elaborado pela Mmª juíza “a quo”, inteiramente baseado, aliás, nos documentos que por aquela foram juntos- mas antes as ilações jurídicas que deles retira, o que se inscreve já no domínio da interpretação e aplicação das normas jurídicas. E se é certo que o erro também neste âmbito da interpretação e aplicação do Direito pode ocorrer, estamos fora do domínio da impugnação da matéria de facto, ao contrário do que a epígrafe -da responsabilidade da apelante- indicia.

Deste modo, por não estarmos perante impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, a questão nestes termos suscitada será apreciada aquando do enquadramento jurídico dos factos apurados.,

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Assente que pelo teor das conclusões se define o objecto do recurso, são as seguintes as questões a apreciar:

i. da (in)exequibilidade dos documentos particulares dados à execução;

ii. da violação dos princípios da colaboração e gestão processual.

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II. Fundamentação

De facto

Da 1.ª instância vem assente a seguinte factualidade:

A) Nos autos apensos de execução, foram dados à execução dois contratos de crédito, o primeiro denominado “Crédito Pessoal Revolving - Contrato-Crédito Pessoal”, datado de 1/4/2009, e o segundo denominado de “Crédito Pessoal Mais”, datado de 13/1/2010, conforme consta dos documentos juntos a fls. 3 e 5 dos autos de execução, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B) Tais contratos encontram-se assinados pelo executado, na qualidade de mutuário e titular da conta de depósitos à ordem com o NIB ali identificado, constando dos respectivos formulários manuscritas as quantias de € 6.000,00 € e 817,69 € como “montante concedido”.

C) Do acordo denominado “Crédito Pessoal Revolving” consta ainda a menção da taxa de juro nominal anual fixa de 12%, o prazo de reembolso de 84 meses, sem prazo de carência, vencendo-se cada prestação no dia 1 de cada mês.

D) Estabelece-se na cláusula 1.ª das cláusulas e condições gerais do mesmo “Crédito pessoal revolving”, epigrafada de “Montante e finalidade”, que “O D..., a pedido e no interesse do(s) dos Mutuário(s) e condicionada à entrega de toda a documentação exigida, concede a favor deste(s), um crédito até ao montante e prazo fixado no verso, tendo como objecto o financiamento de necessidades pontuais de consumo”.

Na cláusula 4.ª, epigrafada de “Condições de reembolso”, estipula-se que “Findo o prazo de carência estipulado, o crédito concedido será reembolsado em prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, incluindo os encargos que resultem ou venham a resultar da legislação aplicável (…).

Consoante estabelecido na cláusula 5.ª, intitulada de “Utilização do crédito”, “O crédito será creditado na conta de DO indicada no verso de que o mutuário é titular junto do D...”.

Nos termos da cláusula 14.ª, relativa a mora e vencimento antecipado, estabelece-se que:

“1. Em caso de falta de pagamento de qualquer prestação de juros ou capital, serão devidos pelo mutuário durante a mora, juros à taxa vigente à data do incumprimento, acrescida de uma sobretaxa de 4% a título de cláusula penal.

2. O D... tem ainda o direito de capitalizar os juros remuneratórios e os de mora nos termos da lei.

3. O D... pode, também, optar pelo vencimento de todas as prestações vincendas para cujo pagamento fica autorizado a debitar qualquer conta de Depósitos à Ordem do(s) Mutuários(s) (…) pelo valor total, ou parcial, das prestações em dívida e dos encargos contratualmente convencionados, desde que se encontrem em dívida pelo menos duas prestações sucessivas cujo valor seja superior a 10% do montante total do crédito e desde que o (s) mutuário(s) não regularize(m) os pagamentos em falta no prazo de 15 dias após terem sido interpelados para o efeito.”, tudo conforme consta do documento agora certificado a fls. 196 dos autos, cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

E) Do acordo denominado “Crédito Pessoal Mais” consta ainda a menção à taxa de juro nominal anual fixa de 12%, o prazo de reembolso de 24 meses, sem prazo de carência, vencendo-se cada uma das 24 prestações iguais e sucessivas no dia 1 de cada mês, acrescendo-lhe uma prestação final no valor de €38,49, para um montante total de €945,73 imputado aos mutuários.

F) Estabelece-se na cláusula 1.ª das cláusulas e condições gerais do mesmo “Crédito Pessoal Mais, epigrafada de “Montante e finalidade”, que “O D..., a pedido e no interesse do(s) dos Mutuário(s) e condicionada à entrega de toda a documentação exigida, concede a favor deste(s), um crédito até ao montante e prazo fixado no verso, tendo como objecto o financiamento de necessidades pontuais de consumo”.

Na cláusula 5.ª, epigrafada de “Condições de reembolso”, estipula-se que “Findo o prazo de carência estipulado, o crédito concedido será reembolsado em prestações mensais, iguais e sucessivas de capital e juros, incluindo os encargos que resultem ou venham a resultar da legislação aplicável (…).

Consoante estabelecido na cláusula 6.ª, intitulada de “Utilização do crédito”, “O crédito será creditado na conta de DO indicada no verso de que o mutuário é titular junto do D...”.

Nos termos da cláusula 15.ª, relativa a “mora e vencimento antecipado”, estabelece-se que “1. Em caso de falta de pagamento de qualquer prestação de juros ou capital, serão devidos pelo mutuário durante a mora, juros à taxa vigente à data do incumprimento, acrescida de uma sobretaxa de 4% a título de cláusula penal.

(…)

3. O D... tem ainda o direito de capitalizar os juros remuneratórios e os de mora nos termos da lei.

4. O D... pode, também, optar pelo vencimento de todas as prestações vincendas, para cujo pagamento fica autorizado a debitar qualquer conta de Depósitos à Ordem do(s) Mutuários(s) (…) pelo valor  total, ou parcial, das prestações em dívida e dos encargos contratualmente convencionados, desde que se encontrem em dívida pelo menos duas prestações sucessivas cujo valor seja superior a 10% do montante total do crédito e desde que o (s) mutuário(s) não regularize(m) os pagamentos em falta no prazo de 15 dias após terem sido interpelados para o efeito.”, tudo conforme consta do documento agora certificado a fls. 198 dos autos, cujo teor se dá, quanto ao mais, por reproduzido.

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De Direito

i. da (in)exequibilidade dos documentos particulares dados à execução

Com assento nos factos que vêm de se discriminar, considerou a Mm.ª juíza “a quo”, para o que importa aos termos do presente recurso, que:

“Nos termos da al. c) do nº 1 do art. 46º do CPC anterior à Lei nº 41/2013 de 26 de Junho (aplicável aos presentes autos por força da data de entrada em juízo da execução e do disposto no art. 6º, nº 3 dessa Lei) podem servir de base à execução “os documentos particulares assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto.”

Como resulta do mencionado artigo 46.º, n.º 1, al. c), o título executivo que seja corporizado num documento particular assinado pelo devedor, para o ser, tem de importar a constituição ou o reconhecimento de obrigações pecuniárias.

Do teor dos documentos apresentados como título executivo, resulta que os respectivos formulários se destinam à celebração de dois contratos de crédito pelos quais a exequente concede ao executado crédito até ao montante e prazo neles fixados.

Ora, das cláusulas 1ª, 5ª e 6ª desses contratos resulta que, para além da concessão desse crédito ficar condicionada è entrega por parte dos mutuários de toda a documentação exigida, o montante do empréstimo será creditado na Conta de Depósito à Ordem titulada pelos mutuários.

Mas dos documentos juntos à execução como título executivo não se extrai que os créditos foram efectivamente concedidos, nascendo para o executado a respectiva obrigação de restituição.

Sucede que também não é junto qualquer suporte documental complementar aos contratos juntos como título executivo, de cuja análise ressume a conclusão de que a exequente aceitou a concessão desses créditos nos valores de 6.000,00 € e 817,69 € na sequência da verificação da condição imposta, e de que disponibilizou ao executado tais quantias. Assim, e considerando que dos documentos juntos com o requerimento executivo não se consegue extrair que os contratos tenham sido concluídos, ou, o mesmo é dizer, a constituição ou o reconhecimento da obrigação reclamada, conclui-se que tais documentos não têm força executiva, o que conduz à procedência da oposição à execução.

A procedência da oposição à execução determina a extinção da execução e o inerente levantamento das penhoras, ficando pois prejudicada a apreciação do mérito da oposição à penhora”.

Tal argumentação é, como vimos, refutada pela recorrente com os fundamentos que se deixaram alinhados.

Vejamos então da razão que lhe assiste (ou não).

Previamente, assentemos, o que não vem questionado, rege-se a presente oposição pelo CPC anterior ao agora em vigor e aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de Junho (cf. art.º 6.º, n.º 4, deste diploma), pelo que àquela compilação pertencerão as disposições que, sem menção da sua origem, vierem a ser citadas.

Não se questiona que “a acção executiva pressupõe a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui na acção executiva o seu ponto de partida”[1]. Vale isto por dizer que a pretensão material está “acertada”, no sentido de sobre ela não dever ter lugar mais nenhuma controvérsia no processo executivo. E é porque o título executivo contém esse acertamento que dele se diz constituir a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da acção executiva» (art.º 45.º-1), isto é, o tipo de acção e o seu objecto, assim como a legitimidade activa e passiva para ela” e, sem prejuízo de poder ter que ser complementado (art.ºs 803.º a 805.º), em face dele se verificando se a obrigação é certa, líquida e exigível (art.º 802.º)[2].

O art.º 46.º, n.º 1 al. c) emergente da Revisão de 95/96, dando expressão à proclamada intenção do legislador de alargar o elenco dos títulos executivos[3], veio conferir exequibilidade aos documentos particulares assinados pelo devedor, constitutivos ou recognitivos de obrigação, ou seja, tanto era título executivo aquele mediante o qual se formalizava a constituição de uma obrigação, como aquele no qual o devedor reconhecia uma dívida pré existente. Requisito de fundo comum a ambos: exigia-se, para o que aqui releva, que deles constasse a obrigação de pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético.

A afirmação, constante da sentença apelada, de que o título é condição necessária e imprescindível à instauração da acção executiva não oferece reserva, uma vez que, efectivamente, não há execução sem título. Já quanto à configuração do título como condição suficiente da acção executiva, trata-se de afirmação sem valor absoluto, ainda quando interpretada no sentido de dispensar “qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere”[4]. Com efeito, se daqui decorreria, parece, a impossibilidade do juiz não poder conhecer oficiosamente da desconformidade entre o título e o direito que se pretende executar, tal afirmação sofre ampla excepção, nomeadamente no que se reporta aos títulos negociais de que aqui nos ocupamos.

Na verdade, a desconformidade manifesta entre o título e o direito que se pretende fazer valer e, bem assim, a ocorrência de factos modificativos ou extintivos posteriores à execução, devem ser conhecidas pelo juiz “desde que a sua causa seja, também ela, de conhecimento oficioso e resulte do próprio título, do requerimento inicial de execução, da acção de oposição à execução ou de facto notório ou conhecido pelo juiz em virtude do exercício das suas funções”[5]. E se estamos perante fundamentos que conduziriam ao indeferimento liminar do requerimento executivo (cf. art.º 812.º-E, n.º 1, al. c)), não o tendo feito, poderá ainda o juiz rejeitar a execução em momento posterior, extinguindo-a, fazendo uso do(s) aludido(s) fundamentos(s), ainda que em oposição à execução movida com fundamento diverso[6].

Do que vem de se dizer resulta desde logo o infundado da argumentação da apelante quando pretende que, não tendo ocorrido indeferimento liminar, vedado estava ao tribunal decretar a extinção da execução com algum dos fundamentos previstos no art.º 812.º-E. Com efeito, a circunstância do requerimento executivo ter ultrapassado o despacho liminar não é preclusivo do conhecimento pelo Tribunal das causas que poderiam ter conduzido ao indeferimento, naquela que cremos ser a melhor interpretação do disposto no art.º 820.º.[7] E isto é tanto mais verdadeiro quando, como ocorreu no caso em apreço, não houver lugar a despacho liminar.

Tendo presente quanto se deixou referido, assentemos em que a suficiência do título traduz a exigência de que a obrigação exequenda dele conste, sem necessidade de indagação, sendo a sua existência por ele presumida. Numa outra formulação, o título executivo há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda; trata-se do documento capaz de, por si só, revelar, com um grau de razoável segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, isto sem prejuízo da possibilidade do executado fazer prova de que, apesar do título, a dívida não existe -ou porque a obrigação, apesar da aparência, nunca se chegou a constituir, ou porque se extinguiu ou modificou, assim contrariando a aparência do direito que resulta do título.

Por assim ser, o assim denominado “princípio da auto-suficiência do título executivo obriga a alguma cautela e ponderação na análise de quais os documentos particulares, assinados pelo devedor, que são susceptíveis de preencher os requisitos da al. c) do n.º 1 do preceito -parecendo indispensável que- devendo a constituição ou reconhecimento da dívida exequenda resultar directamente do título, tal documento -podendo ser complexo- não pode resultar de uma aleatória conjugação de diversos documentos particulares”[8]. Isto se diz sem prejuízo da possibilidade do exequente fazer prova complementar dos pressupostos processuais específicos de exequibilidade da obrigação, nos termos consagrados no art.º 804.º, disposição com alcance geral, conforme sem dissêndio vem sendo reconhecido[9]. Todavia, sublinha-se, o que esta actividade probatória complementar não pode suprir é a ausência no próprio título da demonstração da obrigação exequenda. O que é o caso dos autos, conforme correctamente se considerou na decisão apelada, pois, na verdade, os documentos particulares dados à execução não espelham, por si, a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação por banda do executado oponente[10].

Estando em causa invocados contratos de mútuo, a conclusão do próprio contrato e, consequentemente, a vinculação do mutuário à obrigação de restituir, depende da disponibilização pelo mutuante das quantias neles referidas –cfr. art.ºs 408.º, n.º 1, in fine e art.º 1142.º, ambos os preceitos do Código Civil. Trata-se de contrato real “quoad constitutionem”, no sentido de que só se completa pela entrega da coisa[11] que, deste modo, teria que constar do próprio título, o que não ocorre.

Ademais, conforme a Mm.ª juíza “a quo” não deixou de assinalar, nos termos da cláusula 1.ª, comum a ambos os contratos, a disponibilização do montante a mutuar estava dependente de uma condição -entrega da documentação exigida pelo banco- que não se sabe se se verificou ou não. E note-se que não estamos aqui perante uma condição de exigibilidade, suprível mediante prova complementar nos termos do antes citado art.º 804.º, porquanto, de tal condição, como se vê dos termos da referida cláusula, dependia a própria conclusão do contrato, ou seja, a constituição da obrigação exequenda[12]. Sublinha-se que não se está a afirmar que o executado não seja devedor das quantias reclamadas; antes o que se reitera, na esteira do decidido na sentença apelada, é que os documentos particulares dados à execução não se encontram dotados de exequibilidade, por ser patente à mera inspecção a inexistência de factos constitutivos da obrigação exequenda (cf. al. c) do n.º 1 do art.º 812.º-E do CPC).

Do que vem de se dizer logo resulta laborar a apelante em erro quando defende competir ao apelado a prova de que nenhuma quantia lhe havia sido disponibilizada; tal ónus só haveria de recair sobre o executado se do título resultasse a aparência da constituição da obrigação de restituir. Ora, se a entrega/disponibilização do montante alegadamente mutuado não resulta do título, nada terá o executado de provar, pela razão fundamental do documento dado à execução não se apresentar como constitutivo/certificativo da obrigação que o credor pretende coactivamente realizar.

Acresce que a instituição bancária exequente veio reclamar o montante relativo às prestações vincendas, acrescidas de indemnização moratória, quando, na verdade, quer o vencimento antecipado, quer a constituição desta última estavam dependentes da interpelação prevista nas cláusulas atinentes à mora e vencimento antecipado que se deixaram transcritas, factos estes que nem sequer alegados foram em sede de requerimento executivo. A este propósito, aliás, conforme se observou já “(Q)uando a relação jurídica entra numa fase patológica, como acontece em situações de incumprimento contratual em que, a par da resolução do contrato, se constitui o direito de indemnização, a obrigação sucedânea é qualitativa e quantitativamente diversa da obrigação primária, exigindo maiores indagações que, em regra, não se satisfazem com a junção do documento que titulava o contrato, nem com a alegação dos factos em que se funda a resolução contratual.

Ainda que os pressupostos abstractos da obrigação de indemnização decorrente da resolução se encontrem inseridos no contrato, a sua concretização exige a alegação e prova de factos, retirando à documentação apresentada o grau de certeza e de segurança próprios do título executivo.

Porque a acção executiva não constitui o instrumento adequado à definição de direitos, privilegiando-se a actividade conducente ao cumprimento coercivo das obrigações, em vez de o credor avançar de imediato para a acção executiva, deve antes optar pela propositura de acção declarativa em que em processo contraditório e de natureza cognitiva se poderão apreciar os fundamentos do direito de indemnização e a quantificação do direito de crédito.”[13].

Ora, tendo aqui plena aplicação tais considerandos, verifica-se que também em relação às quantias reclamadas decorrentes da aplicação das cláusulas penais indemnizatórias, os contratos juntos não satisfazem o assinalado requisito da suficiência ou, mais expressivamente, não constituem título executivo bastante.

À guisa de conclusão, dir-se-á que, fundando-se a execução em causa em documentos particulares que consubstanciam títulos negociais, sendo patente, face aos elementos constantes dos autos, que os mesmos não fazem prova bastante da existência da obrigação exequenda, estamos perante título manifestamente insuficiente, o que, sendo causa de indeferimento liminar do requerimento executivo pode, nesta fase, conduzir à extinção da execução (cfr. art.ºs 812.º-E, n.º 1, als. a) e c) e art.º 820.º do CPC). Improcedem, portanto, as conclusões aqui enunciadas de i. a xxv.

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ii. Da violação dos deveres de cooperação e de gestão processual

Nas derradeiras conclusões, assaca a apelante à decisão apelada violação dos princípios da cooperação e dever de gestão processual, pretendendo que lhe deveria ter sido dada oportunidade de proceder à junção dos documentos comprovativos da transferência para a conta dos mutuários das quantias mutuadas, conforme sempre se disponibilizou, desde que dispensada do sigilo bancário, que entende vedar-lhe tal conduta.

Pois bem, sendo, a nosso ver, correctos, todos os considerandos expendidos a propósito dos assinalados deveres que impendem sobre as partes e o juiz, a verdade é que a falta ou insuficiência do título executivo, conforme a apelante não desconhece, não são passíveis de suprimento através da prova complementar permitida nos termos do art.º 804.º, pelo que a formulação de tal convite redundaria na prática de um acto inútil e, nessa medida, não permitido (cf. art.º 137.º).

Por último, dir-se-á que tendo a Mm.ª juiz conhecido de excepção que havia sido invocada pelo executado na oposição deduzida e debatida nos autos, o conhecimento antecipado do mérito não violou o princípio do contraditório, antes se impondo à luz do art.º 510.º, n.º 1, al. b) e n.º 3, parte final, do CPC.

Nestes termos, improcedendo todos os argumentos recursivos, impõe-se a confirmação da decisão apelada.

      *

III. Decisão

Em face a todo o exposto, acordam os juízes da 1.ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso, mantendo a sentença apelada.

Custas pela apelante.

Maria Domingas Simões (Relatora)

Nunes Ribeiro

Hélder Almeida

[1] Prof. Lebre de Freitas, “A Acção Executiva, Depois da reforma da reforma”, 5.ª Ed., Coimbra Editora, pág. 20.

[2] Prof. e ob. citados, págs. 35/36.

[3] A tal avanço correspondeu agora inevitável simétrico recuo, com a retirada de exequibilidade aos documentos particulares, qualquer que seja a obrigação que titulem (com ressalva dos títulos de crédito). Tal retorno à antiga solução assentou na constatação de que a adoptada “implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório”, de maneira que “(…) a discussão não havida na acção declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acaba(va) por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução” –cf. a Exposição de Motivos da proposta de Lei n.º 113/XII. Tal efeito, que, de resto, aparentemente apenas o legislador não previu, era uma consequência mais ou menos inevitável, conforme agora se reconheceu.

[4] Anselmo de Castro, “A acção executiva singular, comum e especial”, Coimbra 1973, pág. 14 citado por Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 71.

[5] Prof. Lebre de Freitas, na obra que vimos seguindo, a pás. 73.

[6] Ibidem.

[7] Cf. ainda Ex.mº Sr. C.º Lopes do Rego, Comentários ao Código do Processo Civil volume II, pág. 44.

[8] Assim advertia já o Ex.mº Sr. Conselheiro Lopes do Rego no seu Comentários…, vol. I, pág. 83.

[9] Prof. Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 94 e na jurisprudência arestos

[10] Assinale-se, neste contexto, não serem rigorosas as afirmações contidas nas conclusões vii. e viii., pois, inversamente, o que a simples leitura de ambos os títulos apresentados à execução revela é precisamente a falta de conclusão dos dois contratos de mútuo.

[11] Profs. Pires de Lima e A. Varela, CC anotado, comentário ao art.º 1142.º.

[12] Diferente seria se estivéssemos perante eventual contrato de abertura de crédito -este de natureza pessoal-, caso em que a obrigação de restituição, estando dependente da disponibilização da quantia mutuada, nasce da celebração do contrato mas não é constitutiva dele. Por assim ser, ainda que não constasse do título a realização, pelo exequente, da sua obrigação de entrega/disponibilização da quantia reclamada, consubstanciando a falta de um pressuposto específico da obrigação exequenda, no caso a liquidez, poderia tal omissão ser suprida com recurso a prova complementar, nos termos do art.º 804.º, desde que, obviamente, não implicasse a valorização de elementos que extravasassem do próprio título.

[13] Ac. da Relação de Lisboa de 27/6/2007, processo n.º 5194/2007-7, acessível em www.dgsi.pt. Trata-se de entendimento que vem sendo acolhido uniformemente pelos nossos Tribunais –cf. aresto da Relação de Coimbra de 12/11/2013, processo n.º 3381/12.0 TJCBR.C1 e da relação de Lisboa de 10/10/2013, processo n.º 12869/10.6 T2SNT.L1 e de 5/6/2014, processo n.º 1085/13.5 TBALM.L1,6, no mesmo site, destacando-se deste último o sumário:

- Se o exequente dá à execução, como título executivo, um contrato escrito de mútuo no âmbito do disposto no art.º 46.º, n.º 1, al.ª c), do CPCiv. revogado (versão decorrente do DLei n.º 226/08, de 20-11), mas alicerça o pedido e a causa de pedir exequendos em incumprimento definitivo do contrato pelo mutuário, consequente resolução e indemnização por responsabilidade contratual, com tal pedido a ascender a mais do dobro da quantia indicada como mutuada, o plano a considerar não é o da mera averiguação de factos que pudessem extrair-se da simples leitura do contrato, visto como título executivo.

2- Sempre teria, em tal caso, de aferir-se dos pressupostos de tais incumprimento definitivo, resolução do contrato e responsabilidade contratual com fixação da respectiva indemnização.

3. - Matéria que só em prévia acção declarativa condenatória poderia ser ajuizada – o direito de crédito indemnizatório decorrente de responsabilidade civil tem de ser judicialmente reconhecido, em sede declarativa, por via da verificação do ilícito contratual, do dano e do nexo de causalidade entre este e aquele.

4. - Justifica-se, nesse caso, por falta manifesta de título executivo, o indeferimento liminar do requerimento executivo e não o seu aperfeiçoamento”.