Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
243/06.3TBFND-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: INTERPRETAÇÃO
SENTENÇA
OBRIGAÇÃO
JANELAS
FORMA
CUMPRIMENTO
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 9º, 236º E 238º DO C.CIV.
Sumário: I – Na interpretação de uma decisão judicial que formou caso julgado material convergem aspectos respeitantes à interpretação das leis (artigo 9º do CC) e à interpretação dos negócios jurídicos (artigos 236º e 238º do CC).

II – Não correspondendo a decisão judicial a um verdadeiro negócio jurídico (a referência a este neste quadro decorre da remissão do artigo 295º do CC), não se traduz ela (a decisão judicial) numa declaração pessoal de vontade do julgador, que possa ser entendida na base da determinação de um propósito subjectivo, assente numa determinada expressão verbal descontextualizada da fundamentação.

III – A decisão vale, pois, objectivamente, enquanto ponto de chegada de um percurso guiado pela causa de pedir e pela fundamentação jurídica que, com base naquela, justificou essa decisão.

IV – A injunção comportamental expressa na obrigação de fechar e tapar determinadas janelas, judicialmente imposta a um proprietário de um prédio vizinho do dos AA., assente na irregularidade da abertura dessas janelas, face ao disposto no artigo 1360º, nº 1 do CC, basta-se, em matéria de cumprimento dessa obrigação, com o fechar e tapar, com carácter permanente, a abertura traduzida nessas janelas, não carecendo o cumprimento dessa obrigação, adicionalmente, de qualquer recomposição da parede onde existiam essas janelas, eliminando vestígios das mesmas que não correspondam a qualquer tipo de abertura.

V – A proibição de devassa do prédio vizinho através de janelas (de aberturas que excedam os limites fixados no artigo 1363º, nº 1 do CC), enquanto fim visado pelo nº 1 do artigo 1360º do CC, conduz à obrigação de eliminação das aberturas correspondentes a essas janelas e não à reposição de uma parede sem vestígios das janelas que tenham sido tapadas.

VI – Assim, referindo-se a Sentença que condena no fecho e tapagem dessas janelas a “refazer a parede”, deve este inciso ser entendido como reportado, tão-só, ao fecho e tapagem das janelas em causa.

VII – Proposta uma execução para prestação de facto, visando refazer a parede em causa, para além do fecho e tapagem das janelas irregularmente abertas, procede a oposição do Executado fundada em já ter sido cumprida a obrigação (o fecho e tapagem das janelas) decorrente da Sentença apresentada como título executivo.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Teve início a instância de oposição à execução da qual emergiu o presente recurso em 23 de Julho de 2008. Refere-se ela a uma execução para prestação de facto [artigo 933º e seguintes do Código de Processo Civil (CPC)], sendo que essa execução havia sido instaurada, por sua vez, em 9 de Maio de 2008[1] pretendendo os Exequentes concretizar, através dela, como explicitaremos na subsequente exposição, a prestação de facto correspondente à eliminação de umas janelas determinada pela Sentença do Círculo Judicial da Covilhã, que transitou em julgado e consta de fls. 204/213 do respectivo processo (constituiu tal acção declarativa de condenação a matriz de todos os outros processos aqui em causa e que viriam a ser apensados a essa acção numa relação sequencial de dependência).

Foi a mencionada execução instaurada por M… e J.. (os AA. no mencionado processo-matriz, posteriormente Exequentes, ocupando no presente contexto a posição de Apelados) contra o Município do ...(R. na acção declarativa – aí condenado a eliminar umas janelas num seu prédio –, Executado, Opoente à execução e, no presente contexto, Apelante).

Na oposição – e é dela, relacionando-a com o que a originou, que aqui importa falar – invocou o Município, enquanto Opoente à pretensão executiva, ter cumprido integralmente, após o trânsito dessa condenação, a injunção comportamental que lhe foi imposta pela Sentença apresentada como título executivo, tapando efectivamente as janelas mandadas suprimir nessa decisão[2], devendo ser julgada extinta pelo cumprimento essa mesma execução.    

            1.1. Os Exequentes, enquanto destinatários da oposição, contestaram, pugnando pela improcedência desta, invocando que a Sentença permanece incumprida pelo Executado, na parte em que o obrigava a refazer a parede do seu prédio que dava para o prédio dos Exequentes, permanecendo nessa parede as janelas – rectius, o que do exterior parecem janelas –, não obstante a colocação de “tapumes” (a expressão é dos Executados) vedando as aberturas correspondentes[3].

            1.2. Teve lugar o julgamento documentado a fls. 92/96, decidindo o Tribunal a oposição através da Sentença de fls. 97/106 – esta constitui a decisão objecto do presente recurso –, julgando-a improcedente, considerando incumprida a Sentença correspondente ao título executivo e, nesse sentido, subsistente o fundamento para a execução.

            1.3. Inconformado com este resultado da oposição, interpôs o Executado Município do ...o presente recurso, recebido – adequadamente recebido, com efeito – a culminar as vicissitudes relatadas na nota 2, supra. Foi, pois, o recurso motivado a fls. 190/207 e rematado com as conclusões que aqui se transcrevem:


“[…]
            [transcrição de fls. 199/207]


II – Fundamentação


            2. Relatadas que estão as circunstâncias que originaram o recurso, importa apreciá-lo. Ora, tratando-se de indicar, enquanto ponto de partida imprescindível, o respectivo âmbito temático, teremos em conta que essa delimitação resulta das conclusões com as quais o Apelante rematou a sua motivação (é o que decorre da conjugação dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 ambos do CPC).

            Os factos a considerar – a matéria de facto provada, como qualifica a Sentença o resultado da dimensão do julgamento que antecedeu e possibilitou a operação subsuntiva – correspondem ao elenco inserido a fls. 99/101, que transcreveremos de seguida:
“[…]
1. Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Fundão a acção de processo ordinário n.º 243/06.3TBFND, na qual foram AA. M… e J… e R. o aqui oponente Município do ....
2. No referido processo foi proferida sentença, no dia 11 de Setembro de 2007, pelo Círculo Judicial da Covilhã, na qual foi decidido que:
Atento todo o exposto e o mais de Direito, decidimos julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenamos o R. Município do ...a:
a) Reconhecer a propriedade dos autores sobre o prédio urbano descrito nos artigos 1.° e 2.° da petição inicial.
b) Proceder imediatamente ao fecho e tapagem das todas as janelas que abriu na parede traseira do prédio urbano referido nos artigos 11.° e 12.° da petição, que confina e deita directamente para o prédio dos AA. referido no artigo 1.° dessa mesma petição, refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas.
c) Indemnizar os autores no montante de €5.000,00, absolvendo-o do restante pedido.
d) Julgar improcedente o pedido reconvencional formulado pelo R/Reconvinte contra os AA.
e) Custas da acção na proporção de 1/5 para a autora e 4/5 para o R., sendo as do pedido reconvencional a suportar pelo réu/reconvinte.
3. Os ali AA. intentaram acção com processo executivo contra a ali R./Reconvinte.
4. É título executivo na referida execução a sentença mencionada em 1.
5. A Executada/oponente já procedeu ao fecho e tapagem das três janelas existentes na parte traseira do prédio urbano de sua propriedade.
6. Os materiais utilizados pela Executa/oponente para fecho e tapagem das janelas foram portadas de madeira fixadas à parte exterior da parede do prédio em questão e a construção no interior de uma parede em duas placas de gesso comercialmente conhecido por pladur fixado no meio das duas placas em estrutura metálica.
7. As obras realizadas pela Executada/oponente impedem totalmente qualquer passagem de ar, luz e vistas.
8. As construções feitas pela Executada/oponente são inamovíveis e permanentes até e a menos que sejam destruídas.
9. A parede que confronta com o prédio dos exequentes era uma parede sólida em pedra.
[…]”
            [transcrição de fls. 99/101]

            Note-se, ainda a respeito dos factos a considerar, a génese documental processual de parte significativa deles, tratando-se em tais casos de descrever incidências processuais de outras instâncias – rectius, de outros processos – directamente conexionadas com a presente oposição e que a antecederam. Sucede que todas essas incidências são acessíveis a esta Relação, expressam-se em documentos consubstanciadores, no contexto em que apareceram, de actos processuais e estão, enfim, perfeitamente assentes, podendo ser convocadas tais incidências na subsequente exposição, mesmo quando o elenco acima transcrito – e assim se justifica esta advertência – as não enuncie directamente. Referimo-nos, por exemplo, ao teor dos articulados da acção declarativa base, na qual se gerou o título executivo – a Sentença –, que determinou a execução para prestação de facto, à qual a Executada deduziu esta oposição; referimo-nos igualmente a outras passagens dessa mesma Sentença, que, para além do trecho decisório acima indicado pelo Tribunal a quo no item 2. do elenco fáctico, possam vir a ser consideradas relevantes na economia expositiva deste Acórdão.

            Assente isto, enunciaremos então o tema deste recurso (já aludido no final da nota 4, supra) como correspondendo à transposição para esta instância da mesma questão apreciada pelo Tribunal a quo, a saber: determinar se a injunção comportamental estabelecida pela Sentença (fechar e tapar as janelas; refazer a parede deixando-a sem aberturas), que os Apelados apresentaram como título executivo, se pode considerar observada (cumprida) através da eliminação das janelas nos termos que os autos documentam esse procedimento pelo R. (que tentámos descrever sem apoio gráfico na mencionada nota 4).

            Neste quadro temático adquire um papel central a interpretação do título executivo, o que aqui corresponde, por encadeamento lógico, à interpretação da própria Sentença. Daí que, na sua essência profunda, seja disso – de como deve ser interpretada uma sentença – que tratará parte significativa do presente recurso.

            2.1. No que aqui nos interessa – que é, chamemos-lhe assim, a questão das janelas e da parede –, a expressão decisória empregue na Sentença proferida a culminar a acção declarativa é a seguinte:
“[...]
[C]ondenamos o R. Município do ...a:
[…]
2. Proceder imediatamente ao fecho e tapagem de todas as janelas que abriu na parede traseira do prédio urbano […] que confina e deita directamente para o prédio dos AA. […] refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas;
[...]”
[transcrição de fls. 213 da acção declarativa, sublinhado e destaque aqui acrescentados]

            Este elemento decisório, que expressou o caso julgado que veio a corresponder ao acertamento do direito dos AA. e se transferiu nessa expressão para o título executivo, fundou-se – e sublinhamos assim um aspecto relevante na economia expositiva deste Acórdão – no seguinte trecho da fundamentação jurídica dessa mesma Sentença:
“[…]
Dos preceitos legais acima referidos resulta que as frestas, seteiras, ou/e óculos para luz têm apenas a função de permitir a entrada de luz e ar. As janelas, aberturas de maiores dimensões, dispõem de um parapeito que permit[e] desfrutar das vistas que elas proporcionam.
Assim, e por força do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 1363º [do CC], no que respeita às frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, o proprietário só pode abri-las livremente no seu prédio, a distância inferior a um metro e meio do prédio vizinho, desde que elas não tenham, numa das suas dimensões, mais de 15 cm e se situem, pelo menos, a 1,80 de altura, a contar do solo ou do piso do compartimento que se destinem a servir. Se tais aberturas tiverem dimensões superiores às legais ou se situarem a uma altura inferior à fixada na lei são irregulares ou ilegais, não se devendo qualificar como janelas, pois não deixam de ser frestas, seteiras e óculos para luz, embora irregulares. E, de acordo com o que consideramos ser a posição mais correcta […], entendemos que a abertura de frestas sem as características indicadas no artigo 1363º, nº 2 pode originar a aquisição, por usucapião, de uma servidão predial, já que o proprietário que abra frestas irregulares excede o âmbito dos poderes contidos no seu direito de propriedade e sujeita o proprietário vizinho a um encargo que não lhe pode ser imposto unilateralmente, Consequentemente a este assiste o direito de exigir que as frestas sejam modificadas, de modo a conformá-las às medidas ou à altura referidas na lei. Se o não fizer – ou seja, se não reagir contra o abuso cometido – a situação possessória daí resultante importará a constituição de uma servidão predial, uma vez decorrido o prazo da usucapião e, constituída esta, cessa aquele direito (o do proprietário vizinho de exigir a modificação das frestas e sua harmonização com a lei), enquanto o dono do prédio dominante adquire o direito, que não tinha até então, de manter essas aberturas em condições irregulares […].
Ora, perante a situação de facto que decorre desta decisão (a parede traseira do prédio adquirido pelo R., que confina com o prédio dos AA., era até às ditas obras de reconstrução uma fachada posterior sem quaisquer aberturas para portas ou janelas que proporcionassem vistas, tendo, até então, apenas uma abertura de pequenas dimensões e vedada em frestas por meio de uma grade, sendo que este procedeu ao alçamento da parede traseira do edifício confinante com o prédio dos AA., tendo com tal obra acrescentado um novo piso ao prédio urbano referido no artigo 9 e nessa mesma parede foram, pelas obras do R. Município, realizadas três novas aberturas com não menos de 60 cm, em qualquer das suas dimensões lineares) haverá que concluir que o R. actuou contra legem na reconstrução do edifício, tendo aberto janelas que não existiam na parede originária, contra a vontade dos AA. E isto porque, basta pensar que agora, de dentro do compartimento a que as ditas janelas ficaram a pertencer, os seus ocupantes podem observar, sem serem vistos, o prédio dos AA. E estes podem, na verdade, sentir-se coibidos de praticar certos actos no seu prédio sabendo que podem estar a ser observados. Haverá, assim, que ordenar o fecho de tais aberturas.
[…]”
            [transcrição de fls. 208/209 da acção declarativa]

            Os concretos factos nessa acção apurados e que suportaram as considerações acabadas de transcrever foram os seguintes (constam eles do elenco da Sentença e a sua leitura facilita-nos aqui a compreensão do problema que se nos coloca):
“[…]
9. A parede traseira do prédio [da R.], que confina com o prédio dos AA., era, até às ditas obras de reconstrução, uma fachada posterior sem quaisquer aberturas para portas ou janelas que proporcionassem vistas, tendo até então apenas uma abertura de pequenas dimensões e vedada em frestas por meio de uma grade.
10. O Município R. procedeu ao alçamento da parede traseira do edifício confinante com o prédio dos AA., tendo com tal obra acrescentado um novo piso ao prédio [da R.].
11. Nessa mesma parede foram pelas obras do R. Município realizadas três novas aberturas com não menos de 60 cm em qualquer das suas dimensões lineares.
[…]”
            [transcrição de fls. 206 da acção declarativa]

            Esgotando a indicação dos elementos relevantes que, na acção declarativa em referência, conduziram ao pronunciamento decisório que viria a formar o caso julgado, cujo sentido aqui importa captar, resta-nos indicar, neste percurso expositivo, os termos em que os AA. (aqui Exequentes e Apelados) haviam caracterizado nessa acção declarativa a causa de pedir e haviam formulado o correspondente pedido (pedido que, no que aqui está em causa, foi acolhido).

            Aí disseram os AA., ora Exequentes – e referimo-nos agora à caracterização da causa de pedir dessa acção[4] –, depois de invocarem a imediata contiguidade do seu prédio com o pertencente ao Município aqui Apelante e a realização por esta entidade autárquica das mencionadas obras no respectivo prédio:
“[…]

14º
A parede traseira [do prédio do R.], que confina com o prédio dos AA., era, até às ditas obras de reconstrução, uma fachada posterior sem quaisquer aberturas para portas ou janelas que proporcionassem vistas, tendo, até então, apenas uma abertura de pequenas dimensões e vedada em frestas por meio de uma grade.
[…]
17º
Nessa mesma parede, foram, pelas ditas obras do R. Município realizadas três novas aberturas com não menos de 60 cm em qualquer das suas dimensões lineares.
[…]
21º
Tais aberturas deitam directamente sobre o prédio dos AA. […] constituindo janelas da parede que confina com aquele prédio e, portanto, aberturas nessa parede sem que entre ela e aquele prédio dos AA. esteja interposto qualquer espaço,
22º
E, além de permitirem a entrada de luz e de ar, quer pela sua dimensão, quer pela sua localização, permitem que se estabeleçam vistas directamente sobre o prédio dos AA.
23º
O que constitui devassa do prédio dos AA. […] e clara e flagrante ofensa do direito de propriedade deles AA., por violação do disposto no artigo 1360º do CC […].
[…]”
            [transcrição de fls. 4/6 da acção declarativa]

            À causa de pedir que os aí AA. assim caracterizaram, veio a corresponder, culminando essa petição inicial, a dedução do seguinte pedido[5] (cuja formulação a Sentença posteriormente acolheu positivamente):
“[…]
[D]eve a presente acção julgar-se procedente por provada e, por via disso, condenar-se o R. a:
[…]
b) Proceder imediatamente ao fecho e tapagem de todas as janelas que abriu na parede traseira do prédio urbano [da R.], que confina e deita directamente para o prédio dos AA. […], refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas;
[…]”
[transcrição de fls. 8 da acção declarativa com sublinhado aqui acrescentado]

            2.1.1. Numa primeira aproximação valorativa à expressão decisória contida na Sentença, posteriormente título executivo, temos, como se disse, uma formulação absolutamente coincidente, no seu trecho final (“[…] refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas […]”), com os termos empregues no pedido. Ora, se a interpretação do sentido da Sentença, enquanto acto comunicacional, se bastasse aqui com o recurso a um elemento gramatical descontextualizado de qualquer outra incidência da situação e, porventura mais que isso, superficialmente determinado, teríamos como adequado o entendimento segundo o qual, além de tapar as janelas (depois de as eliminar como janelas/aberturas) – enfim, para além daquilo que o Apelante já fez –, haveria que, adicionalmente, dar à parede traseira do prédio do Apelante, no espaço confinante com o prédio do Exequente, um aspecto (se preferirmos, uma aparência) no qual não fossem visíveis elementos que, embora não constituíssem janelas, por não corresponderem a qualquer forma de abertura na parede do prédio para o exterior, aparentassem – tão-só aparentassem, sublinha-se – ser “janelas”[6].

            Na prática foi este o entendimento adoptado pela decisão recorrida – o entendimento que antes qualificámos de descontextualizado – quando entendeu que refazer a parede não se esgotava em tapar as aberturas anteriormente correspondentes às três janelas mandadas tapar. Interessa aqui convocar a passagem da decisão recorrida que expressa a ratio decidendi aqui contestada pelo Apelante:
“[…]
As obras realizadas pela executada/oponente impedem totalmente qualquer passagem de ar, luz e vistas. As construções feitas pela executada/oponente são inamovíveis e permanentes até e a menos que sejam destruídas. A parede que confronta com o prédio dos exequentes era uma parede sólida em pedra.
Não há dúvida de que a executada/oponente já procedeu ao fecho das janelas. Mas, cumpre perguntar: refez a parede? A resposta não pode deixar de ser negativa. Com efeito, a parede era toda uma parede sólida em pedra e agora, no local onde a executada/oponente tinha feito as aberturas/janelas colocou portadas de madeira fixadas à parte exterior da parede do prédio em questão e a construção no interior de uma parede em duas placas de gesso comercialmente conhecido por pladur fixado no meio das duas placas em estrutura metálica. Ou seja, continua a verificar-se uma descontinuidade na parede, no local das aberturas/janelas. Aqui não existe parede, antes janelas/aberturas, presentemente fechadas. A decisão é clara e óbvia e não pode ter outra interpretação. Com efeito, se se tratasse apenas do fecho/tapagem das janelas apenas esta obrigação resultaria da condenação.
Mas não é isso que sucede. Com efeito, cumulativamente com esta, foi estabelecida uma outra: a de reconstrução da parede, e isso ainda não foi feito. Trata-se de imposições diferentes: uma diz respeito ao fecho das janelas, a outra refere-se à reconstrução da parede. O dever de fecho/ tapagem das janelas / aberturas não consome o de reconstrução da parede. A parede estará reconstruída quando na mesma não se verificar qualquer sinal de descontinuidade, ou seja, com utilização do mesmo material – em pedra. Repete-se a parede era uma parede sólida toda em pedra e é assim que deve ficar após a reconstrução, nomeadamente, nos locais onde foram feitas as aberturas/janelas.
[…]”
            [transcrição de fls. 180/181]

            Estamos em crer que este entendimento não é adequado à compreensão lógica (obviamente contextualizada) da Sentença e, consequentemente, do título executivo em que esta se veio a tornar. Com efeito, quando, adicionalmente à obrigação de fecho e tapagem das três janelas irregulares, obrigação já cumprida pelo Município[7], se refere na Sentença (na Sentença proferida na acção declarativa) que há que refazer a parede, “[…] por modo a que fique sem quaisquer aberturas […]”, está-se, por decalque da formulação empregue pelos AA. no pedido, a sublinhar ou a repisar, com alguma redundância até, a ideia já expressa com a obrigação de fechar e tapar essas aberturas, introduzindo um elemento discursivo que se não pode destacar – desde logo por falta de um suporte legal autónomo – do que já correspondia ao acto de fechar e de tapar, não se exigindo, por estar já fora da cobertura daquilo que o Tribunal poderia exigir ao R., em função da procedência do pedido dos AA. – é o que entendemos e justificaremos de seguida –, que isso (fechar e tapar as janelas) implicasse ainda destruir elementos que estão situados no prédio do ora Apelante e não são, funcional e juridicamente, janelas (porque não representam qualquer tipo de abertura).

É por isto que entendemos que a decisão apelada, ao acrescentar, no trecho acima transcrito, ao dever de fecho e tapagem das três janelas – sublinha-se, de novo, dever já cumprido pelo Executado – o dever (adicional) de eliminar “qualquer sinal de descontinuidade” na parede em causa, está a extravasar do conteúdo dispositivo da Sentença e está, neste sentido, a colocar no título executivo aquilo que não correspondeu ao acertamento da obrigação por ele propiciado, ultrapassando, pois, a substância dos limites deste título.   

            2.1.1.1. Trata-se aqui, como antes se disse, de interpretar uma Sentença, o pronunciamento judicial decisório por excelência (a categoria dos pronunciamentos judiciais que, visando para além da simples regulação da marcha do processo, actuam sobre a relação material controvertida, moldando-a de determinada forma e, nesse sentido, constituem na sua essência pronunciamentos aptos a produzir o efeito de caso julgado material), operação esta – a interpretação de uma sentença – cujos referenciais podem ser obtidos, no que poderá expressar visões não totalmente coincidentes do acto interpretativo em causa, no quadro das regras de interpretação da lei (artigo 9º do CC) ou no quadro próprio da interpretação dos negócios jurídicos (artigos 236º e 238º, ex vi do artigo 295º, todos do CC)[8].

            Seguindo um ou outro dos caminhos (um ou outro dos referenciais interpretativos) tenderemos a sobrevalorizar aspectos distintos na compreensão do acto decisório judicial. Com efeito, se a referência se construir em torno das regras de “interpretação da lei”, haverá uma preponderância da convocação de elementos de compreensão de pendor objectivo (maxime, do que nesta sede vier a corresponder à ideia de “pensamento legislativo” e demais elementos indicados no nº 1 do artigo 9º do CC). Diversamente, se a construção do modelo interpretativo referido à sentença assentar nas normas que regem a interpretação dos negócios jurídicos, o assento tónico da operação tenderá a deslocar-se algo mais para aspectos de pendor subjectivo, induzidos pela ideia de impressão no destinatário, através da actuação da regra contida no artigo 236º, nº 1 do CC[9].

            No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 522/2006 (Rui Moura Ramos)[10] – e trata-se aqui de fornecer uma referência actuante, na nossa jurisprudência, de uma situação de interpretação de uma decisão judicial – esta questão foi tratada, tomando por base um pronunciamento judicial que, algo ambiguamente, parecia reflectir a recusa de aplicação de uma norma, qualificada de inconstitucional, norma que, anteriormente nesse texto, parecia haver sido reputada de tacitamente revogada[11]. O entendimento seguido pelo Tribunal Constitucional traduziu-se, nessa ocasião, numa opção pelo modelo fornecido pela interpretação das leis, sublinhando-se a tal respeito o seguinte:
“[…]
A interpretação jurídica é encarada nos sistemas continentais como respeitando, essencialmente, à interpretação de normas («interpretação das leis»), ao passo que nos sistemas de common law, na base do entendimento de que todos os «textos jurídicos» (leis, contratos, testamentos e decisões judiciais) formam um continuum e colocam basicamente, embora em planos distintos, os mesmos problemas interpretativos, tende-se a formular critérios comuns de interpretação […]. Neste caso – interpretação de uma decisão judicial –, as regras interpretativas a observar são no essencial as mesmas que a ultrapassagem de uma situação de ambiguidade semântica num trecho normativo convocaria […].
Frequentemente a ultrapassagem da ambiguidade é possível […] situando o trecho ambíguo no seu contexto. A apreciação deste convoca, na procura de uma efectiva compreensão do texto, tudo aquilo que neste antecede, sucede ou ocorre simultaneamente a determinada unidade linguística e que assume significado relativamente à realização dessa unidade. Situar um determinado trecho no respectivo contexto, significa, assim, observá-lo na dupla vertente do conjunto dos elementos constantes do próprio texto (contexto intrínseco; o texto encarado na sua globalidade) e dos elementos exteriores a este que se mostrem relevantes para a sua compreensão (contexto extrínseco), o que engloba os elementos históricos, doutrinais, jurisprudenciais, etc., que o entendimento racional do texto convoque […]. É a esta luz que importa interpretar a decisão recorrida, fixando qual a sua efectiva ratio decidendi.
[…]”
            [sublinhado acrescentado]

            O trecho do Acórdão nº 522/2006 acabado de transcrever abona-se, em diversas das suas passagens, na obra de Aharon Barak, Purposive Interpretation in Law[12], onde a questão da interpretação dos diversos tipos de textos legalmente relevantes (fala o Autor, seguindo uma terminologia de raiz anglo-saxónica, em legal texts, expressão que traduziremos por “texto legal”, com um propósito meramente expositivo), a interpretação de “textos legais”, dizíamos, é referida a gradações distintas – em continuum –, de um problema básico comum a diversas fontes. Neste sentido, a interpretação jurídica traduz a operação racional visando conferir sentido a um “texto legal”[13], e que, descritivamente, corresponde à determinação do objectivo ou finalidade visados com esse concreto texto[14], abrangendo neste universo um leque de espécies ou fontes (de “textos legais”) que vão do texto de um testamento até ao texto de uma Constituição[15]. Neste quadro – que também abrange os problemas interpretativos colocados pelas decisões judiciais – existiria, assente numa teorização geral comum aos diversos tipos de textos, uma crescente atenuação do elemento subjectivo no percurso – trata-se de expressar a tal ideia de um continuum lógico – entre um testamento (neste com uma forte presença interpretativa do elemento subjectivo[16]) e um texto constitucional, no qual prevalecem fortíssimos elementos de abstracção expressos na ideia de “valores fundamentais” próprios de um determinado sistema assente na concatenação entre grandes princípios[17].

            Neste entendimento, o lugar correspondente a uma decisão judicial – uma decisão que ultrapasse o mero propósito de ordenação dos termos de um concreto processo e que projecte, portanto, a vocação de produzir caso julgado material[18] –, o lugar de uma decisão judicial, dizíamos, situar-se-á num espaço antecedente da lei ordinária (porventura algures entre o contrato e esta), espaço, algo ambíguo, onde uma apelativa presença de um elemento subjectivo (não deixa de se tratar da afirmação por alguém do Direito num caso concreto), não afasta uma preponderância de elementos objectivos, decorrentes da convergência, no acto subsuntivo que a decisão expressa, da ponderação de determinados factos feitos corresponder à previsão de determinadas normas jurídicas, sujeitas, elas próprias, a uma operação interpretativa, à qual presidem determinadas legis artis.

Tributária desta especial feição, apresenta-se a interpretação de uma decisão judicial como operação integrada numa espécie de “zona cinzenta”, na qual tendem a convergir, ambas com uma significativa presença, questões referenciais da interpretação das leis ou das normas (no sentido expresso no artigo 9º do CC) e da interpretação do negócio jurídico (no sentido que adquire expressão nos artigos 236º a 239º do CC). Isto sem esquecer que num e noutro caso – na interpretação da lei e na interpretação dos negócios jurídicos – actuam elementos racionais idênticos, alicerçando-se, com uma e outra base, soluções interpretativas que acabam por expressar uma lógica comum. É neste sentido que dizemos que a interpretação de uma decisão judicial convoca questões comuns à interpretação das leis e dos negócios jurídicos.

Isto mesmo é ilustrado por um Acórdão muito recente do Supremo Tribunal de Justiça. Neste – que reputamos da maior importância – ponderou o Supremo Tribunal a questão da interpretação de uma decisão judicial, fixando os parâmetros dessa operação. Referimo-nos ao Acórdão de 03/02/2011 (Lopes do Rego)[19], cujas passagens relevantes a tal respeito aqui transcrevemos:
“[…]
Constitui afirmação corrente a de que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos – pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são igualmente válidas para a interpretação de uma sentença – o que determina que a sentença deve ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto.
Esta genérica conclusão não pode, porém, olvidar a especificidade dos actos jurisdicionais relativamente aos negócios jurídicos: como se afirma no Acórdão de 22/03/2007, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo nº 06A4449:
Os despachos judiciais, como as sentenças, constituem actos jurídicos a que se aplicam, por analogia, as normas que regem os negócios jurídicos – artigo 295º do Código Civil.
O afirmado vale então por dizer que a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente – artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1 do Código Civil.
Como tem vindo a ser salientado, não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo «uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei», no caso concreto, correspondendo ao «resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objectivo a essa situação» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/11/1998, processo nº 98B712, ITIJ
, citando Rosenberg e Schwab).
Importa, assim, ter em consideração, não só que o declarante se situa «numa específica área técnico jurídica», investido na função de aplicador da lei, que, por sua vez, está obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no artigo 9º do Código Civil, dirigindo-se a outros técnicos de direito, como
também a correlação lógica e teleológica entre a pretensão em apreciação, os fundamentos de facto e de direito em que assenta o dispositivo decisório e este, tudo á luz da sua estrita conexão, desenvolvimento e interdependência (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/01/1997,
CJ Ano V, Tomo I/83).
Por outro lado, a interpretação da sentença não pode assentar exclusivamente na análise do sentido da parte decisória, tendo naturalmente que considerar os seus antecedentes lógicos, toda a fundamentação que a suporta, sem deixar de ter em conta outras circunstâncias relevantes, mesmo posteriores à respectiva elaboração – cfr. Acórdão de 08/06/2010, proferido pelo STJ no processo nº 25.163/05.5YYLSB.L1.S1.

[…]”

            E acrescenta-se, no mesmo aresto:
“[…]
E, nesta operação deve – como refere Castro Mendes (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, p. 255) – atentar-se na regra importantíssima segundo a qual «o acto jurídico se presume regular»: e como factor da regularidade (em certa medida até da validade) da sentença é a adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, e a adequação da sentença aos seus próprios fundamentos, daqui resulta que pedido, causa de pedir e fundamentos são importantes elementos de interpretação da sentença. Se se pode levantar dúvidas sobre se a sentença reconhece ao autor a propriedade ou só o usufruto de certa coisa, e se o pedido se referia à propriedade, deve evidentemente presumir-se que a sentença igualmente se lhe refere, pois doutro modo seria nula, por força do artigo 668º, nº1, alínea d).
Finalmente – sendo as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida – temos como seguro que se tem de aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do Código Civil e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – artigo 9º, nº2 do Código Civil,
– tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial).

[…]”

            Valem as referências à interpretação dos negócios jurídicos num quadro geral em que, como expressamente indica o Supremo Tribunal de Justiça, “[…] a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo «uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei», no caso concreto […]” (sublinhado acrescentado). Daí que, na procura do significado de uma decisão judicial, não sendo irrelevante a pesquisa de alguns elementos de pendor mais subjectivizante, referidos ao sentido em que os destinatários directos da injunção judicial – se quisermos, os que representam aqui a figura do “declaratário” no negócio jurídico – a captam, o elemento fundamental estruturante da compreensão do sentido dessa injunção, tenha de ser procurado, objectivamente, num quadro que é, fundamentalmente, o da interpretação do sentido da lei – se preferirmos do Direito – plasmada(o) naquele caso concreto.

            Assim, as afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial, não valem desgarradas do acto de aplicação do Direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida – e só nessa medida – em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, enfim, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo sentido passa pelo processo argumentativo que as justificou.

            É neste sentido que os elementos objectivos (correspondentes ao acto de interpretação e aplicação do Direito, visto este como percurso do qual a decisão constitui o ponto de chegada) se destacam (os elementos objectivos), na compreensão do sentido de uma decisão judicial, da pura afirmação, descontextualizada desse acto, que essa decisão pareça expressar, se isso (o que nela pareça) não obtiver uma efectiva comprovação, racionalmente expressa, no antecedente acto de interpretação e aplicação do Direito.

            2.1.2. Ora, fazendo reverter estas considerações ao caso concreto, temos que a decisão que viria a formar aqui caso julgado e a originar (e a definir o conteúdo) o (do) título executivo, seguindo, aliás, o percurso expositivo da causa de pedir, justificou-se na afirmação da irregularidade da abertura pelo R. Município das janelas na parte traseira do seu edifício, nos termos do artigo 1360º, nº 1 do CC, já que – é o que estabelece esta disposição –, “[o] proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela janelas ou portas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma das obras o intervalo de metro e meio”.

            Na definição das aberturas em causa como janelas, seguiu o Tribunal o que poderíamos considerar constituir a metodologia normal a tal respeito: diferenciou janelas de frestas, entendendo estas últimas como aberturas de tolerância, que o proprietário vizinho é obrigado a suportar e que não são aptas à constituição de uma servidão de vistas por usucapião.

            A distinção entre frestas (seteiras ou óculos) e janelas (e o mesmo vale para as chamadas janelas gradadas, v. o artigo 1364º do CC) apresenta efectivamente relevância em função das restrições que a lei estabelece quanto às primeiras, comparativamente às segundas. Com efeito – e tudo isto está presente na fundamentação da Sentença na passagem acima transcrita –, seguindo uma tradição já antiga no direito português[20], com o objectivo de evitar o devassamento do prédio vizinho, a abertura de uma janela num prédio deve respeitar, relativamente a esse prédio, o indicado intervalo de metro e meio (artigo 1360º, nº 1 do CC), restrição que se não aplica relativamente a frestas (artigo 1363º, nº 1 do CC[21]).

            O elemento fulcral de diferenciação das frestas relativamente às janelas prende-se com determinadas características destas aberturas, consideradas elas em diversas dimensões e localização, aferidas relativamente ao prédio no qual existam. Com efeito, diz-nos o nº 2 do artigo 1363º do CC, relativamente à caracterização do que são frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, que as aberturas em causa se devem situar “[…] pelo menos a um metro e oitenta centímetros de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não devem ter, numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros […]”.

Pires de Lima e Antunes Varela caracterizam as frestas como “[…] janelas muito estreitas, ainda hoje usadas para iluminação de escadas ou de patamares interiores […]”, inspirando-se estes requisitos “[…] nos ensinamentos dos nossos velhos reinícolas [os jurisconsultos compiladores da jurisprudência do Reino], os quais exigiam que por estas aberturas não coubesse uma cabeça humana”[22].

Foi, pois, através desta delimitação de conceitos que o Tribunal alcançou, na acção declarativa, a caracterização das aberturas no prédio do R. como verdadeiras janelas, assentando, adicionalmente, que o aí R., não adquirira, por referência a essas janelas, qualquer servidão de vistas que lhe permitisse fazer descaso do intervalo legal de metro e meio relativamente ao prédio dos vizinhos, AA. nessa acção e aqui Exequentes.

2.1.2.1. Valeu esta linha argumentativa, que – repete-se – coincidiu com a exposição da causa de pedir estruturada por referência à irregularidade das janelas abertas pelo R., como justificação da obrigação de fecho e tapagem dessas janelas, eliminando-as como aberturas: tornando-as, portanto, inaptas para a passagem de luz, ar e, principalmente, para propiciarem vistas e devassa sobre o prédio dos aqui Exequentes. Assim, fechada por uma parede a abertura dessas janelas, e fixada a respectiva portada exterior em termos que impossibilitam a sua abertura (cumulativamente emparedou-se e entaipou-se a abertura pretérita), constatamos ter ocorrido um cumprimento da obrigação de eliminação da funcionalidade própria dessas janelas, deixando a parede em causa sem aberturas para o exterior. Com efeito, foram essas janelas fechadas e tapadas e era isso, tão-só, o que a Sentença poderia impor – e, expressando-se melhor ou pior, foi o que impôs – ao R.

É certo – e o presente litígio gira, tão-só, em torno dessa questão – que essa mesma Sentença (o título executivo) também fala em refazer a parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas. Todavia, tendo presente que se tratava, como dissemos, de fechar as três janelas, enquanto único efeito ao qual aquela causa de pedir poderia conduzir o Tribunal[23], essa ideia de refazer a parede, expressão que o Tribunal decalcou do pedido, só pode referir-se à eliminação das aberturas configuradas como janelas e não à eliminação do que, representando embora, na apresentação exterior da parede do prédio do R., “soluções de continuidade” (interrupção de uma continuidade ou de uma configuração homogénea daquela), não traduzam qualquer tipo de abertura nessa parede. É o que sucede com as “janelas falsas” que o R., um pouco à laia de trompe-l’oeil arquitectónico[24], colocou, porventura por razões de equilíbrio estético do edifício[25], na parede confinante com o prédio dos AA. É que o R. foi condenado a tapar janelas e não a eliminar, independentemente da forma como estivesse formulado o pedido dos AA. na acção declarativa, saliências, trompe-l’oeil ou descontinuidades de configuração na parede do seu prédio que não implicassem qualquer abertura para o exterior[26].

Poderíamos a este respeito convocar o contexto intrínseco da formulação decisória aqui apreciada: refazer a parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas, constatando, numa leitura lógica contextualizada por todos os elementos da decisão (concretamente pela fundamentação desta) que não constitui abertura o que, contrariamente à ideia de abrir, fecha: aquilo que, como se expressam os itens 7. e 8. do elenco fáctico, “[…] imped[e] totalmente qualquer passagem de ar, luz e vistas” e é inamovível e permanentes até e a menos que seja destruído (como é evidente toda e qualquer parede-cega é inamovível e permanente a menos que seja destruída, aliás, toda e qualquer construção é inamovível até ao dia em que é destruída).

Ver no uso da expressão “refazendo essa parede” mais do que isto – mais do que deixá-la sem aberturas, como já sucedeu – é extravasar do sentido juridicamente relevante envolvido na injunção comportamental de fechar e tapar as janelas é, enfim, acrescentar uma determinação sem correspondência na causa de pedir que foi considerada integrada e, nesse sentido, implicaria, tal interpretação do sentido envolvido na condenação, um alargamento ilegal pelo Juiz do julgamento dos seus poderes de cognição, além do que poderia ser considerado em função da causa de pedir discutida nessa acção.

Note-se, com efeito, se acaso a leitura adequada da Sentença integradora do título executivo fosse, na passagem aqui relevante, a indicada na decisão ora recorrida, que estaríamos perante um alargamento erróneo de cariz positivo da decisão, assente numa opção que a acção (aquela acção, estruturada naqueles termos pelos AA., visando fechar determinadas janelas irregularmente abertas) não consentia ao Juiz[27]. A este respeito – alargamento erróneo pelo juiz do leque das opções que a causa de pedir lhe consente –, salienta João de Castro Mendes, depois de observar que o campo de opção do juiz no julgamento da causa “[…] é determinado vi judicis e vi legis”:
“[…]
[Q]ue a relevância do alargamento erróneo seria uma relevância positiva, alargando o caso julgado à insubsistência de algo que ex lege não podia formar objecto do processo. Por outro lado, um julgamento explícito, sobre uma alternativa erroneamente tida como possível pelo juiz, [seria] nulo […].
[…]”[28]

            Ora, se a formulação decisória empregue na Sentença que veio a constituir o título executivo comporta – como esta inegavelmente comporta – uma leitura contextualizada que a subtrai ao cometimento da apontada nulidade (basta reportar o “refazer [da] parede” à eliminação das janelas enquanto aberturas), não constitui uma boa prática interpretativa a opção pela leitura que induziria essa nulidade, estando em causa um entendimento com correspondência verbal inequívoca no texto a considerar (v. artigo 9º, nº 2 e 238º, nº 1 ambos do CC): “[p]roceder […] ao fecho e tapagem de todas as janelas que abriu na parede traseira do prédio urbano […] que confina e deita directamente para o prédio dos AA. […] refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas”. Tratar-se-ia aqui de seguir o modelo da chamada “interpretação caritativa” (como sucede com a interpretação conforme à Constituição), enquanto modelo potenciador de resultados interpretativas não legalmente desajustados.

            2.1.3. É através desta operação interpretativa que alcançamos o sentido da Sentença cujo trânsito em julgado viria a transformá-la em título executivo, como tal accionado pelos Exequentes.

            Porque entendemos que esse sentido – a injunção comportamental que essa Sentença impôs ao Município R. – se basta com o fecho e tapagem, com carácter permanente, das janelas irregularmente abertas, e porque igualmente consideramos que essa obrigação já foi cumprida pelo R., verifica-se, pois, a extinção, pelo cumprimento, dessa mesma obrigação, nos termos em que esta emerge do título executivo.

            E, enfim, no que traduz o ponto culminante do percurso deste Acórdão, constitui fundamento válido de oposição à execução baseada em sentença o cumprimento da obrigação exequenda, enquanto facto extintivo – paradigmaticamente extintivo – dessa obrigação (v. o artigo 814º, alínea g) do CPC).

            2.2. Vale este encadeamento de argumentos pela afirmação da procedência do recurso e, em função disso, da oposição aqui tratada, devendo ser declarada finda a correspondente execução.

            É o que nos resta determinar, depois de sumariar o presente Acórdão:
I – Na interpretação de uma decisão judicial que formou caso julgado material convergem aspectos respeitantes à interpretação das leis (artigo 9º do CC) e à interpretação dos negócios jurídicos (artigos 236º e 238º do CC);
II – Não correspondendo a decisão judicial a um verdadeiro negócio jurídico (a referência a este neste quadro decorre da remissão do artigo 295º do CC), não se traduz ela (a decisão judicial) numa declaração pessoal de vontade do julgador, que possa ser entendida na base da determinação de um propósito subjectivo, assente numa determinada expressão verbal descontextualizada da fundamentação;
III – A decisão vale, pois, objectivamente, enquanto ponto de chegada de um percurso guiado pela causa de pedir e pela fundamentação jurídica que, com base naquela, justificou essa decisão;
IV – A injunção comportamental expressa na obrigação de fechar e tapar determinadas janelas, judicialmente imposta a um proprietário de um prédio vizinho do dos AA., assente na irregularidade da abertura dessas janelas, face ao disposto no artigo 1360º, nº 1 do CC, basta-se, em matéria de cumprimento dessa obrigação, com o fechar e tapar, com carácter permanente, a abertura traduzida nessas janelas, não carecendo o cumprimento dessa obrigação, adicionalmente, de qualquer recomposição da parede onde existiam essas janelas, eliminando vestígios das mesmas que não correspondam a qualquer tipo de abertura;
V – A proibição de devassa do prédio vizinho através de janelas (de aberturas que excedam os limites fixados no artigo 1363º, nº 1 do CC), enquanto fim visado pelo nº 1 do artigo 1360º do CC, conduz à obrigação de eliminação das aberturas correspondentes a essas janelas e não à reposição de uma parede sem vestígios das janelas que tenham sido tapadas;
VI – Assim, referindo-se a Sentença que condena no fecho e tapagem dessas janelas a “refazer a parede”, deve este inciso ser entendido como reportado, tão-só, ao fecho e tapagem das janelas em causa;
VII – Proposta uma execução para prestação de facto, visando refazer a parede em causa, para além do fecho e tapagem das janelas irregularmente abertas, procede a oposição do Executado fundada em já ter sido cumprida a obrigação (o fecho e tapagem das janelas) decorrente da Sentença apresentada como título executivo.


III – Decisão

            3. Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se procedente a oposição à execução, determinando-se, em função disso, a extinção dessa execução para prestação de facto, interposta pelos Exequentes/Apelados M… e J… contra o Executado/Apelante Município do ....

            Custas em ambas as instâncias a cargo dos Apelados.


J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] Sublinha-se esta data já que, pelo Acórdão desta Relação constante de fls. 227/228 vº, foi fixada a asserção – que foi posteriormente assumida no despacho de fls. 235/237, a propósito da admissão deste recurso, asserção que será seguida doravante (formou ela aqui caso julgado formal que a todos nos vincula dentro deste processo) – foi fixada por tal Acórdão, dizíamos, a asserção de se aplicar nesta situação (uma execução de sentença instaurada posteriormente a 01/01/2008, por apenso a uma acção declarativa anterior) o regime processual, respeitante aos recursos, introduzido pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, sempre que seja necessário convocar na subsequente exposição alguma norma do CPC cujo texto tenha sido alterado pelo referido Decreto-Lei nº 303/2007, estará em causa a redacção dessa norma introduzida por este último Diploma.
Note-se, lateralmente ao presente recurso, que o ora relator já defendeu uma posição distinta desta numa decisão desta Relação datada de 16/06/2008, que julgou a reclamação (artigo 688º, nº 1 do CPC) nº 280/07.0TBALSA-F.C1, decisão esta que está disponível na Base do ITIJ, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/db953307306506a2802574710050bb1. Trata-se, todavia, de uma questão aqui ultrapassada, arrumada que está, como se disse, pela indiscutibilidade intraprocessual própria do caso julgado formal decorrente desse Acórdão de fls. 227/228 vº.

[2] Para compreensão da situação interessa aqui o seguinte trecho argumentativo que se retira do requerimento inicial de oposição à execução:
“[…]

No referido processo [refere-se à acção declarativa que gerou o título executivo] foi decidido […]:
[condenar] o Município do ...a:
[…]
2. Proceder imediatamente ao fecho e tapagem de todas as janelas que abriu na parede traseira do prédio urbano [do R. aqui Executado], que confina e deita directamente para o prédio dos AA. […] refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas.
[…]
Ora, baseando-se a presente acção executiva na sentença supra referenciada, a mesma carece de qualquer fundamento, uma vez que o ora executado/opoente já cumpriu integralmente a sentença à qual foi condenado.
Senão vejamos,
Decorre do ponto nº 2 da supra referida sentença que o ora opoente deveria proceder ao fecho e tapagem de todas as janelas que abriu na parte traseira do prédio urbano de que é proprietário, refazendo essa parede por modo a que fique sem quaisquer aberturas.
Tal como se pode aferir dos documentos que ora se juntam sob os nºs 1, 2, 3 e 4, o ora opoente já procedeu ao fecho e tapagem das três janelas existentes na parte traseira do prédio urbano de sua propriedade.
[…]”
                [transcrição de fls. 3/4]
[3] A compreensão da situação que está na base desta oposição, e que expressa a divergência entre os Exequentes e o Executado, quanto ao cumprimento ou incumprimento da Sentença, é fácil de alcançar observando as fotografias juntas pelo Executado/Opoente a fls. 21/24.
Porque as não podemos incluir no texto deste Acórdão diremos que o Município do ..., após o trânsito da Sentença, colocou por dentro de cada uma das janelas em causa uma parede dupla de pladur, fechando totalmente as aberturas respectivas, fixando as portadas exteriores das janelas (totalmente em madeira e sem vidros) à própria moldura das janelas, em toda a sua área circundante, impossibilitando a sua abertura e o funcionamento destes elementos como janelas (em rigor poderemos dizer que as janelas foram fechadas com carácter permanente e tapadas com paredes).
Estes elementos – para sermos precisos, aquilo que antes tinha correspondido a verdadeiras janelas (aberturas preenchendo negativamente os requisitos constantes do artigo 1363º, nº 2 do Código Civil, que distingue frestas de janelas) – passaram a aparentar, do exterior, serem janelas (vêm-se umas portadas), mas não o são, na medida em que tapam completamente a parede do prédio do Executado do interior para o exterior e vice-versa. O litígio referente ao cumprimento da Sentença (o tema desta oposição) centra-se, pois, em saber se a manutenção na fachada traseira do prédio do Executado do que parecem janelas, mas não são [funcionam como uma espécie de “pano de cenário” ou “trompe-l'œil”, arquitectónico (v. http://en.wikipedia.org/wiki/Trompe-l'%C5%93il) onde existem representadas janelas que na verdade o não são, pois não correspondem a qualquer tipo de abertura], trata-se aqui de saber, dizíamos, se esses elementos cumprem ou não a injunção comportamental decorrente da Sentença executada (v. a descrição pericial de fls. 83/84): fechar definitivamente as janelas.
A posição dos Exequentes – que o Tribunal a quo sufragou – é a de que o cumprimento dessa injunção pressupõe o refazer total da parede eliminando mesmo as ditas “falsas” janelas. E é esta a questão transposta para a apreciação deste Tribunal da Relação. 
[4] Ou seja, aos factos invocados para individualizar a situação jurídica alegada pelos AA., sendo que esta correspondeu à abertura de janelas pelo Município, no respectivo prédio, em contravenção do disposto no nº 1 do artigo 1360º do CC.
[5] Ou seja, a concreta forma de tutela jurisdicional que é requerida para a situação jurídica (para a causa de pedir) invocada pelos AA.
[6] O uso das aspas frisa o emprego impróprio da palavra “janela”, já que aquilo que existe actualmente na parede traseira do prédio da Apelante, num entendimento funcional das coisas, que ultrapasse a simples aparência cenográfica, a espécie de tromp-l’oeil de que falámos na nota 4, não corresponde efectivamente ao conceito etimológico de janela estruturado em torno do respectivo elemento funcional – e, como veremos, também não corresponde ao conceito legal de janela. No dicionário, o vocábulo “janela”, referido a um prédio, significa uma “[…] abertura ou vão na parede externa de uma edificação […] que se destina a proporcionar iluminação e ventilação ao seu interior, ao mesmo tempo que, com ou sem a intermediação de material transparente ou translúcido (em geral, vidro), facilita a visibilidade da paisagem exterior […]” (com sublinhado aqui acrescentado, é a definição que recolhemos no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Tomo IV, Lisboa, 2003, p. 2168).  
[7] Como a própria decisão apelada sublinha: “[r]esultou provado que: a Executada/oponente já procedeu ao fecho e tapagem das três janelas existentes na parte traseira do prédio urbano de sua propriedade […]” (transcrição de fls. 180).
[8] Este último referencial interpretativo, o das regras próprias da interpretação dos negócios jurídicos, vem sendo aceite – ou vem sendo também convocado – por parte significativa da doutrina e da jurisprudência, relativamente à interpretação de pronunciamentos judiciais (actos processuais distintos dos actos postulativos das partes). Na doutrina constitui trabalho de referência na abordagem deste problema a dissertação de doutoramento de Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra, 2003, pp. 63/65 e 406/411 (note-se que o objecto deste Estudo se refere aos actos postulativos das partes, tratando lateralmente da questão da fixação do sentido de uma decisão, enquanto acto processual subtraído à categoria dos actos postulativos). Na jurisprudência, v., entre outros (adiante referiremos um outro espécime jurisprudencial que reputamos de particularmente relevante), o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 1997 (Silva Paixão), na Colectânea de Jurisprudência – Supremo Tribunal de Justiça, tomo I/1997, pp. 83/85.
[9] Lembram-se aqui considerações de António Menezes Cordeiro, tecidas a propósito do sentido do artigo 236º, nº 1 do CC: “[f]ixa, assim, uma fasquia objectivamente variável: em cada caso se construirá (a «posição do real declaratário»), normativamente, a figura do destinatário normal. Repare-se que por esta via, podem ser recuperadas regras não explícitas na nossa lei tais como a da validação da interpretação mais directa, perante fórmulas muito claras e evidentes (in claris non fit interpretatio), a de uma «interpretação de boa fé», consagrada nos Códigos alemão (§ 157) e italiano (artigo 1366º) ou como necessidade de atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato –, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e, à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 761).
[10] Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060522.html.
[11] A ambiguidade resultava aí da intuitiva incompatibilidade entre estar uma norma revogada e ser recusada, pressupondo a recusa a vigência dessa norma.
[12] Princeton, Oxford, 2005. O Prof. Aharon Barak foi Presidente do Supremo Tribunal de Israel entre 1995 e 2006 (http://en.wikipedia.org/wiki/Aharon_Barak).
[13]Legal interpretation is a rational activity that gives meaning to a legal text” (Ahron Barak, Purposive Interpretation…, cit., p. 3).
[14] Do substantivo inglês, purpose (significando: objectivo, fim, finalidade, intenção, propósito).
[15]In formulating ultimate purpose, purposive interpretation distinguishes between different types of legal texts […]. The first distinction considers the legal character of the text. The main distinction here is between wills [testamentos], contracts, statutes [leis infraconstitucionais], and constitutions. Legal texts exist on a continuum, with wills at one end, constitutions at the other, and, between them, contracts, statutes, and other texts with traits common to these four primary texts” (Ahron Barak, Purposive Interpretation…, cit., p. 184).
[16] Trata-se, num quadro muito geral definido pela Lei, de determinar o sentido do acto de vontade de uma pessoa quanto ao destino dos seus bens após a sua morte.
[17] Ahron Barak, Purposive Interpretation…, cit., pp. 89/90 e 253/254.
Isto não significa que num testamento não existam elementos interpretativos de feição ou pendor objectivo (isso sucederá com o emprego, não descontextualizado ou notoriamente impreciso, de fórmulas legais) ou que à interpretação constitucional seja absolutamente irrelevante qualquer afloramento subjectivista [este frequentemente está presente, na interpretação constitucional, aliás, através da ideia, mesmo que muito mitigada, de um certo “subjectivismo histórico” ou de argumentos de pendor “originalista”; v., quanto ao “subjectivismo histórico”, J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao discurso legitimador, Coimbra, 1983, pp. 178/179 e quanto ao originalismo na interpretação constitucional, v. a entrada “Original intent” (Gary L. McDowell, no The Oxford Companion to the Supreme Court of  the United States, Kermit L. Hall (edit.), Nova Iorque, Oxford, 1992, p. 613].  
[18] No sentido – e seguimos aqui a exposição de João de Castro Mendes – em que “[…] o caso julgado [é] material, res judicata, referente a uma afirmação jurídica ou conteúdo de pensamento; não o caso julgado formal, mera irrevogabilidade do acto ou decisão judicial que à mesma serviu de continente” (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Lisboa, s.d., mas de 1968, pp. 15/16).
Note-se que numa decisão destinada a regular ou ordenar os termos do processo, e que se esgote na formação de caso julgado formal, tem sentido uma interpretação que, referida ao artigo 236º, nº 1 do CC, procure determinar a impressão no destinatário (no declaratário normal, colocado na posição do real declaratário). Foi deste tipo a situação em causa no Acórdão desta Relação, de 25/01/2011, proferido pelo ora relator no processo nº 659/08.0TBFND.C1, disponível na base do ITIJ no endereço: http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/5aeb6dd4670ab5b48025782d004e847.
[19] Proferido no processo nº 190-A/1999.E1.S1, directamente disponível na base do ITIJ no endereço: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cc6d44b8e1f6080e8.
Aqui transcrevemos o sumário respectivo, nos trechos que à questão geral da interpretação de uma sentença se referem:
“[…]
1. Num recurso fundado em violação do caso julgado, tem necessariamente o Tribunal ad quem de começar por determinar qual é – segundo os critérios interpretativos que devem ser utilizados para determinar o sentido de uma sentença – o âmbito possível de tal operação interpretativa, excluindo aqueles sentidos normativos que extravasem o âmbito consentido a uma actividade interpretativa, levando a alcançar e imputar-lhe sentidos decisórios que a sentença interpretada manifestamente não pode comportar.
2. Sendo as decisões judiciais actos formais, - amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida –tem de se aplicar à respectiva interpretação a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento ou escrito que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

[…]”
 
[20] V. Fernando Andrade Pires de Lima, João de Matos Antunes Varela, Código Civil anotado, vol. III, 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 211 e ss.; cfr., quanto ao regime anterior a 1867, Manoel de A. e Sousa de Lobão, Casas. Tratado histórico, enciclopédico, critico e pratico sobre direitos em materia criminal, nova edição, Lisboa, 1915, pp. 116 e ss. e M. A. Coelho da Rocha, Instituições do Direito Civil Portuguez, tomo II, Coimbra, 1848, pp. 466/467; relativamente ao Código de Seabra (onde esta matéria era tratada nos artigos 2324º/2327º), cfr. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. XII, Coimbra, 1937, pp. 68 e ss.
[21] “Não se consideram abrangidas pelas restrições da lei as frestas, seteiras ou óculos para luz e ar, podendo o vizinho levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro, ainda que vede tais aberturas”.
[22] Código Civil…, cit., p. 223.
Este critério da “cabeça humana”, chamemos-lhe assim (ao qual sucederam os 15 cm actuais), apresenta uma continuidade histórica ininterrupta no nosso Direito:
“Pela mesma razão, ainda que o proprietário possa fazer o edifício que quizer, com tudo, 1º não póde abrir janella, nem fazer eirado, ou varanda que deite sobre o prédio alheio, sem mediar o interstício de vara e quarta. Ord. L. nº 1, Lobão, Casas, 157. Mas bem póde, independentemente deste espaço, abrir seteiras para receber luz pelas quaes não caiba a cabeça” (Coelho da Rocha, Direito Civil…, cit., p. 466).
“As Ordenações Filipinas e os praxistas não definiam a seteira; limitavam-se a declarar que esta deve ser tão estreita, que nela não entre cabeça humana, para olhar por fora […]”; “[…] é janela e não fresta toda a abertura que permita a passagem da cabeça e, portanto, devassamento do prédio vizinho […]” (Cunha Gonçalves, Tratado…, cit., pp. 83 e 85).
“Não poderia interessar a ninguém a proibição da entrada de ar, e também a simples vista do terreno vizinho nunca pode ser, nem deve ser, impedida de uma maneira absoluta. Lembremo-nos que a distância de metro e meio que é necessária para a abertura de janelas não impede também as vistas. O prédio vizinho continua a ver-se praticamente na mesma. O que a lei pretende, portanto, impedir, se não é em si mesma contraditória, é que possa ser devassado esse prédio; e este pode ser devassado se sobre eles se puderem debruçar os vizinhos, fazendo dele escarrador, cloaca ou vazadouro de detritos. É por isto, e só por isto, que se exigia no nosso Direito antigo, que pela abertura não coubesse uma cabeça humana” (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 99º, p. 239).
[23] E, também, enquanto único efeito ao qual a fundamentação exarada pelo Tribunal poderia conduzir.
[24] Podemos ver exemplos de tromp-l’oeil em fachadas de prédios nas fotografias constantes da entrada “Trompe-l'œil” na Wikipedia (em 07/03/2011), em: http://en.wikipedia.org/wiki/Trompe-l'%C5%93il.
[25] Aliás, por razões que, sejam elas quais forem, se situam no âmbito do exercício do direito de propriedade do R. e fora do espaço de actuação do direito de propriedade dos AA.
[26] Os Exequentes parecem esquecer que o R./Executado poderia abrir, como se disse, frestas na respectiva parede, da mesma forma que eles (Exequentes) podem levantar parede, sem interstício algum, sobre a parede do R., com ou sem aquelas falsas janelas.
[27] Note-se que, para além do direito a obter o fecho das janelas irregulares existentes na parede do prédio do R. (prestação já efectuada por este), não dispõem os AA./Exequentes – não dispuseram ao tempo dessa acção e continuam a não dispor – de qualquer direito ou legitimação para organizarem a parede do prédio vizinho como entenderem, designadamente eliminando desta o que aí exista e não seja janela ou abertura, como aqui sucede.
[28] Limites Objectivos do Caso Julgado…, cit., p. 298.