Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
659/08.0TBFND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
CADUCIDADE DA DECLARAÇÃO DE UTILIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 01/25/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 13º, Nº 3; 42º, NºS 1 E 3, DO CÓDIGO DE EXPROPRIAÇÃO (LEI Nº 168/99, NA VERSÃO QUE RESULTA DA 4.ª ALTERAÇÃO, INTRODUZIDA PELA LEI Nº 56/2008 DE 4 DE SETEMBRO).
Sumário: I – A declaração de utilidade pública, enquanto acto desencadeador da expropriação, abre um procedimento que, na sua primeira fase (arbitragem necessária), se estrutura por referência a um ónus de impulso e condução processual impendente sobre o Expropriante (artigo 42º, nº 1, do CE).

II – Esse ónus de promoção da arbitragem necessária é transferido para o Tribunal, nos casos de expropriação declarada urgente, quando o Expropriado o requeira, nos termos do artigo 42º, nº 3, do CE.

III – A caducidade da declaração de utilidade pública por não promoção da constituição do tribunal arbitral, prevista no artigo 13º, nº 3, do CE, pressupõe a permanência do referido ónus de promoção da arbitragem no Expropriante.

IV – É, pois, incompatível essa caducidade com uma anterior transferência desse encargo para o Tribunal, por ter sido requerida essa transferência nos termos do nº 3 do artigo 42º do CE.

IV – O artigo 236º do CC é aplicável à interpretação de uma decisão judicial.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Emergiu o presente recurso de um processo de expropriação por utilidade pública, no qual o estatuto de entidade expropriante foi assumido – após Declaração de Utilidade Pública (DUP) referida ao edifício denominado “Cine-Teatro …” – pelo Município do … (doravante indicado como Expropriante e, no contexto deste recurso, como Apelante).

A tramitação judicial desta expropriação foi induzida pelo requerimento de fls. 2/4, apresentado em 29 de Outubro de 2008[1] pelos interessados (Expropriados) M… e marido, J… (doravante mencionados como Expropriados[2] e Apelados), aí requerendo estes o seguinte: “[…] nos termos da alínea e) do nº 2 do artigo 42º do Código das Expropriações[[3]] que as funções de Entidade Expropriante passem a caber a V. Exa. Exmo. Juiz desta Comarca onde se situa o imóvel a expropriar, devendo por isso […] o Município do ...remeter-lhe o processo de expropriação ou o mesmo ser imediatamente avocado uma vez que o fundamento para V. Exa. passar a exercer as funções de entidade expropriante é o facto objectivo de o Município ter conferido carácter de urgência à expropriação (v. artigos 15º e alínea e) do nº 2 do artigo 42º e nº 4 do mesmo artigo do Código das Expropriações)” (transcrição de fls. 4).

            Refere-se a expropriação, como antes se disse, ao edifício identificado como “Cine-Teatro …”, na cidade do …, decorrendo o acto expropriativo da Declaração de Utilidade Pública nº 202/2008, de 24 de Abril de 2008, emitida pela Assembleia Municipal do …, publicada no Diário da República – 2ª Série – nº 103, de 29 de Maio de 2008 (Parte H, p. 24105), cuja cópia consta de fls. 6 destes autos.

            1.1. No decurso da tramitação (judicial) da expropriação – e prescindimos aqui de descrever as inúmeras e confusas vicissitudes processuais que pautaram a atribulada marcha dos autos, na sequência do referido “requerimento inicial” de fls. 2/4[4] –, no decurso dessa tramitação, dizíamos, em 15/12/2008 (v. fls. 59), foi proferido pela Exma. Juíza, ao tempo titular do processo, o seguinte despacho (que foi suscitado pelo requerimento dos Expropriados constante de fls. 56/57[5]), cujo teor aqui transcrevemos dada a relevância que apresenta na economia decisória deste recurso:
“[…]
Sem prejuízo da decisão que vier a ser proferida quanto à questão da legitimidade activa, notifique-se o Município do … a fim de dar cumprimento ao disposto no artigo 54º, nº 2 do CE, remetendo o processo para decisão quanto ao incidente de reclamação e arguição de nulidades do auto de vistoria.
Acresce que, atento o disposto no nº 9 do artigo 21º do CE e ainda [no] artigo 54º do mesmo Diploma legal, não pode o Município do … proceder à posse administrativa e iniciar obras, devido à reclamação apresentada na «vistoria ad perpetuam rei memoriam» e respectivo relatório, e até que seja decidido o respectivo incidente.
[…]”
            [transcrição de fls. 59]

            1.1.1. Mais tarde, em 12/03/2009, apresentou o Expropriante o requerimento de fls. 161/162, no qual, depois de sublinhar a natureza urgente da expropriação e de indicar a paralisação durante longos meses desta, concluiu nos seguintes termos:
“[…]
Requer-se, pois, a V. Exa. Se digne devolver à entidade expropriante o processo de expropriação enquanto ao Tribunal não for possível tomar qualquer decisão, de forma a que, a aqui requerente possa a vir a impulsioná-lo, seguindo os trâmites legais, sem prejuízo da decisão que este Tribunal vier a tomar nesta sede.
[…]”
            [transcrição de fls. 162]

1.2. Entretanto – no decurso da marcha do processo –, apresentaram os Expropriados acima indicados, em 26/07/2010, o requerimento que consta de fls. 290/292, do qual aqui se transcreve o seguinte trecho expositivo final (o qual viria a gerar a decisão aqui recorrida):
“[…]
[C]onsiderando que a constituição do colégio arbitral não foi efectuada nem notificada a todos os interessados no prazo de um ano após a Declaração de Utilidade Pública, requer-se aqui e expressamente, de acordo com o nº 3 do artigo 13º do Código das Expropriações que seja imediata e automaticamente declarada a caducidade da declaração de utilidade pública […] referente ao edifício denominado «Cine-Teatro …» […].
[…]”
            [transcrição de fls. 291/292]

            1.2.1. Originou este requerimento – que foi reiterado a fls. 295/296 pelos mesmos Expropriados – o despacho de fls. 333/351 – consubstancia este a decisão objecto do presente recurso –, o qual, atendendo a pretensão dos aludidos Expropriados, considerou “[…] verificada a invocada caducidade da declaração de utilidade pública nº 202/2008, publicada em Diário da República, 2ª Série, em 29/05/2008” (transcrição de fls. 350, sendo o sublinhado aqui acrescentado).

            1.3. Inconformado, apresentou-se o Expropriante a interpor o presente recurso (fls. 353), motivando-o a fls. 354/368, formulando as seguintes conclusões:


“[…]
            [transcrição de fls. 365/368]

            1.3.1. Os Expropriados/Apelados responderam a fls. 372/382, indicando previamente – pugnando aí pelo não conhecimento do recurso – que consideravam que a decisão recorrida já teria transitado ao tempo da interposição da apelação, isto pressupondo um prazo de 15 dias para tal efeito.

            1.3.2. Foi o recurso admitido a fls. 386/391 – e muito bem, sublinha-se, apreciando desde já essa questão prévia suscitada pelos Apelados, dado sempre estar em causa um prazo para recorrer de 30 dias [artigo 685º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)], ter o recurso sido interposto nesse prazo e não se tratando de processo urgente na tramitação aqui em causa [v. o artigo 44º do Código das Expropriações (CE)], sendo a decisão recorrida caracterizável pelo efeito de pôr termo ao processo (artigo 691º, nºs 1 e 5, este a contrario, do CPC).


II – Fundamentação

            2. Importa proceder à apreciação do recurso – assente, como se acabou de indicar, ser ele admissível e ter sido interposto tempestivamente –, sublinhando-se que a incidência temática da impugnação resulta da delimitação operada pelo Apelante através das conclusões transcritas no item 1.3., supra. É o que decorre da conjugação dos artigos 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1, ambos do CPC.

            Os factos a considerar – e tratam-se eles, fundamentalmente, de incidências processuais documentadas e comprovadas ao longo dos autos – são os seguintes, reproduzindo-se aqui o bem sistematizado elenco inserido no texto da decisão apelada:
“[…]
[1]Em 29.05.2008 foi publicada em Diário da República, 2ª série, a Declaração n.º 202/2008, correspondente à declaração de utilidade pública em causa nos autos;
[2]Em 29.10.2008 M… e marido J…, nos termos da al. e) do n° 2 do artigo 42 e artigo 15º do Código de Expropriações, vieram requerer que as funções de Entidade Expropriante passem a caber ao Juiz desta Comarca onde se situa o imóvel a expropriar, fundando tal pretensão no facto objectivo de o Município ter conferido carácter de urgência à expropriação;
[3] – Por despacho de 5.11.2008 determinou-se o cumprimento do disposto no artigo 42º, nº 3 do Código das Expropriações – Lei nº 168/99, na versão que resulta da 4.ª alteração, introduzida pela Lei nº 56/2008 de 4 de Setembro;
[4] – Em 7.11.2008 M… e marido J… apresentaram neste juízo e junto do Município do …reclamação da vistoria ad perpetuam rei memoriam, invocando a sua nulidade;
[5] Por despacho de 15.12.2008, decidiu-se que «Sem prejuízo da decisão que vier a ser proferida quanto à questão da legitimidade activa, notifique-se o Município do … a fim de dar cumprimento ao disposto no artigo 54º, nº 2 do CE, remetendo o processo para decisão quanto ao incidente de reclamação e arguição de nulidades do auto de vistoria.
Acresce que atento o disposto no nº 9 do artigo 21º do CE e ainda artigo 54º do mesmo diploma legal, não pode o Município do ...proceder à posse administrativa e iniciar as obras, devido à reclamação apresentada na "Vistoria ad perpetuam rei memoriam» e respectivo relatório, e até que seja decidido o respectivo incidente»;
[6] – Em 18.12.2008 foi solicitado pela Mma. Juiz à Câmara Municipal do ...o envio de cópia certificada do processo de expropriação;
[7] – Em 30.12.2008 pela Câmara Municipal do … foi enviado para este Tribunal cópia certificada do original do processo de expropriação, até à primeira marcação da vistoria ad perpetuam rei memoriam para o dia 22 de Outubro de 2008, cujo original foi remetido ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, no âmbito do Processo n° 353/08.2BECTB (Acção administrativa especial de pretensão conexa com actos administrativos, a qual foi julgada improcedente) e o original do processo administrativo a partir daquele ponto;
[8] – Posteriormente e por despacho de 6.02.2009 decidiu-se formular «convite que dirijo aos requerentes, concedendo-se o prazo de 15 dias, e com advertência de que não sendo respeitado, os requerentes serão considerados parte ilegítima, com a consequente absolvição da entidade expropriante desta instância judicial, e remessa do processo novamente para a entidade expropriante – CM …»;
[9] – A 27.02.2009 a sociedade A…, Lda. veio, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 42° do Código das Expropriações, também requerer que as funções de Entidade Expropriante passem a caber ao Juiz desta Comarca;
[10] – Em 12.03.2009 o Município do … veio requerer ao Tribunal a devolver à entidade expropriante o processo de expropriação enquanto ao Tribunal não for possível tomar qualquer decisão, de forma a impulsioná-lo;
[11] – Por decisão de 13.07.2009 determinou-se «Sanada a falta de legitimidade processual activa, e verificado o legal e objectivo pressuposto legal, conferido carácter de urgência ao processo de expropriação, decide-se deferir o requerimento para avocação do processo (artigo 42º do CE)»[[6]], tendo sido oficiado ao Município a 7.08.2009 a remessa ao Tribunal do processo de expropriação;
[12] – Em 20.10.2009 o Município do … veio requerer ao Tribunal que ordenasse a posse administrativa do imóvel ao Expropriante, o que foi indeferido por despacho de 23.11.2009;
[13] – Por despacho de 18.01.2010 consignou-se que «Logo que se mostrem citados todos os interessados abra-se conclusão a fim de ser proferida decisão quanto às várias nulidades e irregularidades invocadas quanto à v.p.r.m.»;
[14] – Por despacho de 14.04.2010 determinou-se a produção de prova arrolada no dia 5 de Maio de 2010;
[15] – Por decisão de 23.06.2010 foi julgada a reclamação deduzida por M… e J…, nos termos dos nºs 7 e 8 do artigo 21º do CE, totalmente improcedente;
[16] – Em 16.07.2010 o Município do … veio requerer ao Tribunal a designação de dia e hora para a investidura na posse do prédio pelo Expropriante;
[17] – Finalmente, por despacho de 21.07.2010, foi solicitado ao Exmo. Sr. Presidente do Tribunal da Relação a designação de árbitros para levar a efeito a arbitragem nos presentes autos.
[…]”
[transcrição de fls. 341/344, com sublinhado e numeração aqui acrescentados]

            2.1. Visa o recurso a apreciação de um despacho que considerou ter caducado a Declaração de Utilidade Pública (DUP), nos termos do artigo 13º, nº 3 do CE[7], por não ter a Expropriante promovido a constituição da arbitragem (trata-se neste caso de um julgamento arbitral necessário, v. artigo 1525º do CPC) no prazo de um ano a contar da data da publicação da DUP. Este termo inicial ocorreu em 29/05/2008, a data correspondente à distribuição do Diário da República contendo essa declaração (cfr. ponto [1] dos factos e fls. 6 dos autos), daí decorrendo que esse mesmo prazo de um ano, cuja contagem está sujeita às regras do artigo 72º do Código do Procedimento Administrativo (CPA)[8], se esgotou – se terá esgotado – em 01/06/2009, já que 30/05/2009 (um ano depois do dia subsequente ao do início da contagem do prazo) correspondeu a um sábado[9].

Apreciando os elementos fornecidos pelos autos, constata-se, pois, que a entidade Expropriante não promoveu, com efeito, a constituição da arbitragem necessária, pelo menos o processo não regista (anteriormente a 01/06/2009) qualquer elemento apontando nesse sentido[10], sendo que esta incidência corresponderia, em princípio, à integração do fundamento de caducidade da DUP constante do nº 3 do artigo 13º do CE, conforme foi decidido na instância precedente.

            Todavia, o problema que fornece individualidade à presente situação – justificando a observação contida na decisão apelada: “[…] o caso não é de simples e evidente solução perante a evolução processual que conheceu […]” – prende-se com a ocorrência, no decurso desse prazo de um ano, de diversas incidências processuais que podem ser encaradas – é o que defende a Apelante – como indutoras de uma justificação bastante para que esta mesma, enquanto Expropriante, não tivesse promovido a constituição atempada dessa arbitragem, considerando – porventura, com razão – que esse ónus passaria a pertencer ao Tribunal. Valeria a tal respeito – e estamos por ora a enunciar os argumentos do Apelante – o despacho de fls. 59 (transcrito no item 1.1. deste Acórdão), cuja interpretação, no seu “sentido normal” [interessará aqui o artigo 236º, nº 1 do Código Civil (CC)], por referência ao comportamento através dele sugerido à Expropriante, forneceria uma justificação suficiente para a não constituição da arbitragem no ano subsequente à DUP (v. as conclusões I e II do recurso).

            É esta a discussão que o recurso suscita, sendo que tal apreciação pressupõe um aprofundamento valorativo das diversas incidências que caracterizaram a actuação da Expropriante, no procedimento subsequente à DUP, visando realizar a expropriação. Previamente, por instrumentalidade, importará esclarecer, todavia, algumas questões interpretativas respeitantes a essas incidências, obtendo, através desse esclarecimento, instrumentos interpretativos potenciadores de uma correcta avaliação da situação.

            2.1.1. Constitui a caducidade da DUP, nos termos em que essa contingência do procedimento expropriativo nos aparece prevista no artigo 13º, nºs 3 e 4 do CE, uma emanação da garantia constitucional do direito de propriedade privada[11]. Com efeito, uma limitação temporal da eficácia do “[…] acto constitutivo ou acto-chave do procedimento expropriativo”[12], cujo accionamento é colocado na esfera decisória do Expropriado (artigo 13º, nº 4 do CE)[13], projecta inquestionavelmente a dimensão garantistica do direito de propriedade, face ao elemento restritivo deste expressamente previsto no nº 2 do artigo 62º do texto constitucional[14], em termos idênticos ao que sucede, como é reconhecido pela generalidade da doutrina, com o “direito de reversão”[15].

            Pode-se, assim, particularizar a teleologia da caducidade da DUP, na específica incidência que aqui está em causa (corresponde ela à não promoção pelo Expropriante da constituição da arbitragem no prazo de um ano contado dessa DUP), como dirigida à inacção da entidade Expropriante na adjectivação da “justa indemnização”, que o texto constitucional liga incindivelmente à relevância da restrição consubstanciada na expropriação (trecho final do nº 2 do artigo 62º da Constituição). Dir-se-á a tal respeito que a dependência constitucional da expropriação do pagamento de uma “justa indemnização”, enquanto “garantia de valor” referida ao direito de propriedade[16], leva o legislador – desta feita o legislador ordinário cumprindo o desiderato do legislador constitucional – a colocar a realização desse objectivo, dependente que está ele do procedimento expropriativo, num plano de realização expedita, pretendendo-se induzir, em homenagem à significativa densidade axiológica do direito de propriedade, esse elemento comportamental no Expropriante: a realização célere do direito à indemnização do Expropriado.

            Assim, tratando-se – através da caducidade aqui considerada – de evitar o atraso do Expropriante (numa fase em que o andamento das coisas depende do impulso deste), sancionando-se com a caducidade a inacção de adjectivação da indemnização, vale a cobertura teleológica do nº 3 do artigo 13º do CE para os atrasos que expressem isso mesmo: inacção da entidade Expropriante. Mas já não valerá essa cobertura para os hipotéticos atrasos que, por ocorrerem à margem do comportamento da entidade Expropriante, não expressem qualquer inacção desta, correspondendo antes a vicissitudes processuais exteriores à mesma entidade[17].

            Sublinha-se este aspecto – num primeiro plano de aproximação interpretativa ao nº 3 do artigo 13º do CE –, porque a captação da mensagem normativa contida numa disposição legal (rectius, a interpretação desta) não pode prescindir da reconstituição, sempre limitada por uma correspondência literal mínima, do pensamento legislativo (artigo 9º, nºs 1 e 2 do CC), daqui decorrendo aquilo que qualificamos como “cobertura teleológica” da norma, enquanto expressão do seu sentido profundo reconstituído no acto de subsunção. Com efeito, se o desvalor comportamental do Expropriante, que determina a caducidade da DUP, se refere a uma expressão concreta de pouco empenho deste em levar avante a realização do direito à indemnização, sempre que esse atraso tenha sido induzido por um elemento que não expresse, subjectiva ou objectivamente, esse desvalor, entendemos que a caducidade não operará por falta de cobertura teleológica da norma (do artigo 13º, nº 3 do CE) à situação geradora do atraso.

            É este, pois, o quadro geral de referência da actuação da caducidade da DUP, quando referida – quando pretendida referir, como aqui sucedeu – à não promoção pela entidade Expropriante da constituição da arbitragem no ano subsequente à efectivação dessa DUP. Vale isto por dizer que se essa não constituição da arbitragem puder ser referida ao comportamento relevantemente sugerido à Expropriante por um despacho judicial ou for decorrência de vicissitudes processuais exteriores a esta, a caducidade – é o que entendemos – não operará, não obstante a suspensão ou a interrupção do decurso de um prazo de caducidade carecer de uma previsão legal específica (artigo 328º do CC), aqui inexistente.

            Com efeito – e segue-se aqui a abordagem geral da questão da caducidade por António Menezes Cordeiro –, “[p]ergunta-se, agora, como decidir nos casos em que se tenha impedido o titular do direito de intentar a tempo a acção impeditiva da caducidade e, depois, se tenha vindo invocar esta última. Na falta de outra norma que permita manter a justiça, haverá que fazer apelo ao princípio da boa fé, de tal modo que a acção se tenha por intentada no momento em que se verificou a perturbação impeditiva”[18].

            Ora, tendo presente que os Expropriados requereram, nos passos preliminares do processo, em Outubro de 2008 (cinco meses após a publicação da DUP), que a promoção da arbitragem “passasse” do Expropriante para o Tribunal, lançando mão da faculdade prevista no artigo 42º, nº 2 e 3 do CE, tendo isto presente, dizíamos, não vemos como se poderá, sem forçar algo o significado das coisas, ver na subsequente hesitação (chamemos-lhe assim) do Expropriante em promover a arbitragem – arbitragem cuja promoção deixaria, como deixou (v. item [11] dos factos), de lhe caber, face ao previsível atendimento da pretensão dos Expropriados – a situação de inércia que justifica a caducidade da DUP. Aliás, o Expropriante até tentou, como os autos documentam a fls. 161/162, durante a atribulada marcha do processo, organizar a arbitragem necessária.

            O carácter quase intuitivo desta constatação emerge da simples leitura do conteúdo do artigo 42º do CE, colocando-se um ênfase particular nos trechos deste directamente convocados pelo requerimento inicial dos Expropriados:

Artigo 42º
(Promoção da arbitragem)
1 – Compete à entidade expropriante, ainda que seja de direito privado, promover, perante si, a constituição e o funcionamento da arbitragem.
2 – As funções da entidade expropriante referidas no número anterior passam a caber ao juiz de direito da comarca do local da situação do bem ou da sua maior extensão em qualquer dos seguintes casos:
a) -----------------------------------------------------------------------------------;
b) -----------------------------------------------------------------------------------;
c) -----------------------------------------------------------------------------------;
d) -----------------------------------------------------------------------------------;
e) Nos casos previstos nos artigos 15º e 16º;
f) -------------------------------------------------------------------------------------
3 – O disposto nas alíneas b), c), d) e e) do número anterior depende de requerimento do interessado, decidindo o juiz depois de notificada a parte contrária para se pronunciar no prazo de 10 dias.
4 – ---------------------------------------------------------------------------------.

            Com efeito, competindo, em princípio, a promoção da arbitragem necessária ao Expropriante (citado artigo 42º, nº 1), essa competência transfere-se para o Juiz da Comarca (mesmo artigo 42º, nº 2, corpo), nas expropriações de carácter urgente (mesmo artigo 42º, nº 2, alínea e), v. artigo 15º, cfr. o teor da DUP a fls. 6), quando essa transferência for requerida – como aqui foi – pelo interessado/Expropriado (mesmo artigo 42º, nº 3), sendo que esta incidência processual – que, repete-se, aqui se concretizou – não pode deixar de ser vista como uma transferência do ónus da promoção da arbitragem do Expropriante para o Tribunal, perdendo sentido a caducidade, enquanto desvalor comportamental atribuível a este, pois só a atribuição a este desse desvalor propiciaria a cobertura teleológica do artigo 13º, nº 3 do CE, relativamente à caducidade da expropriação.  

            2.1.2. E esta asserção é confirmada, com um particular reforço significativo, se tivermos presente a incidência do despacho de fls. 59 (despacho de 15/12/2008; cfr. item [5] dos factos), enquanto elemento indutor de um determinado comportamento dos sujeitos processuais por ele abrangidos, em função da percepção da realidade processual desta expropriação por ele projectada nesses sujeitos.

            Foi neste sentido que invocámos acima, no texto deste Acórdão, o artigo 236º do CC, referente ao “sentido normal da declaração”, fazendo-o incidir na operação de interpretação de um despacho judicial. Com efeito, a transposição desse quadro referencial (estabelecido para efeito de interpretação e integração dos negócios jurídicos, artigos 236º a 239º do CC) vem sendo aceite por parte significativa da doutrina e da jurisprudência, relativamente à interpretação de pronunciamentos judiciais (actos processuais distintos dos actos postulativos das partes)[19], sendo que esse referencial – aqui actuante através do recurso ao artigo 236º, nº 1 do CC – faz sobressair, neste concreto caso, enquanto regra de conduta transmitida pelo Tribunal (“declarante”) ao Expropriante (“declaratário”) – pelo menos como regra de conduta relevantemente intuída pelo Expropriante na ulterior condução da expropriação – uma injunção comportamental dirigida a este de abstenção de promoção da realização da arbitragem necessária[20]. Aliás, esse entendimento do despacho de fls. 59 sobressai da compaginação deste (não obstante dirigido à evitação da efectivação da posse administrativa e ao início das obras[21]) com a realidade da adjectivação desta expropriação relevantemente introduzida pelo requerimento dos Expropriantes que originou este processo (o requerimento de fls. 2/4) e que viria – um pouco mais tarde que 01/06/2009, é certo – a ser acolhido pelo Tribunal no despacho de 13/07/2009 (v. nota 7, supra). Aliás, reforçando a outorga deste sentido ao despacho de fls. 59, temos a pretensão dirigida ao Tribunal pelo Expropriante em 12/03/2009 (v. item [10] dos factos), que não suscitou qualquer atitude ou esclarecimento por banda do destinatário

Seja como for, se o início da fase judicial (em rigor poderíamos dizer: a ultrapassagem da fase administrativa ou a transferência da expropriação para o Tribunal) resultou aqui de uma pretensão dos Expropriados a que a “promoção da arbitragem” transitasse do Expropriante para o Tribunal (é esse o sentido do artigo 42º, nº 2 do CE), pretensão esta que viria a ser acolhida mais tarde, em 13/07/2009 – mas que ficou processualmente latente desde que foi formulada –, sendo o sentido da pretensão dos Expropriados esta, como efectivamente foi, não podemos aceitar que o comportamento do Expropriante coerente com a sua cessação de competência para directamente promover a arbitragem, lhe seja aqui imputado a título de desvalor que expresse inércia, quando foi esta inércia (a dele Expropriante) que a posição processual dos Expropriados pretendeu induzir com o requerimento inicial, formulado nos termos do artigo 42º, nº 3 do CE. E isto, para mais, quando essa inércia acabou por ser fortemente indicada pelo aludido despacho de fls. 59, em termos tão sugestivos que, ficcionando aqui o comportamento alternativo do Expropriante (continuar a promover a arbitragem), ficam-nos sérias dúvidas se isso não seria encarado, pelos Expropriados e pelo próprio Tribunal, como não observância da tramitação aplicável em função do rito processual induzido pelo requerimento inicial dos Expropriados.

2.2. Valem estas considerações em desabono da decisão recorrida. Com efeito – e é o que decisoriamente haverá que considerar na solução do presente recurso –, requerida que foi a transferência da promoção da arbitragem para o Tribunal, enquanto ónus de adjectivação da expropriação na fase arbitral necessária, cessou a competência do Expropriante para essa promoção (e cessou, por tutela da aparência induzida pelo requerimento de fls. 2/4, desde logo com este requerimento), transferindo-se ela para o Tribunal. Bloqueou, pois, esta vicissitude, a consideração da caducidade da DUP por não promoção da arbitragem, enquanto desvalor comportamental atribuído ao Expropriante.

Aliás, para sermos precisos (e até para sermos justos) na imputação subjectiva da circunstância de não ter sido organizada a arbitragem no ano subsequente à DUP, teríamos de atribuir, subsequentemente a 29/10/2008 (data do requerimento de fls. 2/4), essa incidência aos próprios Expropriados ou até ao Tribunal (v. a ausência de despacho face ao requerimento do Expropriante de 12/03/2009).

É esta constatação, posicionada no quadro interpretativo do artigo 13º, nº 3 do CE acima traçado, que nos leva a afastar a verificação da caducidade da DUP.

2.3. Procedendo o recurso – é o que decorre das antecedentes considerações –, resta-nos, antes da formulação da necessária decisão da apelação, deixar aqui sumariado o percurso interpretativo empreendido por esta Relação para alcançar tal resultado:
I – A declaração de utilidade pública, enquanto acto desencadeador da expropriação, abre um procedimento que, na sua primeira fase (arbitragem necessária), se estrutura por referência a um ónus de impulso e condução processual impendente sobre o Expropriante (artigo 42º, nº 1 do CE);
II – Esse ónus de promoção da arbitragem necessária é transferido para o Tribunal, nos casos de expropriação declarada urgente, quando o Expropriado o requeira, nos termos do artigo 42º, nº 3 do CE;
III – A caducidade da declaração de utilidade pública por não promoção da constituição do tribunal arbitral, prevista no artigo 13º, nº 3 do CE, pressupõe a permanência do referido ónus de promoção da arbitragem no Expropriante;
IV – É, pois, incompatível essa caducidade com uma anterior transferência desse encargo para o Tribunal, por ter sido requerida essa transferência nos termos do nº 3 do artigo 42º do CE;
IV – O artigo 236º do CC é aplicável à interpretação de uma decisão judicial.  


III – Decisão

            3. Face ao exposto, na procedência da apelação, decide-se revogar o despacho recorrido (despacho de fls. 333/351), devendo o Tribunal a quo, em cumprimento deste Acórdão, fazer prosseguir a expropriação, resolvendo as outras questões equacionadas no trecho inicial desse despacho (a fls. 333), questões cuja não resolução resultou de estarem elas prejudicadas pela decisão aqui revogada.

            Sem custas, como se observou na decisão recorrida, por subsistente aplicação ao caso do artigo 3º, nº 1, alínea d) do Código das Custas Judiciais (cfr. artigo 27º do Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro).

           
J. A. Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] O que vale por dizer que se trata de processo iniciado posteriormente à entrada em vigor (em 01/01/2008) do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, sendo-lhe aplicáveis, por isso, as alterações ao regime dos recursos introduzidas por este último Diploma (v. os respectivos artigos 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Pela mesma razão, qualquer disposição do Código de Processo Civil adiante referida neste Acórdão, cujo texto tenha sido alterado pelo DL 303/2007, sê-lo-á na versão resultante deste Diploma.
[2] Note-se, todavia, que não são os únicos Expropriados.
[3] Como lei vigente ao tempo da DUP (que foi publicada em Diário da República em 29/05/2008, v. fls. 6) está aqui em causa o Código das Expropriações aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, com as alterações introduzidas pelas Leis nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro e nº 56/2008, de 4 de Setembro.
[4] Ao longo do texto deste Acórdão, designadamente através do elenco dos factos a considerar na apreciação do recurso (v. item 2., infra), serão indicadas os elementos fundamentais que caracterizaram o decurso do processo na instância precedente.
[5] Os referidos Expropriados vieram nesse requerimento – invocando que estava marcada data para a “posse administrativa” do edifício – requerer que fosse dada sem efeito, pelo Tribunal, essa diligência:
“[…]
[T]endo em conta o preceituado no artigo 21º do CE e também pelo facto de V. Exa. ainda não se ter pronunciado sobre as nulidades arguidas nas reclamações dos interessados, e sendo certo que só esse Tribunal tem competência para o efeito, requer-se que seja dado sem efeito a data de 17/12/2008 para a posse administrativa e que a mesma não seja efectuada enquanto não estiverem dirimidas todas as questões e nulidades suscitadas quanto à «vistoria ad perpetuam rei memoriam»”.
[…]”
                [transcrição de fls. 57]
Neste mesmo requerimento, descrevem e qualificam os Expropriados o comportamento da Expropriante nos seguintes termos:
“[…]
Porém o Senhor Presidente da Câmara Municipal, bem sabendo que foram arguidas as referidas nulidades, bem sabendo que correm termos procedimento cautelar e acções especiais que visam a nulidade da Declaração de Utilidade Pública, teima mais uma vez em ter uma postura de sobreposição e desafio à lei e aos Tribunais e marca para o próximo dia 17/12/2008, pelas 10h30m a posse administrativa do imóvel.
[…]”
                [transcrição de fls. 57]
[6] Este despacho não integra o suporte em papel do processo, constando, todavia, do registo dos autos no sistema citius (registo nº 1119427, conclusão de 03/07/2009 e despacho de 13/07/2009); percebe-se, assim, que o Exmo. Juiz a quo ateve-se, no despacho aqui recorrido, à tramitação registada no sistema citius.
[7] Interessam-nos aqui os seguintes segmentos da norma em questão:

Artigo 13º
(Declaração de utilidade pública)
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3 – Sem prejuízo do disposto no nº 6, a declaração de utilidade pública caduca se não for promovida a constituição da arbitragem no prazo de um ano ou se o processo de expropriação não for remetido ao tribunal competente no prazo de 18 meses, em ambos os casos a contar da data da publicação da declaração de utilidade pública.
4 – A declaração de caducidade pode ser requerida pelo expropriado ou por qualquer interessado ao tribunal competente para conhecer do recurso da decisão arbitral ou à entidade que declarou a utilidade pública e a decisão que for proferida é notificada a todos os interessados.
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[8] Como correctamente se observou na decisão apelada, citando o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/05/2009 (M. Pinto dos Santos), disponível na base do ITIJ na pesquisa nos campos indicados ou, directamente, no seguinte endereço: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ca757fe4fd8f4bf68. É o seguinte o sumário deste aresto:
I – A contagem dos prazos estabelecidos no CE para a promoção da arbitragem, para a notificação dos árbitros (a fim de realizarem a arbitragem) e para a remessa do processo a tribunal está sujeita às regras fixadas nos artigos 72º e 73º do CPA e não às previstas nos artigos 144º e 145º do CPC.
II – Isto porque os actos em questão estão integrados na fase não judicial do processo de expropriação litigiosa (que se inicia com a DUP e termina com a remessa dos autos a tribunal), não podendo os prazos para a sua prática ser, por isso, havidos como prazos judiciais.
[9] No CPA, a contagem de prazos legalmente fixados em mais de seis meses inclui sábados, domingos e feriados (v. o respectivo artigo 72º, nº 2). Segue-se neste diploma, fundamentalmente, o regime do artigo 279º do Código Civil, não se incluindo na contagem o próprio dia do evento desencadeador do prazo (aqui o dia 29/05/2008; inicia-se a contagem, portanto, em 30/05/2008), sendo que a circunstância do termo final do prazo cair, como aqui sucede, num sábado, transfere esse termo para o subsequente dia útil (aqui para segunda-feira dia 01/06/2009).
[10] Quem promoveu a realização da arbitragem – e bem dado o requerimento inicial dos Expropriados, nos termos do artigo 42º, nº 3 do CE – foi o próprio Tribunal, como decorre do despacho de fls. 294 (v. também o item [17] do elenco fáctico). De qualquer forma, não deixará de se sublinhar o requerimento do Expropriado de fls. 161, expressando o empenho deste na organização da arbitragem.
[11] V. Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. II, Coimbra, 2010, p. 205. Esta asserção foi expressamente assumida pelo Tribunal Constitucional (a propósito de uma questão de inconstitucionalidade formal) no Acórdão nº 244/90 (Mário de Brito), disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900244.html: “[…] as normas que estabelecem um prazo de caducidade da DUP […] constituem elas próprias uma expressão da garantia [do direito de propriedade]”.
[12] Assim caracteriza Fernando Alves Correia a DUP (Manual…, cit., p. 382).
[13] Estamos perante uma caducidade que carece de invocação pelo interessado, nos termos dos artigos 333º, nº 2 e 303º do CC [v. a caracterização desta incidência, entre outros, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 09/06/1994 (Cortez Neves), in Expropriações por Utilidade Pública – Jurisprudência, Colectânea de Jurisprudência 1976-2006, Coimbra, s.d., pp. 91/93].
[14] “Toda a norma que discipline a expropriação deve ser entendida como uma norma restritiva do direito fundamental de propriedade […]. O direito a não ser privado da propriedade consagrado no artigo 62º, nº 1 da Constituição; a expropriação por utilidade pública e a requisição, previstas no nº 2 do mesmo artigo, são apenas casos de restrição daquele direito fundamental, não integrando o seu conceito” (Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Coimbra, 2007, p. 994).
[15] “Embora a Constituição não o explicite, a garantia da propriedade implica o reconhecimento do direito de reversão a favor dos proprietários expropriados, se os bens não forem utilizados ou aplicados ao fim justificativo da expropriação durante um lapso de tempo razoável […], pois isso mostra que, afinal, não havia uma necessidade actual da expropriação para realização do interesse público invocado […]” (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, CRP, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª ed. Revista, Coimbra, 2007, p. 809).

[16] “A propriedade em sentido constitucional não consiste no património dos cidadãos, mas nas suas posições jurídicas com valor patrimonial.

[…]
A distinção entre uma função primária, ou de defesa, e uma função secundária, ou de compensação, da garantia da propriedade, corresponde à ideia de que essa garantia não consiste, em primeira linha, numa «garantia de valor», mas sim numa «garantia de permanência» […]. Isso significa também […] que a transformação da «garantia de permanência» numa «garantia de valor» apenas ocorre quando se verifiquem os pressupostos de uma expropriação legítima ou de um legítimo acto de nacionalização ou socialização de meios de produção. Mais ainda, as duas dimensões da garantia individual da propriedade e a relação de prioridade que entre elas se estabelece, conduzem a uma distinção entre garantia de valor de uso e garantia de valor de troca. A garantia de permanência é uma garantia de valor de uso dos concretos direitos de propriedade, tal como eles existem na ordem jurídica; pelo contrário, apenas em caso de expropriação ou nacionalização, em que a garantia de permanência dá lugar a uma garantia de valor, é assegurado ao proprietário o valor de troca (ou valor de mercado) do bem expropriado ou nacionalizado. Assim, no âmbito da sua tarefa de determinação do conteúdo e limites da propriedade, o legislador está obrigado a preservar o valor de uso dos bens objecto da propriedade, nos termos em que eles são configurados num caso concreto, e só num caso de afectação de tais bens que reúna os pressupostos de uma expropriação ou nacionalização se pode falar numa garantia do valor de troca” (Miguel Nogueira de Brito, A Justificação da Propriedade…, cit., pp. 975/976).
[17] É em torno desta ideia de separação, no quadro da aferição da caducidade da DUP, entre uma fase administrativa (necessária) e uma fase judicial que se estrutura o percurso argumentativo do Acórdão da Relação do Porto indicado na nota 9, supra.
[18] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo IV, Coimbra, 2005, pp. 223/224.
[19] Na doutrina constitui trabalho de referência na abordagem deste problema a dissertação de doutoramento de Paula Costa e Silva, Acto e Processo. O dogma da irrelevância da vontade na interpretação e nos vícios do acto postulativo, Coimbra, 2003, pp. 63/65 e 406/411 (note-se que o objecto deste estudo se refere aos actos postulativos das partes, tratando lateralmente da questão da fixação do sentido de uma decisão). Na jurisprudência, v., entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 1997 (Silva Paixão), na Colectânea de Jurisprudência – Supremo Tribunal de Justiça, tomo I/1997, pp. 83/85.
[20] Lembram-se aqui considerações de António Menezes Cordeiro, tecidas a propósito do sentido do artigo 236º, nº 1 do CC: “[f]iça, assim, uma fasquia objectivamente variável: em cada caso se construirá (a «posição do real declaratário»), normativamente, a figura do destinatário normal. Repare-se que por esta via, podem ser recuperadas regras não explícitas na nossa lei tais como a da validação da interpretação mais directa, perante fórmulas muito claras e evidentes (in claris non fit interpretatio), a de uma «interpretação de boa fé», consagrada nos Códigos alemão (§ 157) e italiano (artigo 1366º) ou como necessidade de atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato –, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e, à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores” (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 761).
[21] Note-se que esse despacho transitou e, portanto, não cabe aqui controlá-lo (além de que ficou ultrapassado pela resolução, através do despacho de fls. 281/287, das reclamações contra a vistoria ad perpetuam rei memoriam). Todavia, não deixará de se observar que a atribuição de carácter urgente à expropriação (carácter que os Expropriados pressupuseram no requerimento inicial) teria como consequência conferir de imediato à entidade expropriante a posse administrativa dos bens expropriados (artigo 15º, nº 3 do CE).