Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1622/18.9T9VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE FRANÇA
Descritores: INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO PARA COBRANÇA COERCIVA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENOR
VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
PEDIDO CÍVEL EM SEPARADO
RENÚNCIA AO DIREITO DE QUEIXA
Data do Acordão: 10/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VISEU (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE VISEU – J2)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART. 72.º, N.º 2, DO CPP; ARTIGO 250.º DO CP
Sumário: A propositura de incidente de incumprimento de alimentos em momento anterior ao da dedução de queixa, relativa a crime de violação da obrigação de alimentos, p. e p. no artigo 250.º do CP, não tem o efeito previsto no artigo 72.º, n.º 2, do CPP, ou seja, não vale como renúncia ao direito de queixa.
Decisão Texto Integral:












ACORDAM NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

            A encerrar os autos de Inquérito que, sob o nº 1622/18.9T9VIS, correram termos pela 2ª Secção do DIAP de Viseu, o Digno Magistrado do MP formulou acusação contra o arguido A., imputando-lhe a prática, em autoria material, sob a forma consumada de um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo artigo 250.º, n.º 3, do Código Penal.

            Remetidos os autos a juízo, foi proferido despacho do seguinte teor integral:

Dispõe o artigo 311º, do Código de Processo Penal, que:

“1- Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.

No caso vertente o arguido A. encontra-se acusado da prática de um crime de violação de obrigação de alimentos p. e p. pelo art. 250º, nº 3 do Código Penal.

Tal crime reveste natureza semi-pública (cfr. nº 5 do mesmo preceito).

Nos termos do artigo 71º, nº 2 do CPP – “No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito”.

Verificamos, assim, que nos crimes semi-públicos e particulares se o titular do direito de queixa ou de acusação particular e, previamente ao exercício de acção penal, tiver deduzido o pedido cível em separado, estabelece o legislador que renuncia ao direito de queixa, não sendo possível manter o procedimento criminal em paralelo ao procedimento civil.

Por outro lado, estatui o artigo 116º, nº 1, do CP, que o direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduza.

Conforme resulta dos factos narrados na acusação e da prova documental junta aos autos a aqui queixosa (…) interpôs em 3/01/2018 um incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra o aqui arguido, com vista ao pagamento de determinadas quantias, alusivas às prestações de alimentos em falta, devidas à menor em causa nos presentes autos (cfr. fls. 30, 32 e 39).

Ora, não obstante ter deduzido previamente tal incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, apresentou posteriormente a queixa que deu origem, aos presentes autos em 14/06/2018, com base na prática dos mesmos factos, que, em simultâneo, tipificam a violação de um bem jurídico tutelado pela lei penal e são geradores de responsabilidade civil.

Donde se conclui que, por ter instaurado previamente o referido incidente de incumprimento de natureza cível a dita (…) renunciou ao direito de queixa, atento o disposto pelo art. 72º, nº 4 do Código de Processo Penal.

Com efeito, “a acção penal pelo crime de violação da obrigação de alimentos não pode ser prosseguida pela mãe da menor em causa, que se socorreu do incidente de natureza cível para obter o pagamento dos alimentos em dívida à filha, já que, tendo o crime natureza sempública, a instauração daquele incidente implica renúncia ao direito de queixa” (neste sentido veja-se o Ac. TRP de 11-06-2014, relatado por Augusto Lourenço, in CJ, 2014, T3, pág.252).

Importa, assim, declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, por via da renúncia ao direito de queixa, ficando, consequentemente prejudicado o conhecimento do mérito da causa.

Face ao exposto, e ao abrigo do disposto pelo art. 72º, nº 4 do Código de Processo Penal e 116º, nº 1 do Código Penal, julgo extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido A., por via da mencionada renúncia ao direito de queixa, e, em consequência, determino o oportuno arquivamento dos autos.

Notifique.

Inconformado, o Digno Magistrado do MP interpôs o presente recurso, que motivou, concluindo nos seguintes termos:

1.ª O presente recurso impugna o douto Despacho de 11 de Fevereiro de 2019 que não recebeu a acusação pública deduzida contra o arguido A., pela prática, em autoria material, sob a forma consumada de um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo artigo 250.º, n.º 3, do Código Penal, por entender que a denunciante, (…), ao ter instaurado incidente de incumprimento de natureza cível, anterior à apresentação da queixa que esteve na génese dos presentes autos, renunciou ao direito de queixa, e por conseguinte assim ficava prejudicado o conhecimento do mérito da causa, declarando extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido.

2.ª O douto despacho recorrido, ao decidir como decidiu, enferma do vício de violação de lei, por errada interpretação e aplicação da mesma, nomeadamente viola o disposto nos artigos 72.º, n.º 2, 311.º, n.º 1, ambos do CPP e nos artigos 116.º e 250.º, ambos do CP.

3.ª Não se olvida que o crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo artigo 250.º, n.º 3, do Código Penal, é um crime com natureza semi-pública.

4.ª Porém, a instauração de incidente de natureza civil perante o Tribunal Civil, para obter o pagamento de alimentos devidos a menores em dívida, antes do exercício do direito de queixa, não vale como renúncia implícita a este direito de queixa - neste sentido o Acórdão da Relação de Lisboa, de 16-02-2017 (disponível in www.dgsi.pt).

5.ª Antes de 1995, para existir um procedimento criminal, era requisito necessário o esgotamento das vias civis de cobrança.

6.ª Porém, com a introdução do artigo 250.º do C.P. pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, deixou de ser necessária o esgotamento das vias civis para que o incumpridor seja sujeito ao procedimento criminal.

7.ª Pois, que “…no tipo legal do artigo 250.° do C.P., não está em causa apenas o mero incumprimento de uma obrigação legal de prestar alimentos, que é uma obrigação civil, mas essencialmente, a protecção do titular do direito a alimentos face ao perigo de não satisfação das necessidades fundamentais, pressupondo que o incumprimento da obrigação ponha em perigo a satisfação das necessidades fundamentais de quem tenha direito a alimentos e que não é claramente um pedido de indemnização cível (devido a factos delituais ou criminosos) conforme estabelece o artº 72º nº 2 do CPP.” - cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 16-02-2017 (disponível in www.dgsi.pt).

8.ª O entendimento que, a propositura do incidente de incumprimento de alimentos anterior à dedução de queixa faz precludir esta, de forma tácita, é fazer uma aplicação audaciosa do art. 72.º, n.º 2, do CPP, já que a mesma não faz referência aos incidentes de cobrança coerciva de alimentos.

9.ª O artigo 72.º, n.º 2, do CPP, apenas refere que um pedido/acção de indemnização civil, preclude a queixa nos crimes semi-públicos ou particulares, o que não é de todo a mesma coisa do que um incidente de incumprimento de prestações alimentícias.

10.ª O incidente de incumprimento de alimentos tem já em si intrínseco, uma natureza executiva, sendo que deriva e está respaldado por uma sentença transitada em julgado.

11.ª Um incidente de incumprimento para cobrança coerciva de alimentos devidos a menores não é um pedido de indemnização civil e não pode ser confundido como tal.

12.ª No incidente de incumprimento para cobrança coerciva de alimentos não lhe estão associados, de forma alguma, os requisitos exigidos na acção de indemnização - exigidos pelo n.º 2 do art. 72.º do CPP – a saber: o facto ilícito; a culpa; o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, e só a estes, apenas a estes, se reporta a renúncia tácita consagrada no n.º 2 do art.º 72.º do CPP.

13.ª Ademais, note-se, inclusive, que o n.º 3 do art. 250.º do CP refere que: “Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.”

14.ª Ou seja, já não é só o não cumprimento da prestação que é punido, é também a circunstância de que, com este comportamento, o arguido coloca em perigo necessidades fundamentais do alimentando, caso este não tivesse a ajuda de um terceiro.

15.ª Este número transporta um plus de ilicitude relativamente ao n.º 1 do art. 350.º do CP, sendo que, esta conduta, a ter acolhimento o fundamento do despacho recorrido, deixaria a descoberto de punição situações mais gravosas que o mero não pagamento da prestação.

16.ª Um incidente de cobrança coerciva de alimentos devidos a menores ou uma acção de execução, resultante do não cumprimento pelo arguido de uma sentença de regulação das responsabilidades parentais na vertente de alimentos, em virtude daquele não ter claramente as características de um “pedido cível”, conforme está definido pelo art. 72.º, n.º 2, do CPP, não produz os efeitos assacados no despacho em recurso.

17.ª A denunciante podia proceder a queixa-crime pelo crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo artigo 250.º do Código Penal depois de ter intentado o competente incidente de incumprimento por falta de cumprimento da prestação alimentícia, não existindo qualquer renúncia tácita ao direito de queixa por via da aplicação do n.º 2 do art. 72.º do CPP.

18.ª Ante o exposto, e na decorrência de uma correcta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 72.º, n.º 2 e 311.º, n.º 1, ambos do CPP e nos artigos 116.º e 250.º, ambos do CP, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público pela prática pelo arguido de um crime de violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo artigo 250.º, n.º 3, do Código, e designe data para realização da audiência de discussão e julgamento.

Termos em que, e sempre com o douto suprimento de V. EXAS. deve o presente recurso ser recebido, ser julgado procedente por provado, e em consequência ser revogado o despacho recorrido e substituído por outro que receba a acusação deduzida pelo Ministério Público por um crime violação de obrigação de alimentos, p. e p. pelo artigo 250.º, n.º 3, do Código Penal, e designe data para realização da audiência de discussão e julgamento. V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça!

            Não houve resposta.

            Nesta Relação, o Ex.mo PGA, mostrando plena concordância com a argumentação do recurso, conclui no mesmo sentido.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

DECIDINDO:

            A questão essencial em discussão no presente recurso prende-se com aquela de saber se, no âmbito dos crimes de natureza semi-pública, como é o caso presente, a interposição de incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra o arguido equivale à renúncia ao direito de queixa, determinando assim a extinção do procedimento criminal (artº 72º, 2, CPP).

            Pretende o despacho impugnado que sim, enquanto o Digno Magistrado do MP, subscritor do recurso, defende o contrário.

            Começaremos por dizer que, no essencial, estamos de acordo com a bem fundada motivação do recurso que, por essa razão, seguiremos de perto.

            O crime em causa, de violação de obrigação de alimentos, p.p. pelo artigo 250.º, n.º 3, do Código Penal, por que vem acusado o arguido, reveste-se de natureza semi-pública.

É a seguinte a redacção desse artº 250º, na parte que agora nos interessa:

(…)

3 - Quem, estando legalmente obrigado a prestar alimentos e em condições de o fazer, não cumprir a obrigação, pondo em perigo a satisfação, sem auxílio de terceiro, das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

(…)

5 - O procedimento criminal depende de queixa.

            Por seu lado, estabelece o nº 2 do artº 72º do CPP que:

2 - No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.

            Está aqui em causa a hermenêutica dessas normas, de forma a determinar se a circunstância que resulta dos autos, de a queixosa (…) ter deduzido, em 3/1/2018, um incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra o aqui arguido, com vista ao pagamento de determinadas quantias, relativas às prestações de alimentos em falta, devidas à menor em causa nos presentes autos equivale à renúncia ao direito de queixa, determinante da impossibilidade legal do seu exercício (v. o artº 116º, 1 do CP).

            Nessa tarefa de interpretação, começaremos por relevar a natureza específica do incidente de incumprimento e da própria obrigação de alimentos pois que a sua natureza e regime jurídico vão muito para além da dedução de um mero pedido civil, em regra reparador das consequências do próprio crime ou de responsabilidade aquiliana a ele directa ou indirectamente ligada.

            Naquele, dada a sua natureza específica, mais do que a dedução de um pedido daquela natureza, está em causa a efectivação de uma obrigação de alimentos, pré-existente; daí atribuir-se natureza executiva à instauração do incidente de incumprimento, o que vai muito além da dedução do pedido de indemnização civil, ainda de natureza declarativa. Por outro lado, há que colocar a tónica na protecção do titular do direito a alimentos, acautelada pelo incidente em causa.

            Estamos, assim, de acordo com a jurisprudência do Acórdão da Relação de Lisboa, de 16-02-2017 (disponível in www.dgsi.pt), quando afirma que «… no tipo legal do artigo 250.° do C.P., não está em causa apenas o mero incumprimento de uma obrigação legal de prestar alimentos, que é uma obrigação civil, mas essencialmente, a protecção do titular do direito a alimentos face ao perigo de não satisfação das necessidades fundamentais, pressupondo que o incumprimento da obrigação ponha em perigo a satisfação das necessidades fundamentais de quem tenha direito a alimentos e que não é claramente um pedido de indemnização cível (devido a factos delituais ou criminosos) conforme estabelece o artº 72º nº 2 do CPP».

Por outro lado, como se afirma na motivação do recurso, «um pedido/acção de indemnização civil não é, de todo, a mesma coisa do que um incidente de incumprimento para a obtenção de alimentos não pagos. O incidente de incumprimento de alimentos tem já em si intrínseca, uma natureza executiva, sendo que deriva e está respaldado por uma sentença transitada em julgado».

O elemento objectivo do crime, no nosso caso, é integrado pela circunstância de o arguido estar onerado com uma obrigação legal de alimentos, pré existente, que, por essa razão não irá ser efectivado mediante a dedução de um pedido de indemnização civil; a obrigação existe e é o fundamento do crime. Desse modo, o agente põe em perigo necessidades fundamentais do alimentando, sem auxílio de terceiro.

Ou seja, à ilicitude referente ao mero incumprimento acresce aquela resultante do perigo criado, não fora a intervenção de terceiros.

Tudo para concluir que a simples interposição de incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra o arguido não equivale à renúncia ao direito de queixa (artº 72º, 2, CPP).

Termos em que, na procedência do recurso, se revoga o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, inexistindo outra causa de não recebimento da acusação pública, designe data para a realização da audiência de discussão e julgamento.

Recurso sem tributação.

Coimbra, 23 de Outubro de 2019

Jorge França (relator)

Alcina da Costa Ribeiro (adjunta)