Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
61/05.6TBSPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TERESA PARDAL
Descritores: EMPREITADA
INDEMNIZAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
NULIDADE DE SENTENÇA
Data do Acordão: 09/07/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: S.PEDRO DO SUL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.334, 342, 798, 1207, 1218, 1221, 1222, 1223 CC, 668 CPC
Sumário: 1. Cabe ao autor, empreiteiro, o ónus de provar que o valor do IVA faz parte do preço a ser suportado pela dona da obra.

2. A nulidade da sentença por oposição entre a decisão e os fundamentos pressupõe um vício no raciocínio, que não se verifica se na sentença se opta por uma solução jurídica devidamente fundamentada.

3. Os danos causados pelo empreiteiro em bens do dono da obra que não são objecto do contrato ( danos extra rem ) e que são resultado da violação de deveres acessórios, geram responsabilidade civil extracontratual, à qual se aplicam as regras gerais, que não as do contrato de empreitada( arts. 1221º e 1222º do CC) e a obrigação.

Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

J (…) intentou a presente acção declarativa com processo ordinário contra C (…) alegando, em síntese, que no exercício da sua actividade de construção civil acordou com a ré em executar-lhe diversos trabalhos pelo preço de 10 200,00 mais IVA, no montante global de 12 138,00 euros, do qual a ré só pagou 4 000,00 euros, encontrando-se em dívida os restantes 8 138,00 euros, apesar de já terem sido efectuados todos os trabalhos.

Concluiu pedindo a condenação da ré a pagar-lhe 8 138,00 euros e juros à taxa legal desde a citação, até integral pagamento.

A ré contestou, alegando, em síntese, que o preço acordado dos trabalhos foi de 9 000,00 euros, do qual pagou 4 000,00 euros, faltando pagar apenas 5 000,00 euros, mas tendo o autor executado o trabalho sem cuidado, deixando entrar água das chuvas dentro da casa da ré e assim causando danos no valor de 14 000,00 euros, que a ré despendeu e tendo ainda executado o trabalho com diversos defeitos a cuja reparação a ré procedeu, despendendo mais 2 500,00 euros, tudo após ter comunicado ao autor a existência destes danos e defeitos e de lhe ter dito que os repararia, desde que não tivesse de pagar o resto do preço do contrato.

Concluiu pedindo a compensação do crédito do autor de 5 000,00 euros com o seu crédito de 16 500,00 euros e, em reconvenção, a condenação do autor a pagar-lhe a parte restante do seu crédito, no montante de 11 500,00 euros e juros à taxa legal desde a notificação do pedido reconvencional. 

O autor replicou mantendo o alegado na petição inicial, impugnando os defeitos e demais danos invocados pela ré, arguindo a caducidade do eventual direito à respectiva reparação e alegando ainda que não lhe foi dada oportunidade de reparar algum eventual defeito ou prejuízo, não estando na disponibilidade da ré proceder a tal reparação antes de exigir a eliminação dos defeitos.

Concluiu, pedindo a procedência da reconvenção e a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização de 2 500,00 euros por litigância de má fé.

A autora treplicou opondo-se ao pedido de condenação por litigância de má fé e mantendo o alegado na contestação/reconvenção.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção da caducidade e procedeu-se a julgamento, findo o qual foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes a acção e a reconvenção e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 5 000,00 euros e juros e declarando operada a compensação do crédito do autor com o contra crédito da ré no montante de 8 379,30 euros e juros, condenando o autor a pagar à autora a parte não compensada do crédito desta.

                                                             *

Inconformado, o autor interpôs recurso da sentença, o qual foi admitido como apelação com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

O recorrente alegou, apresentando as seguintes conclusões:

1ª- Na óptica do autor e atenta a prova produzida nos autos, deveria ter-se dado por provada a matéria conducente à total procedência do pedido que formulou, devendo desde logo, ter-se por provada a matéria constante da 2ª parte do quesito 1º referente à aplicação da lã rocha para efeitos de isolamento e respectivo preço.  

2ª- Assim, deveria a douta decisão ter condenado a ré a pagar o valor de 9 000,00 euros já provado no douto Acórdão, mas acrescido de 1 200,00 euros, referente ao valor da lã de rocha ou de vidro, tudo ainda acrescido de IVA.  

3ª- Ou, caso assim não se entendesse, ao valor provado de 9 000,00 euros deveria acrescer o montante de 1 710,00 euros a título de IVA, tudo assim no valor de 10 710,00 euros deduzidos os já pagos 4 000,00 euros, pelo que, em alternativa, a ré deveria ter sido condenada a pagar ao autor a quantia de 6 710,00 euros.

4ª- Relativamente à matéria da reconvenção consta expressamente a fundamentação da decisão que “… não está demonstrado – aliás nem foi alegado – que o empreiteiro (autor) tenha incumprido definitivamente a sua obrigação ou que fosse premente ou instante a reparação dos defeitos.”.

5ª- Partindo deste pressuposto, a douta decisão cindiu a pretensão da ré/reconvinte negando-lhe o direito de exigir ao autor o pagamento da quantia correspondente à reparação dos defeitos, mas outorgando-lhe o direito de receber uma indemnização relativa aos danos que aquela alega ter sofrido em face do contrato que celebrou com o autor, estando assim os fundamentos em oposição com a decisão, sendo o douto acórdão nulo nessa parte (artº 668º-1 c) do C.P.Civil).

6ª- Nos termos do disposto nos artºs 1121º, 1222º, 1223º, do C. Civil, o dono da obra, in casu a ré/reconvinte, face a uma situação de incumprimento ou de cumprimento defeituoso do contrato está obrigado a seguir à risca o mecanismo legal, o qual pressupõe uma prioridade de direitos a serem exercidos por si:

7ª- Quer o cumprimento defeituoso da obra, quer os prejuízos provocados na mesma por inobservância da legis artis se situam no âmbito da responsabilidade contratual: estes últimos assumem a natureza de danos circa rem que não estão diferenciados da prestação fundamental, antes se perfilando como uma projecção do comprimento defeituoso.

8ª- Entende o autor que tanto a indemnização para pagamento da reparação dos defeitos como a relativa aos danos provenientes do cumprimento defeituoso não é lícita quando o dono da obra impede o cumprimento da obrigação pelo empreiteiro, como foi o caso.

9ª- A ré/reconvinte nunca interpelou o autor com vista à eliminação desses danos complementares, antes pelo contrário, afastou-o liminarmente dessa faculdade legal (G da matéria de facto assente).

10ª- Sempre a conduta da ré constitui verdadeiro abuso de direito (artº 334º C.Civil).

11ª- Deve ser julgado totalmente improcedente o pedido reconvencional.

12ª- A douta decisão recorrida violou o disposto nos artºs 334º, 1121º, 1222º, 1223º, do C.Civil e artº 668º c) do C.P.Civil.  

                                                            *

A recorrida contra alegou pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

A nulidade arguida nas alegações de recurso foi julgada improcedente pela Mmª Juiz a quo.

                                                            *

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões a decidir são:

I) Impugnação da matéria de facto.

II) Preço acordado pelas partes e valor do IVA.

III) Nulidade da sentença. 

IV) Natureza da responsabilidade do autor pelos danos causados pela entrada das águas das chuvas.

V) Abuso de direito.

                                                            *

                                                            *

FACTOS.

Os factos dados como provados na sentença são os seguintes:

1) O autor dedica-se, profissionalmente, à actividade da construção civil (A).

2) No exercício desta actividade, a solicitação da ré, o autor executou numa moradia daquela sita em ..., área desta comarca, diversos trabalhos, designadamente cobertura do telhado, com a área aproximada de 200 mts2, com substituição de telha e remate do telhado (B).

3) Por conta dos trabalhos efectuados a ré procedeu ao pagamento ao autor da importância de 4 000 euros (C).

4) Foi ainda acordado entre autor e ré a reparação, pelo primeiro, do ripado interior (forro do telhado) pelo preço de 1 500 euros (D).

5) O valor global das obras efectuadas pelo autor na moradia da ré ascendeu a 9 000 euros (E).

6) O autor não deixou as vigas do telhado chumbadas (4).

7) Não deixou tais vigas com entrada para suporte na parede (5).

8) Apenas encostou as telhas sem qualquer isolamento (6).

9) Entre as telhas encontravam-se folgas (7).

10) Junto aos cumes encontravam-se telhas partidas (8).

11) A parede da chaminé, na parte exterior que liga ao telhado, permitia infiltrações de águas (9).

12) O suporte do telhado no meio do vão foi edificado em ripas de cimento (10).

13) Tais ripas não ofereciam qualquer resistência ao peso do telhado (11).

14) A ré comunicou ao autor, por carta datada de 27.7.04, que iria proceder à reparação dos defeitos, não mantendo interesse em que fosse o autor a realizá-las (G).

15) Em consequência dos factos referidos em 12) e 13) a ré precisou de executar muros de suporte à estrutura de apoio ao telhado (12).

16) E à remoção e posterior recolocação dos “cumos” superior e lateral direito a fim de colocar a telha devidamente “encaixada” (13).

17) Teve necessidade de substituir as telhas partidas e recolocar a lã de vidro (14).

18) Nos trabalhos descritos em 15) a 17) a ré despendeu a quantia de 1 350 euros (15).

19) Durante a execução dos trabalhos o autor não acautelou a entrada das águas da chuva que então se fizeram sentir (3).

20) Em consequência do facto referido em 19) as águas pluviais infiltraram-se nos tectos e nas paredes, provocando a queda da tinta e do estuque (16).

21) Tais tectos e paredes tiveram de ser rebocados e posteriormente pintados (17).

22) Infiltraram-se as águas pluviais e humidades nas madeiras interiores das janelas, nos rodapés, nos móveis das salas e dos quartos e nas portas (18).

23) Tais madeiras tiveram por isso de ser polidas e pintadas ou vitrificadas (19).

24) Nos trabalhos referidos em 21) e 23) a ré despendeu a quantia de 8 379,30 euros (20).

25) Por carta datada de 27.7.04, destinada à ré e por esta recebida, e subscrita pelo ilustre mandatário do autor, em nome do ali seu cliente e aqui autor, refere-se: “O meu cliente … mandatou-me para proceder à cobrança coerciva de um débito de V. Exa no montante de 6 260 euros … acrescidos de IVA à taxa legal e referente a trabalhos realizados numa casa de habitação de V. Exa sito em.....” (F).    

                                                            *

                                                            *

ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

I) Impugnação da matéria de facto.

(…)

Não se detecta, pois, qualquer erro manifesto de julgamento, improcedendo a impugnação da matéria de facto.     

                                                            *

II) Preço acordado entre as partes e valor do IVA.

Conforme resulta dos factos provados e foi pacificamente decidido na sentença recorrida, o autor e a ré celebraram um contrato de empreitada, previsto nos artigos 1207º e seguintes do CC, modalidade do contrato de prestação de serviços, este contemplado no artigo 1154º do mesmo código.

Cabendo ao autor a obrigação de realizar a obra e à ré a obrigação de pagar o preço, desde logo divergem as partes sobre qual o montante do preço acordado.

Foi considerado provado, na sentença recorrida, que o preço das obras foi de 9 000,00 euros, ou seja, ficou provada a versão da ré.

E, tendo sido julgada improcedente a impugnação da matéria de facto nos termos supra expostos, não ficou provado que a este valor de 9 000,00 euros acrescesse qualquer outro valor adicional pela colocação da lã rocha.

Pretende também o recorrente que, mesmo que não se considere provado o valor adicional da colocação da lã rocha, seja considerado o valor do IVA sobre o preço de 9 000,00 euros.

Contudo, não ficou provado que as partes acordaram que o IVA era a cargo da ré.

Esse facto, tal como o valor do preço, na versão do autor, estava contido no quesito 2º, que foi julgado “não provado” e cuja redacção era a seguinte: “Como contrapartida dos trabalhos a efectuar pelo autor, incluindo aqueles referidos em D), foi acordado que a ré pagaria o preço de 10 200,00 euros, acrescido de IVA?”.

A resposta a este quesito não foi impugnada pelo recorrente; mas, mesmo que se entendesse como impugnação a reclamação do valor do IVA e do valor da aplicação da lã rocha, sempre se tinha de julgar improcedente a impugnação, pois, à semelhança do que se verifica na resposta ao quesito 1º acima analisada, nenhuma testemunha tinha conhecimento do conteúdo do acordo celebrado entre as partes, nomeadamente do valor do preço acordado e muito menos se o preço era ou não acrescido de IVA, sendo certo que a factura apresentada pelo recorrente, pelas razões também acima expostas, não é suficiente, nem credível para provar a versão do autor.

Deste modo, mesmo que o autor tenha pago o IVA correspondente à factura de fls 4, isso não significa que o valor da factura corresponde ao acordo das partes, assim como não significa que as parte acordaram que o IVA seria repercutido no preço e a suportar pela ré.

Trata-se de factos que cabia ao autor provar, nos termos do artigo 342º do CC, o que este não logrou fazer, pelo que improcedem as suas alegações também nesta parte.         

                                                            *

III) Nulidade da sentença.

Alega o recorrente que a sentença padece do vício de nulidade previsto no artigo 668º nº1 c) do CPC, por os fundamentos estarem em oposição com a decisão, ao ser reconhecido que não havia incumprimento definitivo, nem situação de urgência, mas considerando-se permitido que a ré pudesse efectuar as reparações de parte dos danos sem interpelar primeiro o autor para os reparar.

O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a nulidade e julgou-a improcedente, por entender que são diferentes os danos provenientes do cumprimento defeituoso e os danos causados no património da ré e considerando que estes últimos podiam ser reparados pela ré sem necessidade de prévia interpelação do autor.

Apreciando, desde logo se verifica que não existe qualquer nulidade.

Com efeito, a nulidade prevista na alínea c) do nº1 do artigo 668º pressupõe uma falta de lógica do raciocínio, o que não acontece no caso dos autos.

No entendimento do Tribunal a quo, a inexistência de incumprimento definitivo e de situação de urgência apenas é relevante no que diz respeito aos danos resultantes do cumprimento defeituoso – razão pela qual julgou a acção improcedente nessa parte – mas não no que diz respeito aos danos causados no património da ré resultantes da acção do autor, sendo essa distinção que fundamenta a procedência da acção relativamente à indemnização pela reparação destes últimos danos, a que se refere o artigo 1223º do CC.

Não existe aqui falta de lógica no raciocínio, logo, não existe contradição entre os fundamentos e a decisão, não tendo sido cometida a nulidade arguida.

Questão diferente é a de saber se estes fundamentos procedem, ou seja, se a questão de fundo está ou não bem decidida, questão essa que será apreciada seguidamente.    

                                                             *

IV) Natureza da responsabilidade do autor pelos danos causados com a entrada das águas das chuvas.     

Tal como acima se expôs, as partes celebraram um contrato de empreitada.

Este contrato foi cumprido pelo autor de forma defeituosa, conforme consta nos pontos 6 a 13 dos factos provados da sentença recorrida, tendo a ré despendido a quantia de 1 350,00 euros a reparar os defeitos da obra (pontos 15 a 18).

O cumprimento defeituoso determina a responsabilidade contratual do devedor, como decorre das regras gerais dos artigos 798º e seguintes do CC.

Mas, no que respeita ao contrato de empreitada, existem regras especiais que regulam os direitos do dono da obra e que são as que constam nos artigos 1218º e seguintes do CC.

De acordo com essas regras, o dono da obra tem o direito de exigir ao empreiteiro a eliminação dos defeitos e, se não puderem ser eliminados, poderá exigir nova construção (artigo 1221º); não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina (artigo 1222º).

E tem sido unanimemente considerado pela doutrina e pela jurisprudência que o dono da obra não se pode substituir ao empreiteiro na eliminação dos defeitos e exigir-lhe o respectivo valor, sob pena de se verificar uma acção directa proibida por lei, no artigo 336º, a contrario, do CC.

Assim, apenas poderá o dono da obra eliminar os defeitos por sua própria iniciativa, substituindo-se ao empreiteiro, quando, nos termos gerais, se verificar um incumprimento definitivo a que se refere o artigo 808º do CC – nomeadamente por via de uma recusa de cumprimento por parte do empreiteiro – ou quando se verificarem os pressupostos do artigo 336º que, excepcionalmente, permitam o exercício da acção directa – como é o caso de uma situação de urgência, em que a demora na eliminação dos defeitos possa levar a danos de tal forma graves que na prática correspondam a uma inutilização do direito à reparação (cfr. P. Lima e A. Varela em CC anot., em anotação ao artigo 1221º, e, entre outros, ac. STJ de 2/11/2006, de 11/11/2003, de 15/04/2004, de 3/07/2003, de 10/05/2004 e de 5/03/2009, todos em www.dgsi.pt e ainda Pedro Romano Martinez “Direito das Obrigações-Contratos”, página 483, 2ª edição e “Cumprimento Defeituoso”, página 346 e acórdãos do STJ de 1/07/2003 e de 28/05/2004, também em www.dgsi.pt).

Não tendo a ré interpelado o autor para eliminar os defeitos, foi entendido pela sentença recorrida que, nesta parte, não é devida indemnização no valor de 1 350,00 euros pela reparação realizada, por não se verificarem os pressupostos do incumprimento definitivo, nem da situação de urgência que permite a acção directa.

Nesta parte, a sentença não foi impugnada, não sendo esta decisão objecto de recurso.

O objecto da questão reside, pois, em saber se será devida a indemnização de 8 379,30 euros, correspondente ao valor da reparação, realizada pela ré, dos danos ocorridos como consequência da prestação do autor.

Com efeito, ficou provado que durante a execução da obra o autor não acautelou a entrada das águas das chuvas pelo telhado, o que originou a queda de tinta e estuque e o estrago de madeiras interiores, rodapés portas e móveis (pontos 19, 20 e 22 dos factos provados) e que a ré despendeu a quantia de 8 379,30 euros, na reparação, que realizou por sua iniciativa, de todos estes estragos (pontos 21, 23 e 24 dos factos provados).

Trata-se, não de defeitos da prestação do autor, mas sim danos ocorridos em bens que não eram objecto dessa prestação.

Estabelece o artigo 1223º do CC que “o exercício dos direitos conferidos nos artigos antecedentes não exclui o direito a ser indemnizado nos termos gerais”, levantando-se a questão se, relativamente reparação destes estragos, são ou não aplicáveis os artigos 1221º e 1222º, que obrigam o dono da obra a interpelar previamente o empreiteiro para o efeito, sob pena de aquele não se poder substituir a este em tal reparação.   

No cumprimento da prestação, o empreiteiro está vinculado ao dever essencial de realização da obra (artigo 1207º do CC) e a deveres acessórios ou colaterais, que, não visando directamente a realização da prestação, resultam do disposto no artigo 762º n2 do CC, que impõe aos contraentes o dever de agir de boa fé no cumprimento da obrigação, tomando sempre em consideração o interesse da outra parte.

A violação destes deveres acessórios à prestação, caso dêem causa a danos, são geradores de responsabilidade civil (neste sentido decidiu o acórdão do STJ de 1/07/2010, em www.dgsi.pt, entendendo que a omissão de protecção de um telhado por falta de cobertura, originando danos devido à entrada das águas das chuvas dentro de casa, constitui a violação desses deveres acessórios à prestação da obrigação principal, geradora de responsabilidade civil).

Por outro lado, para além dos defeitos que a obra possa apresentar, resultantes de um cumprimento defeituoso da prestação, poderão o correr danos que atinjam a pessoa do dono da obra ou o seu o património (ou de terceiro), que não são objecto da prestação do empreiteiro (conferir sobre esta matéria a distinção feita por Pedro Romano Martinez em “Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada”, entre danos circa rem, causados no objecto da prestação e danos extra rem, causados em outros bens do credor – páginas 237 e seguintes).

É o caso dos autos, em que o autor, ao não acautelar a entrada das águas das chuvas dentro da casa da ré, violou os deveres acessórios de cuidado na execução da prestação, determinando danos no interior da casa que não eram objecto da prestação.

 É discutido se a responsabilidade civil determinada por estes danos, tem natureza contratual ou extracontratual.

Em “Cumprimento defeituoso em especial na compra e venda e na empreitada”, Pedro Romano Martinez defende que se trata de responsabilidade extracontratual, respeitante à violação de direitos absolutos, que não são objecto do contrato (cfr páginas 253 e seguintes); já em “Responsabilidade contratual do empreiteiro pelos defeitos da obra”, João Cura Mariano considera que estamos perante uma responsabilidade de natureza mista, com factores extracontratuais, por haver violação de direitos absolutos e com factores contratuais, por emergir do cumprimento de um contrato, concluindo que deverá prevalecer o regime da responsabilidade contratual (cfr. páginas 91 a 94). 

Ora, sendo violados direitos absolutos, que não são objecto do contrato, como é o caso de outros bens do dono da obra, ou da sua própria pessoa, não deverá considerar-se aplicável o regime especial dos artigos 1221º e 1222º, os quais têm como objectivo dar a oportunidade ao empreiteiro de eliminar os defeitos da obra ou de proceder a nova construção, ou seja, corrigindo ou repetindo a prestação acordada no contrato, sem que o dono da obra recorra à acção directa, substituindo-se à prestação do empreiteiro.

Todavia, a reparação de danos que não constituem defeitos da prestação já não constitui uma acção directa, uma intromissão na realização da prestação pelo empreiteiro.

Na verdade, estando em causa danos em bens que não eram objecto do contrato, não há que falar no direito do empreiteiro a eliminá-los (e não aos defeitos da obra) ou a proceder a uma “nova construção” (uma vez que a construção não os tinha como objecto). 

Assim, mesmo defendendo que não estamos perante uma responsabilidade extracontratual e que deverá predominar o regime da responsabilidade contratual, entende Cura Mariano na obra citada, páginas 119 e 120, que são aplicáveis as regras gerais da responsabilidade contratual e não as regras específicas dos artigos 1221º a 1225º (cfr. também ac. RC de 30/06/2009, em www.dgsi.pt, onde se entendeu que a violação dos deveres acessórios do empreiteiro geram uma responsabilidade civil com tratamento diferente, não sendo aplicáveis os prazos de caducidade dos artigos 1218º e segts do CC e ainda Pedro Romano Martinez em “Direito das Obrigações, parte especial, página 475).

Portanto, no caso dos autos, não sendo aplicáveis as normas dos artigos 1221º e 1222º aos danos causados pela entrada das águas da chuva na sua casa, não estava a ré obrigada a interpelar previamente o autor para proceder à respectiva reparação.

Improcedem, pois, também nesta parte, as alegações do recorrente.

                                                            *

V) Abuso de direito.

Alega ainda o recorrente que constitui abuso de direito permitir que a ré proceda à reparação dos danos, sem previamente lhe ter sido dada a oportunidade de os reparar.

Estabelece o artigo 334º do CC que “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

Nos termos acima expostos, não estava a ré obrigada a dar oportunidade ao autor para reparar estes danos, sendo seu direito ser ressarcida dos mesmos, nos termos dos artigos 562º e seguintes do CC, não se vendo que haja qualquer abuso de direito, quer por manifesta má fé ou violação dos bons costumes, quer por a sua conduta não ser conforme ao fim social e económico do seu direito.

Mais uma vez improcedem as alegações.

                                                            *

SUMÁRIO.

1. O recurso da matéria de facto não implica um novo julgamento, mas sim apenas a fiscalização da legalidade do julgamento da 1ª instância.

2. Cabe ao autor, empreiteiro, o ónus de provar que o valor do IVA faz parte do preço a ser suportado pela dona da obra.

3. A nulidade da sentença por oposição entre a decisão e os fundamentos pressupõe um vício no raciocínio, que não se verifica se na sentença se opta por uma solução jurídica devidamente fundamentada.

4. Os danos causados pelo empreiteiro em bens do dono da obra que não são objecto do contrato e que são resultado da violação de deveres acessórios, geram responsabilidade civil à qual se aplicam regras gerais que não as do contrato de empreitada, não se aplicando o disposto nos artigos 1221º e 1222º do CC e a obrigação de interpelar previamente o empreiteiro para proceder à reparação.

5. Não constitui abuso de direito do dono da obra proceder à reparação desses danos sem dar previamente a oportunidade ao empreiteiro de os reparar.     

                                                            *      

                                                            *

                                                            *

DECISÃO.

Pelo exposto se decide julgar improcedente o recurso de apelação e manter a sentença recorrida.  

                                                            *

Custas pelo recorrente.


Teresa Pardal (Relatora)
Moreira do Carmo
Alberto Ruço