Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
81/10.9GBILH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Data do Acordão: 06/27/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA, JUÍZO DE MÉDIA INSTÂNCIA CRIMINAL DE ÍLHAVO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.º 44º, DO C. PENAL
Sumário: O regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e, deste modo, apenas pode ser decidida na sentença, pelo tribunal de julgamento, e não na fase de execução da sentença, como se constituísse mero incidente da execução da pena de prisão.
E, se o momento para decidir da aplicação do regime de permanência na habitação é o da sentença condenatória, não permite o artigo 44º, do C. Penal, que, tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, possa ser perspectivada a aplicação daquele regime, em caso de posterior revogação da referida suspensão.
Decisão Texto Integral: I. Relatório                                                                                                                         

1) No âmbito dos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) registados sob o n.º 81/10.9GBILH, da Comarca do Baixo Vouga, Ílhavo - Juízo de Média Instância Criminal, o arguido A..., por sentença de 23/1/2012, foi condenado, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.                                                                                           ****

2) O Ministério Público, não se conformando com a citada Decisão, na parte em que esta refere “Diga-se ainda que, caso venha a ocorrer a revogação da suspensão, se afigura compatível com as exigências da prevenção e reprovação do crime o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, mediante vigilância electrónicaveio, em 14/2/2012, interpor recurso, defendendo a revogação da sentença só quanto a esse ponto, extraindo da respectiva motivação do recurso as seguintes conclusões:                                                                      1. O arguido A... foi condenado pela douta sentença ora recorrida na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, mais se dizendo que, caso venha a ocorrer a revogação da suspensão, se afigura compatível com as exigências de prevenção e reprovação do crime o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, mediante vigilância electrónica.

2. O regime de permanência na habitação, previsto no artigo 44.º, do Código Penal, consubstancia uma verdadeira pena substitutiva da pena de prisão.

3. O regime de permanência na habitação não pode ser aplicado como pena substitutiva de uma pena substitutiva – no caso concreto, como pena substitutiva da suspensão da execução da pena de prisão, pelo que a sentença ora recorrida violou o artigo 44.º, n.º 1, do Código Penal.

4. Sem conceder, o condenado não prestou o seu consentimento para que fosse aplicado o regime de permanência na habitação, pelo que a Mma. Juiz a quo violou o disposto no corpo do n.º 1, do artigo 44.º, do Código Penal.

5. Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a parte decisória da sentença na qual se decide que, caso seja revogada a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido é condenado, aquele poderá cumprir essa pena em regime de permanência na habitação.

****

3) O arguido não respondeu ao recurso.

                                                          

****

4) O recurso foi, em 26/4/2012, admitido.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, em 4/5/2012, emitiu douto parecer no qual acompanhou os argumentos apresentados pelo Ministério Público em 1ª instância, entendendo que o recurso merece provimento.

Dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP,  não foi exercido o direito de resposta.

 Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.

****

II. Decisão Recorrida (na parte relativa ao objecto do recurso):                         “(…)

DIREITO:

(…)

Contudo, atendendo a que é a primeira condenação do arguido em pena privativa da liberdade pela prática deste crime, a sua situação de vida, o facto de ter mandado abater o veículo e mostrar-se arrependido, afigura-se ser possível fazer um juízo de prognose positiva, até porque, seguramente, o arguido não quererá repetir a situação de reclusão em que se encontra, e suspender a aplicação da pena imposta por 1 ano (artigo 50.º, do CPP).

Diga-se ainda que, caso venha a ocorrer a revogação da suspensão, se afigura compatível com as exigências de prevenção e reprovação do crime o cumprimento da pena em regime de permanência na habitação, mediante vigilância electrónica.

                                                           *

                                               DECISÃO:

Pelo exposto, julgo procedente, por provada, a acusação do Ministério Público e, em consequência, condeno o arguido A..., pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) meses de prisão.

Mais decido suspender a pena imposta por um ano.

Vai ainda o arguido condenado nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC, já reduzida a metade, atenta a confissão – artigo 344.º, n.º 2, al. c), do CPP.

Remeta boletim à D.S.I.C.

Cumpra o disposto no DL 98/06, de 6.6 (artigos 5.º, n.º 6, 3 4.º, n.º 1).

Notifique e deposite.

****

III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. –  Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

            São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

No caso dos autos, o recorrente circunscreve o recurso à questão de saber se existe fundamento legal para a “decisão”, a itálico, supra enunciada.

                                                                       ****

O artigo 97.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, define a sentença como o acto decisório do juiz que conheça do mérito do processo.

De acordo com o disposto no artigo 374.º, do mesmo compêndio legislativo, a sentença comporta três partes, quais sejam, o relatório, a fundamentação e o dispositivo.

No relatório, parte inicial, procede-se à identificação do arguido, do assistente e das partes civis e à indicação do crime imputado ao primeiro, segundo a acusação ou a pronúncia, se a tiver havido, e das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.

Na fundamentação, a sentença deve revelar o procedimento lógico seguido pelo tribunal na formação da decisão, para ser possível aferir do seu acerto e segurança.

Para o efeito, é legalmente exigido:

- a enumeração dos factos provados;

- a exposição, completa e concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, ou seja, as considerações naquela dupla vertente necessárias à qualificação jurídica da factualidade apurada;

- a indicação e a apreciação crítica das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

A sentença termina com o dispositivo, ou seja, com uma parte conclusiva e decisória, donde constam: (i) as disposições legais que o tribunal teve por aplicáveis; (ii) o sentido da decisão, absolutória ou condenatória (neste caso com referência expressa aos crimes cometidos e respectivas penas); (iii) o destino a dar a coisas ou objectos relacionados com o crime; (iv) a remessa de boletins ao registo criminal; (v) a data e as assinaturas dos membros do tribunal.

Examinada a estrutura formal da sentença sob recurso, verificamos que o dispositivo se circunscreve aos elementos descritos nos pontos i, ii, iv e v, sendo de destacar a imposição ao arguido A... da pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, pela prática do crime de condução sem habilitação legal.

Contudo, o segmento final da fundamentação (aquele que está em causa neste recurso), embora descontextualizado, ou seja, fora do esquema formal definido para a sentença, integra-se, substancialmente, no quadro do dispositivo.

Melhor teria sido não optar por essa via.

Efectivamente, ali está afirmada uma decisão, consubstanciada no cumprimento, pelo arguido, da pena de prisão, decorrente da eventual revogação da suspensão, em regime de permanência no domicílio, mediante vigilância electrónica, no entendimento assumido de que tal cumprimento, na dita forma, é bastante para assegurar as finalidades da punição.

É certo que é usada a expressão “se afigura compatível”.

No entanto, a globalidade do referenciado segmento aponta claramente no sentido dessa expressão corresponder a uma decisão definitiva, no sentido apontado.

                                                           ****

O “Regime de permanência na habitação” constitui uma das novidades de relevo na reforma penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro.

Efectivamente, o novo artigo 44.º, do Código Penal, veio acrescentar ao elenco das penas de substituição uma outra, a aplicar-se como alternativa ao cumprimento da prisão nos estabelecimentos prisionais, verificadas que estejam as requisitos enunciados na referida norma.

A par da prisão por dias livres (artigo 45.º) e do regime de semidetenção (artigo 46.º), a figura jurídica em causa tem a natureza de pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, uma vez que é decidida pelo tribunal de julgamento no momento da condenação e pressupõe a não substituição da prisão previamente determinada por uma das penas de substituição em sentido próprio prevista no artigo 43.º (pena de proibição do exercício de profissão, função ou actividade), nos artigos 50.º e ss. (suspensão da execução da pena de prisão), no artigo 58.º (prestação de trabalho a favor da comunidade) e no artigo 60.º (admoestação)[1].

Ou seja, o regime de permanência na habitação é uma verdadeira pena de substituição da pena de prisão e, deste modo, como sucede com a prisão por dias livres ou com o regime de semidetenção, apenas pode ser decidida na sentença, pelo tribunal de julgamento, e não na fase de execução da sentença como se constituísse mero incidente da execução da pena de prisão[2].

Se o momento para decidir da aplicação do regime de permanência na habitação é o da sentença condenatória, não permite o artigo 44.º que, tendo sido suspensa a execução da pena de prisão, em caso de posterior revogação da referida pena, possa ser perspectivada a aplicação daquele regime.

É o que também se infere do n.º 2, do artigo 56.º, do CP, ao dispor: «A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença (…)».

Em face do exposto, assiste razão ao recorrente – ver, neste sentido, recente Acórdão do TRC, de 23/5/2012, Processo n.º 492/10.0GAILH.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Mira, in www.dgsi.pt.

****

IV. Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar procedente o recurso, eliminando-se da sentença recorrida o aludido segmento decisório.

Sem tributação.

****

Coimbra, 27 de Junho de 2012
(Texto processado e integralmente revisto pelo signatário – artigo 94.º,n.º 2, do CPP.)
________________________________________
                                                                       (José Eduardo Martins)

________________________________________
                       (Maria José Nogueira)


[1] Cfr. Jorge Gonçalves, in “A Revisão do Código Penal: alterações ao sistema sancionatório relativo às pessoas singulares”, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 22, e António João Latas, “A Reforma do Sistema Penal de 2007, Garantias e Eficácia”, Justiça XXI, pág. 106/107.
[2] Neste sentido, vejam-se, a título meramente exemplificativo, e com maior desenvolvimento, os Acórdãos da Relação de Lisboa de 23-10-2010, da Relação do Porto de 19-05-2010, e da Relação de Évora de 10-12-2009, todos publicados na CJ, tomos IV, pág. 134 e ss., III, pág. 214 e ss. e V, pág. 241/242.