Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
470/22.6T9CBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CAPITOLINA FERNANDES ROSA
Descritores: MEDIDA DE COACÇÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
ARGUIDO TOXICODEPENDENTE
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PRESSUPOSTOS DA PRISÃO PREVENTIVA
Data do Acordão: 12/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Recurso: Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra - Juízo de Instrução Criminal de Coimbra – Juiz 3
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 119.º 120.º, N.º 1, N.º 2, ALÍNEA D), E N.º 3, ALÍNEAS A) E C), CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 52.º, N.º 1, E 55.º DO D.L. N.º 15/93, DE 22 DE JANEIRO
Sumário:
I – A falta de fundamentação do despacho que aplica medida do coacção após a realização de interrogatório judicial constitui nulidade dependente de arguição no próprio acto, nos termos dos artigos 119.º e 120.º, n.º s 1 e 3, alínea a), do C.P.P.

II – A perícia médico-legal a que se refere o artigo 52.º, n.º 1, do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tem por finalidades determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime e avaliar do seu estado actual para efeito de aplicação da medida mais apropriada.

III – A realização desta perícia não é obrigatória e a sua omissão nos casos em que tinha que ser realizada constitui nulidade dependente de arguição, nos termos do artigo 120.º, n.º s 2, alínea d), e 3, alínea c), do C.P.P.

IV – A gravidade objectiva do crime indiciado e a previsibilidade de condenação em pena de prisão efectiva justificam, do ponto de vista da proporcionalidade, a imposição da prisão preventiva como medida coactiva.

Decisão Texto Integral:
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… foi o arguido , entre outros, sujeito a interrogatório judicial de arguido detido, em 19.08.2023, na sequência do qual foi-lhe aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o arguido …, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“…

1.1 Apesar de se dizer que o arguido "continua a dedicar-se à venda de estupefacientes e a contactar pessoas referenciadas com o consumo e tráfico de estupefacientes.", não se indica, a que pessoas, a quantas pessoas, que tipo de estupefaciente, ou mesmo, que quantidades, o arguido eventualmente chegou a traficar.

1.2 Igualmente não se referem quaisquer quantias obtidas com essa referida actuação.

1.3 São, assim, imputados ao arguido factos de tal forma genéricos que objectivamente o impedem de exercer o seu direito de defesa.

1.4 As medidas de coacção a que foi sujeito a 23.06, conjugadas com os indícios constantes do ponto 29. da Decisão recorrida, demonstram que o recorrente não violou as obrigações ali impostas, não se mostrando preenchido o art. 203° do C.P.P.

3.  Das consequências do incumprimento do disposto nos art. 52° e 55° do DL n°15/93, de 22 de Janeiro

3.1 Referindo-se no Despacho recorrido ser o Recorrente "consumidor habitual de produto estupefaciente", e que a actividade pelo mesmo alegadamente desenvolvida, "se mostra como uma forma fácil de obter dinheiro para alimentar o seu vício",

3.2 E tendo a comprovação desse seu estado de toxicodependência sido feita com a junção, pelo arguido, aquando do seu interrogatório de dia 21.08, da correspondente documentação clínica.

3.3  Prevendo art, 55° n°l do DL n°15/93, de 22 de Janeiro que: "1 - Se o crime imputado for punível com pena de prisão de máximo superior a três anos e o arguido tiver sido   considerado toxicodependente, nos termos do artigo 52.°, pode o juiz impor, sem prejuízo do disposto no Código de Processo Penal, a obrigação de tratamento em estabelecimento adequado, onde deve apresentar-se no prazo que lhe for fixado.".

3.4 E o n°l do art. 52° do referido diploma que: 1 - Logo que, no decurso do inquérito ou da instrução, haja notícia de que o arguido era toxicodependente à data dos factos que lhe são imputados, é ordenada a realização urgente de perícia adequada à determinação do seu estado.".

3.5 Temos assim que, o não despoletamento deste mecanismo, integra a verificação de uma nulidade que aqui expressamente se invoca - arts. 120° n°2 ai. d) e n°3 ai. c) do C.P.P.”


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O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.

O Ministério Público apresentou resposta, …


  *

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, …

II. Questões a decidir

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, as questão a examinar e decidir consiste, essencialmente, em saber se se encontram verificados os pressupostos legais necessários à aplicação ao recorrente da medida de coacção de prisão preventiva, ou, ao invés, se a mesma deverá ser substituída por outra menos gravosa.

III. Decisão recorrida

Em sede de interrogatório judicial de arguido detido, foi proferido despacho que aplicou ao recorrente, com fundamento em perigo de perturbação do inquérito para aquisição, veracidade e conservação da prova, perigo de continuação da actividade criminosa e de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas, a medida de coacção de prisão preventiva …

                                                     *

IV. Mérito do recurso

O recorrente elencou como fundamentos para o seu recurso, que deverão ser apreciados segundo a ordem de precedência que legal e logicamente lhes cabe, essencialmente, a nulidade da decisão, por falta de fundamentação, por omissão de procedimento (não foi ordenada a perícia a que alude o artigos 52º, nº1 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro), e, por fim, a falta de verificação dos pressupostos para aplicação da medida de coacção de prisão preventiva e a sua substituição por outra menos gravosa.

Vejamos.

1.

O dever de fundamentar as decisões judiciais decorre do artigo 205º, nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual dispõe que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”

Esta imposição surge no processo penal também como corolário das garantias de defesa do arguido expressas no artigo 32º da Lei Fundamental, e encontra consagração legislativa no artigo 97º do Código de Processo Penal, quanto aos despachos, e especificamente quanto ao despacho judicial que aplicar medidas de coacção no artigo 194º, nº6 do citado código, que estabelece o seguinte:

Do exame do despacho sob recurso constata-se que o mesmo satisfaz, abundantemente, aqueles requisitos.

De todo o modo, ainda que se entendesse que o despacho recorrido não estava fundamentado e, consequentemente, seria nulo, sempre se teria de concluir que tal nulidade se encontrava sanada.

Com efeito, trata-se de uma nulidade dependente de arguição no próprio acto [pois não faz parte do elenco das nulidades insanáveis – cf. artigos 119º e 120º, nº1 e 3, alínea a) do Código de Processo Penal], porque estamos perante acto em que a recorrente esteve presente, como se pode constatar do respectivo auto de interrogatório, sem que tivesse sido suscitada qualquer nulidade.

Aliás, tem sido esse o entendimento que a jurisprudência vem seguindo, podendo ver-se nesse sentido, entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa, 17.06.2020[1], … e da Relação do Porto, de 31-10-2018[2], …

Impõe-se, assim, concluir que não verifica nos autos a existência da invocada nulidade e que, ainda que assim não se entendesse, a sua arguição através do presente recurso sempre seria intempestiva e, por conseguinte, mantém-se o despacho proferido pelo Tribunal a quo.

2.

O recorrente alega ainda a existência de uma outra causa de nulidade, ao não ter sido ordenada a realização da perícia médico-legal, incumprindo, assim, o Tribunal a quo o disposto nos artigos 52º e 55º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro.

Diz o recorrente que o “não despoletamento” do “mecanismo” ali previsto, “integra a verificação de uma nulidade”, configurando a mencionada omissão como sendo o vício previsto no artigo 120º, nº2, alínea d) e nº 3, alínea c) do Código de Processo Penal - cf. 3. e 3.5 das conclusões de recurso.

Argumenta que estando comprovado “o seu estado de toxicodependência” – … deveria ter sido ordenada a perícia a que se reporta o artigo 52º, nº1, do referido DL nº 15/93, o que não aconteceu …

Vejamos, o que dispõem, as normas convocadas pelo recorrente do citado DL nº 15/93.


Artigo 52.º

Perícia médico-legal



Artigo 55.º

Medida de coacção


Ora, no que toca à questão suscitada pelo recorrente sobre a omissão do exame a que se reporta o artigo 52º, nº1 do DL nº Lei 15/93 dir-se-á, na esteira de Lourenço Martins[3], que a realização desta perícia médico-legal tem por finalidade primeira, como resulta dos respectivos trabalhos preparatórios, determinar o grau de imputabilidade do arguido no momento da prática do crime e, em segundo lugar, avaliar do seu estado (de eventual toxicodependência) actual para efeito de aplicação da medida mais apropriadas.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-03-2011[4] “Numa interpretação literal do preceito poderia concluir-se que basta fazer chegar a autoridade judiciária que superintende no processo a «notícia» de que o arguido era toxicodependente no momento da consumação do crime para desencadear a realização urgente desta perícia. Tal pressuposto tem, porém, que ser objecto de algum cuidado de forma a evitar a prática de actos inúteis, de expedientes ou manobras dilatórias, pelo que se entende que a mesma «notícia» deve ser fundamentada”.

Donde tal perícia médico-legal não só não é obrigatória, como não deve ser realizada quando exista elementos nos autos que indiquem trata-se de um acto inútil ou tenha em vista ludibriar o tribunal.

No caso vertente, o arguido foi detido em 17.08.2023 e sujeito a medida de coação de prisão preventiva no dia 19.08.2023.

 Resulta do inquérito e dos factos fortemente indicados nos autos e dos elementos de probatórios que os suportam [cf. p.e. as escutas telefónicas, vigilâncias, etc.] a inexistência de qualquer indício que justificasse a necessidade de realização de tal diligência. 

Por isso mesmo, o recorrente não apresentou qualquer fundamento para a necessidade da realização da aludida perícia, designadamente, não alegou existir alterações psíquicas suficientemente importantes para sustentar sérias dúvidas sobre a existência de uma correcta compreensão dos actos que lhe são indiciariamente imputados[5]. Limitando-se a dizer que devia ter ocorrido o “despoletamento deste mecanismo”.

Ou seja, o recorrente coloca a tónica no facto de não ter sido ordenada a realização da perícia e não, como seria lógico, na falta de realização e concretização da perícia médico-legal.

Todavia, em todo o caso, dir-se-á que não se vislumbra a existência da invocada nulidade e ainda que assim não fosse [a semelhança do que se decidiu  anteriormente no ponto1], sempre deveria ter sido arguida no próprio acto em que o arguido esteve presente [pois não faz parte do elenco das nulidades insanáveis], e não directamente por via de recurso, razão pela qual não tendo o recorrente suscitado, tempestivamente, a aludida nulidade (relativa), sempre estaria sanada nos termos do artigo 120º, nº2, alínea d) e nº 3, alínea c) do Código de Processo Penal.

Improcede, pois, a pretensão do recorrente.

3.

O recorrente peticiona a substituição da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada por outras menos gravosas, nomeadamente por obrigação de permanência na habitação.

Fundamenta a sua pretensão invocando, sem síntese, que a medida de coacção de prisão preventiva foi aplicada sem que se verificassem, em concreto, as condições de que depende a sua aplicação, devendo por isso a mesma ser revogada e substituída por outra que respeite essas condições …

O direito à liberdade pessoal, na acepção de liberdade ambulatória, é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e também na Constituição da República Portuguesa.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III, proclama a validade universal do direito à liberdade individual e no artigo IX, que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso, admitindo, no artigo XXIX, apenas as limitações à liberdade individual que resultem da lei, para prossecução do reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e da satisfação das justas exigências da ordem pública.

Também o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”;

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) consagra o direito à liberdade pessoal, no seu artigo 5º, estabelecendo que ninguém pode ser dela privado, a não ser que seja preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal e que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

Nos termos do artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, todos têm direito à liberdade e à segurança, de harmonia com a consagração do direito à liberdade individual como um direito fundamental (cf. a jurisprudência do TEDH, plasmada, v.g., nas decisões Irlanda v. Reino Unido, 18 de Janeiro de 1978, § 194, série A nº 25, e A. e Others v. O Reino Unido, §§ 162 e 163, Grand Chamber, Case of Al-Jedda v. The United Kingdom, (Application no. 27021/08). Judgement, in 7 July 2011).

O direito fundamental a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é, porém, um direito absoluto, como os próprios instrumentos de direito internacional e a constituição da república portuguesa, o admitem.

As medidas de coacção são, justamente, vias processuais de limitação da liberdade pessoal que têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento quer quanto à execução das decisões condenatórias (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, pág. 254).

“As medidas de coacção emergem como condição indispensável, embora num quadro de excepcionalidade, à realização da justiça” (Frederico Isasca, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, pág. 103).

A prisão preventiva é aplicável, quando estando fortemente indiciada a prática de algum dos crimes enumerados no artigo 202º do Código de Processo Penal, se verifique algum dos perigos previstos no artigo 204º do mesmo diploma.

Quanto aos pressupostos legais de carácter geral, (aplicáveis quer à prisão preventiva, quer a qualquer outra medida de coacção diferente do TIR), referem-se à verificação de algum dos perigos enumerados nas alíneas a) a c) do artigo 204º do Código de Processo Penal: a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação da investigação; c) Perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade pública ou de continuação da actividade criminosa – que não são de verificação cumulativa.

Quanto aos pressupostos de carácter específico, encontram-se estabelecidos no artigo 202º nº 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, e são cumulativos: a existência de fortes indícios da prática de crime; que o crime indiciado seja doloso; que o crime indiciado corresponda a criminalidade violenta ou seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.

E é, no elenco de medidas de coacção previstas no Código de Processo Penal, a mais gravosa para os direitos fundamentais do arguido, dado implicar a total restrição da sua liberdade individual.

Por tal razão tem natureza subsidiária e excepcional, o que significa que só deve ser aplicada, se todas as restantes medidas se mostrarem inadequadas ou insuficientes para a salvaguarda das exigências processuais de natureza cautelar que o caso requeira, concretamente, para a aquisição e conservação dos meios de prova e para garantir a presença do arguido nos actos processuais, sobretudo, na audiência de discussão e julgamento.

Deve, igualmente, à semelhança das restantes medidas de coacção, com excepção do Termo de Identidade e Residência, ser proporcional à gravidade do crime e às sanções que, num juízo de prognose em relação ao julgamento, virão, possivelmente, a ser aplicadas.

É o que decorre das normas contidas nos artigos 191º, nº 1, 193º e 204º do Código de Processo Penal, de acordo, aliás, com os princípios constitucionais consagrados nos artigos 18º, nº 2, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

O princípio da adequação das medidas de coacção exprime a exigência de que exista uma correspondência entre os interesses cautelares a tutelar no caso concreto e a concreta medida de coacção imposta ou a impor. Afere-se por um critério de eficiência, partindo da comparação entre o perigo que justifica a imposição da medida de coacção e a previsível capacidade de esta o neutralizar ou conter.

O princípio da necessidade tem subjacente uma ideia de exigibilidade, no sentido de que só através da aplicação daquela concreta medida de coacção se consegue assegurar a prossecução das exigências cautelares do caso e não de outra qualquer ou da não aplicação de qualquer delas.

O princípio da proporcionalidade assenta num conceito de justa medida ou proibição do excesso entre os perigos que se pretendem evitar e a aplicação da medida de coacção escolhida.

O artigo 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa prevê que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e, tal como em todos os demais campos de aplicação, em matéria de aplicação das medidas de coacção o princípio da proporcionalidade também terá de ser decomposto “em três subprincípios constitutivos: o princípio da conformidade ou da adequação; o princípio da exigibilidade ou da necessidade e o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 264).

Assim, no que respeita ao princípio da proporcionalidade, é imperioso que, em cada fase do processo, exista uma relação de idoneidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado, bem assim, a sanção que se julga que pode vir a ser imposta, ou seja, tem de existir uma correlação entre a privação da liberdade individual que a medida de coacção implica, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que, previsivelmente, virá a ser aplicada ao arguido.

Ora, estes princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade que regem a sua aplicação são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no artigo 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, e do referido no artigo 6º, nº2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Tanto no que se refere à aplicação das medidas de coacção em geral, como, muito especialmente, no que concerne às medidas de prisão preventiva e de obrigação de permanência na habitação, às quais é expressamente atribuído carácter excepcional ou subsidiário, terão, pois, necessariamente, de obedecer a estes princípios constitucionais da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, consagrados nos artigos 18º, 27º e 28º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa (José António Barreiros, As medidas de Coacção e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal, Tolda Pinto, in “A Tramitação Processual Penal”, 2ª edição, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, 2ª edição, volume II, pág. 250; Leal Henriques e Simas Santos, Código de Processo Penal Anotado, vol. 1, 3ª edição, pág. 1270).

É no ponto de equilíbrio entre os direitos em confronto – o direito fundamental à liberdade individual e o da realização da justiça penal (na medida em que a aplicação da prisão preventiva, como de qualquer outra medida de coacção, apenas serve para garantir o normal desenvolvimento do procedimento criminal e obstar a que o arguido se exima à execução da previsível condenação), que se garante o respeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e se impede o livre arbítrio” (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.01.2019, Proc. nº 65/19.1JBLSB-A.L1-3, in www.dgsi.pt).

“Respeitar o princípio da adequação significa escolher a medida que poderá constituir o melhor instrumento para garantir as exigências cautelares do caso (…). Para respeitar o princípio da proporcionalidade, a medida de coacção escolhida deverá manter uma relação directa com a gravidade dos crimes e da sanção previsível, cabendo ponderar elementos como o juízo de censurabilidade da conduta, o modo de execução, a importância dos bens jurídicos atingidos.

O respeito pelo princípio da subsidiariedade impõe considerar sempre a prisão preventiva como uma medida de natureza excepcional que só pode ser aplicada como extrema ratio, quando nenhum outro meio se perfile ou anteveja como adequado e suficiente.” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19.09.2019, no processo nº 207/18.4PDBRR.L1-3, em www.dgsi.pt).

“É no balanço entre estas realidades que deve ser encontrada a solução adequada, proporcional e justa que impeça o livre arbítrio” (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.01.2016, no processo nº 576/14.5GEALRF.L1-9, em www.dgsi.pt).

Feitas estas considerações de carácter geral, que hão de ser tidas em conta na verificação da existência dos pressupostos de que depende a aplicação das medidas de coacção imposta ao arguido, importa verificar se a medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada deve ser substituída por outra não privativa da liberdade.

 (dos fortes indícios do cometimento do crime indiciado)

Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição sine qua non da aplicação de todas as medidas de coacção, no que concerne à prisão preventiva, a lei é mais exigente, pois usa a expressão “fortes indícios”, a qual representa uma intensidade acrescida em relação ao conceito de “indícios suficientes”, quanto à probabilidade da condenação.

Assim, se estes últimos se devem ter por verificados, quando, com base nesses indícios, a probabilidade de condenação é, pelo menos, maior do que a de absolvição, reportada à fase da audiência de discussão e julgamento (Germano Marques da Silva Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 261), os indícios só serão fortes, quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido, na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coacção, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência de contraditório, da imediação e da oralidade, que são característicos da fase da discussão e julgamento da causa.

    …

Ora, o despacho recorrido considerou resultar dos  elementos carreados para os autos  e comunicados ao arguido, fortemente  indiciada a factualidade elencada no despacho de apresentação a interrogatório judicial de arguido detido, susceptível de integrar a prática pelo mesma de um crime tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º, nº1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, …

… os elementos probatórios constantes dos autos indiciam fortemente o comprometimento do arguido com a prática dos factos e do tipo de crimes em causa.

             É, pois, de considerar demonstrada a existência de “fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos”, nos termos exigidos pelo artigo 202º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal

Como se enfatizou na decisão recorrida, existe claro perigo de perturbação do inquérito, de continuação da actividade criminosa, e perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas:

Desde logo, quanto perigo de perturbação do inquérito, sopesando os factos na sua globalidade, bem como a personalidade manifestada pelo arguido na sua perpetração, é altamente provável que o mesmo, tentasse perturbar o normal decurso da investigação, mormente a aquisição, a veracidade e conservação da demais prova, pois o arguido em liberdade, conhecedor da identidade de outros indivíduos envolvidos no tráfico e ciente de quem são os consumidores, pode impedir ou condicionar as suas declarações, porquanto, como refere o Tribunal a quo, “(…) a investigação não está ainda finda, mostrando-se ainda necessário proceder a outras diligências de prova, mormente a inquirição de consumidores e outras pessoas com relevância para os autos, …

Finalmente, quanto à verificação do pressuposto consubstanciado no “perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas”.

Este pressuposto, ainda que despido do “cunho estritamente objectivo” que decorria da anterior redacção deste segmento normativo da alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal, deve ser relacionado com o direito à liberdade e à segurança, instituído pelo artigo 5º da CEDH, mas não apenas na perspectiva do arguido, antes também na dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da conduta criminosa praticada por aquele e que se encontra indiciada.

Daí que este pressuposto se revele na função preventiva do processo penal face à perigosidade social revelada pelo arguido, seja mediante um controlo cautelar e pré-punitivo (medidas de coacção), seja de contenção do conflito social provocado pela correspondente conduta delituosa.

A gravidade objectiva de um dos crimes que vem indiciado (tráfico de estupefacientes) e a previsibilidade de condenação em pena de prisão efectiva justificam, do ponto de vista da proporcionalidade, a imposição da prisão preventiva como medida coactiva ao arguido.

Por outro lado, tal como emerge da decisão recorrida, nenhuma outra medida de coacção não privativa da liberdade se afigura suficiente para afastar os aludidos perigos, …

Em conclusão, o despacho recorrido mostra-se fundamentado e encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que ao arguido recorrente pudesse ser aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coacção que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer, pelo que o despacho impugnado não violou qualquer normativo legal ou constitucional, designadamente o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, nem os artigos 191º, nº 1, 193º, 202º e 204º, todos do Código de Processo Penal, nem os princípios da proporcionalidade, adequação e subsidiariedade.

Improcede integralmente o recurso, mantendo-se o recorrente em prisão preventiva.

V. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.


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            Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.

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Coimbra, 13 de Dezembro de 2023

Capitolina Fernandes Rosa

(Juiz Desembargador Relatora)

Fátima Sanches

 (Juiz Desembargador Adjunta)

Cândida Martinho

 (Juiz Desembargador Adjunta)





[1]  Cf. Proc. Nº42/15.1JBLSB-B3, Relator: José Alfredo Costa, disponível in www.dgsi.pt
[2]  Cf. Proc. nº328/16.8GAVLG-A.P1,  Relator: José Carreto, disponível in www.dgsi.pt

[3] Cf. Droga e Direito: Legislação, Jurisprudência, Direito Comparado, Comentários, Imprenta, Lisboa, Aequitas, 1994, pág. 255 e segs.
[4] No Proc. nº 368/09.3GAABF.S1, Relator: santos Cabral, in disponível in www.dgsi.pt
[5] como por ex. os assinalados no referido acórdão do STJ de 31.03.2011, nomeadamente: desorientação tempo espacial, despersonalização, alucinações visuais, auditivas e tácteis, paranoia, psicose, esquizofrenia, ideias delirantes, sensações de mudança da própria realidade e angústia.