Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
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| Nº Convencional: | JTRC | ||
| Relator: | ANA CAROLINA CARDOSO | ||
| Descritores: | CONDIÇÕES ECONÓMICAS E PESSOAIS DO ARGUIDO INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA SANAÇÃO DO VÍCIO PELO TRIBUNAL DE RECURSO DECISÃO SUMÁRIA REENVIO DO PROCESSO PARA NOVO JULGAMENTO | ||
| Data do Acordão: | 12/03/2025 | ||
| Votação: | DECISÃO SUMÁRIA | ||
| Tribunal Recurso: | TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA FIGUEIRA DA FOZ | ||
| Texto Integral: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL - DECISÃO SUMÁRIA | ||
| Decisão: | DECLARADA A NULIDADE PARCIAL DA SENTENÇA RECORRIDA E DETERMINADA A REMESSA DO PROCESSO AO TRIBUNAL A QUO PARA PROCEDER À REABERTURA DA AUDIÊNCIA, PELO JUIZ QUE PROCEDEU AO JULGAMENTO, PARA APURAMENTO DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO ARGUIDO E POSTERIOR PROLAÇÃO DE NOVA SENTENÇA, QUE RECONFIGURE A MATÉRIA DE FACTO E A MEDIDA DA PENA EM CONFORMIDADE. | ||
| Legislação Nacional: | ARTIGO 71.º DO CÓDIGO PENAL ARTIGO 369.º A 371.º, 410.º, N.º 2, ALÍNEA A), 417.º, N.º 6, ALÍNEA D), 426.º, N.º 1, E 426.º-A DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL | ||
| Sumário: | I - Mesmo que não seja possível obter a comparência do arguido na audiência, o tribunal tem o poder-dever de recorrer a outros meios probatórios para apurar as condições económicas e pessoais do arguido, actualizados ao momento mais próximo possível da sentença, nomeadamente através da elaboração do relatório social.
II - Na falta de tais elementos a sentença padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, cuja sanação não é possível ser feita pelo tribunal de recurso por depender de prova a produzir. III - Tratando-se de matéria de direito objecto de múltiplas decisões dos tribunais superiores no mesmo sentido, encontra-se preenchido o fundamento para prolação de decisão sumária, a que se refere o artigo 417.º, n.º 6, alínea d), do C.P.P. IV - Quando a nulidade decorrente da verificação de um vício da sentença não envolve o juízo sobre a culpabilidade já efectuado, nada obsta a que o mesmo juiz reabra a audiência para produção de prova suplementar com vista à determinação da sanção. V - Do que se trata não é de repetir um julgamento, antes de continuar e concluir o julgamento já iniciado e indevidamente concluído. | ||
| Decisão Texto Integral: | *
Recurso próprio, recebido na forma devida.
DECISÃO SUMÁRIA Art. 417º, n.º 6, al. d), do Código de Processo Penal 1. Por sentença datada de 13 de dezembro de 2024, proferida pelo Juízo Local Criminal da Figueira da Foz, Comarca de Coimbra, no processo sumário n.º 189/24.3GAFIG.C1, foi decidido: (…) II - Condenar o arguido …, pela prática, no dia 26-11-2024, em autoria material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, com referência ao art.º 69.º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal: a) na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano, mediante a sua subordinação a regime de prova, de acordo com plano a elaborar pelos serviços da DGRSP, que incida, designadamente, sobre a consciencialização a censurabilidade da sua conduta, e ainda, obtido o seu consentimento, devendo o mesmo ser submetido a uma análise para despiste de problemas que venham a ser identificados, designadamente com o consumo de álcool e/ou outras substâncias, e também, obtido o seu consentimento, que seja o mesmo submetido a tratamento de eventuais problemáticas que venham a ser apuradas. b) na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 9 (nove) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal. *
2. Inconformado com a decisão, da mesma recorreu o arguido …, alegando, em suma:
· Devia ter sido aplicado o princípio in dubio pro reo e os factos 4, 5 e 9 sido considerados não provados; · As penas, principal e acessória, são excessivas. * 3.O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, … *
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer …
* DECISÃO RECORRIDA (transcrição extraída da gravação) «(…) O tribunal declara os seguintes factos provados, com referência à acusação: 1, 2, 4, 5, 9 [1. Por sentença proferida nos autos de Processo Sumário n.º 146/23.... do Juízo Local Criminal de Pombal – Juiz 2, e transitada em julgado a 2 de outubro de 2023, foi o arguido condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, n.º 1, do Código Penal, nomeadamente, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 7 (sete) meses; 2. No dia 10 de outubro de 2023, no âmbito dos referidos autos, o arguido entregou a sua carta de condução, para cumprimento daquela pena acessória; 4. No dia 26 de novembro de 2024, pelas 11h14 min., …, o arguido conduzia um veículo …, sendo portador de uma TAS de 1,710 g/l (após dedução do erro máximo admissível); 5.O arguido sabia que não lhe era permitido conduzir veículos com motor com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l, e, não obstante, agiu pela forma supra, fazendo-o deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e criminalmente punível; 9. Em tudo, o arguido quis agir como agiu, livre, voluntária, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida, o que não o impediu de a encetar.] (transcrição nossa) (…) Para concluir deste modo, o tribunal valorou essencialmente no que diz respeito aos factos provados, as declarações do arguido, de certa forma foi assumindo a prática dos factos aqui em causa, contextualizando que neste dia tinha sido notificado para se dirigir à esquadra ..., após (…) ter saído das instalações da esquadra deslocou-se um estabelecimento onde ingeriu bebidas alcoólicas. Depois foi intercetado e referiu que bebeu apenas um copo. …. Por isso, e não obstante a referência à pouca quantidade, dúvidas não restam de que o arguido praticou os factos descritos, fazendo de forma livre voluntária deliberada e com consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. … * QUESTÃO PRÉVIA AO CONHECIMENTO DO RECURSO: VÍCIO DE INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO - art. 410º, n.º 2, al. c), do C.P.P. Salvo o devido respeito, e efetuada a transcrição completa da sentença ditada para a ata, padece a mesma do vício a que se refere o art. 410º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, por não constarem da sentença quaisquer factos referentes à personalidade e situação socioeconómica do arguido para sustentar a medida concreta da pena aplicada.
Para além dos antecedentes criminais do arguido, que constam do respetivo certificado de registo criminal e que a sentença não refere, na fundamentação da escolha e determinação da medida da pena da sentença recorrida o julgador recorre aos mesmos, bem como a condições pessoais (profissão) que não constam dos factos provados. Aliás, para além da profissão, colhida na identificação do arguido, e dos antecedentes criminais, relativamente aos quais a sentença é omissa, não constam nem foram utilizadas quaisquer outras condições pessoais do arguido… O arguido faltou à continuação da audiência de julgamento onde, aliás, foi proferida a sentença, não tendo prestado declarações quanto às suas condições de vida. Ora, estabelece o art. 410º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal o seguinte: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiencia comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”. Os vícios têm de resultar da própria sentença, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem necessidade de recurso a elementos estranhos à mesma ([1]). … ([2]). A sentença enferma de insuficiência de matéria de facto quando o tribunal deixa de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes para a decisão, alegados pela acusação, pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda quando o tribunal não investigou factos essenciais para a decisão que deviam ter sido apurados em julgamento, como para a escolha e determinação da medida da pena ([3]). Na realidade, a atividade judicial de determinação da pena é, toda ela, juridicamente vinculada e não puramente discricionária, impondo a consideração das circunstâncias concretas a que se refere o n.º 2 do art. 72º do Código Penal, plasmadas em factos, que devem ser conjugados com “regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, atos cognitivos e puras valorações”, erigindo desta forma a “fase de juridificação da determinação da pena” ([4]). O n.º 2 do art. 71º do Código Penal manda o julgador atender, para a determinação concreta da pena, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, deponham a favor e contra o agente, desde que relevantes para a culpa e a prevenção, geral e especial, como decorre do n.º 1. O n.º 3 do mesmo preceito impõe que na sentença sejam expressamente referidos os fundamentos da medida da pena. Dada a importância do apuramento das condições relativas à personalidade e modo de vida do agente, o Código de Processo Penal português consagrou o designado sistema de cèsure, encontrando-se a produção de prova na audiência de julgamento cindida: o tribunal decide, primeiro, a questão da culpabilidade e só depois de concluir ser de aplicar no caso uma pena ou medida de segurança produz prova (incluindo a elaboração de relatório social) relativa à personalidade e condições pessoais do arguido, podendo reabrir a audiência para produção de prova suplementar com esse objetivo (arts. 368º a 371º do Código de Processo Penal). No caso dos autos, não constam dos factos provados ditados as condições de vida do arguido, nem os seus antecedentes criminais, pese embora o certificado se encontre junto aos autos. Em rigor, nem foram ditados os factos relativos à culpabilidade…. Mesmo que não seja possível obter a comparência do arguido na audiência de julgamento, o tribunal tinha o poder-dever de recorrer a outros meios probatórios para apurar as condições económicas e pessoais do arguido, atualizados ao momento mais próximo possível da sentença, nomeadamente através da elaboração do relatório social a que se refere o art. 370º do Código de Processo Penal.
Verificado se encontra, assim, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que não é suprível nesta instância por depender de prova a produzir. Maioritariamente, a jurisprudência tem entendido que a nulidade decorrente da omissão do apuramento de factos relativos à situação pessoal e económica do arguido implica o reenvio do processo para novo julgamento, conforme se encontra previsto nos arts. 426º, n.º 1, e 426º-A do Código de Processo Penal. No entanto, importa atentar que o reenvio tem por objetivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo tribunal que tomou já posição sobre a prova produzida. Quando a nulidade decorrente da verificação de um vício da sentença não envolve o juízo sobre a culpabilidade já efetuado nos termos do art. 368º do Código de Processo Penal, no plano dos princípios vigentes no processo penal nada obsta a que o mesmo juiz reabra a audiência para produção de prova suplementar com vista à determinação da sanção ([5]). Não tem cabimento determinar a remessa dos autos para outro tribunal, antes assegurando a prolação da nova sentença pelo mesmo juiz o princípio da plenitude da assistência dos juízes, consagrado no art. 328º-A do Código de Processo Penal ([6]). Do que se trata não é de repetir um julgamento, antes de continuar e concluir o julgamento já iniciado (e indevidamente concluído, por não ter incidido sobre a sua segunda parte, a que se referem os arts. 369º a 371º do Código de Processo Penal). Como se decidiu no acórdão do STJ de 27-06-2012 ([7]), “o artigo 40.º do CPP assume uma específica dimensão processual que tem por objetivo essencial assegurar uma das finalidades últimas do processo penal que é o da garantia da imparcialidade que caracteriza o processo justo a que tem direito qualquer arguido. O funcionamento da tutela da imparcialidade, ínsito na reformulação operada no artigo 40.º do CPP, não tem cabimento quando está em causa a mera supressão de causas de nulidade detetadas na decisão e não uma nova apreciação da matéria de facto.” ([8]). Por essa razão importa neste caso determinar a remessa para o mesmo tribunal ([9]) de molde a que a audiência seja reaberta para a determinação da sanção, nos termos do art. 371º do Código de Processo Penal ([10])
Na verdade, no sistema de césure de que é tributário o nosso sistema processual penal a questão da determinação da sanção aplicável é destacada da questão da determinação da culpabilidade do agente. A reabertura da audiência que se ordena encontra-se prevista no art. 371º do Código de Processo Penal, e tem por objetivo a produção de prova suplementar ainda não produzida, relativamente à qual o tribunal recorrido não tomou ainda posição. Por essa razão, e contrariamente às regras vigentes no reenvio, não está em causa evitar a repetição do julgamento por um tribunal que tomou anteriormente posição sobre a valia da prova produzida. Esta a razão para deferimento da competência para produção de prova suplementar exatamente ao mesmo tribunal/juiz que presidiu aos restantes atos relativos à culpabilidade do arguido ([11]).
Tratando-se de matéria de direito objeto de múltiplas decisões dos tribunais superiores no mesmo sentido, considera-se encontrar-se preenchido o fundamento a que se refere o art. 417º, n.º 6, al. d), do Código de Processo Penal.
Assim, impõe-se a reabertura da audiência de julgamento para o apuramento das condições sociais, familiares e económicas, do arguido, bem como a posterior prolação de nova decisão que deverá consignar quer os antecedentes criminais do arguido, quer os factos que se venham a provar relativos às condições de vida do arguido. *
DECISÃO Pelas razões expostas, decide-se: Declarar a nulidade parcial da sentença recorrida, ordenando-se a remessa do processo ao tribunal a quo a fim de se proceder à reabertura da audiência para apuramento das condições pessoais do arguido, e, posteriormente, à prolação de nova sentença que reconfigure a matéria de facto e a medida da pena em conformidade – a ser efetuada pelo Exmo. Juiz que presidiu ao julgamento anterior.
Sem tributação. Coimbra, 3 de dezembro de 2025 Ana Carolina Veloso Gomes Cardoso (relatora – processei e revi)
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