Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2467/22.7T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
ABANDONO DE SINISTRADO
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO LOCAL CÍVEL DE LEIRIA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGO 89.º, DO CÓDIGO DA ESTRADA
ARTIGO 342.º, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGO 27.º, D), DO DL 291/2007, DE 21/8
Sumário:
A situação de abandono de sinistrado, tipificada na alínea d), do art.º 27º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, pressupõe o dolo do condutor responsável pelo acidente, o qual ocorre quando se apercebe que do acidente tenha resultado perigo para a vida ou integridade física de outra pessoa interveniente nesse acidente, e, não preste a devida assistência, podendo-o fazer.
Decisão Texto Integral:

Adjuntos: Cristina Neves

               Fernando Marques da Silva

                                                                                                
Autora: A... Limited Company – Sucursal em Portugal

Réu: AA                                                            

                                                 *

          Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra
A Autora instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Réu, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 13.092,16, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal aplicável, desde a data da citação até integral pagamento.
 Para fundamentar a sua pretensão, alega, em síntese, a existência de um contrato de seguro automóvel ente si e o Réu por virtude do qual assumiu a responsabilidade da reparação dos danos provocados pela circulação do veículo de matrícula ..-PR-.., a ocorrência de um acidente entre este e o veículo de matrícula ..-..-ME, os danos que deste resultaram, a imputação da culpa da produção do acidente ao Réu, o abandono pelo Réu dos sinistrados e o pagamento que efetuou para reparação daqueles anos.

O Réu contestou, impugnado a dinâmica do acidente descrita pela Autora, imputando a esta a sua verificação, negando ainda que tenha abandonado o local. Impugnou também os danos que em consequência do acidente sofreram os sinistrados e o veículo.
Concluiu pela improcedência da ação.

Veio a ser proferida sentença que julgou a ação pela seguinte forma:
Pelo exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condena-se o réu a pagar à autora a quantia de € 9.775,35 (nove mil setecentos e setenta e cinco euros e trinta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora civis, vencidos e vincendos, desde a data da citação [26/09/2022] até integral pagamento.
B) Absolve-se o réu do restante pedido.

                                                           *

O Réu interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
A. O Recorrente discorda com a análise e valoração da prova e, consequentemente, com as consequências jurídicas extraídas, devendo a decisão ad quo ser alterada quanto a uma parte substancial da materialidade fáctica.
B. A sentença recorrida viola a correcta aplicação do direito, nomeadamente o disposto no art.º 19.º, al. d) do DL 522/85, contrariando, além do mais, o fixado em  sede de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 11/2015 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro.
C. Crê o Recorrente que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento deveria ter levado a diferente julgamento fáctico no que tange aos factos dados como provados sob os pontos E) e F), P) e S), e bem assim quanto aos não provados sob os pontos 5 a 10, relegando-os para factos provados.
D. Recorrente e Recorrida apresentaram duas versões do acidente de viação na origem do presente processo que são antagónicas, sendo certo que o Recorrente prestou declarações de parte e ambas as partes arrolaram testemunhas e juntaram aos autos diversos documentos.

E. O depoimento da testemunha BB não deveria ter merecido credibilidade atentas as evidentes contradições que foram demonstradas e comprovadas, sendo certo que apresentou uma versão e descrição do acidente completamente efabulada, com danos completamente exagerados.
F. Nenhum juízo de desvalor se faz à forma como o Réu prestou as suas declarações, ou mesmo qualquer uma das demais testemunhas que foram ouvidas, razão pela qual é de crer que todas elas o fizeram de um modo credível e isento.
G. O início da motivação da valoração da matéria de facto parte de imediato de erro um notório na apreciação da prova de facto, na medida em que entre o Recorrente e a Testemunha CC, ocupante do veículo Opel, não se verificou um diálogo, mas antes uma verdadeira discussão.
H. Discorda-se da caracterização do acidente de viação e da eventual culpa do Recorrente porquanto não se pode extrair qualquer conclusão válida das declarações prestadas pela Testemunha BB que fantasiou a sua descrição e efabulou as circunstâncias em que o embate ocorreu.
I. O acidente de viação não foi testemunhado por qualquer outra pessoa.
J. A descrição do acidente feita pelo Recorrente é mais consentânea com as regras da experiência comum basilares na ponderação de todos os elementos de prova juntos aos autos nomeadamente as participações de acidente, as fotografias dos veículos.
K. Se à aludida ponderação acrescer o descrédito que merecem as declarações prestadas pela testemunha BB resulta uma dúvida razoável quanto à descrição do acidente que caberia à Autora provar, pelo que os factos provados constante das Al. E) e F) têm de ser forçosamente relegados para factos não provados.
L. As queixas de dor apresentadas pela testemunha CC não se mostram consentâneas com as regras da experiência comum quando é aquele que em diversos momentos do seu depoimento declara que saiu imediatamente do carro, que foi ver os danos, que discutiu com o Recorrente, que coordenou o trânsito e ainda, logrou “rapidamente tirar o telemóvel do bolso e tirar uma fotografia ao carro do Recorrente.
M. Da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não se pode concluir dar como provados os pontos P e S.
N. A prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente das declarações do Recorrente, e das testemunhas Militar da GNR Cabo DD e do Senhor EE demonstram que o veículo não ficou com danos de maior podendo até circular,
O. A prova documental junta aos autos nomeadamente o auto de participação elaborado pela GNR, os registos fotográficos dos veículos envolvidos e a descrição  do posicionamento dos veículos feita pela Testemunha BB, não permitem produzir prova quanto aos danos descritos.
P. Os danos descritos como provenientes do embate frontal com o veículo do Réu não se coadunam com os danos provados no veículo deste conforme resulta das fotografias juntas em requerimento apresentado pelo Recorrente a 16 de Janeiro.
Q. O valor atribuído ao salvado – Facto S dado como provado - foi aquele que as testemunhas FF e BB quiseram aceitar – não foi contestado - tendo em conta o propósito de ficarem com o salvado – o que se veio a verificar conforme resulta da documentação junta aos autos e das declarações prestadas pela testemunha GG.
R. Inquinados que estão os danos, questiona-se se haveria perda total do veículo.
S. Não se consente que o ponto 5 - “ A condutora do veículo travou a fundo, repentinamente, para mudar de direcção [ art.º 12.º da contestação]” - seja considerado como não provado, devendo atenta a prova produzida ser considerado como provado, devendo na campo da valoração da prova dar mais credibilidade às declarações do Recorrente do que às da testemunhas BB, acrescendo a que são duas versões dispares e sem testemunhas.
T. Concomitantemente o ponto 5 dos factos não provados deverá ser dado relegado para facto provado.
U. Discorda-se ainda que sejam considerados como não provados os pontos 6, 9 e 10, nomeadamente as expressões alegadamente referidas pelo ocupante do veículo Opel, a prestação de assistência e que aqueles ocupantes não apresentavam queixas.
V. Da produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente das declarações prestadas pelo Recorrente, pelo ocupante do veículo Opel, das testemunhas HH e II é de concluir que existiu uma discussão acesa entre o Recorrente e aquele ocupante, nomeadamente com braços a esbracejar.
W. A testemunha CC admite a possibilidade de ter insultado o Recorrente.
X. O Recorrente e a testemunha II descrevem o estado de espírito do primeiro como alterado, nervoso, amedrontado, em pânico e nenhum ressalva ao valor ou desvalor a atribuir às suas declarações.
Y. É a própria testemunha CC que admite não só a possibilidade de ter insultado o recorrente; bem como que não precisavam de assistência médica a priori, referindo que ambos os ocupantes saíram do carro, que esteve a coordenar o trânsito.
Z. As testemunhas II e HH corroboram a convicção do Recorrente da desnecessidade de assistência médica, o primeiro porque não observou essa necessidade; a segunda porque perguntou se precisavam dela e foi-lhe dito expressamente pela testemunha BB que não.
AA. Face à prova produzida, nomeadamente o relato do Recorrente, indiciado ou parcialmente corroborado pela testemunha CC, impõe-se decisão diferente quanto à sua valoração devendo o mesmo ser considerado provado.
BB. Face a realidade vivenciada, descrita e dada como provada, não se pode admitir que seja relegado para facto não provado que o Recorrente prestou assistência e se certificou que não estavam feridos, e que não apresentavam queixas, facto este que a manter-se como não provado contradiz a matéria de facto dada como provada, nomeadamente o ponto K.
CC. O Recorrente provém de uma família conhecida e tradicionalista de ..., que não se mostra habituado a certos confrontos e “bate-boca de rua” com reconhecidos impropérios ou expressões que de facto e aos seus ouvidos possam ter assumido um caracter ameaçador, verdadeiramente perturbador e que tenham motivado a que o mesmo saísse daquele local.
DD. A ausência de outras testemunhas sobre os factos relatados, demonstrando a permanência das pessoas dentro das viaturas em pleno verão quando se assiste a um bate-boca é que não é verosímil a menos que uma ou ambas as partes “desse lamentável espetáculo” demonstra uma atitude demasiado alterada (para não dizer) violenta.
EE. Os estados de espírito, a reação ou antes o “poder de encaixe” de cada um, é um plano demasiado subjectivo que não pode ser levianamente posto em causa sem qualquer outro elemento de prova que desminta ou confirme o “bom fingidor”.
FF. Não é incredível o temor descrito pelo Recorrente que foi capaz de o transmitir à testemunha II.
GG. Não se mostra patente na fundamentação da motivação da sentença recorrida qualquer palavra de descrédito ao depoimento da aludida testemunha, razão pela qual se deverá questionar o porquê de se apontar a saída do local para o medo das autoridades e não para o medo do passageiro do veiculo Opel.
HH. O aludido juízo de valor determina a resposta convicta sobre o motivo justificativo do Réu para ter medo da chegada das autoridades, sendo certo que a Autora não logrou demostrar, provar ou levar aos autos qualquer indício nos presentes autos de que o Réu pudesse, por alguma razão, ter motivos para recear a chegada das autoridades.
II. Deveria ser incontestada a reação e o sentimento que o Recorrente experienciou tendo por base a descrição que fez e que se mostra de algum modo corroborada quando contraposta à sua história de vida, ao seu percurso e à sua educação, sendo inequívoco que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento apenas o receio, medo, pânico, ansiedade e nervosismo referido pelo Recorrente é corroborado por outros meios de prova.
JJ. A sentença à quo faz um juízo de valor à reação da mãe do Recorrente e da testemunha JJ, sendo que a primeira não foi ouvida em audiência de discussão e julgamento, e quanto às declarações do Segundo não se faz qualquer juízo de desvalor às suas declarações que lhe retirem credibilidade, ou que depôs com contradições, muito pelo contrário é dito “infere-se do depoimento credível da testemunha”.
KK. Conjugadas todas as circunstâncias vivenciadas por esta testemunha, conjugando tal circunstância com o facto de ser referido a inexistência de “problemas de maior”, além da demais conversa que possa ter existido entre os militares e os familiares do recorrente, inexiste pois fundamento de facto para a expressão ou declaração que fundamente e permita a construção da convicção de “receio de um contacto imediato com as autoridades policiais, tendo considerado conveniente sair prontamente do local e apresentar-se na policia apenas no dia seguinte (…)”.
LL. Pelo contrário, se o Recorrente estivesse verdadeiramente comprometido com a situação teria saído imediatamente do local após o embate, pelo que os pontos 7 e 8 da matéria de facto não provada, considerando que da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento não resulta provado ou fundamentado o receio da autoridade policial, devem ser relados para factos provados.
MM. Não se ignora, a aplicação do princípio da livre apreciação da prova, acolhido, de forma expressa, no art. 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, mas tal não se quede por um patamar meramente matemático, ou exanguemente formal, devendo o julgador, quando animado de tal função, harmonizá-la dialecticamente, sempre sob o profícuo e integrador cenário dos princípios da experiência comum, sem que irrompa uma qualquer espécie de limitação ancorada em razões numéricas ou vagamente formal-conceptuais.
NN. Exige-se, pois, que a apreciação da prova seja feita com objectividade, sendo certo que a mesma só terá validade se for devidamente fundamentada, alicerçada na conjugação de todos os elementos de prova carreados aos autos.
OO. De facto, impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (documentos, depoimentos de testemunhas e declarações de parte), nos termos previstos no art. 640.º do CPC, cumpre ao Tribunal da Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e reflectir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do art. 662.º do CPC.
PP. Por seu turno, alterada a matéria de facto nos termos alvitrados será inevitável a consequência jurídica da improcedência da acção movida contra o aqui Recorrente, uma vez que se encontram integralmente afastados os pressupostos do direito de regresso da Autora nos termos e para os efeitos do art.º 19.º, al. d) do Decreto-Lei 522/85 de 31 de Dezembro, nomeadamente o alegado “abandono”.
QQ. É invocado contra o Recorrente um direito de regresso alicerçado no disposto na al d) do n.º 1 do art.º 27.º do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto, sendo certo que o exercício do direito de regresso não poder prescindir de uma conduta dolosa do condutor, que nunca poderá funcionar em termos puramente objectivos e automáticos, como resultado directo de uma conduta.
RR. No caso concreto, discorda-se que da aplicação dos princípios normativos e jurisprudência vigente se possa considerar que a conduta do Recorrente, face ao circunstancialismo descrito, vivenciado e resultante da matéria de facto dada como provada, possa consubstanciar “abandono do sinistrado”.
SS. É dado como provado – ponto K – que “Após o embate, o réu e os ocupantes do Opel saíram dos carros, não apresentando estes ferimentos visíveis [art.º 57.º e 58.º da contestação].”.
TT. Resulta da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que se estabeleceram conversas ao telefone – às quais o Recorrente assistiu -, o passageiro do veiculo Opel desviou o transito, aparentavam estar bem, não apresentavam queixas de maior, chamaram eles próprios as autoridades e ambulância, levando ao reboque da viatura que até aparentava circular, lograram rapidamente tirar uma fotografia ao veiculo do Recorrente.
UU. Não se pode concluir de per si que o embate tenha sido violento ou de grande intensidade, antes se devendo concluir que foi um “toque”, razão pela qual até determinado momento não seria exigível – dizemos nós - a “qualquer pessoa minimamente capacitada e conscienciosa a antever que aqueles poderiam ter sofrido lesões não imediatamente percetíveis (designadamente, no pescoço ou na coluna), como realmente sofreram”.
VV. A sentença recorrida socorre-se do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 11/2015 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça e publicado em diário da República I Série a 18 de Setembro de 2015, considerando que o disposto actualmente na al. d) do art.º 27.º, n.º 1 do DL 291/2007, de 21 de agosto, mantém a mesma redação do anterior art.º 19, al. c).
WW. Assim, o aludido acórdão basilar define, em termos factuais o conceito legal de abandono de sinistrado como facto constitutivo do direito de regresso da seguradora por referência à ampla e genérica tipificação do crime de omissão de auxílio, p. e p- no no art. 200º do C. Penal.
XX. “Este conceito pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.”
YY. Baliza ainda o aludido acórdão, dizendo que “não pode confundir-se a figura do abandono de sinistrado com a contra ordenação, prevista no art. 89º, nº 2, do C. Estrada — que sanciona o condutor que não aguarde no local do acidente a chegada de agente de autoridade: podendo a assistência devida aos lesados ser prestada pelo próprio ou por terceiros, não comete o facto doloso de abandono de sinistrado o condutor que, apesar de infringir aquela obrigação de estrita permanência no local, não chegou a formar e consumar a vontade de omitir a prestação da assistência devida aos lesados — afastando-se do local do acidente, nomeadamente por fundadas razões de receio, segurança ou perturbação (…)”
ZZ. É o próprio Acórdão Uniformizador de Jurisprudência que separa o dolo, em qualquer das suas formas da origem do acidente e das lesões que dele advém; do dolo necessário, em qualquer uma das suas formas, para que se verifique o abandono tal como se mostra tipificado no art.º 200.º do Código Penal.

AAA. O raciocínio-fundamento da conclusão de direito que subjaz à sentença recorrida padece de erro notório na aplicação do direito, conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 02/12/2020 disponível em www.dgsi.pt.
Conclui pela procedência do recurso.

A Autora pugna pela confirmação da decisão proferida.

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1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas, as questões a apreciar são as seguintes:
a) Deve ser alterado o julgamento da matéria de facto relativamente aos factos julgados provados sob as alíneas E, F, P e S, e os não provados sob os n.º 5 a 10?
b) Não se encontra verificada a situação de abandono de sinistrado prevista na alínea d), do art.º 27º, do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto?

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2. Os factos
2.1. Da impugnação da matéria de facto
O Réu, manifestando a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto, pretende que, após reapreciação de meios da prova produzida, que identifica, a sua modificação.
Os factos provados que impugna são:
E) Ao aproximar-se do Km 163 da E.N. ...09, na freguesia ..., a condutora do Opel reduziu a velocidade do veículo e acionou a luz indicadora de mudança de direção do lado esquerdo, com a intenção de mudar de direção para esquerda, para passar a circular pela Rua ... [art.ºs 4.º e 16.º da petição inicial].
F) Quando o Opel se encontrava imobilizado a aguardar uma oportunidade de efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda, foi embatido, na parte traseira, pela parte da frente do BMW [art.ºs 17.º a 19.º da petição inicial].
P) Em consequência direta da colisão do BMW no Opel, este sofreu danos na traseira e lateral direita, ao nível da embaladeira, para-choques, quadro da porta, pilar, amortecedores, frisos, chapa retaguarda, vidro lateral, rodas traseiras, cava da roda interior, proteção da mala, proteção inferior, piso traseiro, porta da retaguarda, luz de travão, vidro retrovisor aquecido, braço e motor limpa para brisa, pala, forro da bagageira, oculo traseiro, painel lateral, porta traseira e frente, chapa traseira, para-choques traseiro e pintura [art.º 25.º da petição inicial].
S) O salvado relativo ao Opel, após o embate, tinha o valor aproximado de € 105,00 [art.º 28.º da petição inicial].
E encontram-se fundamentados pela seguinte forma:
As circunstâncias em que ocorreu o embate foram descritas pela condutora e pelo passageiro
 do Opel (as testemunhas BB e CC), sendo corroboradas pelas declarações
 de parte do próprio réu, ao reiterar que, de imediato, lhes disse que sabia que tinha a culpa e que assumia a culpa no toque (reforçando o que alegara na contestação, onde refere que pediu desculpa e reconheceu a sua culpa cf. art.º 22.º), afirmando, espontaneamente, que ela sinalizou (a manobra), ainda que, posteriormente, tenha tentado contradizer essa afirmação, referindo que apenas viu desviar para a esquerda [alíneas E) e F)]. Neste contexto, o comportamento assumido pelo réu tal como ele próprio o descreveu , contraria a alegação contida na contestação, no sentido de poder imputar-se qualquer conduta censurável à condutora do Opel, nomeadamente, quanto a uma travagem a fundo repentinamente, que também nenhum outro elemento probatório sequer indicia (tal como sucede com a alegação relativa à velocidade a que seguiria o réu) [pontos 4 e 5].

A descrição do estado em que ficou o Opel, assim como o valor de mercado do mesmo antes do acidente, o valor estimado da sua reparação e o valor do respetivo salvado extraem-se dos documentos juntos a 02/01/2023, nos quais, além desses elementos, consta a descrição detalhada do veículo e dos componentes a reparar, bem como anúncios de venda de veículos usados com características semelhantes, sendo o conteúdo desses documentos consentâneo com as características e intensidade do embate, bem como com as lesões sofridas pelos ocupantes desse veículo e com o relato seguro e descomprometido da testemunha DD (militar da GNR que elaborou a participação de acidente de viação) que confirmou que o veículo em causa foi rebocado tendo            percecionado que ficou muito danificado atrás [alíneas P) a S)].
No que concerne aos factos provados, discorda do julgamento, como tal, dos identificados em E, F, P e S. Para a sua alteração convoca os depoimentos prestados pelo Réu, bem como os prestados pelas testemunhas II, HH e CC.
O Réu nas declarações que prestou, foi perentório a declarar que saiu do carro e de imediato assumiu a culpa da verificação do acidente, dizendo que não havia qualquer problema porque ela tinha seguro. Disse que enquanto a condutora falava ao telefone para a filha foi insultado e ameaçado pelo ocupante do veículo sinistrado, nomeadamente que o ia matar, abrindo a porta traseira do lado do passageiro, o que lhe provocou receio e determinou que abandonasse o local e que se refugiasse em casa, só indo na manhã do dia seguinte à polícia, não tendo, desde que aconteceu o acidente falado com quem quer que fosse.
O Réu, no desenrolar do seu depoimento, acaba por dizer que não sabe se a condutora do outro veículo fez ou não pisca para assinalar a mudança de direção para a esquerda.
A condutora do veículo sinistrado, BB, disse que o Réu, após o embate, abandonou o local, não lhe tendo prestado auxílio que a si, quer ao passageiro que ia consigo. A testemunha disse que reduziu a velocidade e fez sinal de mudança de direção para a esquerda. Descrevendo o que ocorreu após o acidente, disse que abriu a porta do carro, mas não conseguiu sair, tendo o seu marido saído. A testemunha disse ter ligado para as suas filhas que chamaram a ambulância, só tendo nessa altura saído do carro.
Fora do carro, o marido da testemunha e o Réu discutiram, na sequência do que este entrou no seu carro e com grande velocidade saiu do local e nunca mais disse nada.
CC, ocupante e proprietário do veículo sinistrado, confirmou que saiu logo do carro, tendo o Réu lhe pedido para não chamarem a polícia por que lhe estragavam a vida. Após terem discutido o Réu meteu-se no carro e saiu dali. A testemunha nega que tenha ameaçado o Réu.
As testemunhas BB e CC, respetivamente condutora e passageiro do veículo em que o conduzido pelo Réu embateu, para quem a sorte da ação é completamente indiferente, relataram os factos de uma forma convincente.
II, amigo de infância do Réu, disse saber do acidente porque o seu amigo lhe ligou no momento a contar. Nesse telefonema apercebeu-se que o Réu estava muito nervoso e ouvia um ruído de fundo de uma discussão, aconselhando-o, uma vez que não havia feridos, a sair do local. Este depoimento não se apresenta credível, pois não é de crer que o Réu, numa situação de conflito como aquela que descreve na sua contestação, tenha feito um telefonema comos contornos do declarado pela testemunha.
JJ, companheiro da mãe do Réu há 21 anos, nada revelou saber das circunstâncias do acidente e motivos que justificariam a ausência do Réu do local, disse que acompanhou, no dia seguinte ao do acidente, o Réu à polícia, depois de ter sido contatado para saber se ele se encontrava na sua casa.
HH, não conhece o Réu, mas conhece os passageiros do carro sinistrado, disse que passou no local, em sentido contrário ao que circulava o Réu, já depois de ter ocorrido no acidente. Apercebeu-se de duas pessoas a discutirem, tendo visto um deles que se dirigiu a um carro e saiu do local. Após, apercebeu-se que os passageiros do carro sinistrado eram seus conhecidos com quem falou e lhe disseram que já tinham chamado a ambulância.
Este depoimento foi curto e conciso, revelando-se imparcial.
Entendia-se quanto ao depoimento da parte no âmbito do anterior Código de Processo Civil que, apesar da sua finalidade – confissão judicial –, tal não era impeditivo de que o Tribunal pudesse atender aos factos que o depoente relatasse e que lhe fossem favoráveis, valorando-o, nessa parte, segundo a sua livre convicção e em conjugação com os demais elementos de prova que estivessem ao seu dispor. A valoração do depoimento quanto a tais factos deveria sempre ter em consideração o interesse direto do depoente na causa, com cuidados na aceitação daquilo que fosse declarado relativamente a factos que o favorecessem.
Entendemos que, no C. P. Civil atual também deve ser esta a posição do tribunal quanto aos factos que lhe forem favoráveis à parte e que esta confirme, quer no âmbito do depoimento de parte, quer no âmbito das declarações previstas no art.º 466º, que são livremente apreciadas pelo Tribunal naquilo que não constituir confissão.
Uma das posições mais abrangentes quanto à prova das declarações de parte consta de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa:
Sintetizando, diremos que:
(i) no que excede a confissão, as declarações de parte integram um testemunho de parte;
 (ii) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal;
(iii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente.
Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação. [1]
Outra das posições defende que no que respeita às declarações de parte e em relação a factos que são favoráveis à procedência da acção, o juiz não pode ficar convencido apenas com um depoimento desse mesmo depoente, interessado na procedência da ação, deponha ele como “testemunha” ou preste declarações como parte, se não houver um mínimo de corroboração de outras provas. [2]
No caso dos autos é indiferente a posição que se perfilhe a sobre a questão porquanto as declarações prestadas pelo Réu, por si só se afiguram insuficientes para a demonstração e infirmação dos factos em causa e dos demais depoimentos prestados nada resulta que coloque em crise os factos impugnados e constantes de E e F.
Assim, o Réu nas declarações que prestou, confirmou tudo o alegado em sede de contestação revelando-se pouco convincente na sua exposição.
Também não esclareceu a razão pela qual depois de ter saído do local do acidente não se dirigiu de imediato à polícia.
Face a tudo o que se disse não resultam provados com a consistência necessária os factos em causa, pelo que se mantém o seu julgamento como provados dos factos E e F.
Os factos julgados provados em P e S não são colocados em crise por nenhum dos depoimentos convocados pelo Réu, resultando a sua prova dos documentos juntos aos autos em 2.1.2023, pelo que, também, quanto a estes se mantem o julgamento efetuado.
Por sua vez os factos não provados que o Réu pretende que sejam alterados são:
5. A condutora do Opel travou a fundo, repentinamente, para mudar de direção [art.º 12.º da contestação].
6. Em reação ao pedido desculpa e ao reconhecimento da sua culpa, o réu foi confrontado com as expressõesseu filho da puta, cabrão do caralho, eu fodo-te todo”, “meu cabrão de merda, eu faço-te merda” e “paneleiro”, proferidas pelo passageiro do Opel, na via pública [art.ºs 22.º a 24.º da contestação].
7. O passageiro do Opel dirigiu-se à porta de trás do lado direito do seu veículo e proferiu a expressão queres ver que te mato aqui[art.º 25.º da contestação].
8. O réu tomou a condução do seu veículo e ausentou-se do local por se sentir ameaçado e temer ser agredido [art.ºs 26.º e 56.º da contestação].
9. Após o embate, o réu prestou assistência e certificou-se de que a condutora e o passageiro do Opel não se mostravam feridos [art.º 57.º da contestação].
10. Os ocupantes do Opel não apresentaram queixas [art.º 58.º da contestação].
O facto enumerado em 5 não se prova em consequência da prova efetuada, quanto à mesma realidade, dos factos enumerados em E e F.
Os factos não provados descritos em 6 a 9, foram só mencionados pelo Réu nas declarações que prestou, as quais, como acima se disse, por si só, carecem de força probatória suficiente para se julgarem tais factos como provados.
Por sua vez não foi produzido qualquer meio de prova que permitisse a alteração do julgamento efetuada.
Improcede, assim, a impugnação da matéria de facto.

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2.2. Os factos provados
Os factos provados são os seguintes:
A) Em 16/04/2019, a autora, no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com o réu o acordo escrito titulado pela apólice n.º ...23, através do qual o segundo transferiu para a primeira a responsabilidade civil emergente de danos causados a terceiros
 decorrentes da circulação do veículo automóvel ligeiro de passageiros do réu, de marca BMW, modelo ..., com a matrícula ..-PR-.. [BMW] [art.ºs 1.º a 3.º da petição inicial].
B) No dia 21/07/2019, cerca das 20:57, o réu conduzia o BMW pela E.N. ...09, no sentido de marcha .../... [art.ºs 4.º, 7.º e 14.º da petição inicial].
C) À frente do BMW, na mesma via e sentido de marcha, seguia o veículo ligeiro de passageiros de marca Opel, modelo ..., com a matrícula ..-..-ME [Opel], pertencente a CC e conduzido por BB [art.ºs 4.º, 7.º e 15.º da petição inicial].
D) A, aproximadamente, 100m da rotunda de que provinham o Opel e o BMW, existe um cruzamento na E.N. ...09 que permite virar à esquerda, para a Rua ... [art.ºs 5.º e 8.º da contestação].
E) Ao aproximar-se do Km 163 da E.N. ...09, na freguesia ..., a condutora do Opel reduziu a velocidade do veículo e acionou a luz indicadora de mudança de direção do lado esquerdo, com a intenção de mudar de direção para esquerda, para passar a circular pela Rua ... [art.ºs 4.º e 16.º da petição inicial].
F) Quando o Opel se encontrava imobilizado a aguardar uma oportunidade de efetuar a manobra de mudança de direção à esquerda, foi embatido, na parte traseira, pela parte da frente do BMW [art.ºs 17.º a 19.º da petição inicial].
G) No local do embate, a faixa de rodagem, com 9,70 metros de largura, apresentava uma via de trânsito para cada sentido de marcha, separadas por um traço descontínuo [art.ºs 8.º a 10.º da petição inicial].
H) O traçado da via era plano e reto [art.º 11.º da petição inicial].
I) Antes do embate, a visibilidade da E.N. ...09, no sentido de marcha .../..., para o condutor do BMW, era superior a 100 metros [art.º 12.º da petição inicial].
J) No momento do embate, não havia vento, não chovia e não estava nevoeiro [art.º 13.º da petição inicial].
K) Após o embate, o réu e os ocupantes do Opel saíram dos carros, não apresentando estes ferimentos visíveis [art.º 57.º e 58.º da contestação].
L) O réu ausentou-se do local sem aguardar pela chegada das autoridades [art.º 20.º da petição inicial]
M) A condutora e o passageiro do Opel foram transportados ao Centro Hospitalar ... no dia 21 de julho, tendo tido alta na madrugada do dia 22 de julho [art.º 31.º da contestação].
N) Em consequência do embate, a condutora do Opel sofreu traumatismo indireto cervical e cervicalgias, cujo tratamento implicou a toma de medicação analgésica e a frequência de sessões de fisioterapia [art.ºs 26.º da petição inicial e 31.º da contestação].
O) E o passageiro do Opel, CC sofreu dores no pescoço, com limitação da rotação lateral esquerda, a partir dos 45º, e ao mover o tronco [art.ºs 27.º da petição inicial e 31.º da contestação].
P) Em consequência direta da colisão do BMW no Opel, este sofreu danos na traseira e lateral direita, ao nível da embaladeira, para-choques, quadro da porta, pilar, amortecedores, frisos, chapa retaguarda, vidro lateral, rodas traseiras, cava da roda interior, proteção da mala, proteção inferior, piso traseiro, porta da retaguarda, luz de travão, vidro retrovisor aquecido, braço e motor limpa para brisa, pala, forro da bagageira, oculo traseiro, painel lateral, porta traseira e frente, chapa traseira, para-choques traseiro e pintura [art.º 25.º da petição inicial].
Q) À data do embate, o Opel tinha um valor de mercado entre € 1.600,00 e € 1.750,00 [art.º 28.º da petição inicial].
R) A reparação do Opel, sem desmontagem, foi estimada pela ré em € 4.577,42 [art.º 25.º da petição inicial].
S) O salvado relativo ao Opel, após o embate, tinha o valor aproximado de € 105,00 [art.º 28.º da petição inicial].
T) A autora efetuou os seguintes pagamentos, reclamados pela condutora do Opel:
- € 192,14, em 13/08/2019, relativo a exames complementares diagnóstico (€ 149,54) e Hospital/ Clínica (€ 42,50);
-  € 50,65, em 30/09/2019, relativo a Medicamentos (€ 8,15) e Hospital/Clínica (€ 42,50);
- € 220,00, em 16/10/2019, relativo a Fisioterapia;
- € 280,00, em 24/10/2019, relativo a Fisioterapia;
- € 182,50, em 06/12/2019, relativo a Fisioterapia (€ 140,00) e Hospital Clínica (€ 42,50);
- € 775,60, em 20/01/2020, relativo a Transportes (€ 75,80) e Fisioterapia (€ 700,00);
- € 80,30, em 27/03/2020, relativo a Transportes (€ 37,80) e Hospital / Clínica (€ 42,50);
- € 3.225,00, em 22/07/2020, relativo a Fisioterapia (€ 1.125,00) e Dano Biológico (€ 2.100,00).
[art.º 29.º da petição inicial].
U) A autora efetuou os seguintes pagamentos, reclamados pelo passageiro do Opel:
- € 1.988,60, em 13/08/2019, relativo a Medicamentos (€ 38,26), Exames complementares diagnóstico (€ 349,34), próteses/Ortóteses (€ 15,50), Hospital/Clínica (€ 42,50) e perda total do veículo (€ 1.545,00);
- € 127,67, em 10/09/2019, relativo a imobilização do veículo;
- € 42,50, em 30/09/2019, relativo a Hospital/Clínica
- € 125,00, em 16/10/2019, relativo a Fisioterapia;
- € 399,17, em 06/12/2019, relativo a Medicamentos (€ 6,67), Fisioterapia (€ 350,00) e Hospital/Clínica (€ 42,50);
- € 560,00, em 30/01/2020, relativo a Fisioterapia;
- € 220,30, em 27/03/2020, relativo a Fisioterapia;
- € 3.225,00, em 22/07/2020, relativo a Fisioterapia (€ 1.125,00) e Dano Biológico (€ 2.000,00).
[art.º 29.º da petição inicial].
V) Em 29/04/2020, a autora pagou as faturas emitidas pelo Centro Hospitalar ..., respeitantes à assistência da condutora e passageiro do Opel, nos valores de € 240,31 e € 110,91 [art.º 30.º da petição inicial].
W) Em 30/11/2020, a autora pagou à Trust Gestão Saúde as quantias de € 30,00, € 25,00, € 25,00 e € 30,00, relativas a consultas de especialidade prestadas à condutora e ao passageiro do Opel [art.º 31.º da petição inicial].
X) A autora liquidou as seguintes quantias, relativas à gestão do sinistro e peritagem:
- € 40,68, à B... Ld.ª, em 14/08/2019;
- € 109,54, C..., S.A., em 18/10/2019.
[art.º 32.º da petição inicial].

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3. O direito aplicável
Tendo sido improcedente a impugnação da matéria de facto e não sendo colocada em crise pelo Réu, neste recurso, a sua culpa exclusiva na produção do acidente, a questão que nos resta apreciar é a da verificação dos pressupostos do direito que a Autora se arroga para o exercício do direito de regresso que pretende efetivar com estra ação.
O reconhecimento do direito de regresso da empresa de seguros contra o condutor responsável pelo acidente, uma vez satisfeita a indemnização, com base na alínea d), do art.º 27º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, encontra-se previsto nos casos em que este haja abandonado o sinistrado.
É entendimento pacífico nos nossos tribunais, que o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 11/2015, emitido pelo STJ a 02.07.2015 [3], no âmbito do direito de regresso da seguradora então consagrado na alínea c) do art.º 19º, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31/12 – no sentido de que, o direito de regresso da seguradora contra o condutor que haja dolosamente abandonado o sinistrado não está limitado aos danos que tal abandono haja especificamente causado ou agravado, abrangendo toda a indemnização paga ao lesado com fundamento na responsabilidade civil resultante do acidente –, mantém toda a sua validade face ao atual regime do sistema de seguro obrigatório civil automóvel, previsto no citado art.º 27º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Segundo este aresto, a  atribuição de um direito de regresso às seguradoras, nos casos em que ocorre uma situação de abandono de sinistrados, traduz-se em prever e fazer funcionar uma sanção patrimonial civil, envolvendo o apagamento da normal garantia do seguro e a personalização da responsabilidade do segurado e determinante de que o sacrifício patrimonial resultante do pagamento da indemnização à vítima do acidente deva recair definitivamente sobre o autor do abandono doloso do sinistrado (tornando, deste modo, extremamente onerosas para o condutor as consequências da omissão dolosa de auxílio às vítimas, por essa via procurando censurar e desincentivar fortemente esse reprovável comportamento estradal).
Em anotação a este acórdão, complementando e melhor explicando este raciocínio, escreveu Margarida Lima Rego [4], referindo-se à consagração pelo legislador deste específico direito de regresso:
Deste modo se garante a disponibilidade de meios para ressarcir as vítimas de acidente de viação, mas, na relação entre os responsáveis e respetivos seguradores, faz-se prevalecer a posição destes últimos nos caos em que a conduta dos primeiros é merecedora de maior censura. O direito não se funda no instituto da responsabilidade civil delitual, antes corresponde ao que mais próximo se encontrou de uma cláusula de exclusão inoponível aos terceiros lesados: um mecanismo que, perante certos comportamentos especialmente censuráveis, faz precludir o direito à cobertura do seguro, levando à constituição, na esfera do segurado, de uma obrigação de restituição.
Daí que, apoiando-se na fundamentação expressa naquele emblemático acórdão uniformizador, a jurisprudência dominante sustente que, tratando-se da aplicação de uma clara sanção de natureza patrimonial ao condutor do veículo segurado, mesmo que situada no estrito domínio das relações civis, nunca poderá funcionar em termos puramente objetivos e automáticos pela mera verificação da factualidade objetiva resultante do referido art.º 27º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.
Assim, como se afirmou na fundamentação daquele acórdão uniformizador o conceito de abandono de sinistrado, numa interpretação restritiva, pressupõe necessariamente o dolo do condutor, não bastando a falta de prestação de assistência por mera negligência: a existência daquele direito de regresso pressupõe que tenha havido o abandono doloso da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.
De igual modo, esclarece-se no mesmo aresto uniformizador que não pode confundir-se a figura do abandono de sinistrado com a contraordenação, prevista no art.º 89º, nº 2, do C. Estrada, que sanciona o condutor que não aguarde no local do acidente a chegada de agente de autoridade. Tal situação, apesar de contraordenacionalmente sancionável, não se confunde com a falta de prestação de auxílio aos intervenientes no acidente sinistrados, uma vez que são diversos os bens jurídicos ameaçados ou violados pelas diferentes condutas do responsável pelo acidente.
Para que se reconheça o direito de regresso da seguradora contra o condutor por abandono de sinistrado é, assim, indispensável:
a) que o condutor tenha de algum modo dado causa ao acidente (requisito de que depende a obrigação de indemnizar o lesado por parte da seguradora);
b) que o condutor se tenha retirado do local do acidente, sem ter prestado o auxílio que lhe era exigível, segundo as circunstâncias;
b) que o condutor tenha atuado censuravelmente na prática da falta de assistência, em termos de nela se reconhecer o dolo, em qualquer uma das suas formas;
c) que não ocorra qualquer falta de adequação e proporcionalidade entre as consequências do exercício do direito de regresso, por parte da seguradora, e a gravidade da infração presente na conduta do condutor abandonante.
A sentença recorrida entendeu que no presente caso estavam verificados os requisitos que conferiam à Autora um direito de regresso, com a seguinte fundamentação:
Ainda que os ocupantes do veículo em que o réu culposamente embateu com o veículo que conduzia não exibissem ferimentos superficiais visíveis imediatamente reconhecíveis no rosto ou nas partes descobertas dos corpos (nomeadamente, pela ausência de sangue, escoriações ou traumatismos expostos), as características e intensidade desse embate (na traseira do veículo que se encontrava imobilizado, provocando neste os danos comprovados) não deixariam de levar qualquer pessoa minimamente capacitada e conscienciosa a antever que aqueles poderiam ter sofrido lesões não imediatamente percetíveis (designadamente, no pescoço ou na coluna), como realmente sofreram.
Na verdade, o réu não explicitou sequer de que forma se certificou que aqueles não estavam feridos ou que atos concretos de assistência lhes prestou, apurando-se apenas que, num cenário em que as autoridades policiais acorreriam ao local, em vez de aguardar pela sua chegada, como seria expectável de qualquer condutor na sua situação, depois de se aconselhar telefonicamente, resolveu ausentar-se, repentinamente, do local e esquivar-se ao contacto com a polícia até ao dia seguinte, quando, convenientemente, já estava disponível para cumprir as suas obrigações legais (que ainda fossem possíveis cumprir, sabendo-se, nomeadamente, que já não seria viável a sua submissão a provas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas – cf. art.ºs 152.º e 153.º do Código da Estrada), enquanto condutor de um veículo interveniente num acidente de viação de que resultaram feridos.
Na ausência de qualquer causa justificativa atendível para a conduta do réu, não se mostra afastado o caracter doloso do abandono dos sinistrados – pela representação de todas as circunstâncias relevantes que impunham a sua permanência no local, pelo menos, até à comparência da polícia, e pela vontade de, antes que tal ocorresse, abandonar imediatamente o local, sabendo que, com a sua conduta, necessariamente abandonaria também os sinistrados (ou conformando-se com essa possível e previsível consequência da sua conduta) – que constitui fundamento do direito de regresso invocado pela autora.
Esta argumentação mistura vários equívocos. No primeiro parágrafo, recorrendo a factos que não constam da factualidade considerada provada, denuncia uma eventual conduta negligente do Réu na deteção das lesões dos ocupantes do Opel, a qual, a ter-se verificado não é suficiente para a atribuição à Autora de um direito de regresso. No segundo parágrafo confere relevância ao facto do Réu se ter ausentado do local do acidente antes da chegada das autoridades, o que, como já vimos apenas tem relevância jurídica no plano contraordenacional e não para efeitos de atribuição à Autora de um direito de regresso. E, finalmente, no terceiro parágrafo, faze recair sobre o Réu o ónus da prova sobre as razões do seu comportamento, invertendo, contra as regras gerais estabelecidas no art.º 342º do C. Civil, a distribuição do ónus da prova, em que demonstração dos requisitos do direito de regresso recaem sobre a Autora.
Para apurarmos se esses requisitos estão preenchidos temos que olhar apenas para os factos que se encontram provados, e entre estes, os que relevam para este efeito são os seguintes:
- após o embate, o Réu e os ocupantes do Opel saíram dos carros, não apresentando estes ferimentos visíveis (facto K);
- o Réu ausentou-se do local sem aguardar pela chegada das autoridades (facto L);
- a condutora e o passageiro do Opel foram transportados ao Centro Hospitalar ..., no dia 21 de julho, tendo tido alta na madrugada do dia 22 de julho (facto M);
- em consequência do embate, a condutora do Opel sofreu traumatismo indireto cervical e cervicalgias, cujo tratamento implicou a toma de medicação analgésica e a frequência de sessões de fisioterapia (facto N);
- e o passageiro do Opel, CC sofreu dores no pescoço, com limitação da rotação lateral esquerda, a partir dos 45º, e ao mover o tronco (facto O).
Desta descrição, se é possível afirmar que do acidente resultaram lesões para a condutora e o passageiro do Opel, verificando-se, pois, a existência de sinistrados, não sendo essas lesões visíveis, nem se tendo provado quaisquer elementos que nos permitam afirmar que o Réu se pudesse ter delas apercebido, o abandono do local do acidente pelo Réu, após todos terem saído dos veículos onde seguiam, não revela uma omissão de assistência censurável, uma vez que não se encontra demonstrado um circunstancialismo que permitisse ao Réu aperceber-se da existência de pessoas lesionadas.
Pressupondo a situação de abandono de sinistrado, tipificada na alínea d), do art.º 27º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, o dolo do condutor responsável pelo acidente, o qual ocorre quando se apercebe que do acidente tenha resultado perigo para a vida ou integridade física de outra pessoa interveniente nesse acidente, e, não preste a devida assistência, podendo-o fazer, e não se tendo provado que o Réu se tenha apercebido que do acidente por si provocado tenham resultado pessoas necessitadas de auxílio, não se mostra preenchida a situação tipificada no referido preceito, não tendo, por isso, a Autora o direito de regresso aí atribuído.
Importa, pois, julgar procedente o recurso interposto e revogar a decisão recorrida, sendo a mesma substituída por outra que absolva o Réu do peticionado.

                                                 *

Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso de apelação interposto pelo Réu e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida, julgando-se a ação improcedente e absolvendo-se o Réu do pedido formulado pela Autora.

                                                 *
Custas do recurso e da ação pela Autora.

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                                                                     9.4.2024









[1] Acórdão do T. R. L. de 26-04-2017 relatado por Luís Filipe Pires de Sousa, acessível em www.dgsi.pt.

[2] Acórdão do T. da Relação do Porto de 20.11.2014 relatado por Pedro Martins , acessível em www.dgsi.pt.


[3] Publicado no D.R. 1.ª Série, n.º 183, de 18 de setembro de 2015.
[4] O direito de regresso do segurado contra o condutor em caso de abandono do sinistrado, Cadernos de Direito Privado, n.º 53, janeiro/março de 2016, p. 39.