Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4211/11.5TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: LIVRANÇA
AVAL
PACTO DE PREENCHIMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
MONTANTE
REDUÇÃO DO NEGÓCIO
Data do Acordão: 01/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - ANSIÃO - JUÍZO DE EXECUÇÃO - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS 30, 32, 70 LULL, 292 CC
Sumário: 1.- O preenchimento abusivo de um título cambiário apresenta duas categorias de desconformidade por referência à vontade manifestada pelo subscritor do mesmo título: a primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título; a segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzidas no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos “acordos realizados”.

2.- No primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da excepção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos.

3.- Preenchida a livrança com violação do respectivo pacto, no tocante ao montante acordado, esta não se torna nula, devendo a responsabilidade do embargante limitar-se à assumida no respectivo acordo, confinando-se a dívida aos limites de tal pacto, o que se enquadra na redução dos negócios jurídicos nos termos do art. 292º do CC.

Decisão Texto Integral:

I - Relatório

 

1. BANCO (…), S.A., com sede em (...) , intentou acção executiva para pagamento de quantia certa contra J (…) e E (…), residentes em (...) , requerendo que os mesmos lhe paguem a quantia de 7.526,18 €, com base em livrança pelos mesmos avalizada, não paga pelos Executados, nem na data de vencimento, nem posteriormente.

Os executados deduziram embargos, sustentando, em síntese, que a livrança foi entregue no âmbito de contrato de locação financeira, que foi incumprido tendo a exequente procedido ao preenchimento da livrança sem interpelar os avalistas, o que se impunha visto o título ter sido entregue em branco e só com a interpelação é que os avalistas têm conhecimento do montante exacto e data em que se vence a garantia. A livrança foi preenchida em data anterior ao da resolução contratual em desrespeito do contratado. Pelo que a livrança não foi completada nos termos acordados. Por outro lado, com a resolução contratual a indemnização devida deve corresponder apenas as rendas vencidas e não pagas, no montante de 1527,76 € e não o valor inscrito na livrança de 7.417,86 €. Concluíram, pelo preenchimento abusivo da livrança, ou pela redução do valor da dívida.

O embargado contestou sustentando, em suma, que os embargantes foram interpelados para procederem ao pagamento do montante em dívida no prazo de 5 dias sob pena de o exequente avançar com as diligências necessárias para a interposição em Tribunal da competente acção. Na sequência da insolvência do locatário interpelou o administrador da insolvência para o pagamento do montante em dívida e, em face da recusa do cumprimento do contrato procedeu ao preenchimento da livrança. A livrança foi preenchida de acordo com o pacto de preenchimento, nomeadamente no que respeita ao valor da indemnização.

*

A final foi proferida sentença que julgar parcialmente procedente, os embargos de executado e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução para pagamento da quantia 6.955,87 €, ao que acrescem juros à taxa de 4% desde a data do vencimento da livrança (2.4.2011) até integral pagamento.

*

2. Os embargantes recorreram, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

3. O embargado contra-alegou, concluindo (conclusões que são a repetição do corpo das alegações, diversamente do que a lei ordena, no art. 639º, nº 1, do NCPC) que:

(…)

II - Factos Provados

A. Entre o B (…), na qualidade de locador, a sociedade C (…)Lda., na qualidade de locatário e J …), na qualidade de fiador, foi celebrado em 19 de novembro de 2007 o contrato de locação financeira n.º (...) que consta de fls. 40 v.º a 41 v.º dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

B. O referido contrato teve por objeto o veículo de marca Citroen, modelo Jumper Furgão Fechado médio 30 L2HD1, matricula (...) .

C. O valor da aquisição foi de € 21.370,00, com a TAEG de 11,68% e o valor residual de € 1.500,00, correspondendo o valor total do contrato a € 25.591,68, a ser pago em 60 rendas, sendo a primeira no valor de € 2.644,63, acrescida de IVA e com vencimento em 19 de novembro de 2007 e 59 seguintes no valor de € 313,65, acrescidas de IVA, com vencimento no mesmo dia dos meses subsequentes.

D. Às prestações referidas acrescem despesas de devolução de € 2,42 referente a despesas de processamento dos débitos em conta.

E. Como garantia para o cumprimento das obrigações deste contrato foi aceite livrança, com autorização de preenchimento assinada.

F. Em caso de mora do locatário no pagamento de uma renda ou de qualquer quantia devida nos termos do presente contrato, o Locador fará acrescer à taxa legal de juros de mora a sobretaxa máxima legalmente autorizada (cláusula 14.ª, ponto 1, das condições gerais).

G. As despesas de cobrança suportadas pelo locador em consequência da simples mora ou do incumprimento definitivo das obrigações contratuais por parte do locatário serão nesse repercutidas através do débito respetivo, bastando para tanto que o locador apresente o suporte documental de tais despesas (cláusula 14.ª, ponto 2, das condições gerais).

H. De igual modo correm por conta do locatário as despesas relacionadas com a concretização do disposto no n.º 3 da cláusula 17.ª, as despesas de reboque, parqueamento, portagem, acondicionamento do veículo, pagamento dos serviços prestados por terceiros e outras despesas necessárias para a recuperação do equipamento (cláusula 14.ª, ponto 3, das condições gerais).

I. O contrato poderá ser resolvido por iniciativa do locador, por carta registada, com aviso de receção ou por documento do locador assinado pelo Locatário comprovando a receção, no caso de o locatário se encontrar em mora superior a 60 dias do pagamento de qualquer renda ou de não cumprir qualquer outra das condições gerais ou particulares do contrato e, bem assim, de apresentação ou pedido de falência ou de processo especial de recuperação de empresas (cláusula 17.ª, ponto 1, das condições gerais).

J. Resolvido que seja o contrato pelo Locador, o locatário fica obrigado a cumulativamente, restituir o equipamento ao locador, pagas as rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos juros de mora contados desde o seu vencimento até à data do pagamento efetivo, calculados nos termos do n.º 8 da cláusula 4ª, bem como todos os encargos suportados pelo Locador por força da resolução, pagar uma indemnização por perdas e danos sofridos pelo Locador (cláusula 17ª, ponto 3, das condições gerais).

K. A indemnização corresponde à diferença entre o capital inicialmente desembolsado pelo Locador para aquisição do bem indicado pelo Locatário, abatido das amortizações de capital integradas nas rendas vencidas até à data da resolução (cláusula 17.ª, ponto 4, das condições gerais).

L. O referido contrato mostra-se assinado e rubricado, para além do mais, pelo Embargante J (…), na qualidade de legal representante da locatária e como fiador e pela Embargante G (…)

M. Do documento epigrafado de “Termo de autorização para preenchimento de livrança”, que consta de fls. 40 dos autos e se dá por integralmente reproduzido, devidamente assinado por ambos os embargantes, resulta que os Embargantes entregaram à Embargada uma livrança em branco, por eles subscrita, que garante o bom e integral pagamento das quantias que sejam devidas em caso de incumprimento do contrato de locação financeira e que autorizam a Exequente a proceder ao seu preenchimento nos locais que nela figuram em branco, pelo valor correspondente ao montante em dívida por força do eventual incumprimento do referido contrato, calculado nos termos das suas cláusulas.

N. O Exequente apresentou à execução, como título executivo, uma livrança, cuja cópia se mostra junta aos autos de execução a fls. 5 que aqui se dá por integralmente reproduzida.

O. Da referida livrança consta,

No seu anverso, para além do mais:

a. No espaço reservado ao local e data de emissão: (...) , 31/03/2011;

b. No espaço reservado à importância (em numerário e por extenso) €7.417,86;

c. No espaço reservado ao vencimento consta 02.04.2011;

d. No espaço reservado ao valor consta: contrato locação financeira (...) ;

e. No espaço reservado à aposição do nome e morada do subscritor consta um carimbo com menção de C (…), Lda. e duas assinaturas;

No verso da livrança referida consta:

f. Dou por aval ao subscritor e as assinaturas dos aqui embargantes.

P. No dia 3 de março de 2011 a Senhora Administradora de Insolvência da sociedade C (…), Lda. informou o Embargado da insolvência desta sociedade por sentença datada de 29 de novembro de 2011, solicitando ainda que seja informada das prestações em dívida.

Q. Os Embargantes foram interpelados por missiva de 17 de março de 2011 para, no prazo de 5 dias, procederem ao pagamento da quantia de €7.307,67 acrescida dos respectivos juros até integral pagamento no âmbito do contrato de locação financeira com o n.º (...) em que figura como locatária a C (…), Lda. e que teve por objeto o veículo de marca Citroen, modelo Jumper, matrícula (...) , sendo que caso assim não procedessem a Embargada diligenciaria pela interposição em Tribunal de ação judicial tendo por base a livrança por eles avalizada aquando do contrato de locação financeira;

R. As cartas referidas em Q) foram remetidas para a Rua (…) (...) , morada indicada no contrato e foram recebidas pela Embargante E (…)

S. No dia 22 de março de 2011 a Embargada informou a Senhora Administradora de Insolvência da sociedade Locatária C (…) que nessa data encontra-se em dívida o montante de € 7.307,67 e ainda para declarar se opta pela execução do contrato ou recusa o seu cumprimento.

T. Em 29 de março de 2011 a Senhora Administradora da Insolvência informa que recusa o cumprimento do contrato, que o veículo não foi apreendido a favor da massa insolvente e que o pedido de restituição deverá ser formulado junto do gerente da insolvente.

U. Em 28 de abril de 2011 o Embargado, na sequência da comunicação da recusa do cumprimento do contrato de locação financeira, solicita à sociedade Locatária a restituição da viatura.

V. No âmbito do contrato de locação financeira encontra-se em dívida as rendas de fevereiro (n.º 40) e de março (n.º 41) de 2011 no valor de € 388,25 cada uma e indemnização no montante de € 6.179,37.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da matéria de facto.

- Preenchimento abusivo da livrança.

- Determinação da quantia exequenda.

2.1. Os recorrentes impugnaram a decisão da matéria de facto relativamente ao provado sob U. pretendendo que a ele seja acrescentado a circunstância da resolução contratual (cfr. conclusões de recurso 14- a 16-).

Na motivação da decisão de facto a julgadora refere-se a essa comunicação, nos seguintes termos:

“- Carta datada de 28 de abril de 2011, dirigida à Locatária de fls. 10 e 11 dos autos:

Da referida carta resulta que encontram-se vencidas e não pagas as rendas desde o vencimento de 24 de fevereiro de 2011; que a locatária foi declarada insolvente; que a Senhora Administradora da Insolvência recusou-se a cumprir o contrato e que por isso solicitam a restituição da viatura objeto do contrato de locação financeira;

(…)

Na verdade, da prova documental resulta que o B (…) comunicou ao Locatário que na sequência da resolução do contrato haveria de proceder à restituição do veiculo objeto do contrato de locação financeira.”.

Ora nessa carta comunica-se expressamente a resolução contratual, e pede-se consequentemente a restituição do veículo, o que só a resolução permitia, conforme resulta da cláusula contratual 17ª, 1. e 3., mencionada nos factos provados I. e J. Inclusive a própria julgadora de facto menciona essa resolução na sua motivação, como se constata da mesma que atrás transcrevemos.

Têm, pois, inteira razão os apelantes, pelo que procede a dita impugnação, alterando-se o facto provado U. em conformidade que passará a ficar com a seguinte redacção (a negrito, ficando a anterior em letra minúscula):

U. Em 28 de abril de 2011 o Embargado, na sequência da comunicação da recusa do cumprimento do contrato de locação financeira, resolveu o contrato e solicitou à sociedade Locatária a restituição da viatura.

2.2. Os apelantes também impugnaram a decisão da matéria de facto relativamente ao provado sob V. pretendendo que a ele seja alterado de modo a nele constar a indemnização de 2.989,20 €. (cfr. conclusões de recurso 29- a 33-).

Na dita motivação da decisão da matéria de facto o tribunal teve em consideração o seguinte:

“Vejamos:

De acordo com a cláusula 17ª, ponto 3 das condições gerais do contrato de locação financeira em apreço, resolvido que seja o contrato pelo Locador, o locatário fica obrigado a cumulativamente, restituir o equipamento ao locador, pagas as rendas vencidas e não pagas, acrescidas dos juros de mora contados desde o seu vencimento até à data do pagamento efetivo, calculados nos termos do n.º 8 da cláusula 4ª, bem como todos os encargos suportados pelo Locador por força da resolução, pagar uma indemnização por perdas e danos sofridos pelo Locador

E de acordo com a cláusula 17.ª, ponto 4 das condições gerais do contrato de locação financeira em apreço a indemnização corresponde à diferença entre o capital inicialmente desembolsado pelo Locador para aquisição do bem indicado pelo Locatário, abatido das amortizações de capital integradas nas rendas vencidas até à data da resolução.

Constitui facto assente que o capital inicialmente desembolsado pelo Locador para aquisição do bem foi de € 21.370,00.

E então o que são as amortizações de capital integradas nas rendas vencidas até à data da resolução?

Repare-se que a cláusula se reporta ao montante de capital das rendas e, por outro lado, refere-se a rendas vencidas (não necessariamente pagas).

Assim, foi pago o seguinte capital, integrado nas rendas: € 2.644,63 + (38 * €313,65) + (2 * 313,65) = € 15.190,63.

Pelo que a indemnização a liquidar corresponde a € 6.179,37 (€ 21.370 - € 15.190,63).”.

Atendendo ao conteúdo da cláusula contratual 17ª, 4., mencionada no facto provado K., ao valor de aquisição do veículo e às prestações de capital a pagar, a primeira no montante de 2.664,63 € e as subsequentes de 313,65 €, conforme facto provado C., às 38 prestações pagas e às 2 em dívida (a 40ª e a 41ª), a indemnização mostra-se bem calculada pela julgadora de facto, como a mesma fundadamente explicitou. Os apelantes não têm razão, porque partem de um pressuposto errado, é que adicionam incorrectamente ao capital o IVA, quando só o capital interessa para o apontado cálculo, o que lhes vicia o resultado final deste. Não procede, pois, a impugnação nesta parte.    

3. Na sentença recorrida escreveu-se que:

4.1. Resultou provado que o B (…), enquanto locador, celebrou com o C (…) Lda., enquanto locatário, o Contrato de Locação Financeira n, tendo por objeto o veículo automóvel, cujo gozo lhe cedeu mediante o pagamento sucessivo de 60 rendas mensais, sendo o valor residual de € 1.500,00.

(…)

Para o que ora releva, constitui obrigação do locatário o cumprimento de uma prestação de capital: o pagamento da renda – alínea a), n.º 1, do artigo 10.º do DL n.º 149/95.

(…)

4.3.O aval constitui a garantia pessoal do pagamento de uma quantia inscrita num título de crédito (no caso, da livrança) assegurando que, em caso de incumprimento, isto é, não pagamento desse montante (que resulta do titulo ao qual o aval está associado) por parte do devedor cambiário, o credor (portador do título na data do vencimento) poderá exigir diretamente do avalista a satisfação do seu crédito, independentemente da validade da obrigação cambiária e das vicissitudes que possam ter ocorrido na circulação do titulo a que respeita (cfr. artigo 30.º, ex vi, artigo 77.º, ambos do LULL).

O aval é dado nos exatos termos da obrigação cambiária que tinha sido assumida.

Por outro lado, no aval há uma independência também desta garantia relativamente à obrigação garantida, o que resulta com muita clareza do disposto no artigo 32.º, II, onde se diz que “a obrigação do avalista se mantém mesmo no caso de a obrigação que ele garantir ser nula por qualquer razão que não seja vício de forma”.

Assim, a garantia do aval não tem carácter subsidiário, mas cumulativo e, dessa forma, introduz, paralelamente ao valor patrimonial do direito de crédito que é próprio da operação garantida, um novo valor patrimonial para o mesmo direito, que assim acresce ao daquela operação e desta forma o garante.”2 Paulo Sendin in Letra de Câmbio, L. U. de Genebra, vol. II, Universidade Católica / Livraria Almedina, página 127.

Assim, os Embargantes, tendo garantido, pela prestação de aval, a obrigação assumida pelo Locatário, é responsável nos mesmos termos que este.

4.4. Quanto ao tempo do vencimento …

(…)

Há circunstâncias em que, apesar de a obrigação ser a prazo e de este ser estabelecido em benefício exclusivo ou conjunto do devedor, determinam o vencimento imediato da obrigação, por caducidade do prazo estabelecido (artigo 780.º).

Para o que ora releva, se o devedor se tornar insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada – n.º 1 do artigo 780.º do Código Civil. Neste caso a dívida a termo torna-se imediatamente exigível.

(…)

4.5. Como vimos, o locatário foi declarado insolvente em 29 de novembro de 2011, o que o Locador teve conhecimento por carta remetida pela Senhora Administradora da Insolvência em 03 de março de 2011

Por tal facto, os Embargantes foram interpelados por missiva de 17 de março de 2011 para, no prazo de 5 dias, procederem ao pagamento da quantia de €7.307,67 acrescida dos respetivos juros até integral pagamento no âmbito do contrato de locação financeira com o n.º (...) em que figura como locatária a C (…), Lda. …, sendo que caso assim não procedessem a Embargada diligenciaria pela interposição em Tribunal de ação judicial tendo por base a livrança por eles avalizada aquando do contrato de locação financeira. …

4.6.

(…)

Pelo que os Embargantes consideram-se devidamente interpelados e, diante da interpelação nada pagaram.

4.7. Como vimos, a livrança apresentada como título executivo foi entregue ao B (…) que concedeu o financiamento como expediente para fazer face ao espetro do incumprimento por parte dos financiados, desempenhando, assim, uma função de garantia num contexto de relativa incerteza.

O nosso ordenamento jurídico não fixa qualquer prazo para o preenchimento da livrança e, visto o pacto de preenchimento, dele também não resulta a data que deve ser aposta no título, submetendo-se, sim, o seu preenchimento à superveniência de um determinado evento – o incumprimento.

No caso em apreço, estamos perante um contrato, que iniciou os seus efeitos em novembro de 2007 e cuja duração prevista era de 60 meses.

Assim, estamos perante uma relação fundamental de carácter duradouro (cinco anos), pelo que o título não poderia ser preenchido enquanto estivesse em vigor a relação subjacente.

Ou seja: o credor, neste caso, o Exequente, pode proceder ao preenchimento da livrança, nomeadamente no que tange à sua data de vencimento, não quando lhe aprouver mas sim quando se verificar o incumprimento do contrato.

No caso, com a insolvência da Locatária a obrigação tornou-se exigível e, por tal facto, o B (…)SA interpelou os garantes para o cumprimento – que não se verificou.

Pelo que, no caso em apreço, nenhuma censura poderá ser oposta ao momento do preenchimento da livrança.

Ademais, como vimos, a livrança teve em vista garantir o bom e integral pagamento das quantias que sejam devidas em caso de incumprimento do contrato de locação financeira.

Os Embargantes autorizam o Exequente a proceder ao seu preenchimento nos locais que nela figuram em branco, nomeadamente no que tange ao valor correspondente ao montante em dívida por força do eventual incumprimento do referido contrato, calculado nos termos das suas cláusulas.

Ora, os Embargantes subscreveram pessoalmente o contrato mencionado.”.

Os recorrentes discordam, pois defendem que quando a livrança foi preenchida ainda o contrato não estava resolvido pelo que há preenchimento abusivo (cfr. conclusões de recurso 2- a 14-, 17- a 28-). Todavia falece-lhes razão para tal. Expliquemos porquê.

Como explica Carolina Cunha (em Manual de Letras e Livranças, 1ª Ed., 2016, págs. 184/186), o preenchimento abusivo apresenta duas categorias fundamentais de desconformidade por referência à vontade manifestada pelo subscritor do título cambiário. A primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título. A segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzidas no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos “acordos realizados”.

Além de facilitar a compreensão do fenómeno, esta divisão tem consequências práticas assinaláveis: só no primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da excepção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos.

Nesta última operação a alternativa ao aproveitamento do título, consistiria na liberação total do subscritor em branco que lograsse demonstrar o preenchimento desconforme de qualquer menção; ora, não se vislumbra motivo para isentar o subscritor de responsabilidade na medida efectivamente querida por ele.  

Acontece que aquela primeira hipótese não se verifica no nosso caso. Atente-se no teor do pacto de preenchimento, constante do facto provado M.: aí refere-se o incumprimento do contrato de locação financeira e não a circunstância de haver resolução; ou seja, face a incumprimento do contrato o credor podia preencher o título. Ora, já sabemos que face à insolvência da devedora locatária, em Novembro de 2010 (e não em 2011, como por lapso se refere no facto P. e na fundamentação jurídica da decisão apelada) a mesma entrou em incumprimento, pois venceram-se todas as prestações ainda em dívida, tornando-se esta imediatamente exigível, como explicado na sentença recorrida. A credora locadora interpelou então os embargantes devedores por missiva de 17.3.2011, recebida por estes em 24.3.2011 (como decorre dos A/R’ s de fls. 86/87), para pagarem 7.307,67 € em 5 dias, sob pena de accionamento judicial da livrança por eles avalizada aquando do contrato de locação financeira (facto Q.). Os embargantes tinham assim até 29.3.2011 para pagar o que, como é sabido não fizeram, pelo que entraram em incumprimento definitivo. Por outro lado, após o embargado ter informado a administradora da insolvência da locatária do montante que considerava em dívida e para saber se esta optava pela execução do contrato a mesma recusou tal cumprimento em 29.3.2011, o que também originou incumprimento definitivo da dita devedora locatária (factos S. e T.).

Por conseguinte, quando (facto O.) o exequente/embargado preencheu a livrança em 31.3.2011 (com vencimento em 2.4.2011) o mesmo não estava a efectuar um preenchimento injustificado ou extemporâneo, pelo que não houve preenchimento abusivo, não havendo lugar a qualquer afastamento da pretensão cambiária, como os apelantes pretendiam. Pode é haver lugar à reconfiguração da pretensão cambiária, questão que abordaremos no nosso ponto 4. infra.    

Não procede, pois, nesta parte o recurso.    

4. Também se escreveu na sentença recorrida que:

4.8. Acontece que resultou provado que o Embargado apenas tem direito a perceber, pelo incumprimento do contrato de locação financeira, as rendas de fevereiro (n.º 40) e de março (n.º 41) de 2011 no valor de € 388,25 cada uma e a indemnização no montante de € 6.179,37.

A circunstância do montante aposto no título ser inferior ao que dele consta dá lugar à mera reconfiguração da pretensão cambiária, de modo a contê-la dentro dos limites excedidos.

Isto porque, como assina Gonsalves Dias9 Da Letra e da Livrança, vol. IV, pag. 529 e ss.. a exceção de preenchimento abusivo tem a função didática de separar o falso do verdadeiro, repondo a vontade do subscritor na medida em que se obrigou.

Caso contrário, prevalecendo o abuso, isenta-se o subscritor da responsabilidade que tem e, com aqueloutro entendimento, responsabiliza-se o subscritor mas na exata medida efetivamente querida por ele – isto é, a vertida no acordo de preenchimento.

Pelo que, o valor da livrança exequenda passará a corresponder € 6.955,87, ao que acrescem juros à taxa de 4% desde a data do seu vencimento (02 de abril de 2011) até integral pagamento.”.

Os apelantes também discordam, pois entendem que a indemnização, a ser devida, se deve ficar pelo valor de 2.989,20 € (cfr. conclusões de recurso 29- a 33-).

Continuando a seguir os ensinamentos de Carolina Cunha (ob. cit., págs. 185/186), dir-se-á que a incorrecta configuração das menções introduzidas no título provoca, do ponto de vista cambiário, um desfasamento com o suporte cartular, que conduz à supra aludida reconfiguração da pretensão cambiária, de modo a contê-la dentro dos limites excedidos, como justamente observado na fundamentação da sentença apelada, o que pode ser atingido por duas vias: ou a da prevalência do art. 238º, nº 2, do CC, através da interpretação da vontade real do declarante (i.e. a vontade o subscritor em branco do título), ou a aceite pacificamente pela nossa jurisprudência de redução do negócio jurídico, nos termos do art. 292º do CC, valendo o valor realmente querido pelas partes (vide os Acds. do STJ de 11.2.2010, Proc.1213-A/2001, de 20.5.2010, Proc.11683/06-8TBOER, de 29.11.2012, Proc.10781/06.2YYPRT-B e de 28.4.2016, Proc.1106/12.9YYPRT-B, todos em www.dgsi.pt).

Podendo, ainda, acontecer que as discrepâncias na configuração das indicadas menções se revertam em inócuas ou sendo benéficas para o devedor, sejam irrelevantes – por exemplo, a inserção de uma soma inferior à convencionada.        

Atendendo ao nosso caso, deparamo-nos com o seguinte quadro. Nas comunicações dirigidas aos embargantes o exequente informa-os que devem em Março de 2011 7.307,67 €, acrescida de juros (facto S.). Á administradora da insolvência informa o mesmo, mas com o elemento adicional que estão em dívida prestações desde Fevereiro de 2011 no valor, cada uma, de 379,52 € (facto S. e doc. nº 4, junto com a contestação a fls. 38). Apurou-se que estavam em dívida as rendas de Fevereiro (nº 40) e Março (nº 41) de 2011 no valor de 388,35 €, cada uma (facto V. e doc. de fls. 57, junto pelo exequente, com cálculo efectuado em 29.3.2011). Além das indicadas rendas de Fevereiro e Março de 2011 estavam portanto em dívida as restantes 19 rendas subsequentemente vencidas com a insolvência da locatária devedora e interpelação do credor exequente aos embargantes. Multiplicando 21 prestações por qualquer um dos valores das prestações mensais referidas atingiríamos um valor de cerca de 7.970 €, no mínimo. Não se percebendo, pois, porque o exequente não explicou, como inscreve na livrança o valor inferior de 7.417,86 €. A única explicação plausível decorre da alegação do exequente (no art. 30º da sua contestação) onde alega que preencheu a livrança conforme o estipulado na indicada cláusula 17ª, 4., mas que se reporta ao cálculo da indemnização até à data da resolução, o que, contudo, à data do preenchimento da livrança inexistia. Igualmente a sentença recorrida efectuou os cálculos de acordo com a resolução do contrato, que na data do preenchimento da livrança não existia, embora partindo deste pressuposto tais cálculos estejam correctos, com acima se explicou. Não se pode é atender, porém, aos cálculos dos apelantes, porque incorrectos, como também antes se demonstrou.      

De maneira, que temos um valor contabilizado inferior ao inscrito na apontada livrança e que deve ser atendido, assim se reconfigurando a pretensão cambiária, pois os embargantes também não demonstraram ser outro, apesar de como embargantes a isso estarem probatoriamente obrigados (art. 342º, nº 2, do CC).

Não procede, por isso, o recurso nesta parte.

5. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) O preenchimento abusivo de um título cambiário apresenta duas categorias de desconformidade por referência à vontade manifestada pelo subscritor do mesmo título: a primeira compreende as discrepâncias consubstanciadas num preenchimento injustificado ou extemporâneo, com destaque para a falta de verificação da ocorrência à qual o completamento do título estava subordinado (tipicamente, a constituição, o vencimento ou o incumprimento de um crédito no seio da relação fundamental) e para a extinção satisfatória da relação fundamental garantida pelo título; a segunda abrange as discrepâncias relacionadas com a configuração das menções introduzidas no título, com destaque para a inserção de uma quantia superior à que decorre dos “acordos realizados”;

ii) No primeiro grupo de hipóteses a invocação bem sucedida da excepção de desconformidade significa o afastamento da pretensão cambiária; já no segundo grupo apenas conduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos;

iii) Preenchida a livrança com violação do respectivo pacto, no tocante ao montante acordado, esta não se torna nula, devendo a responsabilidade do embargante limitar-se à assumida no respectivo acordo, confinando-se a dívida aos limites de tal pacto, o que se enquadra na redução dos negócios jurídicos nos termos do art. 292º do CC

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, assim se confirmando a decisão recorrida.

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Custas pelos recorrentes.

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                                                                            Coimbra, 14.1.2020

                                                                            Moreira do Carmo ( Relator)

                                                                            Fonte Ramos

                                                                            Alberto Ruço