Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
62/21.7GCTND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ROSA PINTO
Descritores: NATUREZA DO CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
APRESENTAÇÃO DE QUEIXA
Data do Acordão: 11/22/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE TONDELA
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 153.º, N.º 2, E 155.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 48.º, 49.º E 51.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL/C.P.P.
Sumário:
I – Com a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 155.º, n.º 1, do Código Penal, passou a ter natureza pública, pelo que não admite desistência de queixa
Decisão Texto Integral:

         A – Relatório

1. … foi proferida sentença homologatória, a 9.5.2023, decidindo-se nos seguintes termos:

“Tendo em consideração a legitimidade dos desistentes/ofendidos, a natureza semi-pública de todos os crimes em causa e a não oposição do arguido, o Tribunal considera as desistências de queixa válidas e juridicamente eficazes e, homologando-se as mesmas, declara-se extinto o procedimento criminal contra o arguido …”.

2. Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, terminando a motivação com as seguintes conclusões:

“A. O arguido foi acusado pela prática, além do mais, de 4 (quatro) crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) todos do Código Penal.

B. No início da audiência de julgamento, os ofendidos desistiram das queixas apresentadas contra o arguido e este, em sede de inquérito, havia já declarado que não se opunha à eventual desistência da queixa.

C. O Ministério Publico opôs-se à homologação da desistência da queixa, no que concerne aos crimes de ameaça agravada, ….

D. Porém, o Tribunal a quo proferiu sentença que, considerando revestir tal crime natureza semi-pública, ….

G. O crime de ameaça agravada passou a estar previsto no artigo 155.º, n.º 1, conjuntamente com o crime de coacção agravada.

H. O artigo 155.º do CP não contém qualquer referência à natureza do crime.

I. Ora, da técnica legislativa utilizada no Código Penal, resulta que, se o legislador não diz - após a definição do ilícito típico ou (no caso de um conjunto de crimes que protegem o mesmo bem jurídico) numa disposição legal autónoma, situada no final do capítulo respectivo - que o procedimento criminal por um crime depende da queixa ou da acusação particular, isso significa que se trata de um crime público.

…”.

3. O arguido … respondeu ao recurso …

4. … o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer …

              *

      B - Fundamentação

 

1. …

2. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo recorrente, a questão a decidir é a seguinte:

- se o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 155º, nº 1, do Código Penal, tem natureza pública e, consequentemente, se as desistências de queixa apresentadas pelos ofendidos são ineficazes.

3. Para decidir da questão supra enunciada, vejamos a sentença homologatória recorrida que apresenta o seguinte teor:

“No âmbito dos presentes autos, vem imputada ao arguido … 4 (quatro) crimes de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º nº 1 e 155º nº 1 alínea c), por referência ao artigo 132º nº 2 alínea l) todos do Código Penal.

Face à oposição da Digna Magistrada do Ministério Público quanto aos crimes de ameaça agravada, cumpre, assim, apreciar e decidir quanto à validade e eficácia das desistências.

… entendemos que tal ilícito reveste natureza semi-pública, atribuída pelo n.º 2 do artigo 153º do Código Penal, já que … nada se alterou substancialmente com a deslocação do anterior n.º 2 do artigo 153.º para o novo artigo 155.º, n.º 1, alínea a), não se antolhando razões de política criminal para não atribuir relevância à vontade da vítima quando esteja em causa crime como o imputado ao arguido nos presentes autos, só com tal relevância se respeitando (e isto nos parece determinante, senão mesmo evidente) …

… foram “razões de utilitarismo sistemático – evitando-se a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas – que ditaram essas alterações”, não se afigurando, por conseguinte, legítimo extrair dessa alteração sistemática qualquer intenção da parte do legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça.

Por outro, também não se afigura bastante para sustentar a posição contrária que o crime de coação também incluído – pela forma supra caracterizada – na previsão do artigo 155º do Código Penal, reveste natureza pública, na medida em que sempre assim foi, nada tendo sido alterado a esse respeito com a criação do artigo 155.º, …

Isto é, as descritas alterações em nada interferiram com a interpretação de que o artigo 155º não constitui um tipo autónomo em relação à previsão típica do crime de ameaça do artigo 153º.

De modo que, …, entende-se, como se referiu, que o crime de ameaça agravada reveste natureza semi-pública.

…”.

                 *

                 *

  4. Cumpre agora apreciar e decidir.

A questão a apreciar é a de saber se o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 155º, nº 1, do Código Penal, tem natureza pública e, consequentemente, se as desistências de queixa apresentadas pelos ofendidos são ineficazes.

Começa-se por dizer que a jurisprudência já se pronunciou abundantemente sobre a questão, sendo maioritária a posição que defende a natureza pública do crime em causa.

Vejamos, então.

O artigo 153º do Código Penal, na redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, apresentava o seguinte teor:

Dúvidas inexistem de que na vigência desta norma, o crime de ameaça, simples e agravado, tinha natureza semi-pública.

 

Posteriormente, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, o artigo 153º passou a ter a seguinte redacção:

Por sua vez, com a epígrafe Agravação, o artigo 155º do Código Penal, na redacação conferida pela mesma Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, passou a ter o seguinte teor:

….

Assim, a ameaça agravada deixou de estar prevista no artigo 153º e passou para o artigo 155º.

Levantou-se então a questão de saber qual a natureza do crime de ameaça agravada. Deixou ele de ter natureza semi-pública e passou a ter natureza pública?

Vejamos se a Proposta de Lei nº 98/X, que esteve na origem da Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, nos pode dar alguma indicação.

Consta da respectiva Exposição de Motivos que “A revisão procura fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado. Assim, de entre as suas principais orientações, destacam-se: … a tipificação de novos crimes contra a liberdade pessoal e sexual e a previsão de novas circunstâncias agravantes nos crimes contra a vida e a integridade física, ….

Na Parte Especial, as modificações incidem nos crimes de … ameaça, coacção, …. O crime de ameaça passa a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave. Por conseguinte, a ameaça é agravada quando se referir a crime punível com pena de prisão superior a três anos, for dirigida contra pessoa particularmente indefesa ou, por exemplo, funcionário em exercício de funções ou for praticada por funcionário com grave abuso de autoridade. Esta qualificação abrange os crimes praticados contra agentes dos serviços ou forças de segurança, alargando uma solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção …”.

Assim, a alteração legislativa procurou fortalecer a defesa de determinados bens jurídicos, com a tipificação de novos crimes, mormente contra a liberdade pessoal, onde se inclui o crime de ameaça.

Crime este que passa a ser agravado em circunstâncias idênticas à coacção grave. Esta foi uma forma de alargar a solução contemplada para os casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção.

Daqui resulta que o crime de ameaça agravada é um novo crime e passou a assemelhar-se aos casos de homicídio, ofensa à integridade física e coacção. Entenda-se ofensa à integridade física qualificada e coacção agravada. Todos estes crimes públicos.

A referida Exposição de motivos aponta, sem dúvida, para um novo crime de ameaça agravada, de natureza pública.

O que está em consonância com a técnica legislativa usada no Código Penal.

De facto, enquanto no artigo 153º, nº 2, do Código Penal, consta que “o procedimento criminal depende de queixa”, no artigo 155º nada consta acerca da natureza do crime.

Como ensina Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, da Verbo Ed. 1994, págs. 230-231, “Ao compulsarmos o Código Penal verificamos que relativamente a alguns crimes o Código estabelece que o procedimento criminal depende de queixa, noutros de acusação particular …. Há, assim, crimes em que a lei nada diz quanto ao procedimento criminal – são os que a doutrina denomina por crimes públicos -, noutros diz que depende de queixa – e que a doutrina denomina por crimes semipúblicos ou quase públicos -, e ainda noutros diz que depende de acusação – são os chamados crimes particulares.

Em termos práticos, há que ver se a norma penal estabelece algo sobre a exigência de queixa ou acusação particular. Se nada estabelece, o crime é público e, consequentemente, o MP tem quanto a ele legitimidade para promover livremente o processo; se a norma penal exigir queixa ou acusação particular, o MP não pode promover o processo sem que a queixa e a acusação dos particulares ocorra”.

Ora, o artigo 155º nada diz quanto à natureza do crime. Também no Capítulo IV, do Título I, do Livro II, do Código Penal, onde se insere, relativo aos Crimes contra a liberdade pessoal, não consta qualquer disposição legal relativa à natureza dos crimes desse capítulo.

Como acontece, por exemplo, no capítulo VI do mesmo Título e Livro, referente aos Crimes contra a honra (artigo 188º), ou mesmo no capítulo VIII relativo aos crimes contra a reserva da vida privada (artigo 198º).

Assim, através da técnica legislativa adoptada no Código Penal, chega-se à mesma conclusão: o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 155º do Código Penal tem natureza pública.

Neste sentido veja-se o Ac. da RG 7.11.2022, www.dgsi.pt., …

No mesmo sentido, encontra-se o Ac. da RC de 8.5.2019, in www.dgsi.pt, …

Veja-se igualmente, entre muitos aí citados, o Ac. da RC de 6.7.2016, in www.dgsi.pt, …

No Ac. da RG de 22.2.2023, in www.dgsi.pt, …

Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 3ª ed. actualizada, pág. 614, em anotação ao 155º, afirma igualmente que “a partir da entrada em vigor do texto da Lei nº 59/2007, o crime tem natureza pública e, por isso, não admite desistência de queixa”.

Jurisprudência e doutrina que se acompanha.

Não é pelo facto de determinados elementos típicos do crime constarem do disposto no artigo 153º, que o crime do artigo 155º deixa de ser autónomo e assume a natureza semi-pública.

São vários os exemplos no Código Penal em que o crime base encontra-se numa norma e tem natureza semi-pública e o crime agravado numa outra norma, com natureza pública, indo este buscar alguns elementos típicos ao crime base.

Veja-se por exemplo a situação dos crimes de furto simples e qualificado – artigos 203º e 204º - bem da burla simples e qualificada – artigos 217º e 218, todos do Código Penal.

Como se refere no Ac. da RG de 7.11.2022, “os crimes fundamentais contêm o tipo objetivo de ilícito na sua forma mais simples, constituem, por assim dizer, o mínimo denominador comum da forma delitiva, conformam o tipo-base cujos elementos vão pressupostos nos tipos qualificados e privilegiados. Frequentemente, na verdade, o legislador, partindo do crime fundamental, acrescenta-lhe elementos, respeitantes à ilicitude ou/e à culpa, que agravam (crimes qualificados) ou atenuam (crimes privilegiados) a pena prevista no crime fundamental.”, cfr. F. Dias, Direito Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 2012, pág. 313.

Assim, como decorrência da aplicação da referida técnica, resulta evidentemente a criação de verdadeiros crimes autónomos qualificados e privilegiados, sendo que, quanto ao crime de ameaça agravado, foi isso que sucedeu, uma vez que quer antes quer após a reforma de 2007 (operada pela Lei nº 59/2007, de 04.09), este crime sempre constituiu um crime autónomo”.

Como também não é pelo facto de, no passado, a ameaça agravada ter sido crime semi-público que agora não pode assumir a natureza pública. Se assim fosse, um crime semi-público jamais poderia vir a tornar-se crime público.

Neste ponto impera a vontade do legislador, tendo em vista a concretização de determinadas políticas criminais, devendo o julgador saber interpretar essa vontade legislativa e aplicar a lei em conformidade.

“A regra nesta matéria é só uma e bem clara, do nosso ponto de vista: é o legislador quem define, de modo expresso (e não implícito) quais são os crimes de natureza particular (fazendo-os depender de queixa e de acusação particular) — e os crimes de natureza semi-pública, cujo procedimento depende de queixa por parte da pessoa ofendida. No silêncio do legislador quanto à legitimidade para o respectivo procedimento, a conclusão é só uma: o crime é de natureza pública, tendo o MP legitimidade para promover o processo penal, sem quaisquer restrições (art. 48.° e segs. do CPP).

No caso do crime de ameaça simples, previsto no art. 153.°, do CP, o n.° 2 deste normativo faz depender de queixa o respectivo procedimento criminal.

Relativamente ao art. 155.°, do mesmo Código, nada é dito a tal respeito.

A conclusão a tirar será, inevitavelmente, de que estamos, neste caso, perante um crime de natureza pública.

…” – cfr. Ac. da RL de 3.11.2015, in www.dgsi.pt.

Pelo que fica dito, reafirma-se que o crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 155º, nº1, do Código Penal, tem natureza pública, razão pela qual não admite desistência de queixa.

São, por isso, irrelevantes as desistências de queixa apresentadas nos autos pelos ofendidos no que respeita aos crimes de ameaça agravada, face ao disposto nos artigos 155º do Código Penal, 48º, 49º e 51º, este a contrario sensu, do Código de Processo Penal.

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                  C – Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Coimbra em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, decidem:

- revogar a sentença homologatória recorrida na parte em que, relativamente aos quatro crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153º, nº1, e 155º, nº1, alínea c), por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, considerou as desistências de queixa válidas e juridicamente eficazes, homologando-as e declarando extinto o procedimento criminal movido contra o arguido …, a qual deve ser substituída por outra que, julgando irrelevantes as desistências de queixa relativas aos referidos crimes, ordene o prosseguimento dos autos com realização do respectivo julgamento.

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Sem custas.

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Notifique.

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            Coimbra, 22 de Novembro de 2023.

(Elaborado pela relatora, revisto e assinado electronicamente por todos os signatários – artigo 94º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal).

              Rosa Pinto – Relatora

              Jorge Jacob – 1º Adjunto

              Maria José Guerra – 2ª Adjunta