Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1312/18.2T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CARLOS MOREIRA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CASO JULGADO
INEPTIDÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Data do Acordão: 06/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA POR UNANIMIDADE
Legislação Nacional: ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA D), 580.º, N.º 1 E 581.º, 186.º, N.º 2, ALÍNEA B) E 542.º, TODOS DO CPC
Sumário: I - A nulidade por omissão de pronúncia exige o silêncio quanto a questões essenciais decidendas, e não sendo bastante a ignorância de motivos, argumentos ou razões.

II - Repetida a causa quanto aos sujeitos, causa de pedir e pedido, emerge a figura do caso julgado.

III - A ineptidão da petição  deve ser decretada quando se conclua que, perante o nela alegado, a ação  fica viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, o que impede  um correto, coerente,  unitário e justo ato de julgamento.

IV - No respeito pelo desígnio legislativo da reforma de 1996 de uma apreciação mais rigorosa da litigância de má fé, deve ser condenada a este título, ao menos por negligência grave, a parte que instaura sucessivos processos com introdução de questões e repetição de argumentos já anteriormente decididas e transitadas.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA, instaurou contra  BB, CC, DD, e EE, ação declarativa, de condenação, com processo comum.

Pediu que:

i. o R. BB seja condenado a indemniza-la no montante de 41.600,00€ correspondente ao valor de rendas vencidas entre 20/06/2012 e 28/10/2016, acrescido de juros de mora vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

ii. Os R.BB e DD sejam condenados, solidariamente, a indemniza-la no montante de 13.600,00 €, correspondente ao valor de rendas desde 28/10/2016 até à presente data, quantia esta acrescida de juros de mora vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegou:

. a . Ser proprietária do prédio urbano n.º ...56 da matriz da freguesia ... registado com o n.º ...36 na conservatória do registo predial ;

. b . Ter sido casada com o 1.º Réu e, na constância do casamento, ter sido construída naquele prédio a casa de morada do casal;

. c . Que desde 2012, na sequência da separação do casal, o 1.º Réu passou a viver na casa de morada do casal, esta que que lhe foi provisoriamente atribuída a 20 de junho de 2012 e, com o divórcio de 16 de janeiro de 2014, foi-lhe definitivamente atribuída;

. d . Que o acordo firmado (e homologado) no processo de divórcio relativamente à casa de morada do casal foi anulado no processo 3783/15.....

. e . O primeiro Réu doou a sua parte da casa aos demais RR. e estes consentiram que aquele usasse a casa, o que impede a utilização pela A.

. f . Que a casa tem um valor locativo de 1.100,00€ o que, tendo em conta a respetiva quota no prédio, lhe permitiria auferir mensalmente a quantia de oitocentos euros, e que não recebe, sendo o Réus BB e DD que a vêm usando, este último desde que atingiu a maioridade;

. g . O que, tendo em conta o número de meses decorrido desde que BB habita a casa e a data da maioridade do R. DD lhe confere direito às peticionadas quantias.

Contestaram os RR. BB e DD, pugnando pela improcedência da ação, alegando para o efeito:

. a . A ocorrência de caso julgado porque no processo 3175/16.... Comarca ... – ... – Instância Local – Secção Cível – J..., a A. que julgou improcedente igual pretensão contra o R. BB pediu que o Réu BB fosse condenado a pagar-lhe a quantia mensal de 600 euros desde o dia 20/06/2012 até à propositura da acção, bem com a quantia de 600 euros por cada mês subsequente de utilização da casa morada de família, terrenos adjacentes e anexos que o aí réu - (aqui réu BB) continuasse a usufruir até efectivação da partilha dos bens comuns do extinto casal, nos quais se incluíam essa a casa morada de família, terreno adjacente e anexos;

. b . A ocorrência de litispendência, porque na sequência da improcedência daquela ação, 3175/16.... e da decisão que anulou o acordo, foi instaurada, por apenso à ação de divórcio, ação para atribuição da casa de morada de família, essa que está a decorrer sob o número 84/12...., que corre termos no Juízo e Família e Menores – Juiz – Tribunal Judicial da Comarca ..., ação esta onde a A. pretendeu apenas que fosse fixada uma renda, que aí se irá decidir.

. c . A ilegitimidade da autora para, por si só, exercer os direitos relativos ao prédio, porquanto atento o regime de bens do casamento e a circunstância de o bem ser do casal, terão se der ambos a fazê-lo, nomeadamente em relação ao pedido feito contra DD.

No decurso do processo, veio a ser proferida decisão no processo nº 84/12...., já transitada em julgado.

2.

Prosseguiu o processo os seus termos tendo, a final, sido proferida sentença na qual foi decidido:

«1. Julgo procedente a arguida exceção do caso julgado e, em consequência, absolvo o Réu BB da instância;

2. Julgo verificada a exceção da nulidade do processo, decorrente da ineptidão da petição inicial, na parte remanescente e relativa ao Réu DD e em consequência, absolvo-o da instância.

3. Condeno a Autora como litigante de má fé na multa de sete unidades de conta.»

3.

Inconformada recorreu a autora.

Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª – A decisão pela qual o Tribunal a quo decidiu absolver os RR. dos pedidos, ao considerar verificadas as excepções de caso julgado e nulidade do processo (por ineptidão da petição inicial), e, consequentemente, condenar a A. como litigante de má fé, decorre duma incorrecta interpretação e aplicação dos artigos 186º, 542º, 580º e 581º do Código de Processo Civil, e é, portanto, injusta e ilegal.

2ª – A recorrente formulou os pedidos de condenação do BB a indemnizá-la no montante de 41.600,00 €, correspondentes a rendas de 20.06.2012 a 28.10.2016, acrescidas de juros vincendos, e bem assim dos RR. BB e DD a indemnizá-la no montante de 13.600,00 €, correspondentes a rendas de 28.10.2016 até à propositura da acção, acrescidas de juros vincendos.

3ª – Fundou tais pedidos no facto de ser proprietária do prédio urbano inscrito sob a matriz predial urbana 1556 da freguesia ..., registada sob a ficha nº ...36 da referida freguesia na Conservatória do Registo Predial ..., no qual veio a ser edificada uma casa na constância do seu casamento com o BB, e de, tendo-se separado do BB em 2012, estar desde então privada da utilização de tal prédio urbano.

4ª – Alegou igualmente que, mostrando-se impedida de utilizar a referida casa, estava também impedida de utilizar o terreno adjacente e o anexo nele construído, atribuindo ao prédio na sua globalidade o valor locativo de 1.100,00 € mensais, sendo 600,00 € correspondentes à casa de habitação, 250,00 € ao anexo e 250,00 € ao logradouro, cabendo-lhe o direito a 800,00 € mensais, por ser proprietária exclusiva do logradouro e anexo.

5ª – Pelo Acórdão do Tribunal da Relação ... prolatado em 07 de Outubro de 2020 no âmbito do processo nº 84/12...., foi confirmada a decisão do Tribunal Judicial ... no sentido de declarar constituída uma relação contratual de arrendamento da casa de morada de família (passando o aqui R. BB a deter ali a qualidade de arrendatário) e atribuir-lhe o valor locativo de 225,00 €, e, consequentemente, à contrapartida devida à aqui recorrente o valor de 112,50 € mensais.

6ª – Do relatório de avaliação em que, no âmbito do processo nº 84/12...., se fundou a decisão de atribuir à casa de habitação o valor locativo de 225,00 €, resulta claro que apenas a casa de habitação foi considerada na avaliação, nunca se referido o logradouro e o armazém nele construído, dos quais, conforme alegado pela ora recorrente, é passível de ser extraído valor autónomo relativamente à casa.

7ª – O processo nº 84/12...., tramitado por apenso ao processo de divórcio da ora recorrente e do R. BB, apreciou e decidiu questões inerentes ao destino da casa de morada de família, mas a pretensão da recorrente nestes autos não se circunscreve à sua compensação pela utilização da casa de morada de família.

8ª – “A autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exacta correspondência com o seu conteúdo e daí que ela não possa impedir que em novo processo se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12 de Dezembro de 2017, processo nº 3435/16.3T8VIS-A.C1, in www.dgsi.pt, destaque do subscritor)

9ª – Nos presentes autos inexiste tal correspondência, o que decorre, essencialmente, de não estar nestes autos em causa uma pretensão indemnizatória que possa subsumir-se apenas na renda que foi fixada no âmbito do processo nº 84/12.....

10ª – A configuração da causa de pedir nestes autos não é a que decorre da decisão proferida pelo Tribunal a quo, mas assenta, por outro lado, nas alegações da ora recorrente de que apenas a casa de morada de família pertence à comunhão conjugal e de que o logradouro existente e o anexo construídos no mesmo prédio urbano são propriedade da ora recorrente e têm valores locativos autónomos;

11ª – Estando a causa de pedir perfeitamente delimitada na petição inicial, não andou bem o Tribunal a quo ao restringi-la injustificadamente (de forma implícita), não se pronunciando quanto aos factos suprarreferidos.

12ª – “…a causa de pedir é “o acto ou facto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o Autor invoca e pretende fazer valer (art. 498.º, n.º 4)”; ou, com Antunes Varela, “(…) é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido”, competindo ao Autor, ao invocar determinado direito, especificar a respectiva causa de pedir, ou seja, a fonte desse direito, os factos donde, no seu entendimento, procede tal direito, neles alicerçando, numa relação lógico-jurídica, o pedido deduzido. Por isso, exercendo a causa de pedir uma função individualizadora do objecto do processo, conformando-o, o tribunal tem de a considerar ao apreciar o pedido e não pode basear a sentença de mérito em causa de pedir não invocada pelo autor, sob pena de nulidade da sentença – artigos 660.º, n.º 2 e 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC.” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07 de Maio de 2008, processo 07S4005, in www.dgsi.pt, destaque do subscritor) 

13ª – Não podia o Tribunal a quo ter deixado de apreciar tais alegações (nos termos do artigo 608º do Código de Processo Civil), sob pena de nulidade da sentença, que assim se verifica, nos termos da alínea d) do nº1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, e aqui expressamente se argui (tornando indispensável a ampliação da matéria de facto, com a consequência prevista na alínea c) do nº2 do artigo 662º do Código de Processo Civil).

14ª – O Tribunal deve pronunciar-se sobre o mérito da quaestio petendi configurada pela ora recorrente, com a redução inerente a autoridade do caso julgado existente sobre o valor locativo da casa de morada de família: tem a recorrente direito a receber do R. a quantia mensal de 500,00 € pela utilização, pelos RR., do logradouro e do armazém?

15ª – Só através da resposta a tal questão se mostrará cumprida a norma violada pelo Tribunal a quo, o artigo 608º do Código de Processo Civil.

16ª – A petição inicial não é inepta.

17ª – A recorrente, ao afirmar na petição inicial que “…uma vez que o R. DD habita o identificado imóvel deve ser condenado ao pagamento de uma compensação pela referida utilização”, delimita a causa de pedir relativa a este R.: entendeu a ora recorrente que o facto de o R. habitar na referida casa lhe confere o direito a uma compensação pecuniária por tal facto.

18ª – Assumindo a eventual necessidade de clarificar insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto, impõe-se ao Tribunal a quo lançar mão do disposto na alínea b) do nº2 e do nº4 do artigo 590º do Código de Processo Civil, tendo a ora recorrente, convidada a esclarecer o fundamento do pedido, afirmado de forma cristalina que a acção foi “dirigida contra o seu filho DD com vista ao ressarcimento dessa usufruição pela privação do imóvel por parte da A.”, clarificação entendida pelo Tribunal a quo no sentido de que “a indemnização pretendida relativamente ao filho se funda na ocupação, sem título, do imóvel que identifica.”

19ª – “…para que a ineptidão seja afastada, requer-se, assim, tão só, que se indiquem factos suficientes para individualizar o facto jurídico gerador da causa de pedir e o objecto imediato e mediato da acção. Com efeito, a lei – art. 193º, n.º 2 al. a) – só declara inepta a petição quando falta ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, o que logo inculca a ideia da desnecessidade de uma formulação completa e exaustiva de um e outro elemento.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27 de Abril de 2021, processo nº 2725/17.2T8LRS-L1-7, in www.dgsi.pt)

20ª – Falecendo os argumentos do Tribunal a quo para a absolvição dos RR. da instância, falecerá necessariamente a consideração de que a recorrente litigou de má fé.

21ª – Teria agido de má fé a recorrente se tivesse deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devesse ignorar ou tivesse feito do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal (respectivamente alíneas a) e d) do nº2 do artigo 542º do Código de Processo Civil), mas tal não aconteceu nestes autos. 22ª – O juízo da existência de má fé de um sujeito processual não pode assentar numa petição de princípio, de que se a parte não tem razão não tem o direito de acesso ao tribunal para pugnar pela sua convicção.

23ª – Não pode confundir-se com má fé a eventual dificuldade em interpretar factos ou a existência de discordâncias na interpretação da lei e sua aplicação àqueles, ainda que não se consiga impor tais posições.

24ª – “Para a condenação como litigante de má-fé terá de concluir-se por uma actuação dolosa ou gravemente negligente da parte, o que pressupõe sempre que se encontra demonstrado nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, litigando de modo desconforme ao respeito devido ao tribunal e às partes, e que o fez de forma consciente ou sendo-lhe exigível essa consciencialização.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17 de Setembro de 2020, processo nº 6495/18.9T8BRG.G1, in www.dgsi.pt)

25ª – A ora recorrente colaborou activamente com o Tribunal a quo, nunca omitindo factos ou deixando de juntar quaisquer informações e certidões relativas aos demais processos judiciais em que era parte e poderiam ter relevância para a causa.

26ª – Assim, ainda que faleçam os argumentos recursivos que se pretende levem à revogação da sentença sub judice – o que apenas por dever de patrocínio aqui se equaciona – não poderá o Tribunal ad quem deixar de concluir que não existe na conduta da ora recorrente nestes autos qualquer má fé, mas tão só a tentativa de ver reconhecidos direitos que legitimamente se atribui.

27ª – A decisão recorrida é ilegal, violando o artigo 9º do Código Civil e, consequentemente, os artigos 186º, 542º, 576º, 580º, 581º, 608º e 621º do Código de Processo Civil.

Assim, com o Douto Suprimento do Tribunal ad quem, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser declarada a nulidade da sentença recorrida e determinada ao Tribunal a quo, alternativamente, a prolação do despacho a que se refere o nº2 do artigo 590º ou dos despachos previstos nos artigos 595º e 596º, ou ainda, sendo caso disso, que convoque a audiência prévia a que se refere o artigo 591º, todos do Código de Processo Civil.

Contra alegaram os réus pugnando pela manutenção do decidido com os seguintes argumentos finais:

1.ª O recurso a que se responde impugna a douta Sentença de 17/01/2022, e versa sobre matéria de direito.

2.ª Porém, o recurso a que se responde está votado ao insucesso, na medida, que a douta Sentença recorrida não enferma dos vícios assacados pela Recorrente, tendo feito uma correcta interpretação e aplicação da lei, bem como uma correcta subsunção dos factos ao direito, mormente não enferma do vicio de violação do disposto no artigo 9.º do CC e dos artigos 186.º, 542.º, 576.º, 580.º, 581.º, 608.º, 621.º, 615.º, n.º 1, al. d) e 662.º, n.º 2, al. c), 590.º, n.º 2, al. b), 193.º, n.º 2, al. a), 542.º, n.º 2, al. a) e d) todos do CPC

3.ª Nos processos n.º 3175/16.... - Comarca ..., na extinta Instância Local, Secção Cível, J... e n.º 84/12.... – Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Família e Menores ... – Juízo ... já foi discutida a utilização do prédio urbano inscrito na matriz urbana ...56 da freguesia ..., Concelho ..., constituído por casa com logradouro, e a renda/compensação pela sua utilização.

4.ª E foi objecto de perícia no processo nº 84/12...., para atribuir e fixar o valor de renda devido, como resulta do relatório de avaliação para fixação do valor da renda de fls., no processo nº 84/12.... que “3. Objeto da Perícia: Avaliação de um prédio urbano, composto por casa de habitação, sito no lugar de ... da freguesia ..., Concelho ...

5.ª O prédio urbano inscrito na matriz urbana ...56 da freguesia ..., Concelho ..., constituído por casa com logradouro, e a renda/compensação pela sua utilização é bem comum do casal, por foça do regime de casamento que vigorou entre Autora e Réu BB, o regime da comunhão geral de bens, constituindo o património da comunhão conjugal, quer por força do artigo 1726.º, do CC,

6.ª Pelo que, aquele prédio, terá de ser objecto de partilha, como está, encontrando-se devidamente relacionado no processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial para partilha dos bens comum do extinto casal constituído por Autora e Réu BB.

7.ª Os factos dados como provados na decisão recorrida e não impugnada pela Recorrente, impugna que se julgasse verificada o caso julgado.

8.ª Não pode agora, a Recorrente quer fazer uma distinção de partes do prédio, que constitui o mesmo e único prédio urbano!

9.ª Pois que, toda a causa de pedir e pedido, tem por referência um único e só um prédio, o artigo matricial urbano ...56 da freguesia ..., Concelho ..., constituído por casa com logradouro e que é a casa morada de família do extinto casal entre Autora e Réu BB e a compensação pela utilização do Réu BB quanto à mesma, o que já objecto de apreciação nos processos 3175/16...., e 84/12...., como factos dados como provados e não impugnados pelo Recorrente.

10.ª Resulta assente que a presente acção é uma duplicação das questões já apreciadas e decididas nos processos 3175/16...., e 84/12...., como ma efectivamente é, tem de ser julgada verificada a exceção do caso julgado.

11.ª O Réu BB doou a sua meação naquele mencionado prédio e demais património que compõe o patrocínio do ex-casal, que é também casa morada de FF – Advogada Rua ..., ..., ... ...: ...33 ...: ...32 / ...56 ... Página 18 de 20 família, aos seus filhos, incluindo ao Réu DD, reservando para si o direito de uso e habitação sobre a casa de morada de família 12.ª O Réu DD, é proprietário do mencionado imóvel.

13.ª Sendo que, o imóvel é propriedade da comunhão conjugal de que o Réu DD é proprietário, na medida que lhe foi doada,

14.ª Pelo que, nos termos do artigo 34.º do CPC a perda ou oneração de bens da comunhão conjugal só por ambos (os cônjuges) pode ser exercida, incluindo as acções que tenham por objecto, directa ou indectamente, a casa morada de família, artigo 34.º, n.º 1 do CPC.

15.ª Pelo que, BB enquanto usufruidor da casa morada de família, e atualmente arrendatário por força da decisão proferida no processo n.º 84/12...., tem o direito de aí ter a residir consigo os seus filhos, mormente o Réu DD, ou outros,

16.ª O Réu BB por força da decisão proferida no processo n.º 84/12...., é o único arrendatário do imóvel e o único obrigado ao seu pagamento.

17.ª Não podia nestes autos ser proferida outra decisão a onerar o imóvel pelo contrato de arrendamento e colocar o Réu DD ao seu pagamento!, porque ofenderia o caso julgado.

18.ª Acresce que, e como resulta bem evidenciado na douta sentença recorrida, não resulta da PI qualquer alegação da causa de pedir para a formulação do pedido.

19.ª A inexistência de matéria alegada é de tal ordem, que não se pode pedir que sejam clarificar insuficiências ou imprecisões de uma matéria de facto não alega.

20.ª A afirmação da PI “…uma vez que o R. DD habita o identificado imóvel deve ser condenado ao pagamento de uma compensação pela referida fruição”, como invocado na conclusão 17.ª, não tem aptidão para ser causa de pedir, em é suscetível de ser concretizado ou precisado.

21.ª Não decorre desta alegação quaisquer factos estruturante e subsequente situação jurídica ou institutos aplicáveis, assim bem andou a douta Sentença recorrida a julgar a PI inepta.

22.ª A condenação como litigante de má fé assenta, pois, num juízo de censura sobre um comportamento que se revela desconforme com um processo justo e leal, que constitui uma emanação do princípio do Estado de direito.

23.ª Feitas estas breves considerações, é patente que no caso em apreciação, a recorrente violou os mais elementares deveres de cooperação e de boa-fé que devem pautar a atuação das partes.

24.ª E fê-lo de forma intencional, pois que a Autora não podia deixar de saber, como sabia, que do peticionado e discutido no julgamento que foi feito nos processos anteriores (com recursos, inclusivamente, para o tribunal da Relação), processos 3175/16.... e 84/12....., sendo que, neste ultimo, ficou resolvida a questão, e ficou explanado o passo processual seguinte relativamente às eventuais s contrapartidas devidas por cada cônjuge pelo uso da casa de família, já que se tratava de matéria relativa à eventual divisão do património, quer em sede de compropriedade, quer em sede de comunhão conjugal, com ponderação, nesse âmbito, das compensações a que haja lugar.

25.ª Sendo que, só na partilha dos bens, em processo especial de inventário, é que se pode julgar se, até à constituição do arrendamento, a Autora teria direito a qualquer compensação, e não por via dos presentes autos.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção -, o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são, lógica e metodologicamente,  as seguintes:

1ª – Nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

2ª - Ilegalidade da sentença por:

i) Inexistência de caso julgado;

ii) Inexistência de ineptidão da petição inicial;

iii) Inexistência de má fé.

5.

Foram dados como provados os seguintes factos:

«1». Correu termos nesta Comarca ..., na extinta Instância Local, Secção Cível, J..., o processo n.º 3175/16...., tendo a sentença aí proferida transitado em julgado em 07.06.2017.

«2».Neste processo:

a) foram partes a Autora e o Réu, investidos nas mesmas posições que neste processo têm;

b) A Autora pediu nesse processo que lhe fosse reconhecido o direito a ser compensada pela atribuição provisória da casa de morada de família ao Réu desde 20 de junho de 2012 até à partilha dos bens comuns do casal, no valor de 600,00€ mensais, vencidos até à instauração da ação e os que se viessem a vencer, pretensão que neste processo tem, adjetivando embora essa compensação como renda e liquidado valor diverso daquele pela prestação a que entende ter direito;

c) Como causa de pedir alegou, como o fez nestes autos, que ao R. foi atribuído, na decorrência do divórcio, o uso e habitação da casa de morada de família até a à partilha dos bens do casal, onde esta estava incluída;

d) Como alegou nestes autos, estando o R. no seu uso exclusivo e sendo ela, pelo menos, comproprietária e privada da sua utilização, deverá ser compensada na proporção do seu direito;

e) Tendo a casa um valor locativo de 1.200,00€ mensais, peticionou o pagamento do aludido montante.

«3».A ação foi julgada improcedente pela subscrição da doutrina exarada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10-2016, onde se decidiu que, sendo admissível a fixação de uma compensação patrimonial do cônjuge privado do uso da casa de morada de família, esta deve basear-se, por um lado, em razões de justiça e equidade e, por outro, na circunstância de, nada tendo sido acordado no processo de divórcio a esse propósito da compensação, como no caso não foi,  já não ser possível em ação posterior proceder à fixação de uma compensação, como era o caso naqueles autos.

«4».Entretanto, no processo 3783/15...., foi proferida sentença, transitada em julgado a 01/03/2017, que declarou anulada a declaração emitida pela autora no acordo sobre a casa de morada de família.

«5».Por apenso à ação de divórcio n.º 84/12...., finda, entre a Autora e o Réu BB, veio aquela requerer que fosse decidido o destino a dar à casa de morada da família, uma vez que foi anulada a declaração emitida por ela, relativa à dita casa, no acordo do aludido processo de divórcio.

«6».A final, veio a ser proferida sentença - já transitada em julgado - que decidiu julgar inadmissível a alteração do destino da casa de morada de família, atribuindo-a por isso em exclusivo a BB,

«7». declarou constituída uma relação contratual de arrendamento da casa de morada de família, para habitação do Réu BB, que passou a ter a posição de arrendatário, por tempo indeterminado, mas sem ultrapassar a efetivação da partilha do património comum do dissolvido casal, sendo senhorios o próprio R. BB e a Autora, e

«8».fixou o valor da renda em 225€, metade dos quais o R. passava a pagar à Autora, na qualidade de proprietária em comum e senhoria, até ao último dia de cada mês com início no mês corrente (data do trânsito em julgado e enquanto perdurar a situação de comunhão do prédio que constituía a casa de morada da família).

«9».Também se fundamentou a sentença no sentido do decidido na consideração de que não havia lugar nesta sede à análise retroactiva das contrapartidas devidas por cada cônjuge pelo uso que deram na vigência do casamento e depois da separação a bens cuja titularidade seja por ambos encabeçada, tratando-se de assuntos que respeitam a uma eventual divisão do património quer em sede de compropriedade, quer em sede de comunhão conjugal, com ponderação, nesse âmbito, das compensações a que haja lugar.

«10». Nestes autos, como o já relatado, a Autora pede que o R. BB seja condenado a indemniza-la no montante de 41.600,00€ correspondente ao valor de rendas vencidas entre 20/06/2012 e 28/10/2016, acrescido de juros de mora vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; bem assim, que o Réu, juntamente com o R. DD sejam condenados, solidariamente, a indemniza-la no montante de 13.600,00 €, correspondente ao valor de rendas desde 28/10/2016 até à presente data, quantia esta acrescida de juros de mora vincendos desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

«11». Nestes autos, assim como nos referidos processos a causa fundamento do pedido da A é:

a) a qualidade de (com)proprietária do prédio urbano n.º ...56 da matriz da freguesia ... registado com o n.º ...36 na conservatória do registo predial;

b) Ter sido casada com o 1.º Réu e, na constância do casamento, ter sido construída naquele prédio a casa de morada do casal;

c) Que desde 2012, na sequência da separação do casal, o 1.º Réu passou a viver na casa de morada do casal, esta que que lhe foi provisoriamente atribuída a 20 de junho de 2012 e que, com o divórcio de 16 de janeiro de 2014, foi-lhe definitivamente atribuída;

d) Que o acordo firmado (e homologado) no processo de divórcio relativamente à casa de morada do casal foi anulado no processo 3783/15.....

e) Que o primeiro Réu doou a sua parte da casa aos demais RR. e estes consentiram que aquele usasse a casa, o que impede a utilização pela A.

f) Que a casa tem um valor locativo de 1.100,00€ o que, tendo em conta a respetiva quota no prédio, lhe permitiria auferir mensalmente a quantia de oitocentos euros, e que não recebe, sendo o Réus BB e DD que a vêm usando, este último desde que atingiu a maioridade;

g) O que, tendo em conta o número de meses decorrido desde que BB habita a casa e a data da maioridade do R. DD lhe confere direito às peticionadas quantias.

6.

Apreciando.

6.1.

Primeira questão.

Estatui, no que para o caso interessa, o artº 615º do CPC:

1 - É nula a sentença quando:

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Este segmento normativo ínsito na al. d) do artº 615º do CPC  conexiona-se com o estatuído nos arts. 154º e 608º do mesmo diploma, ou seja, com o dever do juiz administrar a justiça proferindo despachos ou sentenças sobre as matérias pendentes – artº 152º - e com a necessidade de o juiz dever conhecer das questões processuais que possam determinar a absolvição da instância, segundo a ordem imposta pela sua precedência lógica e de resolver todas as questões – e só estas questões, que não outras, salvo se de conhecimento oficioso - que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras –artº608º.

 Para que os vícios de omissão ou do excesso de pronúncia não se verifiquem terá de existir uma correspondência entre a pronúncia e a pretensão.

 Isto é, a sentença deve decidir os pedidos ou pretensões formulados, e não pode decidir para além do que está ínsito no pedido, nos termos impetrados pelo demandante; este princípio é válido quer para o conhecimento excessivo em termos quantitativos, quer por condenação em diverso objeto - excesso qualitativo – cfr. Ac. do STJ de 28.09.2006, dgsi.pt, p.06A2464

Por outro lado e como é consabido e constituem doutrina e jurisprudência pacíficas, não se devem confundir «questões» a decidir, com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes.

A estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas às pretensões formuladas e aos elementos inerentes ao pedido e à causa de pedir –cfr. Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, 2005, p.228; Antunes Varela in RLJ, 122º,112 e, entre outros, Acs. do STJ de 24.02.99, BMJ, 484º,371 e de 19.02.04, dgsi.pt.

No caso vertente.

A recorrente entende existir omissão de pronúncia na medida em «a causa de pedir nestes autos não é a que decorre da decisão proferida pelo Tribunal a quo, mas assenta, por outro lado, nas alegações da ora recorrente de que apenas a casa de morada de família pertence à comunhão conjugal e de que o logradouro existente e o anexo construídos no mesmo prédio urbano são propriedade da ora recorrente e têm valores locativos autónomos;»

Ou seja, entende ela que o tribunal não se pronunciou sobre a causa de pedir em toda a amplitude  por si invocada, a qual abrangeu não apenas a casa de morada de família como o logradouro e os anexos.

Mas não é bem assim.

É que o julgador pronunciou-se sobre a questão  essencial decidenda de que oficiosamente podia tomar conhecimento, qual seja, a figura do caso julgado por, vg., em duas ações instauradas pela autora, existirem os seus pressupostos, designadamente a mesma causa de pedir.

Como se viu, tal basta para afastar o vício.

Se o juiz desconsiderou ou menos bem analisou os argumentos, motivos ou razões aduzidos pela parte, tal não se traduz numa omissão de pronúncia, pois que, reitera-se, a questão essencial foi decidida.

O que acontece é que tal desconsideração ou menos boa análise pode acarretar  a ilegalidade da decisão.

Ou seja, o cerne do problema não é o vício formal da sentença por omissão de pronúncia, mas antes o  seu vício substancial decorrente da menor curialidade ou ilegalidade da postura interpretativa e exegética operada pelo Sr. Juiz.

O que se apreciará nas questões subsequentes.

6.2.

Segunda questão.

O Sr. Juiz, com chamamento das normas legais pertinentes e atinentes - artigos 278.º, al. e), 576.º, 577.º, al. i), 580.º, 581.º 619.º, n.º 1, 621.º e 696.º a 702.º.do Código de Processo Civil – teorizou, em tese, curialmente.

Para o caso vertente expendeu:

«… o interesse jurídico que a Autora pretende fazer vale neste processo é exatamente o mesmo daquele que quis fazer valer nos processos 3175/16...., e no processo 84/12....: ter uma compensação pecuniária pelo não uso de um bem comum que está a ser usado em exclusivo pelo Réu BB;

Ela, assim como o Réu BB, são partes naqueles processos e, neste como naqueles, têm a mesma qualidade e posição jurídicas.

O facto jurídico que, neste como naqueles processos, serviu de fundamento à ação, é a participação na titularidade (seja por via da comunhão conjugal seja pela compropriedade) de um bem imóvel que gera frutos civis (utilidades suscetíveis de serem contabilizadas em moeda corrente), frutos estes que a Autora quer receber na proporção da sua participação. E o fruto civil é, no caso, valor locativo do bem.

Assim sendo, observamos, os pressupostos da exceção do caso julgado estão preenchidos.

Mas, mais ainda, analisando a causa de pedir e pedido naqueles processos, verifica-se inexistir, por referência à situação jurídica em julgamento nestes autos, a ocorrência de qualquer condição, prazo ou facto omitido que, por terem entretendo ocorrido, permitissem a reintrodução em juízo e a formulação do pedido contra o Réu BB.

É claro que, como se prova, a declaração de vontade da Autora no acordo para a atribuição da casa de morada de família foi declarada anulada, o que, na prática poderia "anular" os efeitos do caso julgado em relação à ação 3175/16.....

Todavia, não só a anulação não foi total, como a autora intentou nova ação, desta feita aquela com o n.º 84/12.....

E, quanto a esta ação, para além da verificação dos requisitos formais do caso julgado, pese embora se tenha decidido constituir uma relação contratual de arrendamento da casa de morada de família, para habitação do Réu BB, com um valor de renda (fruto civil) de 225,00€ e se tenha decidido que esse "fruto civil" também era devido, na devida proporção, à Autora a partir da data da sentença, verifica-se igualmente a autoridade do caso julgado.

Isto porque – relembrando que o período de "rendas" que nestes autos são pedidas abrange aquele anterior à data em que se considera constituída a relação contratual de arrendamento – nesse processo, considerando o pedido e a causa de pedir, se apreciou exatamente o mesmo período temporal em julgamento nestes autos.

E…decidiu-se…que não havia lugar à análise retroactiva das contrapartidas devidas por cada cônjuge...

Assim sendo, conclui-se, verifica-se no caso dos autos, e em relação ao Réu BB, a exceção do caso julgado e da autoridade do caso julgado, exceção dilatória que demanda que este seja absolvido da instância.»

A autora entende que inexiste caso julgado pois que no âmbito do processo nº 84/12..... resulta claro que apenas a casa de habitação foi considerada na avaliação, nunca se referido o logradouro e o armazém nele construído, dos quais, conforme alegado pela ora recorrente, é passível de ser extraído valor autónomo relativamente à casa.

Destarte, inexiste exata correspondência  no conteúdo do pedido formulado naquela ação e nestes autos, pelo que inexiste caso julgado.

Atentemos.

Não é verdade o alegado pela recorrente no atinente à aludida falta de correspondência entre os factos alegados na ação pretérita como causa petendi e os invocados na presente lide.

Conforme resulta de fls. 121, já no Ac. desta Relação,  que decidiu a causa do processo n.º 3175/16...., se alude que as quantias ali peticionadas pela autora, vg. a quantia de 600,00 euros de renda mensal, se reportavam  «…à utilização daquela casa, terrenos adjacentes e anexos que o réu continue a usufruir…» (sic com itálico e  sublinhado nosso).

Se no Aresto se faz esta referência, obviamente que o pedido da autora também incluía os terrenos e anexos.

E se a avaliação efetivada em tal processo não abrangeu o valor locativo destes, como alega a recorrente, era caso para, em tais autos, levantar a questão.

Se o não fez, sibi imputat, e precludido ficou o seu direito de a levantar novamente, ademais em processo novo, como o presente.

Por conseguinte, e constatando-se tal inveracidade, naturalmente que tem de concluir-se existir total consonância ou coincidência nos pedidos e causas de pedir invocados nas duas ações.

A mera discrepância quantitativa – de 600,00 euros para 800,00 euros – irreleva, já que se reporta à mesma realidade: casa, terrenos adjacentes e anexos.

E demonstra até um inaceitável, porque incongruente, afã da recorrente em ver-se recetora de valores que, não obstante relativos aos mesmos bens, contudo define aleatória e atribiliáriamente a seu bel talante.

6.3.

Terceira questão.

Aqui o julgador decidiu nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

«Nos termos do art.º 186.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir (al. a)), quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir (al. b)) e quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis (al. c)).

No que para o caso interessa, há falta de causa de pedir quando: não são alegados quaisquer factos que como tal possam ser considerados, bastando-se a parte com a alegação de meras conclusões ou juízos sobre situações hipotéticas; sendo alegados factos, não obstante, não se ultrapassa a mera aparência da existência por a parte fazer uma alegação de tal ordem, singular ou cumulativamente, prolixa, vaga, genérica ou abstracta que torna impossível percecionar a realidade sob litígio. Ocorre a ininteligibilidade insuprível, equiparada à falta de causa pedir, quando, apesar ser possível intuir o espetro da realidade em litígio pela enunciação de factispécies – relações contratuais, exercício de direitos potestativos, situações jurídicas absolutas ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogéneos - não seja ainda assim possível delimitar, dentro da factispécie intuída, quais os concretos factos estruturantes alegados e quais as subsequentes situações jurídicas e institutos jurídicos aplicáveis.

No caso dos autos, a Autora basta-se em alegar que o R. DD reside na casa que é sua e é dessa única alegação que extrai o pedido.

Como não olvidará, existem vários institutos jurídicos legalmente previstos para legitimar o uso de coisa por terceiro e, mais ainda, existem subespécies dentro de cada um dos institutos que legitimam o uso gratuito ou o uso remunerado.

Contudo, nenhum facto alega a Autora que, por um lado, exclua a possibilidade de uso gratuito e que, por outro, legitime sustentar que o R. DD deva remunerar o uso, quanto, em abstrato e dentro das previsões normativas vigentes, ambas são possíveis e vão desde o campo do Direito da Família – nomeadamente dos deveres de alimentos, onde se inclui o de prestar habitação, e de assistência - passando pelo campo do Direito das Obrigações - por exemplo, a autorização a terceiro, dada pelo titular do direito, para que este a use gratuitamente - até aos Direitos Reais - nomeadamente até às regras da compropriedade que, nos termos do art.º 1404 do Código Civil, se aplicam, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, como os casos da comunhão conjugal e que permitem, por exemplo, o uso e fruição da coisa por qualquer um dos co-titulares uso este onde se pode incluir, por exemplo, a albergaria de terceiros.

A petição inicial, por conseguinte, não tem causa de pedir subjacente ao pedido de condenação do R. DD e, como tal haverá de considerar-se inepta.

É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicia, como o prevê o n.º 1 do art.º 186.º do Código de Processo Civil, nulidade esta que, por sua vez, constitui exceção dilatória insuprível, nos termos do art.º 577.º al. b), do Código de Processo Civil e que dá lugar à absolvição dos RR. da instância, desta feita, nos termos do art.º 576.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil».

Dilucidemos.

O nosso direito adjetivo, e quanto à causa de pedir, adota a teoria da substanciação perante ou em função da qual pode definir-se causa de pedir como sendo o ato ou facto jurídico, simples ou complexo, de que deriva ou no qual assenta o direito invocado pelo autor e que este se propõe fazer valer – cfr. artº 581º nº4 do CPC.

 Tem-se em vista não o facto jurídico abstrato, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico material concreto, conciso e preciso, cujos contornos se enquadram na definição legal.

A causa de pedir é, pois, o facto material apontado pelo autor e produtor de efeitos jurídicos e não a qualificação jurídica que este lhe emprestou ou a valoração que o mesmo entendeu dar-lhe.

A ideia geral  e primordial  - desde logo na perspetiva do julgador - no que concerne à figura da ineptidão da petição inicial, é a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente e unitário ato de julgamento, “judicium”- Cfr. Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, ed. AAFDL, 1978, 3º, p.47.

O fito secundário – na perspetiva das partes – é permitir o cabal conhecimento por banda do réu das razões fácticas que alicerçam o pedido do autor para, assim, poder exercer cabalmente o contraditório.

 Por isso o estatuído no nº3 do artº 186º.

A dificuldade reside em manter uma linha de separação entre a ineptidão da petição, vício formal, e a inviabilidade ou improcedência, questão de mérito ou substancial.

Nesta matéria urge ter presente que os factos que podem enformar os articulados  se podem integrar em três espécies, a saber:

- Factos essenciais ou estruturantes, aqueles que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção.

- Factos complementares, que concretizam a causa de pedir ou a exceção complexa.

- Factos instrumentais, probatórios ou acessórios, que indiciam os factos essenciais e/ou complementares.

Ora apenas a falta na pi dos factos essenciais determina a inviabilidade da ação por ineptidão daquela.

Já os factos complementares são indispensáveis à sua procedência, não contendendo a sua falta com aquele vício, mas com a questão de mérito a dilucidar a final – Neste sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed pág. 70.

In casu.

A recorrente entende que o facto de ter alegado

“…uma vez que o R. DD habita o identificado imóvel deve ser condenado ao pagamento de uma compensação pela referida utilização”,

e de ter esclarecido, na sequência de convite para o efeito que:

«a indemnização pretendida relativamente ao filho se funda na ocupação, sem título, do imóvel que identifica.»,

é o bastante para afastar o vício da ineptidão.

Mas não é bem assim.

É a própria recorrente a alegar que, na sequência da doação efetivada pelo  réu progenitor aos descendentes da sua meação no património comum do casal, o seu filho  DD, que ora  demanda como réu, é comproprietário dos imóveis em causa.

Logo, o filho tem título  para habitar a casa.

Certo é que o filho é apenas cotitular do domínio, nele detendo somente uma parte.

Mas aqui impunha-se à autora  concretizar e delimitar o pedido efetivado contra ele, pois que, ao menos na quota parte que lhe pertence, o filho não é obrigado a pagar-lhe nada.

Por outro lado, a demanda do filho nem sequer quadra, ao menos éticamente, no âmbito e âmago de todo o historial litigante das partes - e é já longo -, pois que tal quadro é decorrência do divórcio e das desavenças quanto à partilha e aos direitos sobre os bens da mesma.

E, por este motivo e em princípio, e salvaguardadas especificações que não são alegadas nem se vislumbram,  inclusive indiciando-se apresentar-se  este réu e as irmãs, infelizmente, mais  como vítimas do que como incumpridores.

Note-se, porém, que a mãe não parece interiorizar este mínimo ético, pois que,  numa inadmissível e ilegal pretensão, até pretendia compensar a sua dívida de alimentos,  devidos ao filho enquanto menor, com os aventados créditos desta ação contra ele esgrimidos.

Verifica-se assim que a petição, neste particular contra o filho, se assume, como mencionado na sentença, uma peça vaga, desalicerçada, factual, jurídica, e, até eticamente.

 E, ademais, materialmente, nem sequer devida e legalmente quantificada em sede de pedido, como devia, desde logo em coerência com o anteriormente alegado quanto à compropriedade do filho.

Esta incompletude e incongruência nem sequer foram supridas após o convite que lhe foi formulado pelo tribunal.

Decorrentemente,  e perante tais deficiências, conclui-se que aqui está presente a ideia mestra que preside à figura da ineptidão da petição inicial, qual seja: a de impedir o prosseguimento duma ação viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, que mostre desde logo não ser possível um correto, coerente, unitário e justo ato de julgamento.

6.4.

Quarta questão.

A redação dada ao artº 456º do CPC pelo DL 180/96 de 25/09, alargou o âmbito da aplicação do instituto da litigância de má fé, pois que nele abarcou não apenas os casos de atuação dolosa como também os de atuação gravemente negligente.

Sendo que, inclusive, e como se plasma no preâmbulo de tal diploma: «Como reflexo do princípio da cooperação e dos deveres que lhe são inerentes, permite-se, sem quaisquer limitações, a condenação como litigante de má fé da própria parte vencedora, desde que o seu comportamento processual preencha alguma das previsões contidas no nº2 do artº 456º…».

Tal alargamento teve, naturalmente, em vista, restringir os casos de litigância temerária, pretendendo incutir nas partes a necessidade de uma sã atitude processual, pautada e norteada por uma atuação o mais clara e linear possível, sem subterfúgios, truques e mentiras.

É necessário que o exercício do direito seja sincero, que a parte esteja convencida da justiça da sua pretensão.

Quando falta este requisito, o ato passa a ter o carácter de ilícito.

Estamos então perante um ilícito processual, a que corresponde ou uma sanção civil e uma sanção penal (multa).

E sendo certo que a jurisprudência era amplamente magnânima na condenação a tal título, criou-se uma convicção de impunidade que levava a colocar ou a contestar em juízo casos de total insustentabilidade, ou, pior, distorcidos ou falseados na sua génese factual.

Com os inerente prejuízos para o sistema da justiça e, outrossim, para os próprios sujeitos processuais vítimas de tal atuação.

Importa, pois, na sequência do atual desígnio legislativo, impor uma cultura de rigor nesta matéria, com os inerentes benefícios, a todos os títulos e níveis, dai advenientes.

 Este  nova política legislativa está presentemente plasmada no artº 542º do CPC.

Não obstante, há que apreciar e decidir com as cautelas e precauções necessárias.

Pois que, apesar de se concordar que cada vez mais as partes usam e abusam dos seus (por vezes pretensos) direitos, litigando temerariamente e agindo de má fé, substantiva e processualmente, o certo é que os tribunais devem ser prudentes na condenação a este título, porque tal implica não apenas uma censura e afetação económico-financeira a nível processual, como um desmerecimento a nível pessoal marcante e inquinador da honestidade e probidade presumivelmente insertas na esfera jurídica pessoal do normal cidadão - cfr. Ac. do STJ de 15.10.2002,  p.02A2185 in dgsi.pt.

O fundamento ético do instituto exige que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjetivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão) -  Ac. da Relação do Porto de 20.10.2009, p. 30010-A/1995.P1 e do STJ de 28.05.2009, p.09B0681.

In casu.

O julgador decidiu neste conspeto, tendo, nomeadamente, feito constar:

«No caso dos autos parece ostensiva a negligência grave da A, senão mesmo dolosa, na medida em que demonstrou estar particularmente ciente do julgamento que foi feito nos processos anteriores (com recursos, inclusivamente, para o tribunal da Relação), nomeadamente e sobretudo no processo 84/12....., onde não só ficou resolvida a questão, mas também se deixou explanado o passo processual seguinte relativamente às eventuais s contrapartidas devidas por cada cônjuge pelo uso da casa de família, já que se tratava de matéria relativa à eventual divisão do património, quer em sede de compropriedade, quer em sede de comunhão conjugal, com ponderação, nesse âmbito, das compensações a que haja lugar. Como se disse, e repete, ficou claro que que só na partilha dos bens, em processo especial de inventário, é que se pode julgar se, até à constituição do arrendamento, a Autora teria direito a qualquer compensação.

Notoriamente, a Autora ignorou esta decisão, a eficácia do caso julgado e voltou a sujeitar o tribunal à obrigação de ter de se pronunciar sobre questões, de facto e de direito, já consolidadas tudo para tentar inverter o sentido da decisão apesar de ciente da solução de facto e de direito e, por necessária consequência, da inevitável falta de fundamento para deduzir esta ação na parte em que o fez contra o R.º BB.».

Propendemos a corroborar este entendimento.

Na verdade, a autora tem pautado a sua atuação nos últimos anos por uma basta, algo atribiliária e tendencialmente repetitiva, litigância.

E pretendendo fazer singrar as suas pretensões, com argumentos reiterados ou essencialmente idênticos, aos que já foram decididas anteriormente.

Esta postura é por ela manifestada neste processo, como por exemplo na afirmação de que nele alterou a sua causa de pedir, reportando-se agora aos terrenos adjacentes e anexos, quando, como se demonstrou em 6.2., ela já tinha esgrimido estes argumentos no processo n.º 3175/16.....

Ou seja, a inelutável conclusão é que a autora, quiçá por beneficiar de apoio judiciário e estar isenta de custas, está a manifestar e assumir posições processuais repetitiva e algo meandrosamente, se não com dolo, ao menos com uma negligência  grave.

A  qual,  vg, e também por dar  trabalho e despesa ao erário público, se tem  por intolerável e se assume eivada de um jaez com virtualidade e força suficientes para substanciar a previsão do artº 542º  nº2 do CPC, na sua vertente processual e/ou substantiva.

Improcede o recurso.

7.

Sumariando – artº 663º nº7 do CPC.

I - A nulidade por omissão de pronúncia exige o silêncio quanto a questões essenciais decidendas, e não sendo bastante a ignorância de motivos, argumentos ou razões.

II - Repetida a causa quanto aos sujeitos, causa de pedir e pedido, emerge a figura do caso julgado.

III - A ineptidão  da pi  deve ser decretada quando se conclua que, perante o nela alegado, a ação  fica viciada por falta ou contradição interna da matéria ou objeto do processo, o que impede  um correto, coerente,  unitário e justo ato de julgamento.

IV - No respeito pelo desígnio legislativo da reforma de 1996 de uma apreciação mais rigorosa da litigância de má fé, deve ser condenada a este título, ao menos por negligência grave, a parte que instaura sucessivos processos com introdução de questões e repetição de argumentos já anteriormente decididas e transitadas.

8.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente e, consequentemente, confirmar a sentença.

Custas pela recorrente

Coimbra, 2022.06.28.