Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
327/07.0TBVZL-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: IDENTIDADE DE ACÇÃO
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO
ACÇÕES
INSOLVENTE
RESOLUÇÃO
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 09/10/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VOUZELA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: 127º Nº2 DO CIRE
Sumário: I - Não há identidade quanto ao pedido e á causa de pedir entre a acção de impugnação dos actos do devedor/insolvente e a acção de impugnação da resolução efectuada pelo administrador da insolvência.

II – A decisão que declare ineficaz a resolução de actos do devedor/insolvente, efectuada pelo administrador da insolvência, por a resolução não ter sido fundamentada, não tem qualquer força vinculativa no âmbito das acções de impugnação pauliana de actos do devedor/insolvente nas quais se apreciaram apenas os requisitos da impugnação pauliana.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª secção cível do tribunal da Relação de Coimbra

A..., Lda [declarada insolvente por sentença proferida em 26 de Outubro de 2010], “B..., Lda”, “, C...Lda”, e D..., melhor identificadas nos autos, propuseram a presente acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra “E..., Lda” [declarada insolvente por sentença proferida em 16 de Janeiro de 2008], F..., , G... e “H..., Lda”, pedindo:

1. Se decretasse a ineficácia em relação a elas [autoras] da alienação dos seguintes veículos: do semi-reboque, marca Lamberet, matrícula VI-7641, do semi-reboque de matrícula L – 159531, do veículo pesado de mercadorias, marca Renault, matrícula 97-80-GS, e do veículo pesado de mercadorias, de marca Renault, matrícula 75-96-SM, nos quais intervieram a ré E..., como transmitente, e a ré H..., beneficiária da transmissão;

2. Se ordenasse à ré H..., Lda, a restituição dos referidos bens, de modo a que as autoras se pudessem pagar às custas dos mesmos.

Em abono das suas pretensões, as autoras A..., B... e C... alegaram que eram credoras da ré E...; que o crédito de A..., cujo montante era de € 30 000, provinha de empréstimos; que o crédito de B..., cujo montante era de € 44 427,50, provinha da prestação de serviços de transporte; que o crédito de C..., cujo montante era de € 468,23, provinha da prestação de serviços de reparação de veículos automóveis, que a autora D... era credora dos réus F... e G...; que o crédito, no montante de € 25 307,76 provinha de um empréstimo; que os 2ºs e 3ºs réus, na qualidade de sócios da ré E... alienaram a favor da sociedade H..., de que também são os únicos sócios, os veículos acima indicados, com o único propósito de diminuírem a garantia patrimonial da primeira ré.

Os réus contestaram. Na sua defesa começaram por arguir a ilegitimidade dos réus F... e G... e a ilegitimidade da autora D...; seguidamente impugnaram a alegação de que as autoras eram credores dos réus, dizendo que a 1ª ré deve apenas a quantia de € 4 949,33 e a credora é apenas a 2ª autora. A terminar alegaram que as autoras estavam a litigar de má fé, pedindo a condenação delas como litigantes de má fé, em multa e indemnização não inferior a 3 mil euros.         

As autoras responderam, sustentando a legitimidade de todas as partes, impugnando o alegado na contestação e opondo-se à sua condenação como litigantes de má fé.

No despacho saneador, o tribunal a quo julgou procedente a arguição de ilegitimidade da autora e improcedente a arguição de ilegitimidade dos réus F... e G....

O processo prosseguiu e após a realização da audiência de discussão e julgamento e da decisão de facto, foi proferida sentença que, julgando a acção procedente, declarou a ineficácia relativamente às autoras “ A..., Lda”, “ B..., Lda”, e “ C..., Lda”, dos contratos de compra e venda do Semi-Reboque de marca “Lamberet”, com a matrícula VI-7641, do Semi-Reboque de matrícula L-159531, do Veículo Pesado de Mercadorias de marca “Renault”, com a matrícula 97-80-GS, do Veículo Pesado de Mercadorias de marca “Renault”, com a matrícula 75-96-SM, nos quais foram intervenientes a ré E..., como vendedora, e a ré H..., como compradora.

 A ré H..., Lda, não se conformou com a sentença e interpôs o presente recurso de apelação, pedindo a revogação e a substituição da decisão recorrida por outra que absolva a ré dos pedidos.

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. A douta sentença recorrida viola o caso julgado, por decidir sob o mesmo objecto, com os mesmos sujeitos, pedido e causa de pedir relativamente à douta sentença proferida anteriormente no âmbito do apenso “C”;
2. A acção que consta do apenso “C” (acção para Impugnação da Resolução do acto jurídico, nos termos do art.º 125.º do CIRE) foi julgada procedente por provada e, em consequência, foi declarada a invalidade da resolução do acto jurídico consubstanciado na transmissão, a favor da ora ré, dos veículos supra identificados;
3. Tal decisão veio a ser confirmada na íntegra pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra na sequência do recurso apresentado pela então Massa Insolvente, a qual veio a transitar em julgado;
4. Existe caso julgado, nos termos do artigo 498.º do Código de Processo Civil, quando em duas acções haja: identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir;
5. Os sujeitos de uma e outra acção (as partes) deverão ser tomados sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica;
6. No apenso “C” temos como sujeito activo a ora recorrente “ H...Lda.” e como sujeito passivo a “Massa Insolvente da E... , Lda.”;
7. No apenso “F” temos como sujeito activo as ora autoras “ A..., Lda.”, “ B..., Lda.”, “ C..., Lda.” e D..., sendo que do lado passivo constam os réus “ E..., , Lda.”, F... e “ H... Lda.”;
8. Na identidade de sujeitos, importa apenas atender à qualidade jurídica das partes, não sendo exigível uma correspondência física nas duas acções;
9. Apreciando as decisões, verifica-se que as partes figuram numa e outra acção com a mesma qualidade jurídica;
10. Os sujeitos activos no apenso “F” constituem credores da insolvente “ E..., , Lda.”, a mesma que figura como sujeito passivo no apenso “C”.
11. A decisão proferida de ineficácia do negócio jurídico nos presentes autos beneficia a Massa Insolvente da sociedade “ E..., , Lda.”.
12. Pois que a própria “ A..., Lda.”, por requerimento datado com a referência 11778112de 29.11.2012, requereu aos autos principais que os mesmos não fossem encerrados, por haver bens móveis (os que estão em causa nos autos) que englobam a Massa Insolvente da sociedade “ E..., , Lda.”(cfr. doc. 3).
13. No âmbito deste apenso “F”, quem teve interesse directo em demandar não foram os credores propriamente ditos, mas sim a “Massa Insolvente da E..., , Lda.”, pois que é ela quem beneficia da procedência da acção.
14. É para a sua esfera patrimonial que seriam transferidos os bens móveis que são objecto da presente lide, não obstante puderem eventualmente servir para satisfazer os interesses dos seus credores.
15. Temos, pois, por um lado, uma primeira acção que decide que negócio jurídico é válido e eficaz perante a Massa Insolvente de E..., , Lda (e por inerência, de todos os seus credores), e uma outra acção em que é solicitado pelos credores daquela Massa Insolvente novamente a ineficácia do negócio jurídico (que já havia sido julgado eficaz), com a consequente remessa dos bens móveis para o património daquela mesma Massa Insolvente;
16. Entende a recorrente que na presente situação se vislumbra uma autêntica igualdade de sujeitos, na perspectiva da sua qualidade jurídica;
17. No que respeita ao pedido, também não surgem dúvidas quanto à sua identidade;
18. No apenso “C” a autora (ora recorrente) peticiona que seja declarado nulo o acto resolutivo do acto jurídico de transmissão dos veículos em causa, ou seja, que o acto seja reconhecido como válido, sem qualquer vício que fundamente a sua resolução;
19. No apenso “F” as autoras peticionam a declaração de ineficácia do mesmo acto jurídico de transmissão dos mesmos veículos;
20. A identidade dos pedidos é perspectivada em função da posição das partes quanto à relação material: existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado, sem que seja de exigir uma adequação integral das pretensões;
21. No presente caso, os efeitos jurídicos de uma e outra acção são os mesmos: fazer ingressar tais veículos na esfera patrimonial da “Massa Insolvente de E..., Lda.”;
22. Existe identidade de causa de pedir quando as pretensões formuladas em ambas as acções emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas;
23. Nesta situação em concreto, os factos são os mesmos em uma e outra acção: a transmissão dos veículos supra identificados realizada entre a “ E..., Lda.” e a ora recorrente “ H..., Lda.”;
24. Dúvidas não restam, pois, de que os factos que integram a causa de pedir de uma e outra acção são exactamente os mesmos;
25. Preenchidos que se encontram os pressupostos relativos ao caso julgado nos termos sobreditos, deverá tal excepção, de conhecimento oficioso, ser decretada por este Venerando Tribunal;
26. Não obstante, a não se ter o mesmo entendimento, sempre será de ter em atenção a autoridade de caso julgado;
27. Que como refere o douto Ac. Do tribunal da Relação de Coimbra proferido em 06.09.2011 no âmbito do processo n.º 816/09.2TBAGD.C1, disponível em www.dgsi.pt, “pressupõe a aceitação da decisão proferida em processo anterior, cujo objecto se insere no objecto da segunda, obstando-se, deste modo, que a relação ou situação jurídica material definida pela primeira decisão possa ser contrariada pela segunda, com definição diversa da mesma relação ou situação, não se exigindo neste caso a coexistência da tríplice identidade mencionado no artigo 498º do Código de Processo Civil”;
28. A autoridade do caso julgado justifica-se pela necessidade da certeza e da segurança nas relações jurídicas;
29. E essa autoridade não é retirada, nem posta em causa mesmo que a decisão transitada em julgado não tenha apreciado correctamente os factos ou haja interpretado e aplicado erradamente a lei;
30. A decisão proferida pelo Tribunal tem é que ser respeitada por todos, não devendo haver uma outra decisão que determine sentido contrário;
31. No caso em apreço, já a recorrente intentou acção a declarar a nulidade de uma decisão de resolução do acto jurídico de transmissão dos veículos, a qual foi julgada totalmente procedente, sendo que a recorrente passou a contar na sua esfera jurídica patrimonial, com toda a certeza e segurança das decisões judiciais, todos os veículos supra identificados;
32. Ao lhe ser reconhecido judicialmente tal direito, não pode haver agora uma decisão em sentido contrário, sob pena de desafiar a proferida anteriormente;
33. É esta a posição do esclarecedor Ac. Do tribunal da Relação de Coimbra proferido em 06.09.2011 no âmbito do processo n.º 816/09.2TBAGD.C1, no seguimento de outro Ac. Proferido pela mesma Relação de 28.09.2010, disponível em www.dgsi.pt;
34. Ou seja, quando a decisão se torna definitiva, por não poder já ser susceptível de reclamação, nem de recurso ordinário, a mesma transita em julgado, formando-se então o caso julgado: formal, com efeitos apenas no processo em que foi proferida, quando não tenha conhecido de mérito; e material, com efeitos dentro e fora do processo em que haja sido proferida, quando tenha sido de mérito;
35. Atendendo à posição esclarecedora supra exposta, dúvidas não restam que, ainda que inexistindo a tríplice exigida para o caso julgado, sempre vingaria a autoridade do caso julgado no âmbito do apenso “C” que, sem margem para qualquer dúvida, consiste exactamente na apreciação do mesmo objecto do apenso “F” do mesmo processo que, por lhe ser posterior, deverá respeitar a decisão que lhe é anterior;
36. Deverá, pois, a douta sentença proferida ser revogada por ofender o caso julgado formado no âmbito do apenso “C”, devendo decidir-se em conformidade com o mesmo.
37. Ao julgar e decidir como fez, a douta sentença proferida violou o disposto nos artigos 497.º, 498.º, 671.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Não houve resposta ao recurso.


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A exposição efectuada mostra que a recorrente suscita duas questões, uma a título principal e outra a título subsidiário. A título principal, suscita a questão de saber se a sentença recorrida, ao julgar procedente a acção, violou a excepção de caso julgado. Para a hipótese de assim se não entender, suscita a questão de saber se a sentença recorrida, ao julgar procedente a acção, violou a autoridade de caso julgado constituído pela sentença proferida na acção de impugnação da resolução.

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Uma vez que a decisão de facto não foi impugnada e não há razões para alterar oficiosamente a matéria de facto, consideram-se provados os seguintes factos:
1. As autoras “ A..., Lda.”, “ B..., Lda.” e “ C..., Lda.”, dedicam-se, respectivamente, à recolha, tratamento e destruição de sub-produtos de origem animal, à prestação de serviços de transportes de mercadorias em território nacional e território internacional, e à reparação e comércio de máquinas e automóveis;
2. A certidão de registo comercial da autora “ C..., Lda.” consta de fls. 297 a 301 dos autos;
3. A certidão de registo comercial da autora “ A..., Lda.” consta de fls. 302 a 307 dos autos;
4. A certidão de registo comercial da autora “ B..., Lda.” consta de fls. 308 dos autos;
5. A certidão de registo comercial da ré “ E..., Lda.” consta de fls. 309 a 311 dos autos;
6. Por sentença proferida no dia 16-01-2008, já transitada em julgado, foi decretada a insolvência da ré “ E..., Lda.”;
7. A certidão de registo comercial da ré “ H..., Lda.” consta de fls. 312 a 315 dos autos;
8. Encontra-se pendente neste Tribunal a execução comum nº 292/05.9TBVZL, certificada a fls. 316 a 324, em que é exequente a autora “ A..., Lda.” e executada a ré “ E..., Lda.”;
9. No exercício da actividade mencionada no ponto 5.1., a autora “ A..., Lda.” cedeu, com obrigação de restituição, dinheiro à ré “ E..., Lda.”;
10. Estas cedências de dinheiro a que se alude no ponto anterior deram lugar às Letras de Câmbio das quais a autora “ A..., Lda.” é portadora, e foram aceites pela ré “ E..., Lda.”, emitidas em: 22-07-2005, com vencimento em 21-08-2005, no valor de € 16.000; 23-07-2005, com vencimento em 22-08-2005, no valor de € 14.000; A autora “ B..., Lda.”, a pedido e solicitação da ré “ E..., Lda.”, prestou, com espera de preço e por prazo certo, diversos serviços de transportes de mercadorias, em território nacional bem como em internacional;
11. A ré “ E..., Lda.”, para garantia de pagamento, veio a emitir vários cheques pré-datados à autora “ B..., Lda.”, no valor de € 44.427,50;
12. A autora “ C..., Lda.”, a pedido e solicitação da ré “ E..., Lda.”, prestou, com espera de preço e por prazo certo, diversos serviços de reparação dos veículos desta ré, e de fornecimento de peças e utensílios, que importaram na quantia de € 468,23;
13. Os réus F... e G... diligenciaram conscientemente por transferir todos os bens da ré “ E..., Lda.” para a ré “ H..., Lda.”, com o único e claro propósito de diminuição do património da ré “ E..., Lda.”;
14. Designadamente os seguintes veículos pesados de mercadorias e semi-reboques conhecidos pelas autoras: - Semi-Reboque de marca “Lamberet”, com a matrícula VI-7641, cujo registo de propriedade consta de fls. 290; - Semi-Reboque de matrícula L-159531, cujo registo de propriedade consta de fls. 292; - Veículo Pesado de Mercadorias de marca “Renault”, com a matrícula 97-80-GS, cujo registo de propriedade consta de fls. 296; - Veículo Pesado de Mercadorias de marca “Renault”, com a matrícula 75-96-SM, cujo registo de propriedade consta de fls. 294;
15. Os bens referidos no ponto anterior consistiam, à data dos contratos celebrados pelas autoras e ré “ E..., Lda.”, os únicos bens pelos quais as autoras poderiam satisfazer os seus créditos;
16. Essa transferência de bens efectuou-se após citação realizada em processo executivo em que os réus ali foram demandados.

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Antes de entramos na apreciação dos fundamentos do recurso, importa dizer que as questões por ele suscitadas – excepção de caso julgado e autoridade de caso julgado – são questões novas, no sentido de que não foram suscitadas perante o tribunal a quo, podendo tê-lo sido, estando a ser suscitadas pela primeira vez em sede de recurso.

Ora, sendo os recursos meios de impugnação de decisões judiciais [artigo 676º, n.º 1, do CPC], segue-se daqui, em princípio, que não competiria a este tribunal ocupar-se destas questões, pois o que é objecto do conhecimento em sede de recurso é a decisão recorrida.

Diz-se em princípio, pois como a sentença proferida em primeira instância pode ocupar-se de questões não suscitadas pelas partes, desde que a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso dessas questões [parte final do n.º 2 do artigo 660º, do CPC], também o tribunal de recurso pode ocupar-se de questões novas, no sentido acima exposto, desde que a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso dessas questões [n.º 2 do artigo 66º, aplicável ao acórdão proferido em sede de recurso por força da remissão efectuada pelo n.º 2 do artigo 713º do CPC].

A excepção de caso julgado é precisamente uma questão que o tribunal deve conhecer oficiosamente [artigos 494º, alínea i), e 495º, ambos do Código de Processo Civil].

Passemos, pois, à apreciação desta questão.

Esta questão é suscitada pelo fundamento do recurso constituído pela alegação de que a sentença recorrida violou o caso julgado formado pela decisão proferida na acção que a ré H... propôs contra a Massa Insolvente de E.... Acção na qual a ora ré pediu se declarasse nula ou improcedente a declaração de resolução da transmissão dos veículos efectuada pelo administrador da insolvência. Segundo a recorrente, deu-se a violação do caso julgado porque o objecto da presente causa é idêntico ao objecto da acção de impugnação da resolução e porque as partes, o pedido e a causa de pedir desta acção são idênticos aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir da acção de impugnação da resolução.

A resposta a este fundamento do recurso remete-nos para a excepção dilatória do caso julgado, cuja noção é dada pelo n.º 1 do artigo 497º do CPC e cujos requisitos estão enunciados pelo artigo 498º do mesmo diploma.

A excepção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por sentença já transitada em julgado [artigo 497º, n.º 1, do CPC].

Uma causa repete-se quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e á causa de pedir [n.º 1 do artigo 498º do CPC].

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica [n.º 2 do artigo 498º do CPC].

Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico [n.º 2 do artigo 498º, do CPC].

Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico [n.º 3 do artigo 498º do CPC].

O fim da excepção é evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior [n.º 2 do artigo 497º do CPC]. 

Sendo este o recorte da excepção dilatória do caso julgado, a razão estaria do lado da recorrente se:

1. A presente acção constituísse uma repetição da acção de impugnação da resolução; e

2. Se a presente acção tivesse sido instaurada depois de acção de impugnação da resolução ter sido decidida por sentença transitada em julgado.

Ora, comparando a presente acção com a acção de impugnação da resolução, é seguro afirmar-se que não há entre elas nem identidade de pedidos nem identidade de causas de pedir. 

Vejamos os pedidos.

Na presente acção, os autores pediram se declarassem ineficazes, em relação a si, as alienações de dois veículos automóveis pesados de mercadorias e de dois semi-reboques, nas quais intervieram a sociedade E..., Lda, como alienante, e a ré ora recorrente, como beneficiária das alienações, e se ordenasse à ora ré a restituição dos referidos bens, de modo a que as autores se pudessem pagar à custa deles.

Tratou-se, pois, de um pedido característico da acção de impugnação pauliana, prevista no artigo 610º do Código Civil. Acção que é um meio de conservação da garantia patrimonial do credor.

Na outra acção que está sob comparação, a aí autora – ora ré recorrente –, pediu se declarasse inválida a declaração de resolução das transmissões dos veículos [transmissões efectuadas pela sociedade E..., Lda a favor da ré, ora recorrente] efectuada pelo administrador da insolvência.

Pedido que é característico das acções de simples apreciação negativa e que tem apoio no artigo 125º do CIRE.

Sendo estes os pedidos formulados em cada uma das acções, não tem fundamento a alegação de que os pedidos são os mesmos, como não tem fundamento a alegação de que os efeitos jurídicos de ambas as acções são os de fazer ingressar os veículos na esfera patrimonial da massa insolvente de E..., Lda. Vejamos.

Com a impugnação da resolução o que se pretende é que a resolução efectuada pelo administrador não produza os seus efeitos; efeitos que, nos termos do artigo 126º, n.º 1 do CIRE, são retroactivos e que implicam a reconstituição que existiria se o acto resolvido não tivesse sido praticado. Julgada procedente, a acção de impugnação da resolução impede precisamente o regresso dos bens à massa insolvente.

Quanto à impugnação pauliana, o que se pretende com ela é a conservação da garantia patrimonial. Conservação que não implica, no entanto, o regresso dos bens ao património do devedor/insolvente. É o que resulta do n.º 3 do artigo 127º do CIRE ao dispor que, “julgada procedente a impugnação pauliana, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos”.

 O sentido desta norma é o de que a impugnação pauliana dos actos praticados pelo devedor/insolvente aproveita apenas ao credor ou credores que a tenham requerido [a favor desta interpretação citam-se na doutrina Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 445, João Cura Mariano, obra supra citada, página 317, Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, página 223] e o de que, julgada procedente a acção pauliana, o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património dos obrigados à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei [artigo 616º, n.º 1, do Código Civil].

Direito à restituição que não significa o regresso dos bens ao património do devedor alienante. Socorrendo-nos das palavras de João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, página 243, a restituição de que fala o n.º 1 do artigo 616º significa “…tão somente o restabelecimento da garantia patrimonial diminuída, através da exposição desses bens, independentemente da sua situação jurídica, aos meios legais conservatórios e executórios colocados à disposição do credor impugnante”.    

O CIRE rompeu, assim, com o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência [CPEREF] aprovado pelo Decreto-Lei 132/93, de 23 de Abril, na parte em que dispunha que, julgada procedente a impugnação pauliana, os bens ou valores correspondentes revertiam para a massa falida [artigo 159º, n.º 1], e com o que dispunha no mesmo sentido o artigo 1203º do CPC, quando a falência era disciplinada neste diploma.

Comparemos, de seguida, as causas de pedir.

A causa de pedir da acção de impugnação de resolução – o facto jurídico de onde procede a acção de impugnação - é a declaração de resolução efectuada pelo administrador.

O facto jurídico de onde procede a acção de impugnação pauliana é constituído pelos actos praticados pelo devedor insolvente que envolvem diminuição da garantia patrimonial, ou seja, no caso, pelos actos de transmissão dos veículos para a ora recorrente por parte da devedora insolvente, E..., Lda.

São, pois, diferentes as causas de pedir das acções que estão sob comparação.

Só em matéria de sujeitos é que há identidade entre as duas acções. Trata-se, no entanto, de identidade parcial, uma vez que só duas das 7 partes neste processo é que são também partes na impugnação da resolução. Referimo-nos à ré, ora recorrente, e à massa insolvente da sociedade E..., Lda”.

Identidade parcial de sujeitos que não chega, pelas razões expostas atrás, para fazer com que esta causa constitua uma repetição da acção de impugnação de resolução para efeitos de excepção de caso julgado.

De resto, a excepção do caso julgado pressupõe uma sequência cronológica das acções - sequência constituída pela instauração de uma acção depois de uma outra ter sido decidida por sentença transitada em julgado -, que não se verifica no caso. Com efeito, embora não se saiba quando é que a impugnação de resolução foi instaurada, é isento de dúvida, no entanto, de que o foi depois da presente acção, uma vez que sabemos que a presente acção foi instaurada em 7 de Março de 2007 e que a acção de impugnação de resolução foi instaurada necessariamente em data posterior dado que visou impugnar um acto do administrador da insolvência da sociedade E..., Lda” de 14 de Abril de 2008.

Ora, para efeitos de excepção do caso julgado, uma causa nunca constitui repetição de outra causa quando tenha sido interposta antes dessa outra causa.   

Se houvesse identidade entre as duas causas, como sustenta a recorrente, o que teria ocorrido era uma situação de litispendência [n.º 1 do artigo 497º do CPC]. Litispendência provocada não pela instauração da presente acção, mas pela interposição da acção de impugnação da resolução. Considerando que a primeira parte do n.º 1 do artigo 499º do CPC, dispõe que a listispendência deve ser deduzida na acção proposta em segundo lugar, que a segunda parte do mesmo número estabelece que se considera proposta em segundo lugar a acção para a qual o réu foi citado posteriormente e que foi na acção de impugnação de resolução que os réus foram citados posteriormente, era nessa acção que devia ter sido deduzido e conhecida a excepção de litispendência.

A verdade é que não há identidade entre as duas acções quanto ao pedido e à causa de pedir. Não se verifica, pois, a excepção de caso julgado.

Para a hipótese de não ser julgada procedente a excepção de caso julgado, a recorrente alega que a decisão recorrida violou a autoridade de caso julgado constituído pela decisão proferida na acção de impugnação da resolução. Diz a recorrente que, uma vez declarada a nulidade da resolução efectuada pelo administrador, a recorrente passou a contar na sua esfera jurídica patrimonial, com toda a certeza e segurança das decisões judiciais, de todos os veículos e que, ao ser-lhe reconhecido judicialmente tal direito, não pode haver uma decisão em sentido contrário, sob pena de desafiar a proferida anteriormente.

A resposta a este fundamento de recurso remete-nos para o valor da sentença transitada em julgado.

Diz o n.º 1 do artigo 671º do CPC que, “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 497º e 498º, sem prejuízo do disposto nos artigos 771º a 777º”.

Segue-se desta norma que a decisão sobre a relação material controvertida, uma vez transitada em julgado, passa a gozar de uma autoridade especial, impondo-se dentro do processo e fora do processo, “impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada” [Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Limitada, página 685].

Socorrendo-nos, agora, das palavras de Miguel Teixeira de Sousa, Cadernos de Direito Privado, n.º 41, páginas 24 e 25 “…o caso julgado produz, …, dois efeitos: um efeito impeditivo, traduzido na excepção de caso julgado, e um efeito vinculativo, com expressão na autoridade de caso julgado. Aquela excepção visa obstar à repetição de decisões sobre as mesmas questões (ne bis in idem) e impede que os tribunais possam ser chamados não só a contrariarem uma decisão anterior, como a repetirem essa decisão. Em contrapartida, a autoridade de caso julgado, garante a vinculação dos tribunais e dos particulares a uma decisão anterior, pelo que impõe que aqueles tribunais e estes particulares acatem e (neste sentido repitam) o que foi decidido anteriormente (quanto, por exemplo, a uma questão que é prejudicial para o conhecimento de uma outra questão. Quando a decisão define um efeito jurídico, este efeito fica coberto pelo caso julgado, mas há que entender que o “contrário contraditório (…) desse efeito também fica abrangido pelo caso julgado. É a solução que decorre do artigo 481º, alínea c), do CPC (…) e no artigo 497º, n.º 2 do CPC (que atribui ao caso julgado o efeito de proibir qualquer contradição com a decisão transitada).

Não se nega que a sentença proferida na acção de impugnação da resolução tenha autoridade de caso julgado. O que não se reconhece, por não ter apoio legal, é que a decisão proferida na presente acção contradiga a autoridade de caso julgado formado pela decisão proferida na acção de impugnação da resolução. Nesta, foi decidido declarar inválida a resolução efectuada pelo administrador da insolvência. Ora, uma vez que a sentença constitui caso julgado nos precisos termos e limites em que julga [1ª parte do artigo 673º do Código Civil], ou seja, o caso julgado formou-se apenas sobre o que foi objecto de decisão.

Não tem, assim, cobertura legal a alegação da recorrente segundo a qual, depois de ser proferida a sentença na acção de impugnação resolução, passou a contar na sua esfera jurídica patrimonial, com toda a segurança e segurança das decisões judiciais, de todos os veículos supra identificados. E não tem, dado que a sentença não se pronunciou sobre a questão da propriedade dos veículos nem sobre a possibilidade de esses bens, mesmo no património da ora recorrente, responderem por dívidas do devedor/insolvente. Ora, a impugnação pauliana, sem pôr em causa a validade das transmissões dos veículos, veio apenas reconhecer aos autores, ora recorridos, o direito de os executarem no património da recorrente. Decisão que, para utilizarmos as palavras de Teixeira de Sousa não constitui “o contrário contraditório” do que foi decidido na acção de impugnação da resolução.

Contra o âmbito da autoridade do caso julgado que lhe é assinalado pela recorrente depõe também o artigo 127º do CIRE.

Esta norma regula a impugnação pauliana dos actos do devedor/insolvente e as relações desta acção com a resolução dos actos em benefício da massa efectuada pelo administrador da insolvência e com a acção de impugnação da resolução.

Do n.º 1 desta norma resulta que, após a declaração de insolvência, está vedado aos credores impugnarem os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito – os actos que envolvam prejuízo para os credores – cuja resolução haja sido declarada pelo administrador da insolvência. Isto é, a partir da declaração de insolvência, os actos que forem resolvidos pelo administrador de insolvência deixam de poder ser impugnados através da impugnação pauliana pelos credores. A prevalência pela resolução é explicada pelo seguinte: enquanto a resolução aproveita a todos os credores, a impugnação pauliana beneficia apenas o credor ou os credores que a tenham requerido [neste sentido pronunciam-se João Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, na obra supra citada, página 445].

Sucede que, enquanto não forem resolvidos, assiste aos credores a faculdade de impugnarem os actos do devedor/insolvente em seu próprio benefício. É o que resulta do n.º 2 do artigo 127º.

Porém, no caso de o administrador da insolvência decidir resolvê-los em benefício da massa insolvente, o n.º 2 do artigo 127º do CIRE determina a suspensão dos termos do processo relativo à pauliana.

Suspensão que pode desembocar na extinção da instância por inutilidade superveniente da lide [artigo 287º, alínea e), do CPC], ou no prosseguimento do processo.

 À suspensão seguir-se-á a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide se a resolução efectuada pelo administrador se tornar definitiva [o que sucederá se não for impugnada ou se a impugnação da resolução for julgada improcedente]. Como escreve João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, página 318, “…determinando a resolução a restituição à massa insolvente do bem transmitido pelo negócio posto em causa, já não é possível a sua execução no património do terceiro adquirente, pelo que a impugnação pauliana deixa de ter qualquer utildiade”.

A suspensão cessa e a acção pauliana prosseguirá os seus termos se a resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva [n.º 2 do artigo 127º].

Decisão definitiva que terá força vinculativa no âmbito das acções de impugnação, mas apenas quanto às questões que tenha apreciado e, ainda assim, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior. É o que resulta da parte final do n.º 2 do artigo 127º do CIRE.

Quanto às questões que são tidas em vista pela lei, elas serão constituídas pelas que – e passamos a citar João Cura Mariano, na obra supra citada, página 319 – “… integraram, como pressupostos lógicos, os fundamentos jurídicos da sentença que julgou ineficaz a declaração resolutiva, verificando-se assim uma extensão objectiva dos limites objectivos do caso julgado. Admite-se como possível que algumas dessas questões, se suscitem também na acção de impugnação pauliana, atenta a proximidade ao nível dos pressupostos que se verifica entre a modalidade da resolução condicionada e a impugnação pauliana, pelo que a extensão consagrada terá aplicabilidade”.

Interpretando o n.º 2 do artigo 127º do CIRE com o sentido e o alcance acabados de apontado apontar, ele daria guarida à pretensão da recorrente se a decisão que declarou inválida a resolução tivesse apreciado a questão ou alguma das questões que foram conhecidas pela sentença proferida nos presentes autos. Esta condição não está verificada. Com efeito, enquanto na presente acção as questões que foram apreciadas estavam relacionadas com os requisitos da impugnação pauliana [saber se os autores eram credores da ré E..., se as transmissões dos veículos envolveram diminuição da garantia patrimonial, se a rés E...e H... agiram de má fé], a decisão que declarou inválida a resolução apreciou apenas se a resolução efectuada pelo administrador fora fundamentada.

Por todo o exposto, conclui-se que a decisão recorrida não viola a autoridade de caso julgado constituído pela decisão proferida na acção de impugnação da resolução.   


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Decisão:

Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.

As custas serão suportadas pela recorrente.


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Emídio Santos (Relator)

Catarina Gonçalves

Maria Domingas Simões