Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
119/23.0T8GRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SÍLVIA PIRES
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
AÇÃO FUNDADA EM RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DE ENTIDADES DE DIREITO PÚBLICO E PRIVADO
COMPETÊNCIA POR CONEXÃO DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Data do Acordão: 10/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 236.º, 1 DA CRP
ARTIGO 4.º, 1, F) E 2), DO ETAF
ARTIGO 64.º, DO CPC
ARTIGO 497.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário:
I - Sendo a Ré União de Freguesias de ..., ... e ... uma pessoa coletiva de direito público, e fundando-se a causa de pedir em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos.
II - O fundamento para o pedido indemnizatório formulário consiste na responsabilidade civil aquiliana de todos os Réus, porque todos eles com a sua atuação/omissão, negligente, terão ocasionado o incêndio causador de prejuízos ao Autor, pelo que respondem solidariamente perante o lesado, pelo que a regra de competência por extensão prevista no art.º 4º, n.º 2, do ETAF é aplicável.
 III- Se este opta por demandar todos os responsáveis concausais na mesma ação, encontrando-se entre os demandados uma pessoa coletiva de direito público, a ação deve ser proposta num Tribunal Administrativo.
Decisão Texto Integral:

Adjuntos:  Luís Carvalho
                 Cristina Neves


                   Autores: AA e outro

                             Réus: BB
    A..., Unipessoal Lda.
    União de Freguesias de ..., ... e ...
    CC

*

Os Autores intentaram a presente ação, formulando o seguinte pedido:
Deve a presente ação ser julgada procedente e consequentemente:
A) os Réus BB, a Ré sociedade A..., Unipessoal Lda, a União de Freguesias de ..., ... e ..., e CC solidariamente condenados a pagar aos demandantes, Autores:
1. a quantia de €56.000 (cinquenta e seis mil euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos, acrescida de juros de mora legais desde a data do incêndio até efetivo e integral pagamento;
2. a quantia de €7.505,14, a título de indemnização pelos danos patrimoniais (subsídios perdidos) e danos morais, acrescida de juros de mora legais desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese apertada:
- Em consequência direta da utilização de uma máquina acoplada a um trator, propriedade da Ré A..., Lda. e manobrado pelo seu funcionário, Réu CC, deflagrou um incêndio numa área florestal que, atingindo prédios propriedade dos Autores, lhes provocou danos que contabilizam em € 63.505,14 e a que acrescem os juros de mora devidos.
- O equipamento referido era utilizado, com conhecimento da Ré União de Freguesias, pelo operador florestal CC, por ordem, direção, no interesse, em nome e por conta da Ré sociedade A..., Unipessoal Lda., da qual é gerente DD.
- A Ré União de Freguesias, por acordo celebrado com BB, empresário em nome individual, atribuiu a este a limpeza/manutenção de vários terrenos particulares inseridos na área geográfica da respetiva União de Freguesias, no âmbito do Projeto “Rede Primária de Faixas de Gestão de Combustível na União das Freguesias ..., ... e ...”,
- Em data indeterminada de maio de 2019, com autorização da Ré União de Freguesias, o Réu BB celebrou com a Ré “A..., Unipessoal Lda”, da qual é gerente DD, um acordo, mediante o qual aquele adjudicou a esta os trabalhos de limpeza de combustíveis da Rede Primária por si contratados com a Ré União de Freguesias.
- Imputam aos Réus a responsabilidade solidária pelos danos que sofreram.

A Ré União das Freguesias contestou, excecionando a incompetência, material do Tribunal, invocando a existência de um pacto atributivo de jurisdição ao Tribunal administrativo ..., resultante do acordado no contrato de prestação de serviços celebrado entre si e o Réu BB.

Os Autores responderam à exceção invocada, alegando que a causa de pedir subjacente à demanda não assenta naquele contrato, mas na responsabilidade civil extracontratual.
Concluíram pela improcedência da exceção.

Foi proferida decisão que julgou verificada a exceção de incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal.

                                                 *

Os Autores interpuseram recurso, formulando as seguintes conclusões:
1. Nos termos da decisão recorrida, “os Autores pretendem ser indemnizados por uma entidade pública, em regime de solidariedade com privados”.
2. Concretamente, considerou a decisão recorrida que, atenta a natureza pública da Ré União de Freguesias e o contexto em que assenta a sua responsabilização, “conforme definida na causa de pedir, estamos claramente perante um litígio pertencente à jurisdição administrativa e fiscal, pois se trata de litígio onde são conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos invocados danos”.
3. Assim, concluiu a decisão recorrida, que estamos no âmbito de uma relação jurídica administrativa e, por isso, da competência material dos tribunais de jurisdição administrativa, nos termos do art.4º, nº1 e 2, do ETAF, donde a incompetência absoluta e absolvição da instância declarada em relação à Ré União de Freguesias e demais demandados particulares.
4. Na presente ação os Autores pediram a condenação solidária dos Réus no pagamento de quantia determinada a título de indemnização civil por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do incêndio que deflagrou numa área florestal, no dia 30.05.2019, no lugar ..., perto da localidade de ..., sito na União de Freguesias de ..., ... e ..., concelho ...
5. Conforme causa de pedir, tal qual configurada pelos Autores, esse incêndio resultou direta e necessariamente de factos ilícitos e do risco individualmente imputados a cada um dos demandados.
6. Concretamente, quanto aos Réus BB, A..., Unipessoal Lda, e CC, os Autores configuraram a causa de pedir nos seguintes termos:
7. Em relação ao Réu BB a omissão do dever de instrução, supervisão, vigilância e controlo, consagrado no art.493º nº1 do Código Civil, sobre os trabalhos levados a cabo pela sociedade Ré A..., que ele subcontratou para o efeito, impendendo sobre si uma presunção de culpa, decorrente do exercício da atividade caracterizada como perigosa pelos Autores; subsidiariamente, o Réu BB, ao subcontratar a Ré A..., atribuindo a esta, por acordo entre ambas, os trabalhos de limpeza e manutenção daquela área florestal, alargou o âmbito da sua atividade e, consequentemente, terá de suportar o respetivo risco, nos termos do art.º 800º, do Código Civil. Quer o subcontrato, quer o auxílio podem incluir-se na previsão do n.º 1 do art. 800.º do Código Civil.
8. O Réu CC é responsável perante terceiros, no caso os Autores, pelos danos que lhe foram ocasionados por facto ilícito extracontratual por si cometido, art.483º ss e art.562º ss do Código Civil, quer em violação do direito de propriedade dos Autores, quer em consequência da violação de normas legais indicadas de prevenção de incêndios.
9. A Ré sociedade A..., Unipessoal Lda, é responsável perante os Autores pelos danos que lhes foram ocasionados por facto ilícito extracontratual cometido pelo seu
gerente, ao ordenar e executar através do seu funcionário, em nome, sob a direção e no interesse daquela (art.483º ss e 562º ss, do Código Civil) a realização da referida atividade nas sobreditas condições.
10. Caso assim não se entenda, a dita Ré sociedade é objetivamente responsável perante os Autores pelos danos que lhe foram ocasionados por facto ilícito extracontratual cometido pelo seu funcionário o Réu CC, durante e por causa do exercício das suas funções, por ordem, direção, nome e no interesse daquela (art.500º, nº1, 2 e 3, e art.562º ss, do Código Civil).
11. A Ré União de Freguesias é responsável perante os Autores pelos danos que lhe foram ocasionados por facto ilícito extracontratual e, subsidiariamente pelo risco, cometido no exercício daquele ato de limpeza da referida área florestal (art.1º, nºs 1 a 3, e 2, art. 3º, e art. 7º, nº3 e 4, art.11º, nº1, e art.16º, nº1, conjugado com o art.2º,da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro), que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas colectivas de direito público.
12. Todos os Réus são solidariamente responsáveis pelo ressarcimento dos danos ocasionados aos Autores, nos termos dos art.s 562º ss do Código Civil, cuja causa de pedir melhor descrita nos factos relatados nos art.s 1º a 52º da petição inicial aqui se dão por inteiramente reproduzidos.
13. A determinação dos tribunais competentes em razão da matéria é aferida em função dos termos em que o autor formula a respetiva pretensão, ou seja, afere-se por referência à relação jurídica controvertida, tal como exposta na petição inicial, atendendo-se ainda à identidade das partes, pretensão formulada e respetivos fundamentos, sendo, no
entanto, nesta fase, indiferente o juízo de prognose acerca da viabilidade ou não da ação, face à sua configuração
14. O art.18º da LOFTJ, em consonância com o art.211º nº1 da C.R.P., determina que as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional serão da competência dos tribunais judiciais.
15. Compete aos tribunais administrativos e fiscais os julgamentos das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais - art. 212º nº 3 da C.R.P. e art.1º nº 1 do ETAF.
16. Ora, em relação à Ré União de Freguesias, o pedido de indemnização baseia-se na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, alegando os Autores que aquela violou normas que tutelam os seus direitos e/ou situadas na esfera de proteção destes, designadamente o seu direito de propriedade sobre o prédio que identificam ao causar com a sua atuação danos.
17. No caso concreto, visto o pedido e causa de pedir individualmente configurada quanto à Ré União de Freguesias, o ato lesivo que lhe vem imputado insere-se no âmbito da gestão privada daquela, nos termos do art.501º, do Código Civil.
18. Contrariamente ao entendimento da decisão recorrida, a competência material pertence nesse caso aos tribunais comuns, uma vez que a relação material controvertida está configurada, na petição inicial, como uma relação jurídica de direito privado, a dirimir por aplicação de normas de direito privado, cuja aplicação a entidades públicas não está afastada por lei.
19. Já em relação aos Réus BB, A..., Unipessoal Lda, e CC Contudo, no caso concreto, visto o pedido e causa de pedir individualmente configurada não é sequer aplicável o regime próprio da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito público, concretamente a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.
20. Quanto a estes Réus também não está em causa a interpretação e aplicação do contrato celebrado entre a Ré União de Freguesias e o Réu BB, nos termos reservados à jurisdição administrativa pela al. l) do n.º 2 do art.º 2º do CPTA.
21. Não são questões relativas à interpretação, validade e execução desse contrato que servem de fundamento (causa de pedir) à pretensão dos Autores, o que exclui a reserva material de competência da jurisdição administrativa, critério acolhido na alínea f) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.
22. A questão central consiste em saber se por força do artº 4º, nº2, do ETAF,
 deveriam também ser considerados competentes os tribunais administrativos, interpretação seguida pela decisão recorrida, para conhecer dos pedidos contra aos Réus BB, A..., Unipessoal Lda, e CC.
23. A questão sub judice tem sido objeto de apreciação jurisprudencial nomeadamente no âmbito de ações propostas contra o Banco Espírito Santo S.A., Banco de Portugal, Novo Banco, Fundo de Resolução e CMVM, em que é pedida a condenação solidária dos réus e cujo objeto, grosso modo, tem a ver com a compra e venda de produtos financeiros nos balcões do Banco Espírito Santo.
24. As considerações que a tal propósito têm sido feitas sobre a competência dos tribunais em razão da matéria valem, com as devidas adaptações, para o caso dos autos, desde logo porque num e noutro caso é pedida a condenação solidária de particulares e de pessoas coletivas de direito público.
25. Com efeito, dispõe o artº 4º, nº2, do ETAF, que pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos
 jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
26. Todavia, por força da forma como os Autores configuram a ação, nos termos do citado artº 4º, nº2, do ETAF, não basta para extensão da competência da jurisdição administrativa, a formulação na petição de um pedido de condenação solidária de todos os réus. E menos relevante é ainda saber se os Réus, agora absolvidos, respondem
 solidariamente entre si pelos danos que terão sido causados aos Autores, pois é já questão de mérito, que irreleva para a apreciação da questão da competência.
27. A aplicação do art.4º, nº2, do ETAF, pressupõe a verificação de uma situação de litisconsórcio necessário passivo, segundo a noção legal dada pelo artº 33º do CPC.
28. Para todos os efeitos, não apenas não se descortina existir norma legal que, expressamente, obrigue à intervenção de todos os réus (logo não é caso de litisconsórcio
 necessário legal), como outrossim não se concebe existir uma situação de litisconsórcio
 obrigatório natural, ou seja, que a natureza da relação jurídica obrigue à intervenção de todos os interessados para que a decisão produza o seu efeito útil normal – cfr. artº 33º, nº2, do Código Processo Civil.
29. Também a letra da lei – do artº 4º, nº2, do ETAF, ao impor a demanda conjunta de entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de
 solidariedade, pressupõe a obrigação do autor/demandante intentar a ação contra todos eles nos tribunais administrativos.
30. Conforme jurisprudência superior dominante supra citada, em sede de litisconsórcio voluntário passivo, como é o caso dos autos, a incompetência em razão da matéria relativamente ao pedido formulado contra a Ré União de Freguesia e a consequente absolvição desta da instância não obsta ao prosseguimento dos autos quantos aos demais réus (entidades particulares) relativamente aos quais o tribunal comum é competente para apreciação do pedido.
31. A causa de pedir e o pedido deduzido contra os Réus BB, A..., Unipessoal Lda, e CC, tal qual configurados pelos Autores, relacionam-se tão só com relações substantivamente jurídico-privadas baseadas nos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, incumbindo a sua apreciação à jurisdição civil.
32. A sua responsabilidade só poderá ser extracontratual, já que nenhum contrato celebraram com os Autores e por violação de normas que tutelam os seus direitos e/ou situadas na esfera de proteção destes.
33. Nem vem alegado pelos Autores, na configuração da causa de pedir, que a Ré União de Freguesias tenha concorrido em conjunto com as demais entidades particulares demandadas para a produção dos mesmos danos, pressuposto previsto no art.4º, nº2, do ETAF para atribuição da reserva material da jurisdição administrativa ali definida.
34. Com efeito, visto o pedido e causa de pedir configurada pelos Autores, os concretos fundamentos da responsabilidade civil acionada são autónomos e distintos em relação a cada um dos Réus, em especial aqueles aqui invocados para demandar o ente público (a Ré União de Freguesias) e os particulares.
35. Em síntese, não sendo aqui devidos quaisquer juízos de prognose sobre o mérito da causa, na presente ação o tribunal a quo é materialmente competente para conhecer do pedido em relação a todos os Réus, incluída a Ré União de Freguesias.
36. De qualquer, caso assim não se entenda, o tribunal a quo sempre seria materialmente competente para conhecer do pedido em relação aos Réus BB, A..., Unipessoal Lda, e CC, devendo a ação ali prosseguir contra eles, atenta a inaplicabilidade do art.4º, nº2, do ETAF.
37. Por tudo o exposto, a decisão recorrida violou o disposto no art.4º, nº1, al.s f), g), h) e nº2, do ETAF.
38. Violou também o princípio da competência jurisdicional residual dos tribunais judiciais previsto no art.211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, art.
64º do Código de Processo Civil e art. 40º, nº 1 da Lei nº 62/2013, de 26 de agosto (Lei de
Organização do Sistema Judiciário), bem assim o art. 212º, n.º 3 da C.R.P., conjugado com o art.1º do ETAF, já que o pedido e causa de pedir invocados pelos Autores em relação àqueles Réus, em litigio, não emergem de relações jurídicas administrativas e fiscais, nem se verifica quanto a eles nenhum dos critérios definidos no art.4º, nº 1, do ETAF.
39. Dito isto, impõe-se revogar a decisão recorrida e ordenar o correspondente prosseguimento dos autos em relação a cada um de todos os Réus.
Concluem pela procedência do recurso.

Não foi apresentada resposta.

                                                 *
1. Objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas cumpre apreciar de o tribunal recorrido é materialmente competente para julgar a presente ação.

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2. O direito aplicável
Os Autores intentaram a presente ação, pedindo que os Réus fossem condenados, solidariamente, a indemnizá-los pelos prejuízos que sofreram em consequência de um incêndio num prédio de que são proprietários, imputando aos Réus a responsabilidade pelos prejuízos que resultaram da eclosão do incêndio.
A competência em razão da matéria afere-se pelos termos do litígio tal como é apresentado pelos demandantes, aí relevando a natureza da relação jurídica controvertida que integra a causa de pedir.
Um dos Réus é a União de Freguesias de ..., ... e ....
Relativamente a esta Ré, os Autores fundamentam a sua responsabilidade, na seguinte alegação:
48 . A Ré União de Freguesias é responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos que lhe foram ocasionados por facto ilícito extracontratual cometido no exercício da função administrativa de gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída, inclusivamente pelo exercício anormal daquelas funções, já que atentas as circunstâncias e padrões médios de resultado lhe era razoavelmente exigível evitar os danos produzidos ao Autor (art.1º, nºs 1 a 3, e 2, art. 3º, e art. 7º, nº3 e 4, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que aprovou o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e pessoas coletivas de direito público
49. Caso assim não se entenda, a Ré União de Freguesias é objetivamente responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos que lhe foram ocasionados e decorrentes da concreta atividade administrativa especialmente perigosa, realizada na consecução da gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída (art.11º, nº1, da cit. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro).
50. Caso assim não se entenda, a Ré União de Freguesias é objetivamente responsável perante terceiros, no caso o Autor, pelos danos especiais e anormais que lhe foram ocasionados na consecução do interesse público da gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída (art.16º, nº1, conjugado com o art.2º, da cit. Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro).
Efetivamente a Freguesia é, enquanto autarquia local - art.º 236º, n.º 1, da Constituição -, uma pessoa coletiva de direito público, dispondo o art.º 4º, n.º 1, f), do ETAF, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa a apreciação de litígios que tenham por objeto a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, sendo irrelevante se esse ato foi praticado ou não no exercício da gestão pública, sendo certo que os Autores até alegaram na petição inicial que o ato danoso desta Ré foi cometido no exercício da função administrativa de gestão da rede primária de combustíveis que lhe estava atribuída, inclusivamente pelo exercício anormal daquelas funções.
Como consta do Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 10 de Março de 2011 [1], o novo ETAF (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro) unificou a jurisdição no tocante à responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, desinteressando-se da questão de saber se o direito de indemnização provém de acto de gestão pública ou de gestão privada, e, do mesmo modo, integrou no âmbito da jurisdição administrativa a responsabilidade por danos resultantes do exercício da função política e legislativa, bem como a resultante do deficiente funcionamento da administração da justiça, dissipando todas as dúvidas que pudessem colocar-se, no futuro, quanto à fronteira entre a jurisdição dos tribunais administrativos e dos tribunais comuns
No mesmo sentido, se pronunciou o Acórdão do STJ, de 1 de Março de 2018 [2], ao dizer que com a Reforma do Contencioso Administrativo, operada pela Lei n.º 13/2002, de 19.02, alterou-se, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, o critério determinante da competência material entre jurisdição comum e jurisdição administrativa, que deixou de assentar na clássica distinção entre atos de gestão pública e atos de gestão privada, passando a jurisdição administrativa a abranger todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas coletivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado.
Ou ainda, mais recentemente, o Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 5 de Maio de 2021 [3], reafirmando que o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, veio trazer para o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal todas as acções de responsabilidade civil extra-contratual instauradas contra entidades públicas, incluindo a responsabilidade resultante do exercício da função jurisdicional, tornando-se desnecessário apurar se o ato indicado como fonte obrigação de indemnizar, como tal indicado pelo autor, deve ser considerado um ato de gestão pública ou de gestão privada.
Assim, sendo a Ré União de Freguesias de ..., ... e ... uma pessoa coletiva de direito público, e fundando-se a causa de pedir em responsabilidade civil extracontratual, a competência para conhecer do presente litígio cabe aos Tribunais Administrativos, improcedendo este fundamento do recurso.
Já os restantes Réus, solidariamente demandados, são pessoas coletivas e singulares de direito privado.
Apesar do apuramento da responsabilidade civil extracontratual dos particulares competir, em regra, aos tribunais comuns, atenta a competência residual destes tribunais - art.º 64º do C. P. Civil-, uma vez que eles foram demandados solidariamente com uma pessoa coletiva de direito público na mesma ação, há que ponderar a aplicação do disposto no art.º 4º, n.º 2, do ETAF - pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.
Note-se que não basta, que tenha sido pedido que o tribunal condene solidariamente pessoas coletivas de direito público e particulares, para que a competência para a apreciação dos pedidos deduzidos contra os particulares também seja atribuída aos Tribunais administrativos, sendo necessário que tenham sido alegados os factos de onde derive que as diferentes obrigações de indemnizar tenham entre si uma relação de solidariedade, a qual, em caso de procedência, fundamente a condenação solidária dos demandados [4].
Com a presente ação os Autores pretendem que os Réus sejam condenados a indemniza-los pelos prejuízos que sofreram com a destruição duma plantação de cedros provocada por um incêndio.
Para tanto alegam que no dia 30.05.2019, pelas 15.30 horas, deflagrou um incêndio numa área florestal, sita no lugar ..., perto da localidade de ..., sito na União de Freguesias de ..., ... e ..., concelho ..., o qual foi provocado em consequência direta e necessário da utilização de uma capinadeira de corta-mato, acoplada ao trator agrícola de matrícula ..-NB- .., tripulado por CC, pertencente à Ré sociedade A..., Unipessoal, Lda.
Continuando a seguir a versão dos Autores, a União de Freguesias, por acordo celebrado com BB, atribuiu a este a limpeza/manutenção de vários terrenos particulares inseridos na área geográfica da respetiva União de Freguesias, no âmbito do Projeto “Rede Primária de Faixas de Gestão de Combustível na União das Freguesias ..., ... e ...”, o qual ainda em data indeterminada de maio de 2019, com autorização da Ré União de Freguesias, o Réu BB, por sua vez, sem que tenha dado quaisquer instruções, supervisão, vigilância e controlo, para evitar a criação de incêndios florestais, celebrou com a Ré “A..., Unipessoal Lda”, mediante o qual aquele adjudicou a esta os trabalhos de limpeza de combustíveis da Rede Primária por si contratados com a Ré União de Freguesias.
Mais alegaram os Autores que a Ré sociedade A..., através do seu funcionário CC, procedia nos momentos que antecederam a deflagração do incêndio o serviço de desmatação, limpeza, proteção e gestão de combustíveis naquela área, a pedido da demandada União de Freguesia, sabendo cada um dos três do tempo quente e seco que se faziam sentir na ocasião, com risco muito elevado de incendio, e que a área de gestão a intervencionar era composta por estratos combustíveis fortemente inflamáveis (mato, silvas, giestas, bracejos e pasto secos) e que a utilização de equipamentos metálicos motorizados, nas sobreditas condições, era suscetível de causar incandescência e incêndio florestal e, por isso, proibido, o que o Presidente da Junta da Ré União de Freguesias, o gerente da Ré sociedade “A..., Unipessoal Lda” e o Réu CC admitiram como possível, mas ao que foram indiferentes.
Da exposição factual dos Autores resulta que o fundamento para o pedido indemnizatório formulário consiste na responsabilidade civil aquiliana de todos os Réus, porque todos eles com a sua atuação/omissão, negligente, terão ocasionado o incêndio causador de prejuízos ao Autor.
O art.º 497º, n.º 1, do C.  Civil, inserido no capítulo dedicado à responsabilidade civil extracontratual, dispõe que se forem várias pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade, pelo que, atenta a causa de pedir configurada pelos Autores, verifica-se uma relação de solidariedade entre os Réus, pelo que a regra de competência por extensão prevista no art.º 4º, n.º 2, do ETAF é aplicável.
Os Autores argumentam que o referido preceito apenas se aplica às situações de litisconsórcio necessário e não nas situações de litisconsórcio voluntário, como a que ocorre neste processo.
A tese de que a competência por extensão só se aplica nos casos de litisconsórcio necessário tem apoio nalguma jurisprudência [5], que vê na referência aos litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares, uma referência restritiva aos casos de litisconsórcio necessário.
No entanto, o termo devam, não tem aqui o significado duma obrigatoriedade de demanda plural, apenas se reportando a uma opção do demandante.
Se este opta por demandar todos os responsáveis concausais na mesma ação, encontrando-se entre os demandados uma pessoa coletiva de direito público, a ação deve ser proposta num Tribunal Administrativo.
Como se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.05.2018, aquela interpretação restritiva do art.º 4º, n.º 2, do E.T.A.F., além de reduzir drasticamente o efeito útil da norma, é contrariada pelos termos do preceito, na medida em que a respetiva previsão, ao apontar expressamente situações de solidariedade, indica situações que constituem casos clássicos de litisconsórcio voluntário. O imperativo contido no verbo dever bem pode residir, em certos casos, nomeadamente de litisconsórcio voluntário, na vontade do lesado demandante. Temos, pois, que a exclusividade da competência dos tribunais administrativos para julgar ações que tenham por objeto questões relativas à responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas de direito público arrasta, por força do n.º 2 do art.º 4º do ETAF, para os tribunais administrativos a competência para julgar a concorrente responsabilidade civil de particulares.
Aliás, só assim se compreende que o Tribunal de Conflitos quando aprecia aplicabilidade do art.º 4º, n.º 2, do ETAF, apenas se preocupa que a responsabilidade entre os diversos demandados seja solidária, nunca tendo exigido que se estivesse perante uma situação de litisconsórcio necessário.
Assim sendo, revela-se correta a decisão recorrida que julgou o tribunal recorrido incompetente em razão da matéria.
Por esta razão deve o recurso interposto ser julgado improcedente.

                                                 *

Decisão
Julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

                                                 *
Custas do recurso pelos Autores.

                                                 *
                                                                                        10.10.2023





[1]  Relatado por José António de Freitas Carvalho e acessível em www.dgsi.pt .

[2]
Relatado por Rosa Tching, acessível em www.dgsi.pt .

[3]
Relatado por Maria dos Prazeres Beleza, acessível em www.dgsi.pt .
[4] Acórdãos do Tribunal dos Conflitos acessíveis em  www.dgsi.pt:

de 17.5.2018, relatado por José Veloso,
de 13.7.2022, relatado por Maria dos Prazeres Beleza, e
de 22.03.2023, relatado por Teresa de Sousa.

[5]  Acórdãos do T. R. G, acessíveis em www.dgsi.pt :
de 29.6.2017 relatado por Conceição Bucho e
de 16.11.2017, relatado por Maria João Matos.