Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
6505/19.2T8CBR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
INSOLVÊNCIA CULPOSA
DEVER DE INFORMAÇÃO
Data do Acordão: 10/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - JUÍZO COMÉRCIO - JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.24, 83, 186 Nº2 D), 238 E), G) CIRE, 7, 8 CPC
Sumário: I – Uma doação efectuada pelo devedor aos filhos, durante os três anos anteriores ao início do processo de insolvência, corresponde a um acto de disposição de um bem do devedor em proveito de terceiros que se insere no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE e que, como tal, determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a sua actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Nessas circunstâncias, a referida doação implicará também o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante em conformidade com o disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do citado diploma.

II – A violação dos deveres de informação e colaboração que é susceptível de determinar – ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art. 238.º do CIRE – o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo não ocorre apenas quando o devedor viola a obrigação expressamente prevista no art. 83º do citado diploma (não prestando a informação ou colaboração que lhe seja solicitada pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal); a violação daqueles deveres também ocorre quando o devedor, sem justificação, não junte algum dos elementos (de carácter informativo) que são exigidos pelo art. 24.º ou quando alegue factos referentes a essas matérias que não sejam verdadeiros, podendo ainda concluir-se pela violação desses deveres quando, de um modo geral, o devedor omita a alegação ou altere a verdade de factos relevantes com desrespeito pelos deveres de cooperação e boa-fé processual previstos nos arts. 7.º e 8.º do CPC.

III – Nessas circunstâncias, a falta de alegação pelo devedor, no requerimento inicial, de uma doação que havia celebrado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência configura uma violação dos citados deveres (por ser um facto relevante para o processo de insolvência) e essa omissão, desde que dolosa ou gravemente negligente, determina o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.

IV – Para que a falta de alegação desse facto, no requerimento inicial, possa ser configurada como dolosa ou gravemente negligente é necessário que o devedor tivesse a consciência do dever de alegar esse facto ou que estivesse em condições de tomar essa consciência se tivesse adoptado os cuidados elementares que só uma pessoa particularmente descuidada deixaria de observar.

V – Não resultando provado que o devedor tivesse consciência desse dever; estando em causa um facto cuja necessidade de alegação no requerimento inicial não era expressamente imposta pela lei (não estava em causa um facto que se reportasse aos elementos que, em conformidade com o disposto no art. 24.º, tinham que instruir a petição inicial e não existia qualquer outra disposição legal que impusesse de modo expresso o dever de o alegar no requerimento inicial) e não se podendo ter como manifestamente infundada ou irrazoável determinada leitura/interpretação da lei no sentido de não existir o dever de alegação daquele facto no requerimento inicial, não há bases para concluir que a violação daqueles deveres é imputável a dolo ou negligência grave do devedor..

Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

I (…) identificando-se como residente (…) Coimbra, veio apresentar-se à insolvência e requerer a exoneração do passivo restante.

A insolvência foi declarada por sentença proferida em 03/12/2019.

O Sr. Administrador apresentou o seu relatório, dando parecer favorável à admissão da exoneração do passivo por não ter razões objectivas que o levassem a concluir pela verificação de qualquer circunstancialismo previsto no art. 238.º do CIRE.

O Banco (…), S.A. e o Banco (…), S.A. vieram manifestar oposição à concessão da exoneração do passivo restante, sustentando que tal pedido deve ser liminarmente indeferido de acordo com o disposto no art. 238º, n.º 1, d), sendo certo que a Insolvente não se apresentou à insolvência no prazo aí previsto (sendo certo que os seus incumprimentos remontam há mais de três anos), o que consubstancia prejuízo para os credores dado o avolumar do passivo.

Na sequência desses factos, foi proferida decisão que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante (não com fundamento na alínea d) que era invocada pelos referidos credores, mas sim com fundamento nas alíneas e) e g) do n.º 1 do art. 238.º).

Inconformada com tal decisão, a Insolvente veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…)

Não foram apresentadas contra-alegações.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

● Saber se há fundamento para alterar a decisão da matéria de facto nos termos pretendidos pela Apelante;

● Saber se há (ou não) fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante nos termos das alíneas e) e g) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE, o que, no caso, se reconduz a saber: se há elementos suficientes no processo que indiciem com toda a probabilidade que, em face da doação que efectuou aos filhos, houve culpa da Apelante (devedora) na criação ou agravamento da sua situação de insolvência e se, ao omitir, no requerimento inicial, a alegação da referida doação, a Apelante violou, com dolo ou negligência grave, os deveres de informação e colaboração a que estava submetida.


/////

III.

Matéria de facto

Uma vez que a Apelante vem impugnar os pontos 3 e 13 da matéria de facto – sustentando que foram incorrectamente julgados –, começamos por analisar esta questão que tem prioridade lógica sobre as demais que são suscitadas no recurso.

No ponto 3, julgou-se provado que “A Requerente vive num anexo da casa do seu filho mais velho (…) sem pagar qualquer quantia, sita (…)”.

Diz a Apelante que esse facto não poderia ser julgado provado porquanto não reflecte a realidade, sendo certo que – conforme alegou no requerimento inicial – o anexo onde vive não pertence à moradia sita (…) (que correspondia à antiga casa de morada de família) mas sim à moradia que é a residência do filho e que se situa (…) Coimbra, conforme resulta de documentos juntos com a petição inicial (comunicação ao Instituto de Segurança Social e contrato de formação celebrado com o Instituto de Emprego e Formação Profissional).

Pensamos que tem razão.

Com efeito e como resulta da decisão recorrida, a decisão de julgar provado o referido facto assentou apenas no requerimento inicial (ou seja, tratava-se de um facto alegado nesse requerimento e que não foi impugnado).

Estava em causa o facto alegado no art. 10.º onde a Requerente dizia que, actualmente “…reside na morada acima indicada, num anexo da referida moradia, de favor do seu filho mais velho…”. Porque a Requerente havia aludido – no art. 3.º - à habitação sita em Rio Tinto, na Rua (…) ter-se-á entendido que era a esta moradia que a Apelante se referia quando aludiu ao anexo onde residia.

Pensamos, no entanto, que a Requerente não se referia a essa moradia mas sim à morada que havia indicado como sendo a sua residência ((…). Na verdade, foi essa a morada que indicou como sendo a sua residência e, quando se referiu à moradia de Rio Tinto, alegou (art. 3.º) que era a residência da família e que aí tinha residido até ao ano de 2016. Foi, aliás, nessa morada (em Coimbra) que lhe foi fixada residência (cfr. sentença que declarou a insolvência) e foi para essa morada que foi enviada – e aí recepcionada – a comunicação do Sr. Administrador com vista à resolução do contrato de doação em benefício da massa insolvente.

Assim, altera-se o ponto 3 da matéria de facto que passará a ter a seguinte redacção:

A Requerente vive num anexo da casa do seu filho mais velho (…) sem pagar qualquer quantia, sita (…)  Coimbra”.

No ponto 13, julgou-se provado o seguinte:

A Requerente sabia que tinha praticado o acto descrito em 10. e omitiu-o no requerimento de apresentação à insolvência, porquanto sabia que ao praticar o facto descrito em 10. prejudicava os credores mencionados em 8., pois que dispunha do bem imóvel de modo gratuito, com a intenção concretizada de o subtrair à execução dos credores com créditos comuns e não garantidos por aquele, bem como sabia que o montante das suas dívidas àquela data eram de valor muito superior ao prédio em causa, diminuindo consideravelmente o seu activo, e que tal facto assumia especial importância para os autos, mas ainda assim, deliberadamente, optou por não o mencionar”.

A Apelante insurge-se contra a decisão que julgou provado esse facto dizendo que não mencionou a doação no requerimento de apresentação à insolvência porque, das consultas realizadas nas Conservatórias, o imóvel não surge associado à sua pessoa e porque não existiu qualquer intenção da sua parte de prejudicar os seus credores. Fazendo alusão ao seu estado depressivo desde a detenção do seu ex-marido e aos internamentos a que foi sujeita, diz que não celebrou a escritura de doação em consciência e que apenas se limitou a assinar onde lhe foi pedido numa fase em que estava altamente medicada e que tal negócio não foi celebrado com o intuito de subtrair o imóvel à execução dos credores, sendo que o que se pretendia era apenas obstar à sua venda judicial no âmbito do processo penal de que o seu ex-marido foi alvo para pagamento do pedido de indemnização.

Ora bem.

Pensamos ser indiscutível que a Requerente sabia que tinha doado o prédio aos seus filhos. Na verdade, a Requerente esteve presencialmente na escritura onde declarou – por si e na qualidade de gerente de negócios do seu ex-marido – que doava o referido prédio aos filhos e não nos parece merecer qualquer credibilidade a sua afirmação de que não teve plena consciência do acto que estava a celebrar e que se limitou a assinar onde lhe foi pedido, sendo certo que não há notícia de que tenha vindo atacar, de algum modo, a validade do acto como seria natural que acontecesse se tivesse existido vício relevante da sua vontade.

Também nos parece evidente que a Requerente sabia – e não podia deixar de saber – que o negócio em questão prejudicava os seus credores, já que o negócio implicava a saída do imóvel do seu património. E a Apelante acaba por reconhecer esse facto quando afirma que o que se pretendia – com a doação – era obstar à venda judicial no âmbito do processo penal de que o seu ex-marido foi alvo para pagamento do pedido de indemnização. Ora, se sabia que, com tal negócio, subtraía o imóvel à acção dos credores do seu ex-marido com referência àquelas indemnizações, também sabia que, pela mesmo lógica, estava a subtraí-lo à acção dos seus credores.

Entendemos, portanto, que há elementos bastantes para concluir:

- Que a Requerente sabia que tinha praticado o acto referido (a doação);

- Que a Requerente sabia que tal acto prejudicava os seus credores;

- Que, no requerimento inicial, a Requerente omitiu qualquer referência a esse acto.

No mais, pensamos não haver fundamento para que conste da matéria de facto, seja porque estão em causa juízos ou afirmações conclusivos ou valorativos, seja porque não nos parece que existam bases reais para tais afirmações/conclusões e, designadamente, para afirmar que a Requerente tivesse consciência de uma qualquer obrigação de fazer alusão àquele negócio (apesar de o imóvel já não lhe pertencer) e que tivesse omitido esse facto de forma consciente e deliberada.

Assim, o ponto 13 passará a ter a seguinte redacção:

A Requerente, no requerimento inicial, omitiu qualquer referência ao acto referido em 10 (a doação), não obstante saber que o havia praticado e que o mesmo prejudicava os seus credores.

Assim, a matéria de facto a considerar (a matéria considerada assente em 1.ª instância, com as alterações agora efectuadas) é a seguinte:

1. A Requerente está divorciada, encontrando-se o ex-marido a cumprir pena de prisão, aplicada após a medida de coacção de prisão preventiva, desde o ano de 2016.

2. Desde a data do divórcio da Requerente, em 29/09/2017, que apesar de a Requerente ter duas quotas em duas sociedades Ervanárias, a mesma apresentou dificuldades económicas e psicológicas, tendo beneficiado do rendimento social de inserção entre 21 de Novembro de 2018 e 30 de Setembro de 2019, encontrando-se, actualmente, desempregada, não auferindo qualquer subsídio social.

3. A Requerente vive num anexo da casa do seu filho mais velho (…) sem pagar qualquer quantia, sita (…), Coimbra

4. A Requerente tem um filho menor, que reside consigo e frequenta o 11.º ano de escolaridade.

5. A Requerente é auxiliada pelos dois filhos mais velhos para satisfazer as necessidades básicas mensais e, ainda, o acompanhamento médico e medicação necessária.

6. Do requerimento de concessão do passivo restante consta que: «(...) Assim a Requerente preenche todos os pressupostos para que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante».

7. Foram reclamados créditos sobre a insolvente no montante global de €223.877,99 (duzentos e vinte e três mil oitocentos e setenta e sete euros e noventa e nove cêntimos).

8. A Requerente deixou de cumprir as suas obrigações para com a Reclamante:

- E (…) Act desde o dia 21/03/2017, estando em dívida, à data, o capital de €10.531,58 (dez mil quinhentos e trinta e um euros e cinquenta e oito cêntimos);

- M (…), S.A. desde o dia 13/07/2017, quanto a um dos contrato celebrado, estando em dívida, à data, o capital de €39.445,66; e do dia 16/05/2018 quanto a outro contrato, estando em dívida, à data o capital de €15.467,92;

- Banco (…) S.A. - Sociedade Aberta desde o dia 15/09/2017, estando em dívida à data, o capital de €77.343,78;

- Banco (…), S.A. - Sociedade Aberta, quanto ao contrato de mútuo desde o dia 25/10/2017, estando em dívida, à data, o capital de €21.648,13; quanto ao vencimento de uma livrança, desde o dia 10/10/2018, estando em dívida, à data, o capital de €21.571,36; e quanto ao saldo negativo de uma conta bancária, desde o dia 01/10/2019, estando em dívida, à data, o capital de €2.823,06.

9. A Requerente não liquidou o crédito exigido pelo Reclamante Instituto da Segurança Social, I.P. no ano de 2019.

10. Da escritura pública de «DOAÇÃO, consta que «No dia sete de Março de dois mil e dezoito (. . .), compareceram como outorgantes: PRIMEIRA: I (…) (…) (...) que outorga por si e na qualidade de gerente de negócios de: E (…)

SEGUNDO: J (…) (….) PELA OUTORCANTE FOI DITO QUE: Ela e o seu gestido são donos e legítimos possuidores do seguinte prédio urbano: Prédio Urbano designado por Lote 3, (...) situada na Rua (…), na freguesia de Rio Tinto, concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o número ...., inscrito na matriz respectiva sob o artigo ..... (...) Que o imóvel está registado a favor do outorgante e do seu gestido pela AP. Vinte e três de 02/03/2000. Que sobre este imóvel incidem duns hipotecas uma a favor do Banco (…), SA. pela Ap. Vinte e quatro de 02/03/2000, e Outra a favor do Banco (…)., pela ap. Oitenta e oito de 25/02/2003 E encontra-se registado um arresto a favor do Ministério Público pela AP. Mil quinhentos e oitenta e quatro de 27/03/2017. Que por este acto a primeira outorgante por si e em nome do seu gestido, DOAM em comum e partes iguais, por conta das respectivas quotas disponíveis, o prédio acima identificado aos seus três filhos: J (…) o aqui segundo outorgante e aos menores I (…) (…) e R (…) (....). Declara o segundo outorgante que aceita esta doação nos termos exarados». - documento de fls. 44 e segs. para cujos efeitos aqui se dá por integralmente reproduzido.

11. Da caderneta predial urbana do prédio urbano com artigo matricial .... sito (…)Rio Tinto consta «Valor patrimonial actual (CIMI): €210 602,35».

12. O Administrador de Insolvência (…) enviou cartas registadas com aviso de recepção a I (…), I (…), J (…) e E (…)omunicando que relativamente ao acto descrito em 10 «De acordo com o estabelecido nos artigos 120º nº3, 121º n.º1 b) e 123º n.º1 todos dos CIRE, e por tal acto se mostrar prejudicial para a Massa Insolvente uma vez que retira da mesma o bem imóvel de maior valor com claro prejuízo para os credores, venho pelo presente meio resolver o referido contrato de doação (....).»

13. A Requerente, no requerimento inicial, omitiu qualquer referência ao acto referido em 10 (a doação), não obstante saber que o havia praticado e que o mesmo prejudicava os seus credores.

14. A Requerente não tem antecedentes criminais.


/////

IV.

Fixada a matéria de facto, analisemos as demais questões.

A decisão recorrida indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante ao abrigo do disposto nas alíneas e) e g) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.

Aí se dispõe que:

O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

(…)

e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;

(…)

g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.

Significa isso, portanto, que, na perspectiva da decisão recorrida, existem elementos que indiciam com toda a probabilidade a existência de culpa da Insolvente na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º e existem elementos para concluir que a Insolvente violou, com dolo ou culpa grave, os deveres a que se reporta a citada alínea g).

Dada a discordância manifestada pela Apelante, importa, então, saber se há (ou não) fundamento para indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento nas citadas alíneas e) e g) cuja previsão a decisão recorrida considerou verificada.

A decisão recorrida considerou verificada a situação prevista na alínea e), argumentando que já existiam no processo elementos bastantes que indiciavam com toda a probabilidade a existência de culpa da Insolvente na criação e agravamento da sua situação de insolvência, atendendo à doação de um imóvel que a Apelante havia efectuado num momento em que já existiam créditos em incumprimento e outros em vias disso e que, como tal, agravou a sua situação de insolvência.

Em desacordo com a decisão, a Apelante, efectuando diversas considerações/comentários a propósito de diversas afirmações constantes da decisão e fazendo alusão ao seu débil estado psíquico, aos seus problemas de saúde e à sua situação familiar, sustenta, no essencial, que a verificação da situação descrita exige a comprovação da existência de dolo ou culpa grave, o que, no caso, não se pode ter como demonstrado (alega, para tanto, que, à data, estava fortemente perturbada e medicada, razão pela qual não tinha discernimento bastante para compreender o negócio que estava a efectuar e para perceber que a sua celebração tinha como fim furtar-se ao cumprimento dos créditos e que a celebração de tal negócio não teve como fim a fuga aos credores comuns, tendo sido realizado com o único propósito de assegurar que a Recorrente e os filhos não perdiam todos os seus bens, por força dos factos imputados e entretanto dados como provados, ao seu ex-marido e pai).

Analisemos, então, essa matéria.

O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante fundamento na citada alínea e) pressupõe a efectiva existência de elementos no processo que permitam afirmar que, com toda a probabilidade, a insolvência será de qualificar como culposa, nos termos do art. 186.º. Não basta, para o efeito, que existam indícios que apontem para esse facto; esses indícios têm que ser fortes ao ponto de permitirem concluir, com toda a probabilidade ou com um elevado grau de certeza, pela efectiva verificação dessa situação.

Nessas circunstâncias, a questão de saber se existe fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante remete-nos para o disposto no citado art. 186.º e para a questão de saber se existem (ou não) elementos no processo com base nos quais se possa concluir, à luz do disposto nesse preceito legal, que, com toda a probabilidade, a insolvência será de qualificar como culposa.

Segundo o disposto no n.º 1 da norma citada, “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”. Exige-se, portanto: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Contudo, além de enunciar – no n.º 3 da norma citada – um conjunto de situações em que se presume a existência de culpa grave, o legislador enunciou – no n.º 2 – um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor ou dos seus administradores e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência[1]. Como refere Luís Manuel Menezes Leitão[2], “verificados alguns destes factos, o juiz terá assim que decidir necessariamente no sentido da qualificação da insolvência como culposa. A lei institui consequentemente no art. 186º, nº 2, uma presunção iuris et de iure, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”.

Significa isso, portanto, que, caso esteja demonstrada nos autos a existência de uma conduta do devedor que se integre nalguma das situações elencadas no n.º 2, o pedido de exoneração do passivo deve ser liminarmente indeferido independentemente da verificação de qualquer outro requisito, uma vez que tal conduta é suficiente, só por si, para determinar a qualificação da insolvência culposa.

E pensamos ser essa, na verdade, a situação dos autos.

Conforme referimos, a conduta da devedora (Apelante) que está em causa nos autos e que fundamentou a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo reconduz-se ao facto de ter doado um imóvel aos seus filhos em Março de 2018.

O acto em questão insere-se no período temporal a que alude o citado art. 186.º e enquadra-se no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do citado art. 186.º onde se dispõe que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: “Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”. Refira-se que, apesar de a norma em questão se reportar a devedores que não sejam pessoas singulares e a condutas dos respectivos administradores, ela é aplicável, com as necessárias adaptações e por força do disposto no n.º 4, à actuação de pessoa singular insolvente, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.

Com efeito, sendo indiscutível que o acto em questão foi um acto de disposição do bem (imóvel) sobre o qual incidiu – sendo certo que determinava a transferência do respectivo direito de propriedade e, consequentemente, a sua saída da esfera jurídica e patrimonial da Apelante – é certo, por outro lado, que, sendo um acto gratuito (sem qualquer contrapartida ou benefício para a Apelante), foi praticado em benefício exclusivo de terceiros (no caso, os donatários/filhos da Apelante).

Está em causa, portanto, um acto de disposição de um bem da devedora em proveito de terceiros que se insere no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do citado art. 186.º e que, na sequência do que dissemos supra, determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a sua actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Nessas circunstâncias, impõe-se concluir que existem efectivamente no processo elementos bastantes que indiciam, com toda a probabilidade, a existência de culpa da devedora (a Apelante) na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º, pelo que, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º, o pedido de exoneração do passivo tinha que ser – como foi – liminarmente indeferido.

A decisão recorrida também indeferiu o pedido de exoneração do passivo com fundamento no disposto na alínea g) do n.º 1 do citado art. 238.º, considerando, portanto, que a Apelante havia violado, com dolo ou culpa grave, os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ela resultavam do CIRE, no decurso do processo de insolvência.

Para concluir pela verificação da referida situação, a decisão recorrida, citando o Acórdão da Relação de Guimarães de 11 de Junho de 2015[3], considerou, em resumo:

- Que, no requerimento inicial, a Apelante alegou já não ser proprietária do imóvel que constituía a anterior casa de família, omitindo, contudo, qualquer referência à doação desse imóvel que havia realizado;

- Que tal informação deveria ter sido prestada pela Apelante, seja por força do disposto no art. 83.º do CIRE, seja por força dos deveres gerais de cooperação e boa-fé consagrados nos arts. 7.º e 8.º do CPC;

- Que, ao omitir essa informação, a Apelante actuou com dolo ou, pelo menos, com culpa grave, uma vez que sabia e tinha consciência da relevância desse negócio que havia diminuído substancialmente o seu património.

A Apelante argumenta, por seu turno:

- Que forneceu à patrona nomeada a informação que pensava ser verdadeira relativamente aos seus bens;

- Que, dado o seu alheamento relativamente aos seus bens e à sua gestão, pensava que a casa de morada de família havia sido arrestada ao abrigo do processo do ex-marido;

- Que foi ela própria quem alertou para este bem – no requerimento inicial – o que denota a sua boa-fé, contrariamente ao juízo vertido no despacho recorrido.

Vejamos então.

Conforme resulta do disposto na alínea g) do nº 1 do citado art. 238.º, aquilo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante é a violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração que recaem sobre o devedor no decurso do processo de insolvência e que resultam do CIRE.

Tais deveres encontram-se previstos no art. 83.º do CIRE em cujo n.º 1 se dispõe:

O devedor insolvente fica obrigado a:

a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;

b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário;

c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções”.

Conforme se depreende da integração da norma citada no título que regula os efeitos da declaração de insolvência, estão em causa deveres que apenas recaem sobre o devedor que já foi declarado insolvente, o que nos permite retirar uma primeira conclusão: à data da apresentação do requerimento inicial – por via do qual se vem apresentar à insolvência – o devedor ainda não está sujeito aos referidos deveres, nos termos em que eles se encontram previstos na norma citada. Assim, em princípio, não poderá afirmar-se que o devedor viola os deveres previstos na citada disposição legal – para o efeito de ser liminarmente indeferido o pedido de exoneração do passivo restante – por não ter alegado, no requerimento inicial, um qualquer facto (no caso, a doação).

Por outro lado (deixando de lado o dever de apresentação que, manifestamente, não está em causa nos autos), os referidos deveres de informação e colaboração pressupõem, segundo a letra da lei, que tal informação ou colaboração seja pedida pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal e, portanto, o devedor violará os referidos deveres se não prestar a informação ou colaboração que lhe tenha sido solicitada ou se prestar uma informação (ou colaboração) falsa, deficiente ou insuficiente. Assim, no caso dos autos, a devedora violaria tais deveres se, por exemplo, lhe tivesse sido solicitada informação acerca dos negócios que tivesse celebrado nos anos anteriores ou se lhe tivesse sido solicitada informação acerca do destino dado ao imóvel em causa e não tivesse prestado tal informação ou tivesse omitido a existência da doação. Não nos parece, contudo, que possa afirmar-se ter violado os deveres previstos no citado art. 83.º pela mera circunstância de não ter feito alusão a tal doação no requerimento inicial, quando é certo que tal informação não lhe havia sido solicitada sendo certo que a insolvência ainda não havia declarada.

É certo, no entanto, que o citado art. 83.º não é a única disposição do CIRE que impõe ao devedor específicos deveres de informação e colaboração.

Com efeito, o art. 24.º impõe ao devedor, quando seja ele o requerente da insolvência, o dever de juntar determinados documentos com a petição inicial. E, conforme se considerou no Acórdão desta Relação de 30/03/2020[4] (subscrito pela ora Relatora e 1.ª Ajunta, na qualidade de 1.ª e 2.ª Adjuntas, respectivamente), esse dever tem carácter informativo, englobando-se, por isso, nos deveres de informação a que o devedor está sujeito por força das disposições do CIRE. Na verdade, estão em causa documentos que assumem especial relevância para o processo de insolvência e que, como tal, foram exigidos, desde logo, pelo legislador, na certeza de que, se tal não acontecesse, eles seriam, muito provavelmente, solicitados pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal.

Em consequência, a falta injustificada desses documentos ou a apresentação de documentos que contenham informação falsa ou insuficiente também poderá ser configurada como violação do dever de informação para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo. Da mesma forma, não poderá deixar de corresponder a uma violação dos referidos deveres a alegação de factos que não sejam verdadeiros e que se reportem a matéria que, nos termos da lei, deve ser objecto da informação a prestar pelo devedor por via da junção dos referidos documentos

É certo, no entanto, que o facto cuja omissão se considerou – na decisão recorrida – corresponder a violação do dever de informação (a referida doação) não se reconduzia a nenhum dos elementos cuja junção era exigida pelo citado art. 24.º; tal disposição impõe ao devedor o ónus de juntar – com o requerimento inicial – a relação de bens de que seja titular ou que detenha em regime de arrendamento, aluguer ou locação financeira ou venda com reserva de propriedade, mas não lhe impõe o dever de relacionar os bens de que tivesse sido titular nos anos anteriores e de especificar os negócios por via dos quais deixou de ser o respectivo titular.

Dever-se-á, no entanto, considerar que, apesar disso, a Apelante tinha o dever de alegar esse facto no requerimento inicial, sob pena de violar os seus deveres de informação e colaboração?

Vejamos.

Abstraindo dos documentos que o devem acompanhar (que terão efectivamente um conteúdo e uma função informativa), o requerimento inicial, propriamente dito, não tem como finalidade dar cumprimento a qualquer dever informativo que, à data, recaia sobre o devedor; tal requerimento destina-se a dar início ao processo onde se pretende ver declarada a insolvência e tem como conteúdo essencial a formulação do pedido (no caso, a declaração de insolvência e a concessão de exoneração do passivo restante) e a exposição dos factos que integram os pressupostos da declaração de insolvência (cfr. art. 23.º, n.º 1, e 25.º do CIRE) e da exoneração do passivo; o conteúdo informativo do requerimento inicial respeitará apenas à matéria que deve ser objecto dos documentos que o devem acompanhar em conformidade com o citado art. 24.º e, conforme referimos, a referida doação não se integra nessa matéria.

É certo, no entanto, que o devedor que se apresenta à insolvência está sujeito – como qualquer parte no âmbito de qualquer processo judicial – aos deveres gerais de cooperação e boa-fé processual previstos nos arts. 7.º e 8.º do CPC (aplicáveis no processo de insolvência por força do disposto no art. 17.º do CIRE) e a alteração da verdade dos factos ou a omissão de alegação de factos relevantes para a decisão, se tiver sido efectuada com dolo ou negligência grave, é considerada, por lei, como violação daqueles deveres, conduzindo à condenação por litigância de má-fé nos termos previstos no art. 542.º do CPC.

Poder-se-á dizer que tal dever é um dever geral e não um dever expressamente resultante do CIRE como parece exigir a alínea g) do n.º 1 do citado art. 238.º.

Pensamos, porém, que tal leitura/interpretação literal da norma em questão será redutora na medida em que não parece ter idoneidade para atingir os objectivos visados pelo legislador.

Com efeito – e como assinala, aliás, o preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE – a exoneração do passivo restante corresponde a um beneficio que se pretendeu reservar para os devedores de boa-fé que, como tal, se revelem merecedores desse benefício, seja pela conduta recta, honesta e pautada pela boa-fé que adoptaram antes da insolvência, seja pela conduta – igualmente recta, honesta e pautada pela boa-fé – que venham a adoptar após a insolvência e, mais concretamente, durante o período da cessão. Nessas circunstâncias, seria contrário ao pensamento legislativo que se admitisse o pedido de exoneração do passivo apesar de se ter como assente que o devedor, na petição inicial, violou os deveres de colaboração e de boa-fé processual, omitindo, de forma consciente e com dolo ou culpa grave, a alegação de factos relevantes ou alterando a verdade desses factos, no sentido de ocultar a sua real situação.

Ora, apesar de não ter relevância para a decisão de decretar (ou não) a insolvência – sendo certo que não correspondia a um pressuposto da declaração de insolvência – a existência da referida doação (celebrada nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência) era um facto relevante para efeitos de qualificação da insolvência e, consequentemente, para efeitos de admissão (ou não) do pedido de exoneração do passivo restante e que, como tal, devia ter sido alegado em respeito pelos referidos deveres de cooperação e boa-fé processual.

Mas, não obstante se considere violado o referido dever, não nos parece que existam elementos suficientes para concluir pela existência de dolo ou culpa grave, como seria necessário para que esse facto fosse susceptível de determinar o indeferimento liminar da exoneração do passivo.

O dolo reporta-se às situações em que o resultado ou facto ilícito é directamente pretendido e visado pelo agente (dolo directo) ou é previsto como consequência necessária da sua conduta (dolo necessário) ou como consequência possível dessa conduta, possibilidade com a qual o agente se conforma, aceitando-a (dolo eventual). O dolo pressupõe, portanto, a efectiva consciência da possibilidade de verificação do facto ilícito e a aceitação desse resultado, seja porque ele foi directamente visado pelo agente, seja porque, apesar de ter sido outro o fim visado, ele foi previsto e aceite pelo agente.

A negligência, por seu turno, abarca as situações em que o agente não chega a prever o resultado ou, apesar de o prever como possível, actua sem o aceitar e acreditando que ele não se produzirá, correspondendo, na prática, à omissão da diligência que era exigível e que, caso tivesse sido observada, teria permitido prever o resultado e usar das cautelas e cuidados necessários para o evitar. Sendo apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (cfr. art. 487º nº 2 do Código Civil), a culpa/negligência corresponde, por isso, à omissão da diligência e deveres de cuidado que, naquelas circunstâncias, eram exigíveis e que seriam adoptados por uma pessoa normalmente diligente, sendo de qualificar como grave quando se configura como violação grosseira dos deveres de cuidado e prudência que, no caso, eram exigíveis e eram elementares, ou seja, quando, em face das circunstâncias do caso, só uma pessoa particularmente descuidada teria omitido esses deveres de cuidado que teriam permitido prever e evitar o resultado[5].

Assim, em relação à violação do dever de colaboração por omissão de alegação da referida doação, a Apelante teria actuado com dolo se tivesse a consciência da relevância daquele facto e do dever de o alegar, optando, apesar disso, pela sua não alegação; a Apelante teria actuado com negligência grave se a falta de consciência desses factos se tivesse ficado a dever à inobservância de cuidados elementares que só uma pessoa particularmente negligente ou descuidada deixaria de observar.

Temos como indiscutível que a Apelante sabia ter feito a aludida doação, sendo certo que foi ela própria quem fez a correspondente declaração que consta da escritura, não podendo merecer qualquer credibilidade a afirmação – que faz nas suas alegações – de que, dado o seu alheamento relativamente aos seus bens, pensava que a casa de morada de família havia sido arrestada ao abrigo do processo do ex-marido. Na verdade, se a Apelante pensasse assim, então pensaria que o imóvel ainda se encontrava no seu património e, como tal, não teria alegado na petição inicial – como alegou – que já não era proprietária desse imóvel. A Apelante sabia, portanto, que já não era proprietária do imóvel e sabia, naturalmente, que tal havia acontecido por força da doação que ela própria (em seu nome e em nome do seu ex-marido) havia efectuado aos filhos.

No entanto, já não podemos ter como certo que a Apelante tivesse – ou devesse ter – a consciência de que tinha o dever de alegar esse facto no requerimento inicial.

Não está provado que a Apelante tivesse efectiva consciência desse dever.

É certo, por outro lado, que não estava em causa um pressuposto da declaração de insolvência que tivesse que ser alegado em conformidade com o disposto no art. 23.º e também não estava em causa um facto que se reportasse aos elementos que, em conformidade com o disposto no art. 24.º, tinham que instruir a petição inicial. Não existia, portanto, qualquer disposição legal que impusesse de modo expresso o dever de alegar esse facto no requerimento inicial.

Por outro lado, ainda que, na nossa perspectiva e conforme referimos supra, essa doação seja bastante para, independentemente de outros requisitos, determinar o indeferimento liminar da exoneração do passivo ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 238.º por se integrar na previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º e determinar automaticamente a qualificação da insolvência como culposa, não podemos ter como inviável ou inaceitável uma diferente leitura e interpretação da lei com base na qual se entenda que essa doação não se integra na previsão da citada alínea d) do nº 2 do art. 186.º e que, como tal, não seria suficiente para determinar a qualificação da insolvência como culposa e, consequentemente, o indeferimento liminar da exoneração do passivo. Com base nessa leitura/interpretação, a existência dessa doação não relevaria, só por si, para efeitos de indeferimento liminar da exoneração do passivo, não podendo, por isso, considerar-se que, ao declarar – como declarou na petição inicial – que preenchia os pressupostos para lhe ser concedida tal exoneração e que não existiam factos ou fundamentos para o respectivo indeferimento liminar, a Apelante estivesse a alegar factos cuja falsidade não pudesse ignorar dada a existência da referida doação, impondo-se admitir, por outro lado, que, com base nessa leitura/interpretação da lei, a Apelante pudesse ter entendido não ter o dever de alegar esse facto na petição inicial por ser irrelevante para efeitos de declaração de insolvência e por não ser susceptível, só por si, de determinar o indeferimento da exoneração do passivo.

E não nos parece dever considerar-se que essa leitura/interpretação seja inaceitável ou manifestamente infundada ao ponto de considerar que a falta de consciência daquele dever se tivesse ficado a dever à inobservância de cuidados elementares que só uma pessoa particularmente negligente ou descuidada deixaria de observar, em termos de concluir que a falta de alegação daquele facto resultaria necessariamente de negligência grave.

Importa esclarecer que o que está em causa não é a noção ou consciência da relevância do facto para os autos (consciência que a Apelante deveria ter se usasse de diligência mínima) mas sim a consciência do dever de alegar esse facto logo no requerimento inicial. Com efeito, não obstante ter consciência da relevância do facto, a Apelante poderia não ter a consciência do dever de alegar esse facto logo no requerimento inicial (podendo, naturalmente, prestar essas informações posteriormente ao administrador da insolvência) por entender – com base numa interpretação da lei que não podemos considerar como manifestamente infundada ou irrazoável – que esse facto não tinha que ser alegado naquele momento por ser irrelevante para apreciação das pretensões que nele eram formuladas: a declaração de insolvência e a admissão do pedido de exoneração do passivo.

Registe-se, aliás, que, apesar de não ter alegado esse facto no requerimento inicial (eventualmente por ter entendido não ser relevante a sua alegação nesse momento) não há indícios de que a Apelante o pretendesse ocultar, sendo certo que identificou, claramente, o citado imóvel, dizendo que já não era de sua propriedade, abrindo e facilitando o caminho para que o Tribunal ou o administrador da insolvência investigassem o negócio que estava na origem na transferência dessa propriedade ou solicitassem directamente à Apelante o esclarecimento desse facto.

Concluimos, portanto, que, não resultando provado que a Apelante tivesse consciência do dever de alegar esse facto no requerimento inicial; estando em causa um facto cuja necessidade de alegação no requerimento inicial não era expressamente imposta pela lei (não estava em causa um facto que se reportasse aos elementos que, em conformidade com o disposto no art. 24.º, tinham que instruir a petição inicial e não existia qualquer outra disposição legal que impusesse de modo expresso o dever de o alegar no requerimento inicial) e não se podendo ter como manifestamente infundada ou irrazoável determinada leitura/interpretação da lei no sentido de não existir o dever de alegação daquele facto no requerimento inicial, não há bases para concluir que a violação daqueles deveres é imputável a dolo ou negligência grave da Apelante.

Em face do exposto, a violação dos referidos deveres de informação e colaboração não poderá relevar para o efeito de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo.

 

Assim sendo, confirma-se a decisão recorrida que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.


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SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

I – Uma doação efectuada pelo devedor aos filhos, durante os três anos anteriores ao início do processo de insolvência, corresponde a um acto de disposição de um bem do devedor em proveito de terceiros que se insere no âmbito de previsão da alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE e que, como tal, determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a sua actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Nessas circunstâncias, a referida doação implicará também o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante em conformidade com o disposto na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do citado diploma.

II – A violação dos deveres de informação e colaboração que é susceptível de determinar – ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art. 238.º do CIRE – o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo não ocorre apenas quando o devedor viola a obrigação expressamente prevista no art. 83º do citado diploma (não prestando a informação ou colaboração que lhe seja solicitada pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal); a violação daqueles deveres também ocorre quando o devedor, sem justificação, não junte algum dos elementos (de carácter informativo) que são exigidos pelo art. 24.º ou quando alegue factos referentes a essas matérias que não sejam verdadeiros, podendo ainda concluir-se pela violação desses deveres quando, de um modo geral, o devedor omita a alegação ou altere a verdade de factos relevantes com desrespeito pelos deveres de  cooperação e boa-fé processual previstos nos arts. 7.º e 8.º do CPC.

III – Nessas circunstâncias, a falta de alegação pelo devedor, no requerimento inicial, de uma doação que havia celebrado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência configura uma violação dos citados deveres (por ser um facto relevante para o processo de insolvência) e essa omissão, desde que dolosa ou gravemente negligente, determina o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.

IV – Para que a falta de alegação desse facto, no requerimento inicial, possa ser configurada como dolosa ou gravemente negligente é necessário que o devedor tivesse a consciência do dever de alegar esse facto ou que estivesse em condições de tomar essa consciência se tivesse adoptado os cuidados elementares que só uma pessoa particularmente descuidada deixaria de observar.

V – Não resultando provado que o devedor tivesse consciência desse dever; estando em causa um facto cuja necessidade de alegação no requerimento inicial não era expressamente imposta pela lei (não estava em causa um facto que se reportasse aos elementos que, em conformidade com o disposto no art. 24.º, tinham que instruir a petição inicial e não existia qualquer outra disposição legal que impusesse de modo expresso o dever de o alegar no requerimento inicial) e não se podendo ter como manifestamente infundada ou irrazoável determinada leitura/interpretação da lei no sentido de não existir o dever de alegação daquele facto no requerimento inicial, não há bases para concluir que a violação daqueles deveres é imputável a dolo ou negligência grave do devedor.


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V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento na alínea e) do n.º 1 do art. 238.º do CIRE.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.

Coimbra, 19/10/2020

Maria Catarina Gonçalves ( Relatora )

Maria João Areias

Freitas Neto


[1] Cfr. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5.ª edição, págs. 133 e 134; Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pág. 301 e Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pág. 610. Também no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 06/10/2011 e de 15/02/2018, proferidos nos processos n.ºs 46/07.8TBSVC-0.L1.S1 e 7353/15.4T8VNG-A.P1.S1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[2] Direito da Insolvência, 2013, 5ª ed., pág.248.
[3] Acórdão publicado em http://www.dgsi.pt. e referente ao processo n.º 3546/11.1TBGMR-H.G1.
[4] Proferido no processo nº 2846/18.4T8VIS-D.C1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 304 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª ed., pág. 467, nota 3.