Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
328/14.2TBGRD-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
CONTRATO DE TRABALHO
MASSA INSOLVENTE
Data do Acordão: 04/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL - JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.126, 128 LOSJ, 51, 89 CIRE, 99 CPC
Sumário: Compete à Secção Cível da Instância Local que exista na comarca, e não à Secção do Trabalho da mesma comarca, preparar e julgar uma ação relativa a dívidas da massa insolvente, na medida em que ao determinar concretamente o art. 89º, nº3 do C.I.R.E. que as ações relativas a dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com isso alterou, por apelo à competência extensiva dos tribunais do comércio [cf. nº 3 do art. 128º da LOSJ], a normal reserva de competência material do tribunal do trabalho para a apreciação de créditos laborais emergentes da cessação do contrato de trabalho [cf. al.b) do art. 126º da mesma LOSJ].
Decisão Texto Integral:         







    Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 - RELATÓRIO

A (…) intentou na Instância de Competência Especializada Cível do Tribunal da Comarca da Guarda a presente ação declarativa emergente de contrato de trabalho, com o valor de € 30.000,01, contra “C (…)S” e “MASSA INSOLVENTE DE ‘C (…) peticionando:

1. Se declare sem termo o contrato de trabalho celebrado entre A. e 1.ª R. em 18.03.2014;

2. Se declare que a comunicação elaborada pela 1.ª R. à A. e demais conduta alegadamente adotada configura, materialmente, um despedimento e, bem assim, que o mesmo é ilícito por ausência dos seus legais pressupostos para o efeito;

3. Sejam ambas as RR. condenadas na reintegração da A. no mesmo estabelecimento da 1.ª R., sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, em regime de escala de 3 turnos; e

4. Sejam solidariamente condenadas ambas as RR. no pagamento à A. de € 400,00, acrescidos de juros de mora desde a citação até efetivo e integral pagamento e das retribuições que a A. deixou de auferir entre 08.02.2016 e o trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude do despedimento;

5. Assim não se entendendo, que sejam solidariamente condenadas no pagamento da quantia de € 1.443,95, acrescida de juros de mora desde a data de cessação do contrato e até efetivo e integral pagamento.

A A. deu entrada desta dita ação na Instância Local de Competência Especializada Cível da Guarda, alegando, com interesse, e como fundamento, que uma vez tendo sido declarada a insolvência da 1.ª R. em data anterior à cessação do contrato de trabalho, na sua ótica, tal ato traduz um ato de gestão e administração da massa insolvente, sendo esta responsável pelo seu pagamento.

Mais alude aos art.ºs 126.º, n.º1, alínea b) e 128.º, n.ºs 1, alínea a) e 3, ambos da LOSJ.

Mais reitera que é seu entendimento que a 2.ª R. deverá ser responsabilizada pelo pagamento de todos os quantitativos peticionados.

                                                           *

Citadas as RR., nada disseram.

                                                           *

Entendendo que se suscitava a questão da incompetência material do Tribunal para a causa, o Exmo. Juiz a quo proferiu despacho ordenando a notificação da A. para, querendo, se pronunciar sobre a eventual incompetência material do tribunal para os presentes autos.

Pronunciou-se a A., pugnando pela competência do Tribunal onde a ação fora instaurada, para a sua tramitação, sustentando a Ré, na sequência, posição diversa.

Mas o tribunal a quo não perfilhou aquele primeiro entendimento, vindo a decidir, após realização de Audiência Prévia, no seguinte sentido:

«(…) não se desconhece o teor do art.º89.º do CIRE, designadamente, do seu n.º2, no entanto, tal norma, que se compreende quando estamos perante ações com matérias do foro civil, dito alargado, como o executivo ou comercial, terá de ceder perante a especificidade de uma ação em que a matéria a discutir e decidir será única e exclusivamente laboral (aferição da ilicitude de um despedimento e consequências do mesmo).

Concorda-se, contudo, com a A. quando esta alega que é seu entendimento que a massa insolvente deverá ser responsabilizada pelo pagamento dos quantitativos peticionados. No entanto, tal poderá efetuar-se correndo a ação na Jurisdição própria, ou seja, a Laboral, não necessitando de correr os seus termos nesta Instância Local de Competência Cível, por a matéria a discutir ser única e exclusivamente a laboral.

Estamos, portanto, perante uma incompetência absoluta, que implica a absolvição do réu da instância – art.º99.º, n.º 1, do (N)CPC.

Termos em que, pelo exposto, julgo este Tribunal incompetente para a apreciação do litígio dos autos, em face da matéria sub judice e, consequentemente, absolvo os RR. da instância.

Custas pela A. que se fixam em ½ UC. »

                                                           *

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer, formulando a concluir as alegações que apresentou, as seguintes conclusões:

«I – Salvo o devido e merecido respeito, que é muito, mal andou o Tribunal a quo.

(…)

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                                       *

            O Exmo. Juíz a quo proferiu despacho a admitir o recurso interposto, providenciando pela sua subida devidamente instruído.

            Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR: o âmbito do recurso encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – arts. 635º, nº4 e 639º do n.C.P.Civil – e, por via disso, por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir consiste em decidir se, para uma ação declarativa de ilicitude do despedimento e indemnização decorrente dessa ilicitude, o tribunal materialmente competente é a Secção Cível da Instância Local do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, ou, antes, se é a Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda.

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos a ter em conta são essencialmente os que decorrem do relatório que antecede.

                                                               *

4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Cumpre então decidir a questão supra enunciada, sendo certo que vamos fazê-lo começando por referir que a mesma já não é uma questão nova, atenta a anterior prolação de despachos de idêntico sentido ao recorrido, e a correspondente interposição de recurso por quem com tal se sentiu prejudicado, face ao que vamos abordar a questão com a linearidade e sintetismo que a mesma reclama.

No essencial, o Exmo. Juiz a quo argumenta que nos autos estamos perante questões emergentes de relações de trabalho subordinado, pelo que, atentando na alínea b) do art.126º da LOSJ [nos termos da qual compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível, nomeadamente,“Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”], a competência caberá aos Tribunais do Trabalho e não aos Tribunais Cíveis.

Sendo incontroverso que estavam em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado, o demais será assim?

Vejamos.

Começa por determinar o art. 40.º da Lei n°62/2013, de 26/8 (dita “LOSJ”, que vai ser considerada doravante na versão decorrente da sua última revisão, a saber, a operada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro), com a epígrafe de “Competência em razão da matéria”, o seguinte:

«1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.»

Do subsequente art. 81º da mesma LOSJ, decorre que os “tribunais de comarca” (que podem ser de competência genérica e de competência especializada, nos termos do precedente art. 80º) podem desdobrar-se em “juízos” de competência Especializada (nº1 do art. 81º), sendo que podem ser criadas, entre outras, secções de competência especializada “Central cível”, “Local cível” e “Trabalho” [cf. alíneas a), b) e h), respetivamente, do nº3 deste último normativo].

Ademais, aos “Juízos do Trabalho” cabe, em termos de “Competência cível”, de harmonia com o disposto no art. 126º da mesma LOSJ, o seguinte (sublinhado nosso):

«1 - Compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível:

a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;

b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;

(…)»

            Bem assim temos que aos “Juízos de Comércio” cabe, em termos de “Competência”, de harmonia com o disposto no art. 128º da mesma LOSJ, o seguinte (sublinhados nossos):

«1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:

a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;

b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;

c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais

d)  As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;

e) As ações de liquidação judicial de sociedades

f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;

g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;

h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;

i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.

2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.

3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões.»

                Por outro lado, dispõe o nº 2 do artigo 89º do C.I.R.E. que as acções relativas às

dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência.

            De referir que é igualmente quanto a nós incontroverso que na acção ajuizada estavam em causa dívidas da massa insolvente.

            Isto porque, o melhor entendimento nesta matéria é o de que cessado o contrato de trabalho por iniciativa do administrador judicial, constitui dívida da insolvência a indemnização devida ao trabalhador reclamante correspondente à sua antiguidade até à data da declaração da insolvência; e já constitui dívida da massa insolvente o crédito indemnizatório do trabalhador relativo ao período em que perdurou o vínculo laboral após ter sido declarada a insolvência, bem como os créditos salariais vencidos nesse hiato de tempo[2], isto na linha de entendimento de que a parte da compensação relativa ao período posterior à declaração judicial de insolvência deve ser uma dívida da massa insolvente, gerando o remanescente um crédito sobre a insolvência.[3]

Dito de outra forma: toda a compensação devida ao trabalhador relativa ao período posterior à declaração judicial de insolvência, quer por créditos salariais, quer por indemnização de antiguidade, corresponde a uma dívida da massa insolvente – o que é precisamente o que estava em causa na acção ajuizada.

Sendo certo que, nos termos do art. 51º do C.I.R.E., são “dívidas da massa insolvente”, para além das já referenciadas “resultantes da atuação do administrador” (cf. nº1, al.d) deste normativo], “as dívidas emergentes dos atos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente” [cf. nº1, al. c) deste normativo], o que corresponde mais precisamente à situação ajuizada, enquanto foi esse o ato de cessação dum contrato de trabalho ao abrigo do nº 2 do artigo 347º do Código do Trabalho

Finalmente, temos que, dada a ausência de secção de comércio na área da circunscrição territorial do Tribunal Judicial da Guarda, e perante acção de valor inferior a € 50 000,00 (cinquenta mil euros), a dita competência dos “Juízos de Comércio”, caberá à secção cível da instância local que aí exista [tudo nos termos do preceituado nos arts. 130º, nos 1, alínea a), e 2, e 117º, nos 2 e 1, alínea a), este último a contrario sensu, da citada LOSJ].

Assim sendo, a boa decisão da questão colocada no recurso passa pela exata definição do sentido e alcance da norma definidora de competência que é o já citado  art. 128º, nº3 da LOSJ, a saber, que a competência em causa, isto é, a do “Juízo de Comércio”, ou, não existindo este, a da Secção Cível da Instância Local que aí exista, “abrange os respetivos incidentes e apensos”.

Ora, quanto a este particular, não vemos como dissentir do entendimento de que tratando-se como se tratava de uma questão a ser dirimida por apenso “ex vi” do disposto no art. 89º, nº2 do C.I.R.E. [dívida da massa insolvente], a extensão de competência quanto à mesma resulta inquestionável.

Este mesmo entendimento já foi perfilhado em anteriores arestos jurisprudenciais, um dos quais não obstante anterior à atual LOSJ, perfilha um entendimento que continua totalmente válido, como flui insofismavelmente do seguinte douto segmento, que se transcreve dado o paralelismo com a situação ajuizada :

«É pacífico que a competência dos tribunais, resultando do facto do poder jurisdicional poder ser repartido entre numerosos tribunais, é a medida da sua jurisdição, segundo a organização desses tribunais que é feita em função de determinados critérios, entre eles, o da matéria da causa que será apreciada – é o que resulta dos artigos 59º e 60º do Código de Processo Civil, na versão actualmente em vigor. E é pacífico que esta competência se afere nos termos em que a acção é proposta pelo autor, isto é, tendo em atenção o pedido formulado e a causa de pedir que o fundamenta[6].[7].

Mais rigorosamente: a medida da jurisdição interna dos tribunais distingue-se em competência em razão do território, da hierarquia e da matéria.

A competência material dos tribunais para as causas de natureza cível resulta de normas de atribuição directa ou indirecta, nesta última situação por via da afectação das causas que não sejam afectas a outros tribunais (artigos 211º, n.º 1, da Constituição e 18º, n.º 1, da Lei n.º 3/99,de 13 de Janeiro - Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).

A vertente da competência jurisdicional em razão da matéria é delineada por via da sua distribuição por lei à pluralidade de tribunais inseridos no mesmo plano horizontal (artigo 18º, n.º 2, da LOFTJ).

Consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se os tribunais de 1ª instância em tribunais de competência genérica, a quem compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal, o que constitui a regra, e tribunais de competência especializada simples ou mista, que conhecem de determinadas matérias (artigos 64º, n.º 2, e 77º, n.º 1, alínea a), da LOFTJ).

Entre os tribunais de competência especializada contam-se os tribunais do trabalho e os tribunais de comércio (artigo 78º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ).

O nexo de competência fixa-se no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (artigo 22º, n.º 1, da LOFTJ).

A determinação da competência do tribunal em razão da matéria tem de ser aferida, não pela matéria de facto provada, mas pelo pedido e pela causa de pedir, ou seja, pela relação material controvertida tal como é configurada pelo autor[8], mesmo no caso em que a acção tenha sido deduzida incorrectamente, tanto do ponto de vista adjectivo como do direito substantivo. Trata-se de mais uma manifestação do princípio da auto-responsabilidade das partes segundo o qual elas litigam por sua conta e risco. Por isso, se a acção for incorrectamente intentada, o seu eventual insucesso é questão que está para além da problemática da competência material do Tribunal, não lhe diz respeito[9].

A causa de pedir é o facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito, e o pedido a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda.

A lei prescreve competir aos tribunais do trabalho em matéria cível, além do mais que aqui não releva, conhecer, “Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;”- artigo 85º, alínea b) da LOTJ.
Decorre do teor literal do normativo transcrito que a competência aí atribuída aos tribunais do trabalho se reporta a questões que emergem das relações de trabalho subordinado ou, como diz Leite Ferreira[10] "...tem em vista (...) os conflitos entre sujeitos duma dada relação jurídica que num contrato individual de trabalho teve a sua origem..."

Por seu turno, o artigo 89º nº 1 alínea a) da mesma lei atribui aos tribunais de comércio competência para preparar e julgar “Os processos de insolvência se o devedor for uma sociedade comercial ou a massa insolvente integrar uma empresa” e o nº 3 do mesmo preceito estabelece que “A competência a que se refere o nº 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.

A autora propôs a acção contra a massa insolvente, por créditos resultantes do que alegou ser um despedimento ilícito, além do mais, do incumprimento do procedimento para a cessação de contratos de trabalho pelo administrador de insolvência.

A cessação do seu contrato foi determinada pelo administrador de insolvência ao abrigo do artigo 347º nº 2 do Código do Trabalho, que dispõe: “1. A declaração judicial de insolvência do empregador não faz cessar o contrato de trabalho, devendo o administrador da insolvência continuar a satisfazer integralmente as obrigações para com os trabalhadores enquanto o estabelecimento não for definitivamente encerrado. 2. Antes do encerramento definitivo do estabelecimento, o administrador da insolvência pode fazer cessar o contrato de trabalho de trabalhador cuja colaboração não seja indispensável ao funcionamento da empresa.(…)”

Tendo em atenção que, a par da manutenção dos contratos de trabalho resultante do nº 1 do artigo 347º citado, foi decidido no processo de insolvência a continuação da empresa em laboração, sob administração dos administradores da empresa, torna-se claro que, no caso dos autos, a cessação do contrato da autora foi mesmo operada por decisão do administrador da insolvência, ao abrigo do poder concedido no nº 2 do citado artigo 347º, o qual, evidentemente, tem de se compaginar com os fins da actuação do administrador de insolvência tal como determinados no CIRE, a saber no artigo 55º nº 1, em cuja alínea b) se prevê que compete ao administrador de insolvência, “Prover, no entretanto, à conservação e frutificação dos direitos do insolvente e à continuação da exploração da empresa, se for o caso, evitando quanto possível o agravamento da sua situação económica”. É nesta lógica que se admite que possam ser extintos contratos de trabalho cuja necessidade já não subsista, sendo que a remissão para os termos do artigo 360º do Código do Trabalho quanto ao procedimento a adoptar consolida justamente a aproximação à ideia, derivada do artigo 359º nº 1 e 2 e 367 nº 2, ambos do Código do Trabalho, de que, no fundo, se trata duma agilização do fundamento de resposta a uma situação de grave desequilíbrio económico-financeiro. E esta resposta destina-se, como é também evidente, a providenciar pela possibilidade de melhor realização o fim do próprio processo de insolvência, que é a satisfação de todos os credores.

Neste pressuposto, o crédito laboral emergente dum contrato de trabalho cessado após a declaração de insolvência não é igual a um crédito laboral resultante duma cessação ocorrida anteriormente a tal declaração.

Com estes considerandos pretendemos afirmar que o acto de cessação dum contrato de trabalho ao abrigo do nº 2 do artigo 347º do Código do Trabalho constitui um acto de administração da massa insolvente, praticado pelo respectivo administrador.

Ora, assim sendo, e porque deste acto resulta a constituição de dívidas para a massa insolvente, correspondentes aos créditos resultantes da cessação, lícita ou ilícita, do contrato de trabalho, há que convocar o disposto no artigo 51º nº 1 al. c) do CIRE, segundo o qual as dívidas emergentes de actos de administração são dívidas da massa insolvente, com um regime diverso das dívidas da insolvência – artigo 1º, 3º, 46º nº 1 e 47 nº 1 todos do CIRE – designadamente não os efeitos previstos no artigo 85º, 86º e 88º do mesmo diploma quanto às acções declarativas e executivas pendentes – mas o regime previsto no artigo 89º nº 2, segundo o qual “As acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária”.

Não se trata já portanto da possibilidade do administrador da insolvente considerar relevante a apensação das acções pendentes, tal como dispõe o artigo 86º, mas sim da própria lei determinar concretamente que tais acções relativas a dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com isto alterando, por apelo à competência extensiva dos tribunais do comércio, a normal reserva de competência material do tribunal do trabalho para a apreciação de créditos laborais emergentes da cessação do contrato de trabalho[11].

Em conclusão, por força desta retirada de competência, o tribunal de trabalho não é o tribunal materialmente competente para conhecer da causa, pelo que improcede o recurso e se confirma a decisão recorrida.»[4]

O que tudo serve para dizer que esta questão nem sequer é nova, já se tendo colocado no regime anteriormente vigente da organização judiciária – o resultante da LOFTJ [Lei nº 52/2008 de 28/08]sendo que já nesse quadro legal foi sustentado o entendimento supra exposto, com fundamentação jurídica que cremos manter-se plenamente válida.

Nem, aliás, o despacho recorrido apresenta razões de discordância com fundamentação substantiva ou formal – para além do que sinteticamente supra se deixou consignado, a saber, que o comando do art. 89º, nº2 do CIRE (que se compreende quando estamos perante ações com matérias do foro civil, dito alargado, como o executivo ou comercial), “terá de ceder perante a especificidade de uma ação em que a matéria a discutir e decidir será única e exclusivamente laboral (aferição da ilicitude de um despedimento e consequências do mesmo)”…

Na verdade, como foi decidido em paradigmático aresto do nosso mais alto Tribunal, «(…) Como flui do teor do relatório do presente acórdão, em consonância com o enunciado dos factos retidos pelo Tribunal recorrido, é pacífico que o invocado despedimento ocorreu já depois de proferida a sentença que declarou a «BB – …, S.A.» insolvente e que, por consequência, também o presente procedimento cautelar, visando a suspensão daquele despedimento, foi promovido em momento ulterior àquela declaração e ao seu trânsito. Daí que qualquer consequência emergente desse despedimento onere necessariamente, já não o insolvente, mas sim a massa insolvente, porquanto se tratou de acto praticado pelo administrador da insolvência, projectando-se já sobre a massa as suas consequências. Estamos, assim, em pleno âmbito de aplicação das conjugadas normas dos artigos 51.º e 55.º do CIRE, pelo que a acção (ou procedimento cautelar) que seja susceptível de onerar a massa insolvente deve correr por apenso ao respectivo processo, conforme imposto pelo artigo 89.º, n.º 2, do CIRE, sendo a competência para o seu conhecimento e tramitação, por necessário, cometida ao Tribunal do Comércio, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º 2, da LOFTJ. É incontroverso, como aduz a recorrente, que os citados preceitos se referem a dívidas da massa insolvente – …ao passo que por via do presente procedimento cautelar se visa a suspensão de um despedimento, com a consequente reintegração do trabalhador –, o que, na sua óptica, demanda que se conclua estarmos perante realidades distintas. Ou seja: um pedido de suspensão de um despedimento não assume natureza pecuniária ou de dívida susceptível de subsunção nos preceitos que imporiam a propositura dos respectivos processos por apenso ao processo de insolvência. Não é esse todavia o nosso entendimento. Na verdade – e embora concordemos que, na sua pureza, a suspensão de um despedimento, por via cautelar, é distinto de uma dívida da massa insolvente –, o certo é que as consequências, porventura advenientes daquela suspensão, projectar-se-iam fatalmente naquela massa insolvente, onerando-a e gerando correspectivas dívidas, quanto mais não fosse, as atinentes ao pagamento de retribuições. Destarte, não é propriamente por o preceito aludir a dívidas da massa insolvente que se devem excluir do seu âmbito de aplicação acções que, não tendo na sua base, imediata ou directamente, dívidas de natureza pecuniária, têm, contudo, a virtualidade de virem a afectar, por via reflexa, a massa insolvente, o que reclama a competência dos tribunais do comércio para o seu conhecimento(…).»[5].

Dito de outro modo: se o legislador da reforma da organização judiciária empreendida pela Lei n° 62/2013, de 26/8 pretendia efetivamente inovar nesta matéria, tinha o dever de o fazer expressamente e de forma inequívoca no texto da lei, designadamente no teor do nº 3 do art. 128º dessa Lei, o que seguramente não fez!

Deste modo, se conclui insofismavelmente no sentido de que a competência material, quando estão em causa ações relativas a dívidas da massa insolvente, correm por apenso ao processo de insolvência, por não encontrarem cabimento na al.b) do art. 126º da Lei n° 62/2013, mas sim no nº 3 do art. 128º da mesma disposição legal, tendo em conta o disposto no art. 89º, nº2 do C.I.R.E., donde, compete ao Tribunal “a quo” [Secção Cível da Instância Local do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda] e não à Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, a competência para tramitar e julgar os presentes autos.

Termos em que, na procedência do recurso, se revoga a decisão recorrida, que, negando essa competência, a atribuiu à Secção do Trabalho da Instância Central do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda.

                                                                       *

5  - SÍNTESE CONCLUSIVA

Compete à Secção Cível da Instância Local que exista na comarca, e não à Secção do Trabalho da mesma comarca, preparar e julgar uma ação relativa a dívidas da massa insolvente, na medida em que ao determinar concretamente o art. 89º, nº3 do C.I.R.E. que as ações relativas a dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com isso alterou, por apelo à competência extensiva dos tribunais do comércio [cf. nº 3 do art. 128º da LOSJ], a normal reserva de competência material do tribunal do trabalho para a apreciação de créditos laborais emergentes da cessação do contrato de trabalho [cf. al.b) do art. 126º da mesma LOSJ].

*

6  - DISPOSITIVO

            Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se em consequência, o despacho proferido e julgando-se o Tribunal recorrido como o competente para, em razão da matéria, prosseguir os autos.

            Sem custas.

                                                                       *

Coimbra, 4 de Abril de 2017

Luís Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Assim o acórdão do T.Rel. Guimarães de 9.07.2015, proferido no proc nº 72/12.5TBVRL-AH.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
[3] Neste sentido, CATARINA SERRA, in “Para um novo entendimento dos créditos laborais na  insolvência e na pré-insolvência – Um contributo feito de novas e velhas questões”, em 20 Anos de Questões Laborais, nº 42, Coimbra Editora, 2013, a págs. 187-206 e bem assim o acórdão do T.Rel. Guimarães de 9.07.2015, proferido no proc nº 72/12.5TBVRL-AJ.G1, igualmente acessível em www.dgsi.pt/jtrg.
«[6] Antunes Varela, J M Bezerra e Sampaio da Nora, in “Manual de Processo Civil”, 2ª edição, 1985, p. 195. Manuel de Andrade, in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1. °, p. 88.
[7] “Para efeitos de competência, a causa de pedir deve ser identificada com os factos jurídicos alegados pelo autor que, analisados na lógica jurídica da petição inicial, permitam a aplicação de uma norma de competência. Isto significa que a estrutura de causalidade entre causa de pedir e pedido que o autor estabelece na petição inicial, ou no conjunto dos seus articulados, é suficiente, é o contexto, o enquadramento da relação jurídica alegada e, em consequência, da aplicação das normas de competência” - Mariana França Monteiro, in “A Causa de Pedir na Acção Declarativa”, págs. 507/508.
[8] Neste sentido podemos ver Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91 e Acs da RE de 9/2/84, CJ, 1984, Tomo 1º, pág. 292; da RL de 1/3/89, CJ, 1989, Tomo 2º, pág. 175 e do STJ de 6/7/78, BMJ 278º, pág.122; RL de 10/12/2009, processo 1979-09.2TTLSB.L1-4; RL de 2/12/2008, processo 8761/2008-1; RC de 17/6/2008 – Proc. 74/08.6YECBR e Ac do STJ de 22/6/2006 – Proc. 06B2020 – in www.dgsi.pt e Ac do STJ de 15/1/2008 in CJ XVI, 1º, pág. 45.
[9] Cfr. Acórdão desta Secção de 08/03/2010, processo 492/09.2TTPRT.P1, www.dgsi.pt.
[10] Código de Processo de Trabalho anotado, 4ª edição, p. 70
[11] Neste sentido, o Acórdão desta Relação de 2.5.2013, em www.dgsi.pt
[4] Trata-se do acórdão do T. Rel. Porto de 03.02.2014, no Proc. nº 713/12.4TTMTS.P1, acessível em www.dgsi.pt/jtrp.
[5] Citámos o acórdão do S.T.J. de 15.04.2015, no Proc. nº 197/14.2TTALM.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.