Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1279/10.5T2AVR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: DIREITO DE REGRESSO
ABANDONO DE SINISTRADO
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/26/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA - ANADIA - JUÍZO DE GRANDE INST. CÍVEL - JUIZ 2 -
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ART.19 C) DL Nº 522/85 DE 31/12, ARTS. 4, 566 CC.
Sumário: 1. A indemnização da seguradora em acção de regresso deve ser limitado à indemnização paga com base nos danos provocados pelo abandono ou no agravamento dos danos resultantes do acidente, mas decorrente deste abandono.

2. Resulta da ciência comum e, é da experiência, que o processo lesivo da integridade física do ser humano desenvolve-se de forma progressiva e encadeada, não tendo o corpo humano, em regra, mecanismos de estancação imediatos.

3. É sabido que a rapidez de actuação entre o momento da lesão e o do salvamento pode fazer toda a diferença entre sofrer ou não sofrer determinadas consequências lesivas, se não mesmo a morte, pelo que, há agravamento de danos sempre que alguém não é socorrido de imediato ou em tempo útil.

4. Não sendo possível discriminar ou quantificar tais danos por aplicação da “teoria da diferença” (artigo 566 n. 2 Código Civil), ainda assim, devem tais danos ser quantificados por recurso à norma subsidiária de repartição "por equidade" (artigo 4º alª a) e artigo 566º nº 3 do Código Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                                                            I
A Autora A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. intentou a presente ação de processo ordinário, contra o Réu P (…), pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €38.701,47 acrescida juros de mora a partir da citação até integral pagamento.
Alegou, para tanto, que, no exercício da sua atividade, celebrou com o proprietário do veículo (...)DS, futuramente «DS» um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 45/421199, pelo qual assumiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do mesmo.
No dia 20/11/2001, pelas 19h.45 min., o veículo «DS» conduzido de forma desatenta pelo Réu, foi causador de um acidente, depois de ter invadido a hemifaixa por onde circulava um motociclo com a matrícula 2-ALB-01-12, doravante «ALB».
Após o acidente, o Réu apressou-se a fugir do local, apesar de ter provocado lesões visíveis no condutor do «ALB».
Como consequência do acidente, o condutor do «ALB» esteve internado, tendo recebido tratamento às lesões, necessitou de tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional, esteve incapacitado para o trabalho desde 20/11/2001 até 21/02/2002, e sofreu sequelas permanentes que lhe determinaram uma IPG de 5%.
Correu termos no 1º Juízo do extinto Tribunal de Comarca de Albergaria-a-Velha o processo nº 816/03.6, por via do qual a Autora foi condenada a indemnizar o condutor do «ALB» pelos danos patrimoniais e não patrimoniais no valor global de €38.701,47, o que a Autora fez.
Correu também o processo-crime sob o nº 106/02.1 GAALB, do 2º Juízo da extinta Comarca atrás referida, contra o Réu, à ordem do qual este foi condenado, em concurso real, pela prática de um crime de ofensas corporais negligente e de um crime de omissão de auxílio.
Assim, porque o Réu, após o acidente, prosseguiu a sua marcha, abandonando o sinistrado, tem a Autora contra ele direito de regresso, nos termos do disposto na al. c) do art. 19º do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12.
O M.P., em representação do Réu (ausente) P (…), ao abrigo do art. 15º do C.P.C., deduziu contestação, defendendo-se por mera negação direta.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida decisão que julgou a ação improcedente, por não provada, e consequentemente, foi o Réu P (…) absolvido do pedido.

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer, concluindo do seguinte modo as suas alegações de recurso:
I – Os autos têm origem num acidente ocorrido em Albergaria-a-Velha no qual o R., que conduzia o seu veículo no sentido E.N. 1 – Centro de Albergaria, chegado ao entroncamento com a Rua Padre Matos, à sua esquerda, atento o seu sentido de marcha, para lá mudou de direção de forma inopinada, sem sequer reparar que, no sentido contrário ao seu e pretendendo seguir em frente, seguia o motociclo ALB cujo condutor, uma vez embatido pelo ligeiro conduzido pelo R., caiu desamparado ao chão, ferindo-se com gravidade.
 II – Após o acidente, o Réu apressou-se a fugir do local do acidente, apesar das lesões provocadas no condutor do ALB serem visíveis.
III – Como consequência do acidente, o condutor do ALB esteve internado onde recebeu tratamento às lesões, necessitou de tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional e esteve incapacitado para o trabalho desde 20/11/2001 até 21/02/2002, e sofreu sequelas permanentes que lhe determinaram uma IPG de 5%.
 IV – Em consequência do acidente, correu termos no 1º Juízo do extinto Tribunal de Comarca de Albergaria-a-Velha o processo nº 816/03.6, por via do qual se condenou a Autora a indemnizar, nos termos aí constantes, o condutor do ALB. Em cumprimento da dita condenação cível, a Autora indemnizou o condutor do ALB pelos danos patrimoniais e não patrimoniais no valor global de 38.701,47 €.
 V – Também, por causa do acidente, correu o processo-crime sob o nº 106/02.1 GAALB, do 2º Juízo da extinta Comarca atrás aludida, contra o Réu, à ordem do qual este foi condenado, em concurso real, pela prática de um crime de ofensas corporais negligentes (p. e p. pelo art.º 148º, nº1 do C.P.) e de um crime de omissão de auxílio (p. e p. pelo art.º 200º, nº 1 e 2 do C.P.).
VI – Assim, porque o Réu, após o acidente, prosseguiu a sua marcha, abandonando o sinistrado, tem a Autora contra ele direito de regresso, nos termos do disposto na al. c) do art.º 19º do Dec. Lei nº 522/85, de 31/12, em vigor à data dos factos.
 VII – Na sentença proferida nos presentes autos, e da qual se recorre, o Tribunal a quo, socorrendo-se de uma determinada tendência jurisprudencial infere, de entre outras conclusões, que “no momento em que o condutor voluntariamente decide omitir o auxílio à vítima e afastar-se sem o socorrer, já os danos resultantes do acidente, cobertos pelo seguro, estão, efetiva ou potencialmente, provocados, existindo já, relativamente a eles (ainda que futuros), responsabilidade civil da Seguradora.”
 VIII – Por outro lado, a sentença em crise reconhece que, nesses danos, estão necessariamente incluídos, todos aqueles que decorreram “do respetivo agravamento, causalmente conexionados com o abandono, já que os mesmos não estão abrangidos pelo contrato de seguro” – mas foram, ainda assim, pagos pela Seguradora, acrescentamos nós!
IX – Ora, a concluir-se conforme antecede, não vê a A. / Apelante razão para que o Tribunal não decida segundo critérios de equidade (tão usada, v.g., na atribuição de valores relativos a danos não patrimoniais), e considere pelo menos uma percentagem de danos necessariamente produzidos por via do agravamento derivado do abandono, i.é, os tais que “não estão abrangidos pelo contrato de seguro”.
 X – Bem pelo contrário, perante a consideração que “a Seguradora só teria direito de regresso contra o condutor, em caso de abandono de sinistrado, se de tal abandono tivessem resultado danos específicos ou o agravamento dos decorrentes do acidente e relativamente à indemnização dos mesmos”, os Acórdãos-referência chamados à colação pelo Tribunal a quo (bem como outros conhecidos na Jurisprudência) decidem, invariavelmente, pela improcedência total do pedido da Seguradora que, nos termos da lei, invoca o seu direito de regresso.
 XI – Na vigência do D.L. 522/85, de 31 de Dezembro, e concretamente depois da fixação de Jurisprudência através do Acórdão 6/2002 ocorria, nos diversos Tribunais, a natural tendência não só para o aplicar a todos os casos de direito de regresso das Seguradoras, com base na alínea c) do art.º 19º do referido diploma legal (caso em que tivesse o condutor agido sob a influência do álcool) – o que é compreensível, face à natureza uniformizadora do Acórdão – como era também habitual estender-se o âmbito de aplicação também a quase todas as situações previstas no referido art.º 19º, como sejam, a condução sem habilitação legal, a não sujeição do veículo à inspeção legal obrigatória, aos casos de deficiência de acondicionamento da carga, como também aos casos de abandono de sinistrado.
XII – Com a introdução do D.L. 291/2007, de 21 de Agosto, e no que ao direito de regresso respeita, o legislador pretendeu introduzir alterações no texto da norma, de forma a torná-la mais clara, e que veio esclarecer de que forma deverá ficar assente a questão do nexo de causalidade – o regime anterior preocupava-se com a influência da alcoolemia sobre o concreto condutor em apreciação, enquanto que o regime atual se preocupa com o grau objetivo da alcoolemia. Permitimo-nos aqui, por analogia, transpor esta metodologia para o caso em apreço – de abandono de sinistrado – pois, originariamente, é a própria sentença em crise, que o faz, ao socorrer-se do A.U.J. 6/2002!
XIII - Ora, no caso dos autos, o direito de regresso da A. assenta, exatamente, no facto de o R. vir acusado e condenado, através do processo 106/02.1GAALB, em que é arguido, da prática de um crime de Omissão de Auxílio, p. e p. pelo art.º 200º, nº1 e 2 do Código Penal. Valerá a pena determo-nos (e refletirmos) sobre algumas considerações expendidas na respetiva sentença:
 XIV - “O bem jurídico tutelado com a imposição do dever de auxílio é a solidariedade social, objetivamente materializada através da determinação do seu conteúdo com referência a bens ou interesses eminentemente pessoais, como a vida, saúde, integridade física, e a liberdade. Fundamenta-se esta responsabilização numa ideia de proximidade existencial, ao que acresce, restringindo-a no seu âmbito, uma proximidade real ou de facto entre o agente e a vítima. Por isso, sujeito ativo é o indivíduo que se encontra na situação fática que lhe outorgue a possibilidade de atuar em auxílio da pessoa que dele carece.
 XV - Ao nível do tipo de ilícito objetivo, e para além daquela relação de proximidade fática, o crime de omissão de auxílio pressupõe a existência de uma grave necessidade e um perigo para a vida, saúde, integridade física ou liberdade da vítima. A necessidade traduz-se na carência de alguma coisa que é imprescindível e que não pode ser controlada pela vítima, impossibilitada que está de, por si só, afastar o perigo que a ameaça, carecendo, por isso, de intervenção alheia; a gravidade vai referida à existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percecionados por qualquer pessoa e que apontam para uma situação séria e premente da necessidade a implicar urgência de atuação, atentas as consequências que desse estado poderão advir para o necessitado;…”
 XVI – “A existência desse direito [o direito de regresso da Seguradora] pressupõe, porém, que tenha havido o abandono doloso ou voluntário da vítima, não bastando a falta de prestação de socorros, por simples negligência.”, pelo que não podemos olvidar o que, a propósito, também se encontra referido na Sentença condenatória do caso em apreço, em processo-crime, e que aqui novamente transcrevemos: “Ao nível do ilícito subjetivo, o crime em análise é um crime doloso. Pressupõe o conhecimento da situação típica e a consciência genérica da possibilidade de atuar, isto é, o arguido conhece a situação de necessidade e a possibilidade material de poder atuar em seu socorro, independentemente de no momento efetuar ou não um juízo expresso sobre o atuar e o omitir. Basta que o arguido esteja em condições de representar o seu auxílio como possível, ter condições de atuar de acordo com essa representação e, não obstante, conformar-se com a sua inatividade e com o desvalor que a mesma traduz, revelando indiferença ao dever-ser jurídico-penal que fundamente o juízo de censura a ele dirigido.”
 XVII – Constitui “facto provado” na douta sentença de que se recorre, que (facto 13) “apesar das lesões que o Réu provocou no condutor do motociclo serem bem visíveis, este apressou-se a fugir do local do acidente”, acrescentando-se ainda no facto 14, as razões pelas quais o mesmo foi condenado em sede de processo-crime. Tal prova, consta na Sentença do Tribunal Criminal, e da qual a A. / Apelante juntou certidão, como documento nº3, na sua Contestação.
 XVIII – Sentença onde também se conclui que “A violação deste normativo [o art.º 200º, nº1 e 2 do C.P.] não pressupõe a produção de um resultado como consequência da inatividade, mas tão só a desobediência a um mandato de atuar. Exige-se ao agente que adote um comportamento com amplitude potencial para fazer cessar a situação desfavorável em que se encontra a vítima e o mesmo é punido pela não realização dessas diligências e não pelo facto de não ter impedido que o perigo se concretizasse através da lesão do bem jurídico ameaçado.” [realce e sublinhado nosso]. Acresce e impõe-se dizer ainda que, de acordo com o nº 2 do art.º 200º do C.P., “se aquela situação tiver sido criada por quem omite o auxílio devido, este constitui-se autor de um crime de omissão de auxílio na sua forma agravada.”
 XIX – O presente recurso pretende impugnar, assim, e nos termos do art.º 685º-B, nº1 – a) e b) do CPC, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, sobre a matéria de facto, pois entende, a A. / Apelante, que os meios probatórios apresentados, impunham decisão diversa da recorrida.
 XX – Entende também a A. / Apelante que, ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou a norma ínsita no nº2 do art.º 675º do CPC, assim como deu errada interpretação à alínea c) do art.º 19º do D.L. 522/85, de 31 de Dezembro, pelo que pretende recorrer igualmente da matéria de direito, o que faz nos termos do nº 2 do art.º 685º-A do CPC.
 XXI – Termos em que, com o douto suprimento de Vªs Exªs, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar-se a decisão recorrida, tudo nos termos do previsto no art.º 712º, nº1 – a) do CPC, assim se fazendo a habitual JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.

                                                            II
São os seguintes os factos julgados provados:
1- No dia 20 de Novembro de 2001, pelas 19 e 45 horas, ocorreu um acidente de viação na Rua Comendador Augusto Martins Pereira, vila, freguesia e concelho de Albergaria – a – Velha.
2- …no qual intervieram, o veículo ligeiro de passageiros com a matrícula (...)DS, conduzido pelo Réu, e o motociclo com a matrícula 2-ALB-01-12, conduzido por N (…).
3- O veículo «DS» encontrava-se seguro na Autora, mediante contrato de seguro automóvel válido e eficaz à data do sinistro, titulado pela apólice nº 45/421199 (cfr. doc. nº 2).
4-No dia e hora supra descritos, o veículo «DS» circulava na rua Comendador Augusto Martins Pereira, no sentido EN nº 1 – centro da vila de Albergaria…
5-…a velocidade superior a 70km/hora…
6-…e desatento…
7-…e o motociclo «ALB» circulava no sentido contrário, ou seja, no sentido Bombas da BP – EN nº 1.
8 -Ao chegar ao entroncamento para a Rua Padre Matos, sito à sua esquerda, atento o seu sentido de marcha, o Réu virou à esquerda, sem atentar no restante trânsito que por aí transitava…
9-…invadiu a hemi-faixa de rodagem no preciso instante em que aí passava o veículo «ALB»…
10-… indo, de seguida, o motociclo embater com a sua frente na lateral direita do veículo «DS».
11-O local configura um entroncamento, com uma zona de intenso movimento de veículos e peões…
12 - Devido ao embate, o condutor do «ALB» foi projetado por cima do DS, vindo depois a cair no solo desamparado.
13-Apesar das lesões que o Réu provocou no condutor do motociclo serem bem visíveis, este apressou-se a fugir do local do acidente.
14-Em virtude do acidente de viação descrito atrás, correu termos o processo – crime sob o nº 106/02.1 GAALB, do 2º Juízo do extinto Tribunal de Comarca de Albergaria-a-Velha, e no âmbito do qual se proferiu a sentença constante de fls. 18 e ss., já transitada em julgado, cujo teor se dá por reproduzido, por mor do qual se condenou o aqui Réu, em concurso real, pela prática de um crime de ofensas corporais negligentes e um crime de omissão de auxílio [colhe-se de tal sentença a seguinte factualidade que, a nosso ver deve ser integrada no factualismo ora em apreciação: “Após o embate o arguido abrandou a marcha do ligeiro e, quando se apercebeu que em consequência do embate o condutor do ciclomotor estava caído e prostrado no solo, prosseguiu a sua marcha sem cuidar de saber do estado de saúde do Nestor ou do alcance das lesões por este sofridas, sendo certo que, por causa das lesões, este não conseguia levantar-se pelos seus próprios meios. Enquanto abandonava o local o arguido deu conta da presença do seu cunhado perto do local do embate, a quem posteriormente telefonou enquanto circulava com destino à casa dos seus pais, de onde regressou ao local do embate acompanhado da sua mãe, quando tinha decorrido cerca de uma hora desde a ocorrência do acidente. Seguidamente e juntamente com sua mãe, mulher e cunhado o arguido deslocou-se ao posto da GNR de Albergaria-a-Velha apresentando-se como o condutor do ligeiro que embateu no ciclomotor (…).]
15 - Como consequência do acidente de viação, o condutor do «ALB» esteve internado após o acidente a receber tratamento, necessitou de tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional, esteve incapacitado para o trabalho desde 20/11/2001 até 21/02/2002 (total de 182 dias).
16- O condutor do ALB ficou, ainda, afetado de uma Incapacidade Permanente Geral (IPG) de 5%.
17-Em consequência do sinistro ora relatado, correu termos no 1º juízo deste Tribunal o processo 816/03.6 TBALB, segundo o qual, a aqui Autora foi condenada a indemnizar o condutor do motociclo nos termos da sentença junta em audiência final, já transitada em julgado, cujo teor se reproduz aqui.
18- Em obediência ao decidido em 17), a Autora indemnizou o condutor do «ALB» no montante de € 38.701.47.

                                                            III
Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigo 635º nº 4 do NCPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608º nº 2 do mesmo, in fine), são as seguintes as questões a decidir:
I - Se tem a seguradora direito de regresso contra o condutor, quando haja abandono de sinistrado, sempre e relativamente a toda a indemnização satisfeita /- ou se, tem direito de regresso apenas quando, do abandono resultem danos específicos ou o agravamento dos danos decorrentes do acidente (e relativamente à indemnização que tenha prestado, correspondente a tais danos).
II - Nesta última hipótese se, não sendo possível discriminar ou quantificar tais danos por aplicação da teoria da diferença (artigo 566 n. 2 Código Civil), devem ainda assim, tais danos ser quantificados por recurso à norma subsidiária de repartição "por equidade" (artigo 4º alª a) e artigo 566º nº 3 do Código Civil).

Vejamos a primeira questão colocada.
Está em causa a interpretação e aplicação da norma do art. 19 alª c) do Dec-Lei nº 522/85 de 31/12 (lei do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), aplicável temporalmente, que assim dispõe:
 «Satisfeita a indemnização, a seguradora (…) tem direito de regresso contra o condutor ( …) quando haja abandonado o sinistrado».
Relativamente a tal norma confrontam-se duas posições jurisprudenciais:
a) uma posição que defende que o direito de regresso abrange todos os danos do acidente e, não apenas os danos específicos resultantes do abandono, ou o seu agravamento, em consequência desse facto.
Esta a interpretação legal que a apelante reclama, como fundamento primeiro do seu recurso, a qual tem um pendor fortemente moralista e sancionatório.
Citamos, a título de exemplo o Acórdão de 24 de maio de 2001 (Relator: Duarte Soares) in CJ Ac. STJ–Ano IX–2001–Tomo II–P. 10, assim sumariado:
«Ocorrendo o acidente de viação por culpa do R., que logo abandonou o local sem providenciar socorro à vítima, tem a seguradora, que pagou a respetiva indemnização, direito de regresso sobre o R. sem que tenha de alegar e provar que do simples facto do abandono resultou qualquer dano ou o seu agravamento».
A nosso ver, tal posição não retira do contrato de seguro as suas consequências, pois que, a seguradora, ao contrário do contratado, ao receber a totalidade dos danos em regresso, deixa inclusive de responder pelos danos exclusivamente causados pelo acidente, como responderia caso não houvesse abandono.
b) Uma segunda posição, fazendo apelo interpretativo à unidade do sistema jurídico e à norma do art. 9º, nº 1 do Cód. Civil, que dispõe que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, defende que, o direito de regresso, em caso de abandono do sinistrado pelo condutor, está limitado aos danos específicos do abandono, ou agravados pelo abandono, pois que, os demais, estão abrangidos pelo contrato de seguro e nele se contêm.
Colhemos, a propósito, o sumário do Acórdão de 14 de janeiro de 1997 (Relator: Ribeiro Coelho) Processo n.º 35/96 - 1.ª Secção, in www.dgsi.pt, assim publicado:
« (…) III - Na al. c) a responsabilidade que está contida no direito de regresso da seguradora refere-se aos danos que são consequência típica e adequada de uma condução por condutor alcoolizado, ou que resultam do abandono de sinistrado a que houver lugar - e não todos os decorrentes do acidente.»
Neste Tribunal da Relação de Coimbra esta segunda posição tem vindo a ter eco através, entre outros, do Acórdão de 11 de julho de 2006, Processo:1992/06 (Relator: Garcia Calejo), publicado no mesmo sítio da internet, com o seguinte sumário:
«I – Face ao disposto no artº 19º, al. c), do DL nº 522/85, a seguradora que no âmbito do seguro obrigatório pagar a indemnização tem direito de regresso em relação ao condutor que tenha abandonado a vítima do acidente a que deu causa.
II – O direito de regresso só deve, porém, abranger a indemnização que a seguradora suportou em razão do abandono do sinistrado, pelo que é necessário provar a existência de um nexo de causalidade adequada entre o abandono (o facto) e o dano, e só demonstrando-se esse nexo causal é que a seguradora gozará de direito de regresso.
III – A seguradora, em razão do contrato de seguro, terá a obrigação de pagar os danos provocados pelo acidente e apenas estes, esgotando-se a sua responsabilidade contratual aí, pelo que se pelo abandono resultarem danos ou o agravamento deles, já não terá de os ressarcir».
Esta tem sido claramente a posição maioritária com assento no Supremo Tribunal de Justiça e à qual temos vindo a aderir. Cremos que tal posição é a que melhor se integra na unidade do sistema, pois que, sem deixar de apelar a valores de autorresponsabilização, solidariedade, respeito por terceiros, limita essa responsabilidade aos danos ou consequências gravosas não cobertas pelo seguro de responsabilidade civil, não isentando a seguradora dos danos cobertos pelo seguro.
Seguindo a mesma orientação, entendeu o tribunal a quo que, a indemnização da seguradora em ação de regresso, deve ser limitado à indemnização paga com base nos danos provocados pelo abandono ou no agravamento dos danos resultantes do acidente mas decorrente deste abandono, o que tem a nossa concordância.
Assim, respondida está a primeira questão suscitada: o direito de regresso da seguradora está limitado aos danos específicos do abandono ou agravados pelo abandono do sinistrado.

Importa, ora apurar se, tais danos resultam provados e, em caso afirmativo, como opera o seu ressarcimento.
Quanto a tal questão, entendeu a 1ª instância que, “(…) no caso dos autos, provado que os danos indemnizados advieram do acidente, ou seja, a Autora não alegou e muito menos provou quaisquer danos resultantes do abandono ou agravados pelo abandono.
Destrate, não é possível concluir que o abandono do Réu contribuiu para o agravamento dos danos ocorridos com o acidente e, consequentemente, pagos pela Autora” -excluindo, desse modo o direito de regresso, por falta de dano a ressarcir.
A apelante, conformando-se, subsidiariamente, com a posição jurisprudencial limitativa, defende que, no caso, resulta evidente, face à factualidade provada, que ocorreu agravamento do dano.
Em defesa da sua argumentação invoca os seguintes factos provados:
12 - Devido ao embate, o condutor do «ALB» foi projetado por cima do DS, vindo depois a cair no solo desamparado.
13-Apesar das lesões que o Réu provocou no condutor do motociclo serem bem visíveis, este apressou-se a fugir do local do acidente.
15 - Como consequência do acidente de viação, o condutor do «ALB» esteve internado após o acidente a receber tratamento, necessitou de tratamentos de fisioterapia e recuperação funcional, esteve incapacitado para o trabalho desde 20/11/2001 até 21/02/2002 (total de 182 dias).
16- O condutor do ALB ficou, ainda, afetado de uma Incapacidade Permanente Geral (IPG) de 5%.
Ora, no caso, e com todo o respeito, não podia o tribunal a quo concluir que, no caso não foram provados quaisquer danos resultantes do abandono ou agravados pelo abandono, porque, tal conclusão, contraria a natureza das coisas.
Resulta da ciência comum e é da experiência que o processo lesivo da integridade física do ser humano desenvolve-se de forma progressiva e encadeada, não tendo o corpo humano, em regra, mecanismos de estancação imediatos.
É sabido que a rapidez de atuação entre o momento da lesão e o do salvamento pode fazer toda a diferença entre sofrer ou não sofrer determinadas consequências lesivas, se não mesmo a morte, que felizmente no caso não ocorreu.
A conclusão do tribunal a quo parece sugerir que o abandono do sinistrado, naturalisticamente falando, nenhuma relevância teve no processo causal natural de agravamento dos danos, o que, com todo o respeito, contraria as mais evidentes constatações da natureza humana.
Assim, cremos que se pode e deve dar como assente, por processos dedutivos assentes nas máximas da experiência e da ciência de conhecimento mais geral, que houve agravamento de danos, porque o há, sempre que alguém não é socorrido de imediato ou em tempo útil.
Assim, o condutor que abandona o sinistrado, em vez de lhe dar assistência, ainda que através, por exemplo, da chamada do INEM, provoca sempre um agravamento dos danos.
E, porque sempre que alguém não é socorrido em tempo útil, tal situação é suscetível de provocar um agravamento do dano, forçoso é concluir que, para além do nexo causal naturalístico, a inércia de salvamento ou o abandono de sinistrado constitui causa jurídica adequada à produção do resultado (ou agravamento do resultado).
No caso não se provou que outros o tenham feito pelo Réu, donde se deduz que o Réu ao abandonar o sinistrado, privou-o de ter uma assistência mais imediata do que a que realmente teve e, nessa medida, ocorreu um agravamento dos danos.
Assim, ao abrigo das normas legais supracitadas e, no contexto da jurisprudência limitadora que defendemos, não pode o Réu deixar de ser responsabilizado pela sua conduta de abandono do sinistrado, a título de direito de regresso da seguradora, ainda que, e tão-só, por agravamento dos danos.

Importa ora questionar se, não sendo possível discriminar ou quantificar tais danos por aplicação da “teoria da diferença” (artigo 566 n. 2 Código Civil), pois que não se mostra possível apurar a medida desse agravamento, ainda assim, devem tais danos ser quantificados por recurso à norma subsidiária de repartição "por equidade" (artigo 4º alª a) e artigo 566º nº 3 do Código Civil).
Dispõe o artigo 566º nº 3 do Código Civil que “se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”.
Tal solução tem sido defendida em alguns arestos, do qual destacamos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Março de 1995, (Relator Noronha Nascimento), Proc.0094842, in www.dgsi.pt, assim sumariado:
«I - Quer o artigo 19 alínea c), do DL n. 522/85 de 31/12, quer o artigo 19 alínea c), do DL substituído n. 408/79 de 25/12 consagram a mesma solução para a situação neles prevista.
II - O contrato de seguro é um negócio sinalagmático, pelo qual a seguradora assume, para si, os riscos inerentes a um facto; no seguro de responsabilidade automóvel essa assunção reporta-se à indemnização que o segurado teria que pagar ao lesado por força do seu ato ilícito ou do risco da circulação automóvel.
III - A contrapartida sinalagmática do segurado corresponde ao pagamento atempado do prémio, quer tenha havido lesão ou não.
IV - A interpretação correta do artigo 19 alínea c), do DL n. 522/85 é aquela que ficou expressa em arresto do STJ: "o direito de regresso apenas incide sobre o montante indemnizatório referente aos danos provocados pelo abandono do sinistrado ou ao agravamento desses danos”.
V - Há que estabelecer um nexo de causalidade entre causas e efeitos: os danos provocados pelo acidente suportá-los-á a seguradora ao abrigo do contrato de seguro; os danos, ou o agravamento de danos advenientes do abandono de sinistrados, suporta-as o condutor-abandonante que os causou.
VI - O que se não pode é fazer incidir sobre este a responsabilidade de suportar danos que provêm de um facto coberto pelo seguro.
VII - A quantificação desses danos de origem diversa encontrar-se-á pela aplicação da "teoria da diferença" (artigo 566 n. 3 Código Civil) e não sendo possível lançar-se-á mão da norma subsidiária de repartição "por equidade", uma vez fixados os limites dentro dos quais essa repartição se fará».
Ora, estamos perante um acidente que provocou um grande embate físico do sinistrado no chão, depois de uma projeção pelo ar, as lesões tornaram-se logo visíveis, o lesado esteve totalmente incapacitado para o trabalho durante 182 dias e, ficou afetado com uma incapacidade permanente geral de 5%. Resulta ainda, da factualidade apurada no processo-crime, que o local era frequentado por diversas pessoas, nas quais o Réu visionou o cunhado, pelo que, é de supor que o abandono não tenha sido excessivamente prolongado. Consta ainda apurado em tal processo, cuja sentença se mostra junta aos autos a fls. 18 e ss. que, à data do julgamento-crime, o aqui apelado trabalhava por conta própria, auferindo em média 750 € a 800€ mensais, vivendo em casa própria e tendo dois filhos menores.
O montante indemnizatório global fixado e pago pela apelante seguradora ao sinistrado foi de € 38.701.47.
Assim, não sendo possível ao tribunal quantificar tais danos, cremos, por recurso à regra da equidade, e atendendo ao modo e circunstâncias em que as lesões terão sido provocadas e as suas consequências e, em apelo a uma ponderação que vise a justiça do caso concreto, dever fixá-los em 10% do valor total quantificado e pago pela seguradora, ou seja, em 3.870,14 Euros.
Nessa medida vai o recurso procedente.

Em suma:
- A indemnização da seguradora em ação de regresso deve ser limitado à indemnização paga com base nos danos provocados pelo abandono ou no agravamento dos danos resultantes do acidente mas decorrente deste abandono.
- Resulta da ciência comum e, é da experiência, que o processo lesivo da integridade física do ser humano desenvolve-se de forma progressiva e encadeada, não tendo o corpo humano, em regra, mecanismos de estancação imediatos.
- É sabido que a rapidez de atuação entre o momento da lesão e o do salvamento pode fazer toda a diferença entre sofrer ou não sofrer determinadas consequências lesivas, se não mesmo a morte, pelo que, há agravamento de danos sempre que alguém não é socorrido de imediato ou em tempo útil.
- Não sendo possível discriminar ou quantificar tais danos por aplicação da “teoria da diferença” (artigo 566 n. 2 Código Civil), ainda assim, devem tais danos ser quantificados por recurso à norma subsidiária de repartição "por equidade" (artigo 4º alª a) e artigo 566º nº 3 do Código Civil).
                                                            IV
Termos em que, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, condena-se o apelado P (…) a pagar à apelante A..., Companhia de Seguros, S.A. a quantia de € 3.870,14 acrescida de juros legais desde a citação (art. 805 nº 3 in fine) até integral pagamento.
Custas por apelante e apelado na proporção do decaimento.

Anabela Luna de Carvalho ( Relatora )
 João Moreira do Carmo
 José Fonte Ramos