Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
488/13.0TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
FIM CONTRATUAL
Data do Acordão: 06/24/2014
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA – 1º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 410º, Nº 1 DO C.CIVIL.
Sumário: I – É da essência de um contrato de promessa – da convenção por via da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (artigo 410º, nº 1 do CC) – a projecção, em função de determinadas condições, de um resultado traduzido no alcançar de um outro contrato ou resultado contratual em momento posterior, vinculando-se as partes, ou uma das partes, à realização desse (outro) contrato.
II – Assim, não constitui contrato-promessa o acordo contratual que não projecta a realização de qualquer outro contrato.

III – Um contrato de “cessão de exploração de estabelecimento” (uma locação de estabelecimento nos termos do artigo 1109º do CC), que se esgota na transferência temporária e onerosa da exploração desse estabelecimento, não comporta, na falta de qualquer mínima indicação do texto contratual, a interpretação de corresponder a uma promessa de trespasse do estabelecimento em causa.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa

            1. Instaurou S… (A./Reconvindo e Apelado nesta instância) acção declarativa contra J… e mulher, P… (RR./Reconvintes e aqui Apelantes). Invocou aquele a celebração com os RR., em 01/04/2009, de um contrato – intitulado “Contrato de Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial” – que juntou a fls. 15/19 e cujo clausulado transcreveu no requerimento inicial[1].

            Ora, imputando aos RR. o A. incumprimento desse contrato, concretamente a falta de pagamento de rendas (das mensalidades de €1.500,00 previstas na cláusula quarta 1), formulam contra eles os seguintes pedidos:
“[…]
[A] condenação dos Réus a:
a) Verem resolvido o contrato de cessão de exploração de estabelecimento comercial, aqui junto como Doc. 01, por falta de pagamento das mensalidades.
b) Entregarem de imediato o locado e demais bens aí existentes nas condições em que os receberam, aos Autores.
c) Pagarem aos Autores as rendam vencidas desde Junho de 2011, inclusive, num total de €28.500,00 (vinte e oito mil e quinhentos euros) (€1.500,00 x 19meses), acrescido de IVA à taxa legal; dos juros de mora à taxa de 7,75% e ainda das rendas que se vencerem até efetivo e integral pagamento e entrega do locado, acrescidas igualmente do IVA e juros que se vencerem.
[…]”.

            1.1. Contestaram e deduziram reconvenção os RR. – e foi este pedido reconvencional que gerou o presente recurso.

            Invocaram, no que ora interessa, terem celebrado com o A., efectivamente, um contrato com a denominação e clausulado do de fls. 15/19 em 01/04/2009 – reconhecem, pois, ter assinado o texto desse contrato exactamente como este resulta de fls. 15/19 –, sendo que, todavia, esse – concretamente esse texto – se traduziria, verdadeiramente, numa “Promessa de Trespasse”, correspondendo esta (a promessa) e o (prometido) trespasse ao real enquadramento contratual do propósito dos RR. acordado com o A., sendo que o que aqueles pagaram teria tido (é o que dizem) a natureza de sinal.  Assim, concluem os RR., com as seguintes asserções, interessando aqui – e por isso as destacamos – as configuradas como pedidos reconvencionais:
“[…]
[…] deve ser:
a) julgada improcedente por não provada a petição inicial e procedente por provada a presente contestação reconvenção com as legais consequências;
b) o A. condenado a reconhecer que foi efectuado um contrato de promessa de trespasse o qual deverá ser concluído definitivamente, sendo outorgado o contrato definitivo;
c) celebrado o contrato definitivo de trespasse, nos termos do artigo 830º do Código Civil;
d) caso assim não se entenda, e caso se considere que o contrato definitivo não foi celebrado por facto imputável ao A., deverá este ressarcir os RR. da quantia entregue a título de sinal, em dobro, acrescidas das restantes quantias entregues ou suportadas pelos RR., por conta e no interesse do A., ou seja na quantia de €212.654,30;
e) ser julgada procedente por provada a matéria alegada em sede de reconvenção sendo o A. condenado a pagar aos RR. a quantia de €212.654,30;
f) a pagar aos RR. a título de indemnização por danos morais a quantia total de €5.000,00;
[…]”.

            1.2. Findos os articulados, tendo sido dispensada a audiência prévia [artigo 593º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)], foi o processo saneado pelo despacho de fls. 229/233este, no seu elemento reportado à improcedência substancial da reconvenção (trecho de fls. 230/233), constitui a decisão objecto do presente recurso –, interessando aqui reter os trechos que consideraram “formalmente” admissível a reconvenção (fls. 229/230) mas dela conheceram no sentido da improcedência, absolvendo o A. desse pedido (fls. 230/233).    

            1.3. Inconformados, apelaram os RR. concluindo o seguinte a rematar a motivação do recurso:
“[…]


II – Fundamentação

            2. Relatado o iter processual que conduziu à presente instância de recurso, cumpre apreciar os fundamentos da apelação, tendo em conta que as conclusões formuladas pelos Apelantes operaram a delimitação temática do objecto do recurso, isto nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º do CPC[2]. Assim, fora das conclusões só valem, em sede de recurso, questões que se configurem como de conhecimento oficioso. Paralelamente, mesmo integrando as conclusões, não há que tomar posição sobre questões prejudicadas, na sua concreta incidência no processo, por outras antecedentemente apreciadas e decididas (di-lo o artigo 608º, nº 2 do CPC). E, enfim – esgotando a enunciação do modelo de construção do objecto de um recurso –, distinguem-se os fundamentos deste (do recurso) dos argumentos esgrimidos pelo recorrente ao longo da motivação, sendo certo que a obrigação de pronúncia do Tribunal ad quem se refere àqueles (às questões-fundamento) e não aos diversos argumentos jurídicos convocados pelo recorrente nas alegações.

            2.1. Revertendo ao concreto deste recurso[3] as antecedentes considerações gerais, lendo as conclusões transcritas no item 1.3., temos como questão a apreciar nesta instância a que se expressou na exclusão, à partida – é este o sentido da decisão recorrida –, da possibilidade de encarar o contrato junto a fls. 15/19 (transcrito na nota 4, supra), em função do título deste e do texto expresso no respectivo clausulado, como contrato de promessa de trespasse, e não como contrato (definitivo) de locação/cessão de estabelecimento.

Esta questão, nos termos em que a decisão recorrida a resolveu, dizendo ser impossível encarar esse contrato – o texto efectivamente subscrito pelas partes – com o sentido pretendido pelos RR./Reconvintes (como contrato-promessa), tal questão, dizíamos, induziu na economia argumentativa do despacho recorrido as seguintes asserções consequenciais daquela, que posicionaram como cumulativamente determinantes da decisão de improcedência da reconvenção:

(a) (primeira asserção) inexistindo promessa de trespasse, por o contrato existente nunca poder corresponder a tal, inexistiu promessa passível de ser encarada como válida (teria a dita promessa de trespasse de revestir, como tal, a forma escrita[4]) e, nesse sentido, seria descabido executar especificamente essa promessa, sendo que isso corresponderia a assegurar o seu cumprimento coactivo (é esse o sentido da acção ex artigo 830º do CC[5]), pressupondo este a existência e a validade da promessa. Vale a execução específica aqui visada para a promessa e, porque o que há aqui não é um contrato de promessa, não tem a virtualidade de desencadear a execução específica;

(b) (segunda asserção) pela mesma razão – em qualquer caso por inexistir uma promessa tout court, e por inexistir uma promessa válida –, também não se poderiam desencadear nesta acção, por via do pedido reconvencional, as consequências próprias do incumprimento definitivo dessa hipotética promessa (concretamente a devolução do sinal em dobro, nos termos do artigo 442º, nº 2 do CC), sendo apodíctico que a afirmação do incumprimento de um contrato pressupõe a existência e validade deste, expressando ainda – expressando também –, pois, a existência e validade desse contrato o desencadear das consequências próprias da não realização da prestação por ele programada. O incumprimento representa, neste sentido, a existência do contrato, reintegrado no seu sentido identitário;

(c) (terceira asserção) e, enfim, referida agora de novo à execução específica – e abundando na afirmação da impossibilidade de consideração desse mecanismo de realização coactiva da prestação –, sempre ocorreria o obstáculo da “convenção em contrário” decorrente da existência de sinal[6] (artigo 830º, nº 2 do CC).  

É esta a lógica de actuação que subjaz à decisão de julgar desde logo a reconvenção improcedente de um ponto de vista substancial, já que esta fora considerada processualmente viável, e com esse âmbito admitida, nos termos do artigo 266º, nº 2, alínea a) do CPC.

Complementarmente, confirmando plenamente o sentido da decisão de afastar desde já tal reconvenção, frisaremos que o texto contratual constante de fls. 15/19 e transcrito na nota 4, não permite minimamente a configuração da estrutura de um contrato-promessa e não aponta para um trespasse.

2.1.1. Quanto à promessa é aqui expressiva a ausência de qualquer referenciação, ténue que ela fosse, de um outro contrato a cuja celebração ulterior as partes se vinculassem, ou de alguma forma parecessem estar a vincular-se. A vontade das partes, na dinâmica de uma programação contratual, apresenta-se-nos frequentemente através de formas indirectas, por vezes complexamente indirectas, quando não arrevesadas e sem linearidade. A descodificação dessa complexidade carece, todavia, para ser possível atribuir-lhe um determinado sentido – o sentido invocado por alguém como o real, quando tal sentido não corresponde ao que objectivamente se depreende do modelo empregue – de uma qualquer chave contextual interpretativa, intrínseca ou extrínseca, que nos permita alcançar o resultado (o resultado não evidente) que é afirmado como verdadeiro (como “o verdadeiro”).

Ora, traduzindo-se a promessa – e parafraseamos a definição legal constante do artigo 410º, nº 1 do CC – na convenção por via da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato[7], só valerá como promessa, como contrato individualizável como de promessa, aquele que contenha em si, como elemento reconhecível na sua formulação, a projecção do resultado traduzido em alcançar um determinado (outro) contrato ou resultado contratual em momento ulterior. Alguém tem, pois, que prometer celebrar certo negócio jurídico[8], projectando essa celebração para momento ulterior. Daí que não seja promessa o instrumento em que não se promete nada, rectius o contrato que, como aqui inegavelmente sucede, por assim dizer se esgota em si próprio nos seus efeitos, com o sentido de não projectar qualquer outro contrato (o prometido) como objectivo daquele (a promessa) do qual o primeiro se prefigure como meio.

Vale isto pela afirmação – e repetimos o que com total acerto disse o Senhor Juiz de primeira instância – de que uma cessão de exploração, quando esta é estabelecida sem mais (o “mais” teria aqui de passar pelo anúncio de uma ulterior vinculação a celebrar um trespasse), exclui pela sua própria natureza uma promessa referida a outro contrato, concretamente a um trespasse, “prometendo-se”, tão-só – e estamos apenas a jogar com as palavras, como ilustração de uma ideia –, o cumprimento actual e futuro daquilo que aí efectivamente se contrata: a locação de um estabelecimento comercial, “[a] transferência temporária e onerosa do gozo de um prédio ou de parte dele, em conjunto com a exploração de um estabelecimento comercial ou industrial nele instalado […]”, como se define no nº 1 do artigo 1109º do CC.

2.1.2. Esta questão entronca na outra dimensão do problema colocado pela reconvenção dos Apelantes, nos termos acima enunciados. Referimo-nos à impossibilidade, que é adicional à de ver no contrato de fls. 15/19 uma promessa, de neste ver a projecção de um ulterior trespasse.

Interessa a este respeito – e notamos que a argumentação aqui se move muito no domínio do que é, em si mesmo, óbvio – a diferença radical entre a locação de estabelecimento (também dita cessão de exploração), como transferência temporária da realidade unitária correspondente ao estabelecimento (artigo 1109º do CC), e o trespasse de estabelecimento, como transmissão a título definitivo dessa mesma realidade unitária (artigo 1112º, nº 1, alínea a) do CC)[9]. O argumento que, sublinhando isto, se constrói assenta na mútua exclusão de realidades intrinsecamente diversas (transmitir temporariamente – transmitir definitivamente), quando a transmissão que é estabelecida como temporária não é projectada como caminho para uma ulterior transmissão definitiva (para um ulterior trespasse). E, aliás, se fosse esse o caso – se a locação fosse aqui encarada como caminho para um futuro trespasse, tendo este de assumir, como acima vimos, forma escrita (artigo 1112º, nº 3 do CC)[10] –,se se tratasse de antecipar um trespasse por via de uma locação de estabelecimento, dizíamos, para que de promessa se tratasse, teria de existir vinculação expressa à celebração ulterior desse trespasse.

Aqui, como resulta de tudo o que antecedentemente se expôs, nada disso ocorreu.

2.2. O pano-de-fundo de tudo isto prende-se com a expressividade do contrato de fls. 15/19, com um sentido absolutamente incompatível com o propugnado pelos Apelantes, e, consequentemente, com os inultrapassáveis obstáculos interpretativos que essa expressividade coloca a qualquer tipo de acolhimento, mesmo como tema de prova em vista do prosseguimento da reconvenção, da tese dos Apelantes.

Trata-se aqui – e isto explica a decisão recorrida – de realizar uma aplicação prática do entendimento do artigo 236º, nº 1 do CC, quanto ao sentido dos negócios aqui envolvidos (claramente uma cessão de exploração, que se pretende ver como promessa de trespasse), com base na chamada “teoria da impressão do destinatário”. Com efeito, reconhecendo que estamos a tratar, em essência, de uma “questão-de-direito”[11], temos presente que a génese desse artigo 236º aponta para a consagração de um entendimento, fundamentalmente tributário da orientação preconizada por Manuel de Andrade:
“[…]
Abraçamos quanto à maior parte dos negócios jurídicos a teoria da impressão do destinatário. Segundo nos parece, o declaratário deve naturalmente perguntar-se, quando se trata de fixar o sentido da respectiva declaração negocial, o que quis dizer o declarante. Mas para obter a resposta não deve ser obrigado a empenhar toda a diligência e inteligência possível, mas só a duma pessoa razoável – isto é, mediana, normal –, que estivesse na posição concreta em que ele próprio está, daí a nossa preferência por aquela teoria.
[…]”[12].

            É assim que António Menezes Cordeiro fala da consagração, no artigo 236º, nº 1 do CC, “[…] da orientação preconizada por Manuel de Andrade, ainda que um pouco mais objectivada, acrescentando: “[n]a base deste preceito, a jurisprudência apela a uma ‘…interpretação objectiva ou normativa…’, que, não se apegue somente à literalidade do texto, compartilhada por todos, mas [seja] capaz de ter em conta particularidades concretas”[13], ponto é, acrescenta-se aqui, que essas particularidades tenham no texto algum tipo de apoio.

            Daí que – e continuamos a citar António Menezes Cordeiro:
“[…]
O artigo 236º/1 do CC tem subjacente o problema clássico da determinação da bitola da diligência. Como resulta claro do texto de Manuel de Andrade, perante uma declaração de vontade, o destinatário – que se considere habilitado a aceitá-la – deve fazer um certo esforço para se inteirar do seu significado. Qual o quantum de esforço exigível? Uma fasquia subjectiva, variável com as circunstâncias, vem premiar os néscios e os desinteressados. Uma fasquia fixa só estatisticamente será justa. Fica, assim, uma fasquia objectivamente variável: em cada caso se construirá (a «posição do real declaratário»), normativamente, a figura do destinatário normal. Repare-se que por esta via, podem ser recuperadas regras não explícitas na nossa lei tais como a da validação da interpretação mais directa, perante fórmulas muito claras e evidentes (in claris non fit interpretatio), a de uma «interpretação de boa fé», consagrada nos Códigos alemão (§ 157) e italiano (artigo 1366º) ou como necessidade de atender à globalidade do contrato, à totalidade do comportamento das partes – anterior ou posterior ao contrato –, à particularização das expressões verbais, ao princípio da conservação dos actos – o favor negotii – e, à primazia do fim do contrato. O declaratário normal, figura normativamente fixada, atenderá a todos estes vectores.
[…]”[14] (sublinhado acrescentado).

A isto acresce, como forte elemento interpretativo aqui presente, a natureza de negócio formal da promessa de trespasse, com a consequente necessidade (v. o artigo 238º, nº 1 do CC) de a declaração só valer – e estamos a alterar para a positiva a formulação negativa original da norma – com um sentido que tenha um mínimo de correspondência no texto, ainda que imperfeitamente expresso, significando isto que um sentido que seja contrário ao claramente expresso, antagónico até do inequivocamente expresso, não terá acolhimento: “[n]ão teria sentido […] que, quando a lei exigisse forma determinada, o que revestisse aquela forma tivesse um significado diferente daquilo que as partes vêm agora pretender que foi o seu entendimento comum. A exigência legal de forma ficaria frustrada”[15]. Serve isto para dizer que a excepção da possível validade de uma vontade real exterior ao sentido expresso na base documental (o que se prevê no nº 2 deste artigo 238º) não pode alterar a natureza do negócio expressa nessa mesma base através do texto; não pode, enfim, para falarmos do caso concreto, transformar em promessa de trespasse o que objectivamente expressa – e só nisso se expressa – (n)uma locação de estabelecimento[16].

2.2.1. Coisa diferente seria – mas não foi isso o que os RR. aqui alegaram na reconvenção – terem as partes celebrado efectivamente uma locação de estabelecimento como tal, transitoriamente, em vista de um ulterior trespasse. Embora mesmo isto não colha indícios no texto do contrato aqui em causa, não conduziria essa possibilidade à atribuição do carácter de contrato-promessa à locação efectivamente contratada, por falta do estabelecimento da promessa de ulterior celebração do trespasse.

Todavia, sublinha-se de novo, os RR./Reconvintes em lado algum dos respectivos articulados afirmam ter sido esse o caso.

2.3. Subsiste a questão do erro na declaração (artigo 247º do CC), também invocada pelos RR./Reconvintes, com o sentido de terem sido induzidos pelo A. a subscrever uma locação de estabelecimento, quando o negociado e a sua vontade real, alegadamente conhecida do A. seria a celebração da tal promessa de trespasse.

Esta incidência, todavia, prossegue na acção, estando devidamente caracterizada no despacho previsto no artigo 596º do CPC, através da identificação do objecto do litígio e da enunciação dos temas de prova (v. fls. 233/234), sendo que, a este respeito, como se indicou na primeira instância, a fls. 233, “[…] provando-se que existiu erro na declaração ou qualquer outro erro com relevância jurídica, tal poder levar à anulação do negócio e consequentemente à eventual restituição nos termos do artigo 289º do CC”, de montantes entregues pelos RR. ao A. ao abrigo do negócio anulado. Trata-se de matéria de excepção e como tal foi tratada pelo Tribunal a quo.

Valem todas estas considerações, e assim concluímos a apreciação do recurso, como confirmação da decisão recorrida, ao excluir desde já, por razões substanciais, a reconvenção pretendida deduzir pelos ora Apelantes.

2.4. Sumário elaborado pelo relator:
I – É da essência de um contrato de promessa – da convenção por via da qual alguém se obriga a celebrar certo contrato (artigo 410º, nº 1 do CC) – a projecção, em função de determinadas condições, de um resultado traduzido no alcançar de um outro contrato ou resultado contratual em momento posterior, vinculando-se as partes, ou uma das partes, à realização desse (outro) contrato;
II – Assim, não constitui contrato-promessa o acordo contratual que não projecta a realização de qualquer outro contrato;
III – Um contrato de “cessão de exploração de estabelecimento” (uma locação de estabelecimento nos termos do artigo 1109º do CC), que se esgota na transferência temporária e onerosa da exploração desse estabelecimento, não comporta, na falta de qualquer mínima indicação do texto contratual, a interpretação de corresponder a uma promessa de trespasse do estabelecimento em causa.


III – Decisão

            3. Assim, na improcedência da apelação, aqui se confirma a decisão recorrida.

            Custas do recurso a cargo dos Apelantes.
Tribunal da Relação de Coimbra, recurso julgado em audiência na sessão desta 3ª Secção Cível realizada no dia 24/06/2014 

(J. A. Teles Pereira -Relator)
(Maria Regina Rosa)
(Jaime Ferreira)


[1] Constituindo a interpretação do texto deste contrato um elemento central do despacho recorrido e do presente recurso, aqui o transcrevemos desde já:
“[…]
Contrato de Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial
Entre:
1. [O aqui A.]
2. [Os aqui RR.]
Cláusula Primeira

O Primeiro Contratante declara que é, em nome individual, dono e legítimo possuidor do estabelecimento comercial, instalado na fracção autónoma designada pela letra “E”, correspondente ao rés-do-chão direito, destinada a comércio, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito em …, freguesia de …, concelho de Leiria, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Leiria sob a ficha número …, freguesia de …, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n.º …, e com alvará de licença de utilização n.º…, emitido em … pela Câmara Municipal de Leiria, cuja actividade explora, fracção urbana essa que tomou de arrendamento a S… e mulher C…, o qual gira comercialmente sob a designação de “A… – Pastelaria Pão Quente”.

CLÁUSULA SEGUNDA

(Prazo, Duração e Denúncia)


1. Pelo presente contrato, o Primeiro Contratante cede ao Segundo Contratante a exploração do seu supra identificado estabelecimento pelo prazo de cinco anos, exploração essa que se iniciará em 15/04/2009 e terminará no dia 14/04/2014.

2. O prazo do contrato considerar-se-á prorrogado sucessivamente por períodos iguais ao previsto no número anterior se nenhuma das partes o denunciar com um pré-aviso de 6 (seis) meses antes do termo do prazo inicial ou do termo das prorrogações que eventualmente se verificarem.

3. A denúncia do contrato será feita por carta registada com aviso de recepção a enviar pela parte denunciante para o domicílio da outra parte.


CLÁUSULA TERCEIRA

(Utilização dos Componentes do Estabelecimento)


Enquanto durar a presente cessão, o Segundo Contratante utilizará todos os móveis, máquinas, equipamentos, utensílios, loiças e demais objectos que se encontram no aludido estabelecimento comercial, e que constam de uma relação junta como anexo, assinada por ambos os contratantes e que faz parte integrante deste contrato, devendo, no termo deste, devolver uns e outros no estado em que os recebeu, e obrigando-se desde já o Segundo Contratante a substituir os que se inutilizarem ou perderem, ressalvadas as deteriorações normais decorrentes de um uso prudente e de uma correcta utilização em conformidade com os fins deste contrato.

CLÁUSULA QUARTA

(Retribuição mensal pela cessão de exploração)


1. Pela ora contratada cessão, o Segundo Contratante pagará ao Primeiro Contratante, a título de retribuição, a importância mensal de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) por mês, acrescido do I.V.A. legal em vigor, e no primeiro dia útil de cada mês.

2. No caso de prorrogação do presente contrato, o montante da contrapartida mensal referida no número anterior será actualizado por acordo das partes, até 7 (sete) meses antes do termo do prazo inicial ou do termo das prorrogações que eventualmente se verificarem.


CLÁUSULA QUINTA

(Responsabilidade do Segundo Contratante)


1. A partir da data da assinatura do presente contrato, o Segundo Contratante será o único e exclusivo responsável, em juízo e fora dele, por tudo quanto ao estabelecimento disser respeito para o que, expressamente, obriga-se a:

a) Pagar em devido tempo e pela forma legal todas as contribuições, impostos, taxas e multas e quaisquer outras quantias devidas ao Estado ou outros entes públicos pelo exercício da actividade no estabelecimento objecto da presente cessão;

b) Pagar todos os encargos relativos aos empregados que trabalhem ou possam vir a trabalhar sob a sua

responsabilidade no estabelecimento cuja exploração ora se cede;

c) Pagar as despesas de electricidade, água, gás, telefone e quaisquer outras que com elas se relacionem;

d) Pagar os seguros referentes ao estabelecimento;

e) Pagar a todos os fornecedores o que comprar para exposição, uso ou venda no estabelecimento;

f) Prestar serviço dentro das normas legais vigentes, nomeadamente, não praticando no estabelecimento quaisquer actos para os quais não disponha de licença e obtendo todas as licenças legais necessárias à prática de actos de comércio que sejam conexos ou complementares da actual vocação comercial do estabelecimento e que venham a ser consideradas convenientes para a prossecução dos fins a que o estabelecimento se destina.

2. O Segundo Contratante responderá perante o Primeiro Contratante por todos e quaisquer prejuízos que para este advenham, resultantes do funcionamento ilegal do estabelecimento cuja exploração ora se cede.


CLÁUSULA SEXTA

(Responsabilidade do Primeiro Contratante)


O Primeiro Contratante permanece responsável pelo pagamento da renda ao senhorio, cumprindo todas as demais obrigações decorrentes do respectivo contrato de arrendamento.

CLÁUSULA SÉTIMA

(Obras)


Enquanto durar a ora contratada cessão, o Segundo Contratante poderá fazer as adaptações e os arranjos interiores ou as decorações que bem entender, conquanto que não altere as divisões interiores, não podendo fazer quaisquer obras de modificação e ficando desde já obrigado a restituir o estabelecimento no estado em que o tomou de exploração.

CLÁUSULA OITAVA

(Incumprimento pelo Segundo Contraente)


Em caso de incumprimento pelo Segundo Contratante do presente contrato, este perderá a favor do Primeiro Contratante todas as importâncias que tenha entregue a este último e responsabiliza-se pelo pagamento dos montantes correspondentes às contrapartidas mensais da presente cessão até ao termo do contrato ou prorrogação de prazo que estiver a decorrer à data do incumprimento.

CLÁUSULA NONA

(Incumprimento pelo Primeiro Contraente)


Em caso de incumprimento do presente contrato por parte do Primeiro Contratante, fica este obrigado a devolver ao Segundo Contratante todas as quantias que dele tenha recebido acrescidas dos juros de mora legais contados desde a data da realização dos respectivos pagamentos.

CLÁUSULA DÉCIMA

(Responsabilidade)


Em caso algum assistirá ao Segundo Contratante qualquer direito de retenção sobre obras e/ou benfeitorias que porventura venha a efectuar no estabelecimento cuja exploração pelo presente se cede, não podendo levantar e/ou remover as mesmas obras ou benfeitorias sem consentimento escrito do Primeiro Contratante, não lhe assistindo igualmente direito a ser indemnizado por elas.

CLÁUSULA DÉCIMA PRIMEIRA

(Foro Judicial Competente)


1. Para resolução dos litígios emergentes do presente contrato serão competentes os tribunais da comarca de Leiria, com expressa exclusão de quaisquer outros.

2. No caso de haver necessidade de recurso a tribunal para resolver qualquer questão emergente do incumprimento pelo Segundo Contratante do presente contrato, é este obrigado a pagar todas as despesas do pleito, incluindo os honorários de advogados ou solicitadores, em que o Primeiro Contratante haja de incorrer para fazer face ao litígio.

[…]”.

 
[2] V. o Acórdão do STJ de 03/06/2011 (Pereira da Silva), proferido no processo nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, cujo sumário está disponível na base do ITIJ, directamente, no seguinte endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f9dd7bb05e5140b1802578bf00470473:
Sumário:
“[…]
[O] que baliza o âmbito do recurso, tal sendo, afora as de conhecimento oficioso, as questões levadas às conclusões da alegação do recorrente, extraídas da respectiva motivação (artigos 684.º n.º 3 e 690.º n.º 1 do CPC), defeso é o conhecimento de questão não aflorada naquelas, ainda que versada no corpo alegatório.
[…]”.
[3] Temos neste recurso, enquanto “factos” a considerar, as incidências expressas no teor dos articulados relatadas neste Acórdão ao longo do item 1. (o que as partes nessas peças afirmam e a dinâmica factual que por essa via geram na acção permitem extrair asserções de facto). E temos, com particular expressividade, o teor do contrato junto a fls. 15/19, que os RR. reconhecem ter assinado com aquele exacto teor, gerando assim uma significativa incidência factual operante na acção: a que se expressa na circunstância de terem assinado eles aquele documento com o título “Contrato de Cessão de Exploração de Estabelecimento Comercial”, contendo todas aquelas onze cláusulas. Coisa diferente é, como veremos, a de saber se era isso – uma locação de estabelecimento e aquelas cláusulas orientadas a tal efeito – o que os RR. verdadeiramente pretendiam.
[4] É o que se deduz da conjugação interpretativa do artigo 410º, nº 2 do CC com o artigo 1112º, nº 1, alínea a) e nº 3 do CC, tendo presente que o contrato aqui em causa foi celebrado em 01/04/2009 (v. artigos 59º, nº 1 e 65º, nº 2 do chamado NRAU, Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro).
[5] Obter sentença produzindo os efeitos da declaração negocial do faltoso, ou seja, alcançando-se através desta a realização do contrato prometido.
[6] Os RR., no intento de afirmar a existência de um contrato-promessa, assumem expressamente – pretendem que se considere – que o que pagaram ao A. teria a natureza de sinal.
[7] V., desenvolvendo os problemas de delimitação colocados por esta definição legal, Mário Júlio de Almeida Costa, Contrato-Promessa. Uma síntese do regime vigente, 8ª ed., Coimbra, 2004, pp. 11/12, notas 1 a 4.
[8] Fugindo à identificação, algo redutora, com um contrato, fala-se em promessa de celebrar certo negócio jurídico, abrangendo negócios bilaterais e unilaterais, como ulterior realidade visada pela promessa (neste sentido, João Calvão da Silva, Sinal e Contrato Promessa, 12ª ed., Coimbra, 2007, p. 17).
[9] “O estabelecimento pode ser objecto de transmissão definitiva ou temporária. Trata-se, de resto, do ponto mais significativo do seu regime: a possibilidade da sua negociação unitária, através de trespasse – se essa transmissão for definitiva – ou cessão de exploração – se a cedência do estabelecimento for meramente temporária (artºs 1109º e 1112º, nº 1, a) do CC)” [trecho do sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/04/2012 (Henrique Antunes), no processo nº 221/09.0TBCDN.C1, disponível na base do ITIJ em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/ecdfae890cfefb39802579f4004c8e92].
“II - Configura um contrato de cessão de exploração de estabelecimento ou locação de estabelecimento, o contrato pelo qual uma das partes cede à outra por determinado prazo e mediante pagamento duma contrapartida mensal, o direito de exploração de estabelecimento comercial de snack-bar, transferindo para esta última o mobiliário e equipamento indispensáveis ao seu funcionamento, apesar de ainda não ter havido aí clientela nem até então ter sido aí exercida qualquer actividade” (trecho do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/2012 (Granja da Fonseca), no processo nº 5527/04.2TBLRA.C1.S1, disponível na base do ITIJ em:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7508633cd0bacc89802579e6003c5dc6].
V. a caracterização do trespasse como transmissão definitiva da titularidade do estabelecimento comercial, Antunes Varela, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3701, p. 253, nota 1.
[10] V., quanto a uma hipótese de promessa de trespasse, situada na vigência do RAU, o Acórdão desta Relação de 29/11/2005 (Hélder Roque), no processo nº 3351/05, disponível na base do ITIJ em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/fc1a4b883021a829802570d80057091.
[11] “Consequência directa da natureza jurídico-cientifica da interpretação das declarações de vontade é a sua recondução às questões-de-direito” (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo I, 3ª ed., Coimbra, 2005, p. 743).
[12] Manuel A. Domingues de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, reimpressão, Coimbra, 2003, p. 311.
[13] Tratado de Direito Civil Português, I, cit., p. 760.
[14] Tratado de Direito Civil Português, I, cit., p. 760/761.
[15] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil. Teoria Geral, Vol. II, Coimbra, 1999, p. 169.
[16] No sentido de que a mutação do negócio formal contra o teor do documento só pode incidir sobre questões não estruturais do tipo negocial, cfr. Pires de Lima, Antunes Varela, Código Civil anotado, Coimbra, 1987, pp. 225/226.