Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1556/15.9T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUIS CRAVO
Descritores: GESTÃO PROCESSUAL
PEDIDO DEFICIENTE
APERFEIÇOAMENTO
OMISSÃO
NULIDADE PROCESSUAL
Data do Acordão: 12/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE LEIRIA - LEIRIA - JC CÍVEL - 4ª SEC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.3, 6, 195, 197, 199, 200, 201, 590 CPC
Sumário: 1 – A verificar-se uma mera desarmonia entre o que se pede e os respectivos fundamentos (causa de pedir), e desde que se traduza numa deficiência na formulação do pedido que não comprometa a aptidão da petição inicial, deve o Juiz proferir um despacho de aperfeiçoamento vinculado, sob pena de o Juiz omitir um acto prescrito pela lei, dando causa a uma nulidade processual.

2 – Efetivamente, o nº 3 do artigo 590 do n.C.P.Civil estabelece o dever do juiz convidar as partes ao “suprimento das irregularidades dos articulados”, no que obviamente se inclui a deficiência na formulação do pedido constante da P.I..

3 – A omissão desse convite ao aperfeiçoamento da P.I., findos os articulados, com vista a esclarecer o verdadeiro sentido do petitório, consubstancia a violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual imposto pelos arts. 6º e 590º nos 2, 3 e 4 do n.C.P.Civil, gerando a dita nulidade processual.

4 – Essa nulidade processual encontra-se sujeita ao regime dos artigos 195º, 197º, 199º, 200º, nº 3, e 201º, todos do mesmo n.C.P.Civil, determinando a anulação do despacho saneador-sentença proferido no sentido da imediata improcedência da ação, por força do disposto no nº 2 do citado art. 195º.

Decisão Texto Integral:  




           Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

A (…), T (…), e M (…), todos residentes em (...) , Canadá, intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “S (…), Companhia de Seguros de Vida S.A.”, com sede na Rua (...) Lisboa.

Pediram a condenação da ré a pagar aos autores “uma indemnização no montante de 61.298,76€ (sessenta e um mil duzentos e noventa e oito euros e setenta e seis cêntimos) correspondente ao valor do contrato de seguro titulado pela apólice nº. 15000001, acrescido dos juros de mora à taxa legal, a partir da citação até efetivo e integral pagamento”.

Para alicerçarem essa sua pretensão, alegaram, em suma:

- A 1ª autora foi casada com M (…), falecido em 6 de dezembro de 2012.

- Sucederam-lhe, além da autora, os seus dois filhos, os aqui 2º e 3º autores.

- Em 30 de abril de 2007, a 1ª autora e o seu falecido marido adquiriram a fração autónoma designada pela letra F do prédio em propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o nº. 4765/19970224 F M (...) e inscrito na respetiva matriz sob o artº 7887 da freguesia de M (...) , deste concelho, pelo valor declarado de €85.000,00. Essa fração foi adquirida com recurso a crédito bancário junto do Banco (…)SA no montante de €85.000,00, tendo o banco mutuante, além de garantir o seu crédito por hipoteca, exigido à autora e ao seu falecido marido que contratassem um seguro de vida afeto a essa finalidade.

- Por isso, a 1ª autora e o seu falecido marido contrataram com a ré um seguro de vida abrangendo os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, no montante inicial de €61.298,76, que ficou titulado pela apólice nº.15000001.

- Esse seguro garante o pagamento do capital máximo em dívida ao beneficiário, neste caso o S (...) , em caso de “morte até aos 75 anos” e de “invalidez total permanente por doença ou acidente até aos 65 anos” quer da 1ª autora, quer do seu falecido marido.

- O marido da autora foi encontrado morto na sua habitação em Leiria no dia 6/12/2012. Chamadas as “autoridades competentes” e não tendo “antecedentes patológicos conhecidos foi, por mero dever do ofício, aberto um inquérito”, o qual veio a ser arquivado por despacho do Ministério Público datado de 14/06/2013.

- “Compulsado o respetivo relatório de autópsia constatam-se as seguintes conclusões:

1ª. Conjugados os achados autópticos e o resultado dos exames complementares efetuados, é do admitir que a morte de M (…) foi devida a cardiopatia isquémica grave.

2ª. Tal estado mórbido é causa de morte natural.

3ª. A análise toxicológica efetuada revelou-se negativa para todas as substâncias pesquisadas”.

- Face a essa situação, a 1ª autora acionou a cobertura garantida pela apólice emitida pela ré.

- À data do óbito do marido e pai dos autores, o montante em divida à ré era de €61.298,76, sendo que “o pagamento dessa indemnização foi-lhes recusado pela ré”, pelos fundamentos que melhor precisaram e dos quais discordam.

- “Não resta, pelo exposto, outra alternativa à ré que não seja a de pagar a quantia que contratualmente se havia obrigado com a 1ª autora e o seu falecido marido agora representado pelos autores seus herdeiros”.

A ré foi citada e apresentou contestação, na qual começou por chamar à colação as “particularidades do contrato de seguro do grupo vida celebrado”, o qual, nomeadamente, tem como beneficiário “o Banco” (e não, diretamente, os aqui autores).

Alegou, seguidamente, que o falecido marido da 1ª autora prestou declarações falsas ou inexatas acerca do seu estado de saúde, aquando da subscrição da proposta de adesão ao seguro, pelo que esse seguro deve ser considerado ineficaz.

Impugnou alguns dos factos alegados na petição inicial e terminou pugnando pela improcedência da ação.

*

Por despacho de 16.10.2015 (e pelos fundamentos nele vertidos), foram as partes notificadas para dizerem o que tivessem por conveniente acerca da possibilidade da prolação da subsequente decisão por escrito, dispensando-se a realização da audiência prévia, no pressuposto de os autos facultarem os elementos necessários ao conhecimento, pelo menos parcelar, do mérito da causa.

Nenhuma das partes se veio opor ao procedimento proposto, nem aduziu o que quer que fosse.

                                                           *

Na sequência, o tribunal a quo prosseguiu com a prolação de despacho saneador-sentença, começando por afirmar a verificação dos pressupostos processuais, após o que, definindo a “principal questão de direito” que importava dilucidar como consistindo em “saber se o contrato de seguro invocado pelos autores na sua petição inicial (a ser considerado válido e eficaz) é idóneo à produção do efeito jurídico por aqueles pretendido (ou seja, a dele emergir, para a ré, a obrigação de lhes pagar a visada indemnização)”, e depois de se alinharem os factos que se julgavam provados nessa fase processual, se passou a apreciar essa dita questão, relativamente ao que se entendeu que “contrariamente ao que é entendido pelos autores – vide o artigo 20º da petição inicial -, do contrato de seguro que integra a vertente causa de pedir não emerge, para a ré, a obrigação de pagar aos autores o valor que estava em dívida a Banco (…) S.A. aquando da morte do marido da 1ª autora e pai dos demais autores, pelo que improcede o pedido”, termos em que, considerando-se desnecessário o prosseguimento dos autos para conhecimento dos factos controvertidos, se concluiu, sem mais, pela manifesta improcedência da ação e, consequentemente, pela absolvição da ré do pedido.

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            Inconformados com esse despacho saneador-sentença, apresentaram os AA. recurso de apelação contra o mesmo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

(…)

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            Apresentou, por sua vez, a Ré contra-alegações, das quais extraiu as seguintes conclusões:

(…)

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detectar o seguinte:

            - o saneador-sentença recorrido constituiu uma decisão surpresa, como tal geradora da correspondente nulidade?;

            - omissão do convite ao aperfeiçoamento – de convidar as partes a praticar os atos necessários à regularização da instância?;

- sendo o contrato de seguro ajuizado um Contrato a Favor de Terceiro, celebrado entre eles AA./recorrentes enquanto mutuários e a Instituição de Crédito, devendo o pedido dos ora recorrentes ser interpretado, como resulta da economia de toda a petição inicial, no sentido de considerar que o pedido de indemnização foi feito de forma a que fosse disponibilizado o montante em dívida a fim de se extinguir a obrigação contratualizada?;

            - desacerto da decisão ao não ter tirado a devida consequência da exceção dilatória de ilegitimidade?

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo:

1. A 1ª autora e o seu então marido, M (…), adquiriram a fração autónoma designada pela letra F do prédio em propriedade horizontal descrito na Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o nº4765/19970224 F M (...) e inscrito na respetiva matriz sob o artigo 7887 da freguesia de M (...) , deste concelho, pelo valor declarado de € 85.000,00. Essa fração foi adquirida com recurso a crédito bancário junto do Banco (…) SA no montante de € 85.000,00, tendo o banco mutuante, além de garantir o seu crédito por hipoteca, exigido à autora e ao seu falecido marido que contratassem um seguro de vida afeto a essa finalidade.

2. Por isso, a 1ª autora e o seu então marido contrataram com a ré, em 30/04/2007, um seguro de vida abrangendo os riscos de morte e invalidez absoluta e definitiva, que ficou titulado pela apólice nº15000001.

3. Esse seguro tinha como segurados a aqui 1ª autora e M (…) e como beneficiário Banco (…) S.A., pelo capital em dívida à data da ocorrência e, quanto ao capital remanescente ao capital em dívida à data da ocorrência, os herdeiros legais (nos moldes melhor vertidos no doc.4 junto com a petição inicial).

4. M (…) faleceu no dia 6/12/2012 (doc.6 junto com a petição inicial).

5. Nessa data, estava em dívida a Banco (…) S.A. a quantia de € 61.298,76.

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1 - Cumpre então entrar na apreciação da primeira questão supra enunciada, a saber, que o saneador-sentença recorrido constituiu uma decisão surpresa, como tal geradora da correspondente nulidade:

A resposta negativa a esta questão configura-se, quanto a nós, como incontornável, face ao iter processual que teve lugar nos autos.

Senão vejamos.

Como doutamente sublinhado, nessa parte, pela Ré/recorrida nas suas contra-alegações de recurso, os AA./recorrentes foram devidamente notificados da contestação apresentada nos autos pela Ré/Recorrida, da qual consta, nomeadamente, a configuração jurídica e as particularidades de um seguro de grupo, tal como aquele ao qual aderiram os AA./recorrentes, sendo que, após apresentação dos articulados das partes, foi proferido despacho, em 16.10.2015, devidamente notificado às partes, do seguinte teor: «Atendendo aos elementos carreados para o processo (mormente, os documentos que dele constam) a par dos factos que integram a causa de pedir nesta acção, pensa-se que o estado dos autos habilita a que se faça, desde já, um conhecimento (pelo menos parcial) do mérito da causa, isto sem prejuízo de uma ulterior ponderação em sentido diverso.

Não se olvidando o que dispõe o artigo 591º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil, mas fazendo uso do dever de gestão processual e do princípio da adequação formal, previstos, respectivamente, nos artigos 6º e 547º, do Código Processo Civil, entende-se adequada a prolação de decisão por escrito, dispensando-se a realização de audiência prévia.”

Este dito despacho foi seguido de uma notificação às partes para, em 10 dias, dizerem o que tivessem por conveniente quanto à possibilidade da prolação da subsequente decisão por escrito, com esclarecimento de que se entenderia o silêncio como não oposição, sucedendo que nenhuma das partes, designadamente os AA./recorrentes, se vieram opor ao procedimento proposto, nem aduziram o que quer que fosse.

Ora se assim se passaram as coisas nos autos, não vemos como contrariar o entendimento de que o juiz a quo adotou o dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição supra partes constitucionalmente atribuído ao Julgador, na medida em que antes da prolação da decisão recorrida informou as partes que se encontrava em condições de proferir decisão dando-lhes, no entanto, possibilidade de se pronunciarem antes de tal...

Sendo certo que no plano das questões de direito, se é expressamente proibida a decisão-surpresa, ex vi do art. 3º, nº3 do n.C.P.Civil, tal tem o sentido de proibição de “decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes[2].  

O que não foi seguramente o caso, atento o sustentado expressamente pela Ré/recorrida no articulado de contestação que apresentou, mormente nos arts. 3º a 11º do mesmo.

Na verdade, a linha de defesa aí apresentada com referência a este aspeto, foi claramente no sentido de que o Banco mutuante, na eventualidade de ocorrer algum facto relativo à pessoa do mutuário (leia-se, o falecido) que pudesse colocar em risco a solvabilidade do crédito concedido, assegurava o pagamento junto de uma Companhia de Seguros, que na circunstância foi a ora Ré/recorrida, isto é, que “Tais seguros de vida são feitos em benefício do Banco que, por essa via, pretende assegurar o recebimento do capital mutuado em dívida à data do eventual sinistro que envolva a pessoa do mutuário” (sublinhado nosso).

Dito de outra forma: foi muito claramente alegado na contestação que quem tinha direito a receber o capital seguro em causa, em consequência do falecimento ocorrido, era o Banco mutuante, por ser o “beneficiário” do seguro, alegação esta feita com suporte documental, e em termos que não consentiam outra qualificação jurídica.

Acresce que foi expressamente facultado às partes pronunciarem-se sobre a perspectivada decisão de mérito em sede de despacho saneador, antes de o mesmo ter lugar, esclarecendo-se que tal ía ter lugar em função da causa de pedir enunciada na sua conjugação com os elementos constantes dos autos, designadamente os documentos juntos, donde, agindo com a diligência devida, os AA./recorrentes não podiam ter deixado de “considerar” o fundamento em que assentou a decisão recorrida.

Assim, se não o intuíram então por deficiência ou desatenção, ou se optaram por nada lhe objectar oportunamente, em qualquer dos casos “sibi imputet” …

Termos em que improcede este primeiro argumento recursivo.

                                                           *

4.2 - Questão da omissão do convite ao aperfeiçoamento (de convidar as partes a praticar os atos necessários à regularização da instância).

Que dizer?

Desde logo, que a resposta para uma tal questão está dependente da prévia compreensão da natureza do contrato de seguro em causa.

Na verdade, no caso vertente estamos perante um contrato de seguro de grupo[3] que, segundo o art. 76º do DL nº 72/2008, de 16 de Abril, cobre riscos de um conjunto de pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo que não seja o de segurar.

Neste tipo de contrato de seguro, o tomador de seguro é o sujeito que celebra o contrato de seguro com a seguradora, enquanto que o segurado é a pessoa segura.

Tenha-se presente que «I - A formação de um contrato de seguro de grupo estabelece-se em dois momentos distintos: num primeiro, o contrato é celebrado entre a seguradora e o tomador do seguro, estando prevista a possibilidade de virem a existir pessoas seguras, que serão aquelas que vierem a aderir e que terão o seguro com as coberturas e nos termos que foram contratados; num segundo momento, o tomador de seguro promove a adesão ao contrato junto dos membros do grupo, começando o contrato a produzir efeitos, como seguro, no momento da primeira adesão, ou num momento posterior se tal for acordado pelas partes.».[4]

Ora, face aos factos dados como provados, é precisamente isto que resulta ter-se verificado no caso vertente: estamos perante um contrato de seguro de grupo, entre a instituição bancária “Banco (…) S.A.” e a Seguradora Ré/recorrida, o qual surge para serem associados a empréstimos bancários concedidos pela primeira, enquanto entidade bancária, aos seus clientes para compra de habitação própria, sendo que, nos termos do mesmo, a Ré/recorrida, enquanto seguradora, garante à instituição bancária mutuante, enquanto entidade que concede o empréstimo, tomadora do seguro e beneficiária do seguro, o valor do empréstimo (concedido) sendo, no caso em apreço as pessoas seguras, a aqui 1ª autora e o seu então marido.

Neste conspecto, não se pode deixar de concluir, como, aliás, se fez no despacho saneador-sentença recorrido, que “Verificado o evento que determina a obrigação contratual da Ré – o risco do contrato – em 06.12.2012, com a morte do marido da 1ª autora, incumbia à ré – caso persistisse a validade e eficácia do contrato de seguro – pagar – não aos autores, mas – ao terceiro beneficiário do seguro – o Banco Tomador – o valor que então estivesse em dívida no âmbito do aludido contrato de mútuo.

Sucede que, face ao petitório tal como formulado no final da p.i., não decorre ser essa a concreta obrigação que os AA./recorrentes deduziram perante a Ré/recorrida, na medida em que, ao invés, pretendem que o pagamento da quantia de € 61.298,76 (que alegaram corresponder ao montante em dívida à instituição bancária mutuante aquando da referida morte), lhes seja feito (a eles AA., ora recorrentes) e a título de indemnização.

Tendo sido precisamente face a tal, isto é, porque vistos os factos alegados pelos Autores à luz das normas legais aplicáveis, mesmo que provados aqueles factos, não seriam suscetíveis de conferir àqueles o direito à indemnização visada, que no saneador-sentença se concluiu desde logo pela manifesta improcedência da acção.

Sucede que, em nosso entender, se deteta mais concretamente uma patente incongruência por parte dos AA./recorrentes na forma como delinearam na p.i. a causa de pedir da acção e, face a ela, vieram a literalmente formular o pedido.

Com efeito, tendo exposto a sua causa de pedir em moldes consentâneos com o já referido seguro de grupo, concluíram no art. 20º dessa p.i. nestes precisos concretos termos: «Não resta, pelo exposto, outra alternativa à Ré que não seja a de pagar a quantia que contratualmente se havia obrigado com a 1ª A. e o seu falecido marido agora representado pelos AA. seus herdeiros.»

Isto é, neste último artigo do seu articulado não sustentam que o pagamento deve ter lugar a favor dos próprios, e como “indemnização”, mas mais direta e singelamente que a Ré se encontra obrigada a um tal pagamento.

Será então que se devia falar de uma contradição entre a causa de pedir e o pedido?

Em nosso entender a resposta deve ser negativa, pois que o que na verdade ocorre é uma deficiência na formulação do pedido, consequente de uma simples desarmonia entre os dois elementos objectivos da instância, a causa de pedir e o pedido.

Já a conclusão seria diversa – autorizando então que se falasse de uma verdadeira contradição (entre a causa de pedir e o pedido) – se porventura se verificasse uma “negação recíproca, um encaminhamento de sinal oposto … uma conclusão que pressupõe exactamente a premissa oposta àquela de que se partiu.[5]

De facto, um caso de evidente contradição seria o de o autor arguir a nulidade do contrato e concluir pela condenação do réu no pagamento de uma prestação emergente desse mesmo contrato, ou quando se alega a nulidade de determinado negócio jurídico (v.g. com base em simulação absoluta) para se concluir pedindo o reconhecimento do direito de preferência e a transmissão para o preferente da titularidade do bem.[6]   

Por outro lado, também não nos parece que no caso vertente se verificasse uma falta real de um pressuposto (seja de facto ou de direito) da concessão da providência requerida, pois que, insofismavelmente existe a obrigação de pagamento do valor seguro, face à verificação do evento (morte) que constituía o risco do contrato.

Atente-se que no caso vertente sendo a Instituição Bancária a beneficiária imediata do pagamento a ter lugar, os AA./recorrentes não deixavam de ser os beneficiários mediatos desse pagamento, pois que o mesmo se traduziria, em último termo, na sua desobrigação, enquanto mutuários, perante a Instituição Bancária mutuante, do que decorre a sua incontestável legitimidade processual e interesse direto em agir… 

Ora se assim é, isto é, se não se verificavam essas situações mais graves que podem afectar a pretensão em juízo, será que é de sancionar a opção do tribunal recorrido, que foi a de concluir desde logo pela manifesta improcedência da pretensão/acção?

Cremos bem que não, pois que tal conflitua ostensivamente com o espírito que presentemente enforma o processo civil, fruto de uma evolução contínua nesse mesmo sentido.

Senão vejamos.

Ressaltando, como ressaltava, existir a apontada desarmonia entre a causa de pedir e o pedido, o senso comum aconselhava, o princípio da cooperação consagrado no art. 7º nos 1 e 2 do n.C.P.Civil exigia, e o dever de gestão processual previsto nos arts. 6º e 590º, nos 2, 3 e 4 do mesmo diploma impunha, que o Tribunal, findos os articulados, ao invés de proferir o despacho saneador-sentença, como fez, convidasse os AA., a esclarecer o exacto sentido do petitório, dada a sua desarmonia com a causa de pedir enunciada.

Isto tendo presente que numa acção como a ajuizada, o pedido formulado devia ser o de que a Ré fosse condenada no pagamento do valor contratado ao tomador – capital seguro actualizado à data do falecimento ocorrido (no montante a indicar) – e em dívida perante a beneficiária deste seguro de vida (nos termos da apólice em causa).

Sublinha-se agora que o melhor entendimento sempre foi no sentido de que, a verificar-se uma mera desarmonia entre o que se pede e os respectivos fundamentos, e desde que se traduza numa deficiência na formulação do pedido que não comprometa a aptidão da petição inicial, deve o Juiz proferir um despacho de aperfeiçoamento vinculado, sob pena de o Juiz omitir um acto prescrito pela lei, dando causa a uma nulidade processual.[7] 

E, a este propósito, já foi doutamente sublinhado o seguinte:

«3. A observação que importa fazer é que a omissão do convite ao aperfeiçoamento dos articulados pode efectivamente constituir uma nulidade processual (decorrente, naturalmente, de uma omissão do tribunal). O dever de cooperação que é imposto ao tribunal tem de ser “levado a sério”: ou esse dever é exercido com a finalidade que está subjacente à sua consagração na lei ou então não passa de um dever cujo incumprimento não tem qualquer consequência – o que, naturalmente, não se pode admitir.

Segundo o disposto no art. 590.º, n.º 2, al. b) e 3, nCPC, incumbe ao juiz providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, dirigindo o correspondente convite à parte. O juiz não tem, em todo e qualquer caso, de dirigir à parte o convite ao aperfeiçoamento do articulado. (…) se, mesmo que se fosse formulado um convite ao autor para aperfeiçoar a sua petição inicial, a acção haveria de improceder, não pela falta de esclarecimento de um facto constitutivo, mas pela falta de um facto constitutivo integrante da causa de pedir, é claro que não tem sentido dirigir esse convite. (…)

O que o tribunal não pode é deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (no despacho saneador ou na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado. Admitir o contrário seria desconsiderar por completo o dever de cooperação do tribunal: afinal, mesmo que este dever não tivesse sido cumprido, o tribunal poderia decidir como se tivesse sido dirigido à parte um convite ao aperfeiçoamento do articulado.

Resta concluir que, se o tribunal não convidar a parte a aperfeiçoar o seu articulado e, na decisão da causa, considerar improcedente o pedido da parte pela falta do facto que a parte poderia ter invocado se lhe tivesse sido dirigido um convite ao aperfeiçoamento, se verifica uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC): o tribunal conhece de matéria que, perante a omissão do dever de cooperação, não pode conhecer. Esta nulidade só pode ser evitada se, antes do proferimento da decisão, for dirigido à parte um convite ao aperfeiçoamento do articulado.»[8].
            Subscrevemos na íntegra este douto entendimento, com a exceção de que, em nosso entender, com
data venia, mais correto será o entendimento de que neste caso, a “omissão do acto”, em que consiste a nulidade, é anterior à prolação do despacho saneador-sentença, visto que a inobservância do que a lei exigia ao juiz situa-se em momento anterior a essa decisão; sendo assim, o vício processual não está no despacho saneador-sentença, encontra-se, necessariamente, antes dele, donde, não se trata de “uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC)”, mas antes se inclui na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 195º, nº1 do n.C.P.Civil.[9]

É certo que, tratando-se duma nulidade secundária, em regra, deveria ser arguida no prazo geral de 10 dias após o conhecimento, nos termos do disposto no art. 199º, nº1 do mesmo n.C.P.Civil, mas na medida em que esta nulidade se corporiza na sentença e só com a notificação desta se manifesta, sendo, por isso, a impugnação daquela, incindível desta, a sua arguição nas alegações do recurso interposto da sentença tem de ser considerada tempestiva.

Neste sentido, e relativamente a uma situação com paralelismo, foi sustentado o seguinte em douto aresto:

«A omissão desta diligência determinou que fosse proferida uma sentença, formalmente correcta, mas substancialmente inútil, porquanto deixou por resolver as questões que levaram as AA. a impetrar a intervenção do Tribunal, em suma deixou de realizar a sua mais lídima função, a de fazer a justiça do caso concreto.

A violação do princípio da cooperação e do dever convidar as AA. a esclarecer o verdadeiro sentido do petitório (perante duas formulações possíveis), inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 195º nº 1 e nas circunstâncias do caso sub judicio é indiscutível que a sua inobservância pelo tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa, ferindo de nulidade[4] a decisão tomada, face à grave omissão pelo senhor Juiz praticada, ao não convidar as AA, como devia, a esclarecer o sentido e alcance do pedido. Tratando-se duma nulidade secundária, em regra, deveria ser arguida no prazo geral de 10 dias após o conhecimento, nos termos do disposto no art.º 199º nº 1 do CPC. Acontece que esta nulidade corporiza-se na sentença e só com a notificação desta se manifesta, sendo, por isso, a impugnação daquela, incindível desta. Assim a sua arguição nas alegações do recurso interposto da sentença tem de ser considerada tempestiva[5].

A violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual, nas circunstâncias do caso, não constituindo um vício que determine a nulidade da sentença (art.º 615º nº 1 do CPC) sempre implicará a sua anulação por força do disposto no art.º 195º nº 2 do CPC. Assim impõe-se anular a sentença e ordenar a observância da formalidade omitida, ou seja o convite ao aperfeiçoamento da PI, por forma a não restarem dúvidas sobre o pedido (…)».[10]

Aqui chegados, dúvidas não restam de que se impõe a anulação da decisão recorrida, devendo o Tribunal a quo convidar os AA. a suprir a apontada deficiência na formulação do pedido, mais concretamente, a, nos termos do disposto no art. 590º, nº 3 do n.C.P.Civil[11], apresentarem articulado, em prazo a fixar, em que o pedido se mostre harmonizado com a causa de pedir que invocaram.

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Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas na apelação.

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5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – A verificar-se uma mera desarmonia entre o que se pede e os respectivos fundamentos (causa de pedir), e desde que se traduza numa deficiência na formulação do pedido que não comprometa a aptidão da petição inicial, deve o Juiz proferir um despacho de aperfeiçoamento vinculado, sob pena de o Juiz omitir um acto prescrito pela lei, dando causa a uma nulidade processual.

II – Efetivamente, o nº 3 do artigo 590º do n.C.P.Civil estabelece o dever do juiz convidar as partes ao “suprimento das irregularidades dos articulados”, no que obviamente se inclui a deficiência na formulação do pedido constante da P.I..

III – A omissão desse convite ao aperfeiçoamento da P.I., findos os articulados, com vista a esclarecer o verdadeiro sentido do petitório, consubstancia a violação  do princípio da cooperação e do dever de gestão processual imposto pelos arts. 6º e 590º nos 2, 3 e 4 do n.C.P.Civil, gerando a dita nulidade processual.

IV – Essa nulidade processual encontra-se sujeita ao regime dos artigos 195º, 197º, 199º, 200º, nº 3, e 201º, todos do mesmo n.C.P.Civil, determinando a anulação do despacho saneador-sentença proferido no sentido da imediata improcedência da ação, por força do disposto no nº 2 do citado art. 195º.

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6 – DISPOSITIVO

Assim, face a tudo o que se deixa dito, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência:

a) revoga-se a decisão recorrida;

b) ordena-se que o Tribunal a quo profira despacho a convidar os Autores a, nos termos do disposto no artigo 590º, nº3 do n.C.P.Civil apresentarem articulado, em prazo a fixar, em que o pedido se mostre harmonizado com a causa de pedir que invocaram.

Custas pela Ré/recorrida.

            Coimbra, 6 de Dezembro de 2016

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Fernando Monteiro

António Carvalho Martins)


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins

[2] Neste sentido, JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. Iº, 3ª ed., Coimbra Editora, a págs. 9.
[3] De referir que o regime jurídico dos contratos de seguro, que antes fazia parte do Código Comercial (arts. 425º e segs.), consta hoje de anexo ao DL nº 72/2008, de 16 de Abril, dispondo o art.º 1 que: «Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente».
[4] Citámos o acórdão do S.T.J. de 29/5/2012, no proc. nº 7615/06.1TBVNG.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt/jstj.
[5] Assim ANTUNES VARELA, in RLJ, ano 121º/122, a págs. 121; vide também este Autor, com assinalável profundidade sobre este tema, quando a págs. 90 e segs. da mesma obra, comentou o acórdão do S.T.J. de 10.11.83.
[6] Cfr. ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, in “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, a págs. 246.
[7] Assim A. ABRANTES GERALDES, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Volume, 4ª ed., Livª Almedina, 2010, a págs. 69-72.
[8] Citámos agora MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, no Blog do IPPC, in https://sites.google.com/site/ippcivil/, “Posted: 09 Apr 2014 11:35 AM PDT”.
[9] Neste sentido o acórdão do T. Rel. de Guimarães, de 23.06.2016, no proc. nº713/14.0T8VRL.G1, no qual, além do mais, se sustentou que a omissão deste despacho pré-saneador “constitui (…) nulidade  rocessual, sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º-3 e 201.º" . Com efeito, "caso o juiz de 1.ª instância, por circunstâncias várias, não exerça o poder vinculado do convite ao aperfeiçoamento  (art. 590.º, n.º 2) comete nulidade processual sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3, e 201.º”; no mesmo sentido, vide o acórdão do 15.05.2014, no proc. nº 26903/13.4T2SNT.L1-2, estando ambos os arestos acessíveis em www.dgsi.pt.
[10] Trata-se do acórdão do T. Rel. de Évora de 19.05.2016, no proc. nº124/14.7T8ABT.E1, acessível em www.dgsi.pt/jtre.
[11] No qual se preceitua expressamente o seguinte: “O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.