Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4255/15.8T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 11/17/2017
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – JUÍZO DO TRABALHO – J2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 12º DO CT/2003; ARTºS 1152º E 1154º DO C. CIVIL.
Sumário: I – Dos conceitos vazados nos artºs 1152º e 1154º do C. Civil decorre que as diferenças entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços são estabelecidas através, por um lado, da obrigatoriedade da retribuição (presente no contrato de trabalho, mas não necessariamente no contrato de prestação de serviços, embora na realidade também nele exista retribuição, na maioria dos casos); por outro, na prestação objecto do contrato – uma obrigação de meios (actividade, no contrato de trabalho) ou de resultado (no contrato de prestação de serviços) – e, por último, na existência ou não de subordinação jurídica do prestador de trabalho ao respectivo credor.

II – Decisivo para a distinção é o elemento ‘subordinação jurídica’, que consiste na circunstância de o prestador do trabalho desenvolver a sua actividade sob a autoridade e direção do empregador, o que significa a possibilidade de o credor do trabalho determinar o modo, o tempo e o lugar da respectiva prestação.

III – A prestação de trabalho nesses casos é heterodeterminada (pelo empregador), sendo que o grau de dependência do prestador do trabalho da autoridade e direcção do empregador pode ser maior ou menor, sobretudo no que se refere ao modo da prestação.

IV – No artº 12º do CT/2003 foi estabelecida uma presunção legal da existência de um contrato de trabalho, desde que verificados cumulativamente os cinco requisitos aí enunciados.

V – Essa norma foi alterada pela Lei nº 9/2006, de 20/03, onde passou a haver apenas dois requisitos ou índices, cujo preenchimento cumulativo presumiria a existência de um contrato de trabalho.

VI – O abuso de direito só deve ser convocado quando a disciplina legal adequada ao caso não tenha a virtualidade de evitar uma qualquer situação de flagrante injustiça que teime em subsistir. Por isso se diz que tal instituto funciona como uma válvula de segurança do sistema.

Decisão Texto Integral:













                        Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

                        A... veio instaurar a presente acção emergente de contrato de trabalho contra B.... pedindo que a) seja declarada a existência de contrato de trabalho celebrado entre si e o Réu; b) seja declarada a resolução com justa causa desse contrato celebrado em Março de 2009; c) seja o Réu condenado a pagar-lhe a quantia global de € 20.555,69, referente a créditos de formação profissional, trabalho suplementar, subsídios de refeição e de férias e de Natal referente ao período entre 2009 e 2014; d) seja o Réu condenado a pagar-lhe a quantia de € 8.370,00, referente a indemnização pela resolução com justa causa; e) seja o Réu condenado a pagar-lhe a quantia de € 25.000,00, referente a indemnização por “actos discriminatórios e de assédio”, bem como as despesas de contabilidade para regularização da sua situação fiscal e quotizações na Segurança Social, a apurar em liquidação de sentença e ainda juros de mora.

                        Para tanto, alegou, em resumo, que foi admitida ao serviço do Réu, mediante contrato de trabalho, para exercer as funções de advogada sua subordinada. Mais alegou factos sustentadores dos pedidos de condenação do Réu.

                        O Réu contestou, concluindo pela improcedência da acção, […]

                        Deduziu ainda reconvenção, pedindo a condenação da Autora a pagar-lhe a quantia de € 25.000,00, mais devendo a Autora, caso a acção venha a ser julgada procedente, ser condenada a restituir os valores recebidos desde Fevereiro de 2009 a Dezembro de 2014, bem como condenada no pagamento da indemnização por falta de cumprimento do aviso prévio, correspondente às quantias que se vierem a liquidar em sede de execução de sentença, sendo essas quantias acrescidas de juros de mora. Concretamente, pediu a condenação da Autora no pagamento da quantia de € 5.000 decorrente dos danos de natureza não patrimonial advenientes de alegadas injúrias, a condenação como litigante de má fé, no pagamento de multa, bem como de indemnização a favor do réu no valor de € 10.000, a  condenação da Autora no pagamento da quantia de € 10.000 a título de compensação por danos morais causados com a instauração da presente acção.

                        A Autora apresentou resposta, pugnando designadamente pela competência da secção do trabalho do tribunal, pela improcedência das demais excepções e pela rejeição da reconvenção.

                        Em sede de despacho saneador, a Sr.ª Juíza do tribunal recorrido, considerou e decidiu designadamente o seguinte:

                        “(...)

                        Pelos fundamentos expostos, e atentas as normas legais citadas, decide-se julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria da Secção do Trabalho, invocada pelo R. B..., considerando esta 1.ª Secção do Trabalho competente para apreciar a presente acção.

                        (...)

                        Pelos fundamentos expostos, e atentas as normas legais citadas, decide-se julgar improcedente a excepção dilatória de incompetência em razão do território invocada pelo R. B..., considerando esta 1.ª Secção do Trabalho territorialmente competente para apreciar a presente acção.

                        (...)

                        Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente a arguição, efectuada pelo R. B..., na sua contestação, da nulidade decorrente de erro na forma do processo, considerando-se adequada a presente forma processual (comum) a que recorreu a A. A....

                        (...)

                        Pelos fundamentos expostos, decide-se julgar improcedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva deduzida, na sua contestação, pelo R. B..., considerando-o parte legítima para intervir nestes autos”.

                        Interposto recurso de apelação pelo Réu do despacho saneador, o tribunal a quo proferiu despacho admitindo o recurso unicamente na parte que o mesmo incide na decisão que apreciou a competência do tribunal e que apenas parcialmente admitiu o pedido reconvencional, não o admitindo quanto às demais questões. Deste despacho não houve reclamação.

                        Por acórdão deste Tribunal da Relação, foi julgada improcedente a apelação.

                        Realizado o julgamento, foi proferida sentença, cuja parte decisória transcrevemos:

                        “Pelos fundamentos expostos, e atentas as normas legais citadas, decide-se julgar a presente acção parcialmente procedente, bem como parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência:

                         1) Declara-se a existência de um contrato de trabalho sem termo, celebrado em 02 de Março de 2009, entre a A., A... e o R., B....

                        2) Condena-se o R., B..., a pagar à A., A..., a título de subsídios de férias e de Natal respeitantes aos anos de 2009 a 2014 e a título de crédito de horas para formação profissional, a quantia total de € 11.480,01 (onze mil, quatrocentos e oitenta euros e um cêntimo), acrescida de juros de mora a contar da citação, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se o R. do demais peticionado pela A., na acção.

                        3) Condena-se a A., A..., a pagar ao R., B..., a título de indemnização pela denúncia do contrato de trabalho, sem aviso prévio, a quantia de € 2.251,46 (dois mil, duzentos e cinquenta e um euros e quarenta e seis cêntimos), absolvendo-se a A. do demais peticionado pelo R., na reconvenção.

                        4) Não se condena qualquer das partes como litigante de má fé.

                                                                       * *

                        Custas da acção e da reconvenção, por A. e R., na proporção dos respectivos decaimentos (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do disposto no art.º 1.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho).

                                                                       x
                        Inconformada com o decidido, veio o Réu interpor recurso de apelação,  onde formulou as seguintes conclusões (sintetizadas após convite do relator nesse sentido):
                        […]

                         A Autora contra-alegou e apresentou recurso, onde formulou as seguintes conclusões:
                   […]

                        Ambas as partes contra-alegaram.

                        Foram colhidos os vistos legais.

                        O Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos.

                        Tudo visto, cumpre decidir.

                                                                       x

                        Como é sabido, o âmbito dos recursos  define-se pelas suas conclusões.

                        A este respeito, como ponto prévio e tal como já referimos no nosso despacho de 10/07/2017 (fls. 1692), este Tribunal de recurso não tem de apreciar todas as considerações, argumentos ou razões produzidas pela parte, mas tão só as questões objecto do mesmo recurso, entendidas as mesmas como aquelas que se reportam aos pontos fáctico-jurídicos estruturantes das posições assumidas pelas partes, ou seja, as que se prendem com a causa de pedir, com o pedido e com as (reais) excepções porventura aduzidas.

                        Nos presentes autos, e no recurso do Réu, a questão primordial a apreciar tem que ver com a eventual qualificação do contrato celebrado entre as partes como contrato de trabalho, sendo que, como mais adiante se desenvolverá, o traço distintivo determinante entre esse contrato e o de prestação de serviços reside na existência de subordinação jurídica no primeiro.

                        Assim sendo, porque em nada relevam para essa qualificação e porque a lei proíbe a prática de actos inúteis- artº 130º do CPC, devendo as decisões judiciais somente tratar da abordagem das questões que lhe são postas para apreciar, não serão objecto de apreciação os “argumentos” que o Réu- recorrente alinha nas suas conclusões (ainda extensas) 279 (“Prescrição honorários advogados”), 283 a 289 (“Regulação económica da actividade e tutela”), 290 a 304 (“Conta bancária da actividade profissional”) 306 a  312 (“Parceria sem fidelização”), 313 (“Actividade privada e pública”), 338 a 352 (“Da ausência de intimação para outorga de contrato e de acção para reconhecimento da existência de contrato de trabalho e, pelo contrário, do exercício conjunto de advocacia”) 357 a 362 (“Dos crimes de falsas declarações, procuradoria ilícita, usurpação de funções e falsificação de documentos e abuso de confiança”), 382 a 387 (“Princípio da prossecução do interesse público e protecção dos direitos e interesses dos cidadãos”) , 388 a 390 (“Princípio da justiça e da razoabilidade”), 391, 392 (“Princípio da boa-fé”) 396 a 399 (“Princípio da decisão”) e 400 a 402 (“Princípio da participação”).

                        Por outro lado, e no que toca à conclusão 448, a competência do tribunal foi já decidida, com trânsito em julgado, pelo acórdão desta Relação a que acima se fez referência.

                        Assim, e como questões em discussão, temos:

                        - no recurso do Réu:

                        - a nulidade da sentença;

                        - a impugnação da matéria de facto.

                        - a qualificação do contrato- de trabalho ou de prestação de serviço;

                        - o abuso de direito;
                   - litigância de má-fé da Autora;
                        - no recurso da Autora:
                        - se a Autora foi objecto de assédio moral por parte do Réu.
                                                                      x

                        Na 1ª instância considerou-se provada a seguinte factualidade:

                        […]

                                                                       x
                        O direito:
                        -a apelação do Réu:

                        Discute-se na acção a natureza da relação contratual que ligava a Autora ao Réu, sustentando a primeira a existência de um contrato de trabalho, e propugnando o segundo pela qualificação como contrato de prestação de serviço.

                        Como é bom de ver, a solução dada a esta questão, que constitui objecto do recurso do Réu, condicionará a sorte do recurso da Autora, que pressupõe que se adopte a conclusão de que o contrato existente era de natureza jurídico-laboral.

                        Assim, e naturalmente, começaremos pelo recurso do Réu.

                        - as nulidades da sentença:

                        Numa longa enunciação de fundamentos dessas nulidades, o Réu invoca-os nas conclusões 1 a 40,  414 a 437, bem como, aqui integrando a impugnação da matéria de facto na nulidade da sentença, nas conclusões 63 a 67 , 80 a 87, 95 a 113, e 123 a 147.
                        Contudo, tal arguição não obedeceu ao disposto no nº 1 do artº 77º do Cod. Proc. Trabalho, que estipula que a “arguição de nulidades da sentença é feita expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso”.
                         Esta regra peculiar de que as nulidades da sentença têm de ser arguidas expressa e separadamente no requerimento de interposição do recurso é ditada por razões de economia e celeridade processuais e prende-se com a faculdade que o juiz tem de poder sempre suprir a nulidade antes da subida do recurso (nº 3 do artº 77º). Para que tal faculdade possa ser exercida, importa que a nulidade seja arguida no requerimento de interposição do recurso que é dirigido ao juiz e não nas alegações do recurso que são dirigidas ao tribunal superior, o que implica, naturalmente, que a motivação da arguição também conste daquele requerimento.
                        E tem sido entendimento pacífico, a nível jurisprudencial, que o tribunal superior não deve conhecer da nulidade ou nulidades da sentença que não tenham sido arguidas, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, mas somente nas respectivas alegações - cfr., a título de exemplo, os Acórdãos do STJ de 25/10/95, Col. Jur.- Ac. do STJ,  1995, III, 279, e de 23/4/98, BMJ, 476, 297.
                        No caso em apreço, o recorrente remeteu toda a fundamentação da arguição da nulidade para as alegações do recurso.
                        Ou seja, não incluiu, tal como resulta obrigatório do referido artº 77º, nº 1, do C.P.T., no requerimento de interposição do recurso, a  decisiva e autónoma motivação da arguição, o que torna extemporânea a arguição da nulidade e obsta a que dela se conheça- cfr., neste sentido e entre outros, os Acórdãos do STJ de 28/1/98, Ac. Dout., 436, 558, de 28/5/97, BMJ 467, 412, de 8/02/2001 e 24/06/2003, estes dois disponíveis em www.dgsi.pt.
                        Entendimento também seguido no Ac. do STJ de 4/4/2001 (Revista 498/01), ao referir-se que a “arguição de nulidades tem se ser feita, obrigatoriamente, no requerimento de interposição do recurso, por forma explícita (ainda que sucintamente), dado que o requerimento de interposição constitui uma peça processual diferente das alegações, sendo que aquele é dirigido ao tribunal a quo e estas são-no ao tribunal ad quem”.
                        Por sua vez, o Ac. do Tribunal Constitucional nº 304/2005, DR, II Série, de 05/08/2005, decidiu que, em processo do trabalho, o requerimento de interposição de recurso e a motivação deste, no caso de arguição de nulidades da sentença, deve ter duas partes, a primeira dirigida ao juiz da 1ª instância contendo essa arguição e a segunda (motivação do recurso) dirigida aos juízes do tribunal para o qual se recorre.
                        Termos em que se não conhece das arguidas nulidades.

                        - a impugnação da matéria de facto:

                        Indica o Réu- apelante os concretos pontos da matéria de facto que considera mal julgados.

                        A impugnação de alguns deles, como já vimos supra, configura-a dentro das nulidades da sentença, não conhecidas por este Tribunal superior.

                        Quanto aos restantes, o recorrente apela não só à prova testemunhal- não objecto de gravação-, como aos documentos apresentados, que deverão ser complementados com aquela outra prova, e à fundamentação do despacho que decidiu a matéria de facto.
                        Importa ter sempre presente que um dos princípios basilares, em termos de apreciação de prova, é o da liberdade de julgamento, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e decide apenas com base na sua prudente convicção acerca de cada facto, não se exigindo, portanto, a este Tribunal da Relação que, no âmbito de uma reapreciação da prova produzida na audiência de discussão e julgamento levada a cabo na 1ª instância, procure formar uma nova convicção em termos de matéria de facto, circunstância que, pela própria natureza das coisas, levaria a que se devesse proceder a uma sistemática e global apreciação de toda a prova produzida em audiência, mas apenas a detecção e correcção de eventuais mas concretos erros de julgamento.

                        Na verdade, o que este Tribunal da Relação é chamado a fazer é verificar se a convicção expressa pelo Tribunal de 1ª instância na prolação de decisão sobre matéria de facto, e em relação aos pontos concretos objecto de impugnação, tem suporte razoável nos elementos de prova apresentados nos autos e produzidos em audiência, e, consequentemente, se uma tal decisão não deriva de erro de julgamento.

                        O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode deixar de respeitar a livre apreciação da prova obtida, na 1ª Instância, com base nos princípios da imediação e da oralidade.
                        A prova testemunhal é apreciada livremente pelo juiz (artºs 396º do C.C. e 607º, nº 5, do CPC) e que, como é sabido, a convicção do julgador forma-se em função da credibilidade que os depoimentos lhe merecem. Quem está em melhores condições para apreciar os depoimentos prestados em audiência é, atento o imediatismo impossível de obter na análise da matéria de facto na Relação,  o julgador de 1ª instância, que, por ser quem presencialmente conduz a audiência de julgamento, se encontra numa posição privilegiada para avaliar o depoimento em concreto, captando pormenores, reacções, hesitações, expressões e gestos, impossíveis de transparecer pela simples audição das gravações dos depoimentos.

                        Como refere Abrantes Geraldes, in Recursos no Processo do Trabalho, novo regime, 2010, pag. 67 “sem embargo dos naturais condicionalismos que rodeiam a tarefa de reapreciação de meios de prova oralmente produzidos, desde que a Relação acabe por formar uma diversa convicção sobre os pontos de facto impugnados, ainda que por interferência de presunções judiciais extraídas a partir de regras da experiência deve reflectir esse resultado em nova decisão”.

                        Só quando os elementos dos autos conduzam inequivocamente a uma resposta diversa da dada em 1ª instância é que deve o tribunal superior alterar as respostas que ali foram dadas, situação em que estaremos perante erro de julgamento.

                        Na reavaliação de facto o tribunal de recurso deve controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Mas encontra-se impedido de controlar o processo lógico da convicção no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle, quando foi relevante o funcionamento do princípio da imediação. Como referiu o Acórdão desta Relação, de 3/10/2000, in CJ, tomo 4, pág. 27, “a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, não pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas inserto no artigo 655, n.º 1 do C. P. Civil … E na formação dessa convicção entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova – seja áudio seja mesmo vídeo -, por mais fiel que ela seja das incidências concretas das audiência. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis …”.

                        Infere-se, sem qualquer dificuldade, do exposto que, para que este Tribunal de recurso possa exercer tal análise crítica quando são invocados depoimentos, os mesmos têm que ser objecto de gravação.

                        O controlo da matéria de facto, em sede de recurso, tem, nestes casos, por base a audição da gravação dos depoimentos prestados em audiência.

                        Só assim se pode dar cumprimento ao disposto no nº 1 do artº 662º do C.P.C., que refere que a matéria de facto só pode ser alterada pela Relação nas situações aí contempladas.

                        Com o objectivo de assegurar o duplo grau de jurisdição no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, torna-se necessário obter o integral registo da audiência, pois que só desse modo é possível que o processo contenha todos os elementos de prova que serviram de base àquela decisão.

                        Daí que o artº 155º do CPC estipule um conjunto de formalidades, indispensáveis à concretização daquele desiderato.

                        Uma regra a observar é a de que a gravação deve ser efectuada de modo a que facilmente se apure a autoria dos depoimentos gravados ou das intervenções e o momento em que os mesmos se iniciaram e cessaram - nº 1.

                        Outra regra é a de que a gravação deve ser integral, de modo que se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição, sempre que for essencial ao apuramento da verdade – nº 4.

                        O registo das provas produzidas ao longo da audiência de julgamento tem em vista ampliar as garantias das partes no processo, que, deste modo, podem, através do recurso, conseguir a correcção de erro de julgamento relativo à matéria de facto.

                        Só o registo magnético efectuado permite percepcionar ao  tribunal de recurso tudo o que foi dito pelas testemunhas ou por outros intervenientes processuais, designadamente juiz e advogados.

                        Na hipótese de não se ter sido procedido à gravação dos depoimentos, é completamente impossível, ao tribunal de recurso, sindicar, com o rigor e precisão que se impõem, a convicção do juiz no que toca à matéria de facto, precisamente porque não tem à sua disposição, com a necessária certeza e clareza, a totalidade dos elementos ou depoimentos relevantes para esse efeito.

                        E as declarações das testemunhas, incluindo as respostas dadas ao juiz e aos advogados, não podem ser descontextualizadas das perguntas por aqueles feitas, porque só assim se adquire plena percepção da prova testemunhal produzida.

                        Como tal, a não gravação não pode ser suprida, em termos de alteração da matéria de facto fixada na 1ª instância, pelo apelo à fundamentação exarada pelo juiz no despacho de fixação da matéria de facto, incluindo a referência expressa ao que terá sido dito pelas testemunhas, e às eventuais incorrecções lógico-dedutivas do raciocínio do mesmo.

                        Sem entramos na análise desta temática, no caso concreto, porque a tal o impede todas as considerações expendidas, diremos que tal método acarretaria a completa subversão do regime legal de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação, admitindo-se um claramente não previsto na lei sistema de depoimentos escritos, substituindo-se por este a indispensável oralidade e imediação dos depoimentos.

                        Além de que- e não quer dizer que tenha sido este o caso, na hipótese dos autos – poderá dar-se  a situação de, tendo o juiz apreciado correctamente os depoimentos e toda a outra prova, designadamente documental, produzida, tenha, por qualquer motivo, usada de incorrecção na transmissão, para a respetiva fundamentação, da sua convicção. Mas isso, repete-se, só é sindicável com a audição dos depoimentos gravados.

                        Nestes termos, sendo certo que os documentos invocados, desacompanhados dos depoimentos das testemunhas, só por si não são decisivos, como, aliás, decorre da alegações de recurso, improcede a impugnação da matéria de facto.

                        - a qualificação do contrato:

                        A sentença recorrida considerou que a relação que se estabeleceu entre Autora e Réu foi uma típica relação jurídico-laboral.

                        Alinhando, entre outras considerações:

                        “De facto, a A. (advogada) estava inserida na estrutura organizativa do R., realizando a sua prestação nos moldes melhor elencados na factualidade provada, nomeadamente, assegurar atendimento aos clientes, efectuando outras tarefas relacionadas com a actividade forense e de cariz mais administrativo, preparar acções judiciais, requerimentos avulsos, sob as orientações do R.; o trabalho da A. era realizado no escritório do R., observando o horário do escritório, horário esse previamente definido; a A. era retribuída em função do tempo despendido na execução da actividade e encontrava-se numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade, atento o tempo despendido a realizar trabalho para o R. (a normal jornada de trabalho diária e semanal), a periodicidade das contraprestações recebidas e o valor das mesmas; os instrumentos de trabalho eram exclusivamente fornecidos pelo R.; a prestação de trabalho foi executada por um período, ininterrupto, de quase 6 anos”.

                        Não nos merece qualquer censura este entendimento.

                        A questão da qualificação contratual é uma das que mais se discute nos nossos tribunais de trabalho, porque, efectivamente, na prática, é muitas vezes extremamente difícil estabelecer a fronteira entre as duas espécies contratuais que se caracterizam pela prestação de trabalho intelectual ou manual de uma pessoa em benefício de outra (contrato de trabalho / contrato de prestação de serviços).

                        Dos conceitos vazados nos artigos 1152º e 1154º do Código Civil decorre que as diferenças entre ambos são estabelecidas através, por um lado, da obrigatoriedade da retribuição (presente no contrato de trabalho, mas não necessariamente no contrato de prestação de serviços, embora na realidade também nele exista retribuição, na maior parte dos casos); por outro, na prestação objecto do contrato - uma obrigação de meios (actividade, no contrato de trabalho) ou de resultado (no contrato de prestação de serviços) - e, por último, na existência ou não de subordinação jurídica do prestador de trabalho ao respectivo credor.

                        Os dois primeiros elementos distintivos são pouco relevantes porque, por um lado, como se disse, serão actualmente muito raros os casos de contratos de prestação de serviços sem retribuição, face à total desadequação da gratuitidade do trabalho, no contexto de uma sociedade com as características da contemporânea; por outro lado, porque, mesmo quando o objecto da prestação é a actividade, em última análise, pretende-se sempre retirar dessa actividade uma utilidade, um resultado, que não é indiferente e, por outro lado ainda, em muitos contratos de prestação de serviços cuja qualificação não oferece quaisquer dúvidas, como seja, por exemplo, o estabelecido entre o médico e o seu paciente ou entre o advogado e o seu cliente, o que aquele tem de prestar é apenas a sua actividade, não o resultado, que é aleatório.

                        Decisivo para a distinção acaba, pois, por ser o elemento "subordinação jurídica" que consiste na circunstância de o prestador do trabalho desenvolver a sua actividade sob a autoridade e  direcção do empregador, o que significa a possibilidade de o credor do trabalho determinar o modo, o tempo e o lugar da respectiva prestação. A prestação de trabalho nesses casos é heterodeterminada (pelo empregador), contrapondo-se ao trabalho autodeterminado em que, em princípio, cabe apenas ao próprio trabalhador a definição do modo, tempo e lugar da prestação. No trabalho heterodeterminado o grau de dependência do prestador do trabalho da autoridade e direcção do empregador pode ser maior ou menor, sobretudo no que se refere ao modo da prestação, diminuindo, sensivelmente à medida que aumenta a especificidade técnica exigida para o desempenho da actividade. O contrato de trabalho não é incompatível com a salvaguarda da autonomia técnica do trabalhador, sendo possível o desempenho de funções de elevada craveira técnica e intelectual em regime de subordinação jurídica.

                        A crescente flexibilização das formas de emprego tem contribuído para um aumento exponencial dos casos nebulosos, de fronteira, em que se torna por vezes extremamente difícil ajuizar se estamos perante uma situação de trabalho subordinado ou de trabalho autónomo.

                        É certo que estamos no domínio da autonomia da vontade, pelo que haverá que ter em conta o acordo das partes. Sendo, em regra, escassos os elementos que permitam identificar a vontade comum das partes no momento da celebração do contrato (frequentemente reduzida a uma expressão mínima) e dando ele início a uma relação duradoura, esses elementos terão de ser colhidos através do modo como as partes desenvolveram, na prática, essa relação.

                        No artigo 12º do CT de 2003 foi estabelecida uma presunção legal da existência de um contrato de trabalho, desde que verificados cumulativamente os cinco requisitos aí enunciados.

                        Dispunha este preceito, na redacção anterior à Lei nº 9/2006, de 20/3:

                        “Presume-se que as partes celebraram um contrato de trabalho sempre que, cumulativamente:

                        a) O prestador de trabalho esteja inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as orientações deste;

                        b) O trabalho seja realizado na empresa beneficiária da actividade ou em local por esta controlado, respeitando um horário previamente definido;

                        c) O prestador de trabalho seja retribuído em função do tempo despendido na execução da actividade ou se encontre numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade;

                        d) Os instrumentos de trabalho sejam essencialmente fornecidos pelo beneficiário da actividade;

                        e) A prestação de trabalho tenha sido executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias”.

                        Tal como Ac. da Rel. do Porto de 16/3/2009, disponível in www.dgsi.pt, também nós entendemos que a melhor interpretação é aquela que via consagrada neste preceito o critério dos factos-índice.

                        Dizendo-se, a esse respeito, em tal aresto, o seguinte:

                        “Sucede, porém, que a verificação da presunção parece mais exigente que a prova directa do facto pois, logo a verificação da primeira alínea, por exemplo, conduz à prova directa do contrato, ficando as restantes alíneas do artigo como elemento perturbador, na medida em que os factos-índice constantes de todas as alíneas são de verificação cumulativa. Embora já tenham surgido divergências na interpretação da norma, certo é que uma interpretação mais conforme com o elemento literal não é compatível com a nossa tradição, tanto ao nível da doutrina e da jurisprudência, como ao nível do direito constituído. Pois, destinando-se as presunções a facilitar a prova dos factos, na medida em que permitem dar como provado um facto desconhecido, que não se conseguiu provar, através da ilação que a lei ou o julgador extrai de um facto conhecido, isto é, que se conseguiu provar, a interpretação mais ao perto da letra daquele Art.º 12.º parece conduzir a um resultado contrário. Assim, crê-se que tal norma deverá ser interpretada correctivamente, fazendo corresponder a sua aplicação ao critério dos factos-índice que a doutrina vinha ensinando e os Tribunais aplicando, antes da entrada em vigor do Cód. do Trabalho. Tal significa que, ontem como hoje, face à falta da prova directa dos factos donde se possa concluir pela existência da subordinação jurídica e consequente qualificação do contrato, há que fazer um juízo global acerca dos factos-índice provados, concluindo depois pela qualificação do contrato como de trabalho ou como de prestação de serviços, mas sem o espartilho da verificação cumulativa de todos os factos-índice constantes das cinco alíneas do Art.º 12.º do Cód. do Trabalho. Na verdade, o entendimento oposto colocará em contradição a presunção constante desta norma e a definição constante do Art.º 10.º do mesmo diploma, na medida em que a verificação da primeira é mais exigente do que a prova da segunda, o que representa um non sense na medida em que a presunção tem de estar ao serviço da definição, tanto no plano lógico da política legislativa, como no plano prático da decisão e não o contrário.

                        Assim, cremos que a melhor interpretação será aquela que vê consagrada no Art.º 12.º do Cód. do Trabalho o critério dos factos-índice, assim introduzindo harmonia no sistema e permitindo decisões adequadas”.

                        Sobre tal presunção dizia João Leal Amado,  in Temas Laborais, II, Coimbra, 2007, p.17. que “a disposição em apreço limitou-se a compendiar os elementos indiciários habitualmente utilizados pela jurisprudência, exigindo que todos eles apontassem para a existência de trabalho subordinado – então, e apenas então, funcionaria a presunção legal o que, em bom rigor, de pouco ou nada serviria, visto que, em tais situações, a qualificação laboral do contrato não suscitaria qualquer espécie de controvérsia, mesmo na ausência da referida presunção legal”.

                        Atentas as dificuldades registadas na aplicação desta complexa presunção, entendeu-se que a mesma deveria ser alterada, o que veio efectivamente a acontecer através da Lei nº 9/2006, de 20 de Março.

                        Assim, o artª 12º do CT de 2003, passou a ter uma nova redacção (“Presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”), da qual apenas ficaram a constar dois índices, cujo preenchimento cumulativo presumiria a existência de um contrato de trabalho.

                        Com esta alteração legislativa, passou a dar-se relevo a apenas alguns dos índices que já constavam da presunção original, retirando-se outros considerados não essenciais (local e horário de trabalho, propriedade dos instrumentos de trabalho e período de execução da prestação da actividade), de forma a não onerar o trabalhador com a prova quase diabólica da presunção anterior, para provar que tem efectivamente um contrato de trabalho.

                        Ao mesmo tempo, passou a dar-se maior relevo aos poderes do empregador, na medida em que se passou a considerar, para efeitos de presunção, o poder de direcção na sua globalidade e o poder de fiscalização, até então ignorado, elementos que reforçavam a subordinação jurídica desta presunção, especialmente o poder de fiscalização.

                        Na alteração da presunção de laboralidade operada com o CT de 2009 (que é o aplicável à situação dos autos), aperfeiçoou-se a presunção de existência de subordinação jurídica e, assim, a caracterização do contrato como sendo de trabalho, baseada na verificação de alguns elementos caracterizadores daquele que possam actuar como indícios de subordinação.

                        Dispondo-se no nº 1 desse artº 12º do CT de 2009:

                        “1  - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

                        a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

                        b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;

                        c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

                        d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;

                        e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa”.

                        Como se vê, os índices constantes da presunção de laboralidade constante do CT de 2009 não coincidem totalmente com aqueles que eram considerados relevantes no CT de 2003, entendendo-se que são essenciais outros índices que não a totalidade dos anteriormente previstos.

                        E ao contrário do que acontecia no CT de 2003, a verificação dos índices não é cumulativa, basta que se verifique a existência de algumas das características aí apontadas, sem dizer, quantos índices, no mínimo, devem estar preenchidos.

                        No Ac. desta Relação de 10 de Julho de 2013 (relator Azevedo Mendes), disponível em www.dgsi.pt, considerou-se que “como resulta, da citada norma, basta que se verifiquem duas das características nela afirmadas para que possa operar a presunção de laboralidade (o que se retira da expressão “se verifiquem algumas das seguintes características”, que induz – do plural usado - que não basta uma, sendo necessária a reunião de mais do que uma das características).

                        A presunção em causa visa concerteza facilitar a demonstração da existência de contrato de trabalho, em casos de dificuldade de qualificação, e tem a sua inspiração no chamado método indiciário usado na nossa jurisprudência para alcançar a qualificação do contrato [com o recurso a índices negociais internos – p. ex., o local da actividade pertencer ao beneficiário da mesma, ou ser por ele determinado; a existência de um horário de trabalho; a utilização de bens ou de utensílios fornecidos pelo beneficiário da actividade; a existência de uma remuneração certa, com aumento periódico; o pagamento de subsídio de férias e de Natal; a integração na organização produtiva, a submissão do prestador ao poder disciplinar - e externos - p. ex., a sindicalização do prestador da actividade, a observância do regime fiscal e de segurança social próprios do trabalho por conta de outrem e a exclusividade da actividade a favor do beneficiário]. Mas, diversamente desse método indiciário, que determinava a busca de um numeroso e convincente conjunto de indícios, a presunção prevista no art. 12.º do Código do Trabalho basta-se com a verificação de dois dos indícios/características apontados.

                        Do nosso ponto de vista, a verificação de duas dessas características tem, apesar de tudo, de ser enquadrada num ambiente contratual genético e de execução que permita dúvidas consistentes sobre a qualificação. Só assim a presunção revestirá uma operação útil. Noutra perspectiva que parta do fim do percurso da indagação para o seu princípio, o resultado será afinal o mesmo, já que não se verificando aquele ambiente então terá de se considerar ilidida a presunção”.

                        Assim, nos termos dessa norma presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características:

                        a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado;

                        b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade;

                        c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;

                        d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;

                        e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa.

                        Vejamos então da verificação de cada uma das características em causa:

                        No que toca à primeira enunciada na norma em causa, na alínea a) (a da actividade ser realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado), temos que ficou provado que:

                        […]

                        Ou seja, não podendo restar dúvidas que o local de prestação da actividade foi determinado pelo Réu, a circunstância de ele ser absolutamente necessário em função da natureza da prestação a que a beneficiária da actividade estava vinculada para com terceiro poderia enfraquecer o indício de laboralidade respectivo e conduzir à sua desconsideração no confronto com outras realidades de execução.

                        Mas já dissemos que aqui se trata, não de apurar a consistência indiciária, mas tão só de averiguar se ocorrem características que possam funcionar a presunção prevista no nº 1 do artº 12º do Código do Trabalho. Ora, a característica de determinação pelo Réu do local da prestação da actividade não deixa de ocorrer por tal ser necessário à execução dos serviços que o Réu prestava. Essa era uma condição de exercício contratual, é certo, mas é, em termos práticos, uma condição em tudo equivalente a uma situação de realização necessária da actividade em local pertencente ao Réu. Ou seja, a prestadora da actividade não tinha liberdade de exercício em local por si escolhido.

                        Isto é, consideramos que, objectivamente, a característica enunciada na al. a) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho está verificada.

                        No que toca à segunda característica enunciada na norma em causa, na alínea b) (os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencerem ao beneficiário da actividade), ela também está verificada, percebendo-se que as  razões que levaram à determinação da prestação em local pertencente ao Réu são as mesmas que levaram à determinação do uso dos equipamentos em questão.

                        Por outro lado,  a actividade da Autora no escritório do Réu tinha lugar 5 (cinco) dias por semana, durante 8 (oito) horas diárias, com folga aos sábados e domingos, com horário determinado pelo Réu, coincidente com o horário de funcionamento do escritório, compreendido entre as 09:00h e as 13:00h e entre as 14:00h e as 18:00h, com intervalo para almoço das 13:00h às 14:00h.

                        Temos, assim, existência da característica da al. c) do n.º 1 do art. 12.º c) (a do prestador de actividade observar horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma).

                        Assim como se verifica a existência da característica elencada na al. d) do n.º 1 do art. 12.º do Código do Trabalho – o pagamento, com determinada periodicidade, de quantia certa ao prestador da actividade, como contrapartida desta.

                        Com efeito, provou-se:

                        23) Aquando da contratação, o R. comunicou à A. que o salário mensal base desta seria de € 675,00 (seiscentos e setenta e cinco euros), correspondente a um salário e meio mínimo nacional.

                        32) Em Janeiro de 2013 o R. decidiu aumentar o salário mensal base da Autora para € 930,00 (novecentos e trinta euros).

                        33) Era o R. que geria quem, quando e como era entregue o salário à A.

                        Ou seja, está demonstrada a periodicidade habitual do pagamento (mensal), bem como que com a mesma periodicidade o pagamento era em quantia certa (todos os meses).

                        Estão, como tal,  claramente preenchidas as características das als. a), b), c) e d) do nº 1 do artº 12º, estabelecendo-se assim uma presunção de laboralidade.

                        A questão que se põe é se se deve considerar ilidida essa presunção, por banda do Réu, sabendo-se que quem tem a seu favor – neste caso a Autora - uma presunção está dispensado de fazer a prova dos correspondentes factos.

                        Ora, e como já se adiantou, o único critério incontroversamente diferenciador entre os dois tipos de contrato reside na subordinação jurídica, típica do contrato de trabalho, a qual implica uma posição de supremacia do empregador e uma correlativa posição de subordinação do trabalhador.

                        A autonomia ou subordinação é que permite, em última análise, estremar a locatio operis ou contrato de prestação de serviço da locatio operarum ou contrato de trabalho.

                        A  este  respeito  é assaz esclarecedor  o  ensinamento  de Galvão Teles (B.M.J. 83º,165):

                        "Promete‑se  (no  contrato de trabalho) a actividade na  sua raiz,  como  processo ou instrumento posto dentro  dos  limites mais  ou  menos  largos  à disposição da  outra  parte  para  a realização  dos  seus  fins,  não se  promete  este  ou  aquele efeito  a  alcançar  mediante  o emprego  de  esforço,  como  a transformação ou transporte de uma coisa.

                        Mas  como  se  pode verdadeiramente saber se se  promete  o trabalho  ou  o  resultado?  Todo o  trabalho  conduz  a  algum resultado  e  este  não  existe sem aquele.  O  único  critério legítimo  está  em averiguar se a actividade é ou não  prestada sob  a  direcção  da pessoa a quem ela aproveita,  que  dela  é credora."

                        Para  Menezes  Cordeiro (Manual de Direito  do  Trabalho) verificam‑se   duas   diferenças  essenciais  entre   os   dois contratos:  na  prestação de serviços trata‑se de  proporcionar certo  resultado do trabalho, enquanto no contrato de  trabalho se  refere  o prestar uma actividade; e na definição  legal  do primeiro  contrato não há qualquer referência à  autoridade e  direcção  de outrem. Assim, e ainda segundo este  autor, o   critério   último  da  distinção  reside  na   sujeição   à autoridade e direcção de outrem.

                        A subordinação jurídica traduz-se no poder do empregador conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou; é ao credor que cabe programar, organizar e dirigir a actividade do devedor; a ele incumbe não apenas distribuir as tarefas a realizar, mas ainda definir como, quando, onde e com que meios as deve executar cada um dos trabalhadores.

                        No dizer do Ac. da Rel. de Coimbra de 23/2/95, Col. Jur. XX, 1, 78, sendo a subordinação jurídica um conceito integrado por um conjunto de características reveladoras dos poderes de autoridade e direcção atribuídos à entidade patronal, a sua determinação há-de fazer-se através de uma maior ou menor correspondência entre aquelas características e as da situação concreta.

                        Não esquecendo, todavia, que o valor de qualquer desses índices de subordinação não pode deixar de considerar-se relativo, quer pela insuficiência de cada um deles, isoladamente considerado, quer porque podem assumir significado muito diverso de caso para caso.

                        Assim, para a determinação da subordinação jurídica- continua o mesmo aresto- deve ter-se como decisivo um juízo de apreciação global sobre os elementos indiciários fornecidos pela sua situação concreta em correspondência com aquelas características do conceito-tipo.

                        Por sua vez, o Acórdão do STJ de 13/11/2002, disponível em www.dgsi.pt, defende que é “a natureza da prestação acordada o ponto de partida diferenciador entre o contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço, embora depois o contrato de trabalho subordinado exija ainda a retribuição (subordinação económica) e a sujeição à autoridade e direcção da contra-parte (subordinação jurídica). E embora se possa argumentar que a valia daquele critério diferenciador é diminuta pois toda a actividade produz, em regra, um resultado e a obtenção de qualquer resultado pressupõe o desenvolvimento de alguma actividade, o certo é que em muitas situações se torna claro qual é o interesse do credor: nuns casos é que o devedor coloque à sua disposição o desenvolvimento de determinada actividade, enquanto noutros unicamente lhe interessa o resultado final da actividade desenvolvida, sendo-lhe indiferente o modo seguido pelo devedor para obter esse resultado”.

                        A qualificação da situação de facto, em termos de a subsumir a um contrato ou a outro, dependerá das circunstâncias concretas de cada caso, já que estamos perante uma das actividades em que nem sempre é fácil operar a distinção. O factor decisivo será, como se disse, a existência do elemento subordinação jurídica, um juízo de apreciação global sobre os elementos fornecidos pela situação concreta.

                        No caso de trabalhadores com alguma autonomia, técnica ou científica, como era o caso da Autora dos presentes autos, importará que a subordinação jurídica derive da consideração de um conjunto de características reveladoras dos poderes de autoridade e direcção atribuídos à entidade patronal, fazendo-se a sua determinação através de uma maior ou menor correspondência entre aquelas características e as da situação concreta, dentro da necessária consideração da natural autonomia em relação ao dador de trabalho, que não exclui de todo, à partida, que  possa existir  uma  subordinação jurídica característica do  contrato de  trabalho,  já  que  essa subordinação  pode  ser  maior  ou menor,  consoante  as funções desempenhadas  pelo  trabalhador, designadamente   quando   exerce  uma   função   eminentemente técnica.  Ponto  é que a entidade patronal possa de algum  modo orientar  a actividade do trabalhador, (cfr. Ac. do  STJ de 21/11/86, Ac. Dout. 307º,1045).

                        Nestes casos, a subordinação jurídica pode não transparecer em cada momento da prática de certas relações  de trabalho. Como se refere no Ac. do STJ de 17/2/94, Ac. Dout. 391º, 905, a subordinação jurídica comporta graus: ao "lado dos casos em que, diariamente, a entidade patronal manifesta a sua posição de supremacia, programando, dirigindo, controlando e fiscalizando a actividade do trabalhador, existem outros em que, devido às condições da realização da prestação, o trabalhador goza de uma certa autonomia na execução da sua actividade laborativa, sem que deixe de ocorrer a sua subordinação jurídica. Embora nesses casos o trabalhador goze de uma certa iniciativa e de alguma autonomia, elas são limitadas e são sobretudo consequência da organização do trabalho, da competência do empregador".

                        A subordinação jurídica pode, assim, respeitar apenas à organização da actividade laboral, englobando o poder de determinar a função do trabalhador, dentro dos poderes do empregador de distribuir os postos de trabalho segundo o organigrama da empresa e as necessidades desta.

                        Passando ao caso concreto, e recordando que se verifica a citada presunção de laboralidade, temos que a factualidade provada permite afirmar, com a necessária segurança, a existência de tal subordinação jurídica.

                        Desde logo importa salientar que o exercício da advocacia não é incompatível com a subordinação jurídica típica do contrato de trabalho, possibilidade claramente prevista no Estatuto da Ordem do Advogados, que no seu artº 68º, nº 1,  dispõe que “Cabe exclusivamente à Ordem dos Advogados a apreciação da conformidade com os princípios deontológicos das cláusulas de contrato celebrado com advogado, por via do qual o seu exercício profissional se encontre sujeito a subordinação jurídica”.

                        E sem que sejam afectados os seus deveres deontológicos, que pressupõem, em larga medida, uma manifesta autonomia técnica e pessoal- cfr. artº 76º, nºs 1 e 3, do referido estatuto.

                        Dito isto, temos que ficou provado, para além do mais:

                        […]

                        Daqui resulta, sem margem para qualquer equívoco, uma clara manifestação do poder conformativo da prestação e do exercício do poder de direcção, típicos da relação jurídico-laboral.
                        Nenhuma censura nos merecendo, assim, a sentença.
                        - o abuso de direito:
                        A este respeito e em suma, sustenta o Réu que a Autora terá suportado, durante 6 anos, a situação em que encontrava ao serviço do Réu, sem contra isso reagir, criando no Réu a convicção de que não eram devidos quaisquer créditos, ou deles prescindiu, correspondendo o seu pedido, quase um ano depois de ter cessado funções, a um abuso de direito, na modalidade da supressio.

                        O abuso de direito impõe que, por parte do seu titular, haja um manifesto excesso no respectivo exercício, tendo em conta os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito.         Tal figura está caracterizada no artº 334º do Cod. Civil:

                        "É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".

                        Como referem P. Lima e A. Varela (Cod. Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, 277), exige-se "que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso...".

                        E, ainda segundo os mesmo autores, não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, ou seja, não é necessário que tenha a consciência de que, ao exercer o direito, está a exceder os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, basta que na realidade (objectivamente) esses limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, pois, como é sabido, o ordenamento jurídico acolheu a concepção objectiva do abuso do direito (ob. cit. vol. I, , p. 217).

                        Para Galvão Teles (Direito das Obrigações, 3ª edição, pag. 6), o abuso de direito tem de ser manifesto, "exige-se que o sujeito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites referidos neste artigo (o artº 334º)".

                        Por sua vez, Manuel de Andrade sustenta que haverá abuso de direito quando do respectivo exercício resultem soluções injustas, sendo o direito exercitado em "termos clamorosamente ofensivos da justiça" (Teoria Geral do Direito das Obrigações, pag. 63).

                        Também Vaz Serra se refere, igualmente, a uma "clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante", existindo abuso de direito “se alguém exercer o direito em contradição com uma sua conduta anterior em que fundadamente a outra parte tenha confiado”. (B.M.J. 85º, 253).

                        Estamos aqui em presença do venire contra factum proprium que se caracteriza pelo “exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente” (cfr Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, pag. 275). No dizer de Baptista Machado (“Tutela da Confiança” e “Venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, vol. I, p. 416, e in RLJ, n.º 3726 e seguintes), o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também no futuro se comportará, coerentemente, de determinada maneira», podendo «tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico”.

                        Como se refere no Ac. do STJ de 11/01/2011, disponível em www.dgsi.pt, “o abuso de direito, que dispensa o “animus nocendi” tem por base a existência de um direito subjectivo na esfera jurídica do agente, já que tem como principal escopo impedir que a estrita aplicação da lei conduza a notória ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, comportando duas modalidades: “venire contra factum proprium” e situações de desequilíbrio, como sejam o exercício danoso inútil, a actuação dolosa e a desproporção grave entre o exercício do e o sacrifício por ele imposto a outrem”.  

                        Ora, no caso presente, nenhum elemento de facto permite concluir pela existência, no comportamento da Autora, de um agir em abuso de direito.

                        Limitou-se a mesma a exercer o seu legítimo direito de ver reconhecido um contrato de trabalho que  a ligava ao Réu, sem que desse seu comportamento resulte a ofensa do descrito sentimento jurídico socialmente dominante.

                        Como acertadamente se refere na sentença, “a circunstância de a A. não ter reclamado os valores que ora pretende haver durante a vigência do contrato de trabalho é perfeitamente natural, atenta a particular configuração de um vínculo deste tipo que, em princípio, inibe o trabalhador de enfrentar aquele a quem está juridicamente subordinado antes de cessar a situação de subordinação. Esta realidade é, aliás, pressuposta pelo legislador quando o mesmo fixa o prazo de um ano após a cessação do contrato para a prescrição dos créditos laborais (cfr. o artigo 318.º do Código do Trabalho de 2003), pelo que, mesmo na perspectiva da lei, a aludida inércia na vigência do contrato e dentro da baliza temporal traçada na norma prescricional, de modo algum significa que o trabalhador se conformou com o comportamento inadimplente do empregador e não vai já reclamar os créditos de que é titular.

                        Por outro lado, nada resulta da matéria de facto que seja susceptível de levar a concluir que, no caso concreto, a A. adoptou no decurso do contrato alguma actuação reveladora de aquiescência para com o não pagamento daqueles valores, ou algum comportamento susceptível de criar no R. a convicção de que os não iria peticionar ou que os mesmos não eram devidos. Ora a confiança digna de tutela deve radicar numa conduta de alguém, titular de um direito, que, de facto, possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada conduta futura, de tal modo que a situação de confiança gerada pela anterior conduta do titular do direito conduz, objectivamente, a uma expectativa legítima de que o direito já não será exercido”.

                        Adoptar a tese desenvolvida pelo Réu seria abrir perigosos precedentes, abrindo a porta à pura e simples invocação do abuso de direito sempre que o trabalhador, por qualquer motivo, quisesse fazer valer em juízo  a sua pretensão de lhe ver ser reconhecida a qualidade de trabalhador subordinado, independentemente da qualificação e dos conhecimento técnico-jurídicos de que dispõe.

                        Há que ter em conta que, tal como se decidiu no Ac. do STJ de 15/09/2010, in www.dgsi.pt , “o abuso do direito só deve ser convocado quando a disciplina legal adequada ao caso não tenha a virtualidade de evitar uma qualquer situação de flagrante injustiça que teime em subsistir. Por isso se diz que tal instituto funciona como uma válvula de segurança do sistema”.

                        Não é, seguramente, o caso.

                        Pelo que também aqui falecem as conclusões do recurso.
                        - a litigância de má-fé:

                        Aqui o Réu entende que a Autora revelou “má-fé grosseira culposa”, deduzindo pretensão manifestamente infundada.

                        Nos termos do artº 542º, n º2, do CPC,  “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave : a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa”.

                        Sendo de primordial importância o princípio da cooperação e os deveres da boa fé e da lealdade processuais, temos que a negligência grave também é causa de condenação como litigante de má-fé, e não apenas uma conduta dolosa.

                        O reconhecimento de uma litigância de má-fé tem de identificar-se com situações de clamoroso, chocante, ou grosseiro uso dos meios processuais, por tal forma que se sinta que, com a mesma conduta, se ofendeu ou pôs em causa a imagem da Justiça.

                        A  “lide temerária pode ser hoje sancionada como litigância de má fé visto que, desde a revisão de 1995/1996 do CPC (art. 456.º do CPC/61), passou a ser possível a condenação como litigante de má fé do litigante que agiu com negligência grave.

                        Assim, hoje (art. 542.º do NCPC que corresponde ao mencionado art. 456.º do CPC/61), a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição " cuja falta de fundamento não devia ignorar", ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte como litigante de má fé, demonstrar-se que o litigante tinha consciência de não ter razão", pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização” – Ac. STJ de 20/03/2014, proc. 1063711.9TVLSB.L1, in www.dgsi.pt

                        A ideia de litigância de má-fé está associada à necessidade de censura de “um comportamento inadequado à ideia de um processo justo e leal que constitui a emanação do princípio de Estado de Direito”- Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 13/3/2008, disponível em www.stj.pt.

                        Nas palavras de Cecília Silva Ribeiro, “[a] má-fé processual, em sentido, (…) é toda a atividade desonesta, cavilosa, proteladora (para cansar o adversário) unilateral ou bilateral, verificada no exercício do direito de ação, quando desenvolvida com a intenção de prejudicar outrem, quer ela respeite ao mérito da causa (lide caluniosa, fraudulenta, etc.) quer às medidas instrumentais, desde que seja ilícita, isto é violadora das normais gerais e especificas da conduta processual, tendentes a criar as condições favoráveis a uma boa e justa decisão do pleito”, (“do dolo geral e do dolo instrumental em especial no processo civil”; ROA, ano 9, págs.83-113, citada por Paula Costa Ribeiro, in “A Litigância de Má Fé”, Coimbra Editora, 2008, pag. 389).
                        No caso em apreço, não vislumbramos qualquer comportamento censurável da Autora, que até obteve ganho de causa na principal questão em discussão nos autos- a qualificação do contrato como de trabalho.

                        Não esquecendo que, no que toca às restantes questões, as dúvidas acerca da aplicação e da interpretação da lei não constituem, à partida e sem mais, má-fé. Quando a parte se limita a litigar baseada na incerteza da lei, na dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, apresentando tese jurídica que está longe de se poder considerar manifestamente infundada, nada há a censurar ao respectivo comportamento processual.
                        - o recurso da Autora:
                        Entende esta, com base nos factos 99 a 103, que se verificou uma situação de assédio, previsto no artº 29º, nº 1, do CT, o que lhe confere o direito à indemnização prevista no artº 2º do mesmo diploma.
                        Na sentença recorrida entendeu-se que:

                        “No caso vertente, entendemos que a matéria de facto provada, vista como um todo, não permite concluir, com a necessária segurança, que a A. tenha sido alvo de um qualquer tratamento discriminatório, «com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador», conforme estipula o n.º 1 do artigo 29.º do Código do Trabalho.
                        Se é verdade que se deu como provado que as comunicações entre A. e R. chegaram a ser efectuadas apenas por escrito, que o R. chegou a referir e a insinuar que a A. nada fazia e nada queria fazer, fazendo o R. comparações entre a A. e as suas colegas, proibindo-a de fazer a pausa da manhã acompanhada por outra colega – num acto que consideramos ser de gestão do escritório – criticando a A. por este ou aquele pormenor ao longo da relação laboral, ocorrendo situações caricatas e atípicas (cfr. pontos 92 e 93 dos factos provados), facto é que não vislumbramos da matéria fáctica a intenção manifesta do R. de se livrar da A. – no sentido de que a verificação de uma situação de mobbing exige a demonstração de uma conduta persecutória intencional da entidade empregadora sobre o trabalhador, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 29/3/2012, proferido no âmbito do processo 429/09.9TTLSB.L1.S1, e da Relação de Lisboa de 13/4/2011, proferido no âmbito do processo 71/09.4TTVFX.L1-4. A acrescer a essa intenção, o comportamento subsumível ao conceito de assédio moral há-de ser sistemático, repetitivo e com clara premeditação de realização daquela intenção. Ora, nada disso se vislumbra no caso vertente, e se acaso tivesse ocorrido essa intenção premeditada de afastar a Autora, dificilmente esta teria permanecido durante um período de tempo tão longo no escritório do R”.
                        Vejamos:
                        “Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.” – artº 29º, nº 1, do CT de 2009.
                        A propósito do assédio, considerou-se nos acórdãos desta Relação de 7/3/2013 (relator Jorge Loureiro) e 12/9/2013 (relator Felizardo Paiva), ambos disponíveis in  www.dgsi.pt, o seguinte:
                        O assédio moral pode concretizar-se numa de duas formas, a saber: o assédio moral discriminatório, em que o comportamento indesejado e com efeitos hostis se baseia em qualquer factor discriminatório que não o sexo (discriminatory harassement); e o assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em nenhum factor discriminatório, mas pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar o trabalhador da empresa (mobbing).

                        Júlio Manuel Vieira Gomes (Direito do Trabalho, Volume 1, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pág. 428 a 430) ensina que aquilo que caracteriza o mobbing são "três facetas: a prática de determinados comportamentos, a sua duração e as consequências destes. Quanto aos comportamentos em causa, para Leymann tratar-se-ia de qualquer comportamento hostil. Para Hirigoyen, por seu turno, tratava-se de qualquer conduta abusiva manifestada por palavras (designadamente graçolas), gestos ou escritos e muitos outros comportamentos humilhantes ou vexatórios. Daí a referência a uma polimorfia do assédio e, por vezes, a dificuldade em distingui-lo dos conflitos normais em qualquer relação de trabalho. (...) tais comportamentos são, frequentemente, ilícitos, mesmo quando isoladamente considerados; mas sucede frequentemente que a sua ilicitude só se compreende, ou só se compreende na sua plena dimensão atendendo ao seu carácter repetitivo. E esta é a segunda faceta que tradicionalmente se aponta no mobbing... é normalmente o carácter repetitivo dos comportamentos, a permanência de uma hostilidade, que transforma um mero conflito pontual num assédio moral. A terceira nota característica do assédio, pelo menos para um sector da doutrina, consiste nas consequências deste designadamente sobre a saúde física e psíquica da vítima e sobre o seu emprego. O assédio pode produzir um amplo leque de efeitos negativos sobre a vítima que é lesada na sua dignidade e personalidade, mas que pode também ser objecto de um processo de exclusão profissional, destruindo-se a sua carreira e mesmo acabando por pôr-se em causa o seu emprego...".

                        E mais adiante, a páginas 431/433, acrescenta Júlio Gomes "O assédio converte-se em meio para contornar as proibições de despedimento sem justa causa, transformando-se num mecanismo mais expedito e económico da empresa para se desembaraçar de trabalhadores que, por qualquer razão, não deseja conservar. As práticas e os procedimentos para o fazer são praticamente inumeráveis; a título de exemplo, refira-se apenas a mudança de funções do trabalhador, por exemplo, para funções muito superiores à sua experiência e competência para levá-lo à prática de erros graves, a atribuição de tarefas excessivas, mas também, e frequentemente, o seu inverso, como seja a atribuição de tarefas inúteis ou o esvaziamento completo de funções. Como se disse, os meios empregues podem ser os mais diversos: frequentemente adoptam-se medidas para impor o isolamento social do trabalhador, que podem consistir em proibir aos outros trabalhadores que lhe dirijam a palavra, em reduzir-lhe os contactos com os clientes ou mesmo em impor-lhe um isolamento físico....".

                        O mobbing consiste numa “… prática persecutória reiterada, contra o trabalhador, levada a efeito, em regra, pelos respectivos superiores hierárquicos ou pelo empregador, a qual tem como objectivo ou como efeito afectar a dignidade do visado, levando-o eventualmente ao extremo de querer abandonar o emprego.” – Guilherme Drey, Código do Trabalho Anotado, obra colectiva, 4ª, pág. 124.

                        Margarida Barreto define o assédio moral no trabalho como “a exposição dos trabalhadores e trabalhadoras a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções, sendo mais comuns em relações hierárquicas autoritárias e assimétricas, em que predominam condutas negativas, relações desumanas e aéticas de longa duração, de um ou mais chefes dirigida a um ou mais subordinado(s), desestabilizando a relação da vítima com o ambiente de trabalho e a organização, forçando-o a desistir do emprego.” - Uma Jornada de Humilhações. 2000 PUC/SP, disponível em http://www.assediomoral.org/site/assedio/AMconceito.php.

                        “O assédio moral tem ínsitos, desde logo (e conforme ensinam os mais importantes autores que têm tratado este tema, de Marie France Hirigoyen a Leymann e Einarsen, designadamente), três elementos fundamentais:

                        Por um lado, o ser um processo, ou seja, não um fenómeno ou um facto isolado, mesmo que de grande gravidade, mas antes um conjunto mais ou menos encadeado de actos e condutas, que ocorrem com um mínimo de periodicidade (por exemplo, pelo menos uma vez por semana ou por mês) e de reiteração (designadamente perdurando ao longo de 6 meses).

                        Por outro lado, a circunstância de esse conjunto mais ou menos periódico e reiterado de condutas ter por objectivo o atingimento da dignidade da vítima e o esfacelamento da sua integridade moral e também física, quebrando-lhe a sua capacidade de resistência relativamente a algo que não deseja, e buscando assim levá-la a “quebrar” e a ceder.

                        Por fim, pode dizer-se que constitui também traço característico do assédio moral o aproveitamento da debilidade ou fragilidade da vítima ou de um seu autêntico “estado de necessidade” (por exemplo, decorrente da sua posição profissional hierarquicamente inferior, o que é o mais frequente, ou então da precariedade do respectivo vínculo laboral e da extrema necessidade da manutenção deste para conseguir garantir a subsistência própria e dos filhos por exemplo, ou até do chantageamento decorrente de factos incómodos ou desprimorosos da respectiva vida pessoal e/ou familiar).

                        É hoje e infelizmente muito frequente, quando o titular de uma organização empresarial pretende “ver-se livre” de um dado trabalhador mas não tem ao seu alcance qualquer modo, pelo menos formalmente legal, de pôr termo ao respectivo contrato de trabalho (por exemplo a cessação durante o período experimental, caducidade do contrato a termo, ou a cessação por extinção do posto de trabalho, na sequência da 10ª “reestruturação” do mês…), nem o trabalhador se mostra disponível para aceitar o “mútuo acordo de rescisão” que lhe é então proposto, que trate de o sujeitar a um processo de assédio moral visando precisamente levá-lo a ceder e a acabar por, não aguentando mais, aceitar finalmente aquilo que inicialmente fora por ele rejeitado.” - Garcia Pereira, O assédio moral, http://www.ospelicanos.org/files/AssedioMoral_GarciaPereira.pdf.

                        Importa ter presente, contudo, que nem todas as situações de conflito existentes no local de trabalho constituem assédio moral.

                        Assim, não constituem assédio moral as seguintes situações que devem ser consideradas simples conflitos existentes nas organizações: o stress; as injúrias dos gestores e do pessoal dirigente; as agressões (físicas e verbais) ocasionais não premeditadas, outras formas de violência como o assédio sexual, racismo, etc; as condições de trabalho insalubres, perigosas, etc; os constrangimentos profissionais, ou seja, o legítimo exercício do poder hierárquico e disciplinar na empresa (exemplo: a avaliação de desempenho, instaurar um processo disciplinar, etc) – cfr. Paula Cristina Carvalho da Silva, Assédio Moral no Trabalho, consultável in http://www4.fe.uc.pt/fontes/trabalhos/2007003.pdf, citando Marie-France Hirigoyen, O assédio no Trabalho – como distinguir a verdade, Editora Pergaminho, 2002.

                        Garcia Pereira refere também que “o assédio moral no trabalho não se confunde nem com o stress (ainda que este possa, por vezes, ser um instrumento de prática daquele), nem com uma relação profissional dura (por exemplo, em virtude de uma chefia muito exigente e pouco cordata mas que não visa esfacelar a integridade moral de ninguém), nem sequer com um mero e isolado episódio mais violento (designadamente, um incidente ou uma discussão particularmente intensos mas sem sequelas).” – obra supra citada.

                        Assim sendo, e segundo os citados arestos deste Relação, a pergunta surge inevitável: qual o critério em função do qual se há-de distinguir uma situação de mobbing de outra de mero conflito laboral?

                        “Respondendo, diremos que o que verdadeiramente diferencia o conflito laboral do assédio moral é a intencionalidade que está por detrás de um e de outro, sendo que neste último existe, como motivação da conduta, uma clara e manifesta intenção do agressor se livrar da pessoa assediada, ao passo que no primeiro não existe da parte do agressor uma intenção deliberada de livrar-se do trabalhador; sem essa intenção do agressor não existe assédio moral – no sentido de que a verificação de uma situação de mobbing exige a demonstração de uma conduta persecutória intencional da entidade empregadora sobre o trabalhador, podem consultar-se os acórdãos do STJ de 29/3/2012, proferido no âmbito do processo 429/09.9TTLSB.L1.S1, e da Relação de Lisboa de 13/4/2011, proferido no âmbito do processo 71/09.4TTVFX.L1-4.

                        A acrescer a essa intenção, o comportamento subsumível ao conceito de assédio moral há-de ser sistemático, repetitivo e com clara premeditação de realização daquela intenção.
                        Resulta de tudo quanto vem de referir-se que, conquanto isso não resulte explícito do art. 29º/1 do CT/09, só pode ter-se por registada uma situação de mobbing naqueles casos em que subjacente ao comportamento indesejado do empregador ou dos superiores hierárquicos esteja a pretensão de forçar o trabalhador a desistir do seu emprego”- cfr. citados acórdãos desta Relação.
                        Pretensão essa não demonstrada no caso dos autos.
                        Posição diferente se defendeu no Ac. do STJ de 21/4/2016, in www.dgsi.pt (relator Cons. Belo Morgado):

                   “A propósito da dimensão volitiva/final do conceito de assédio, a doutrina sempre se mostrou dividida, pois, “enquanto para alguns o mobbing pressupõe uma intenção persecutória ou de chicana (ainda que não necessariamente a intenção de expulsar a vítima da empresa), para outros, o essencial não são tanto as intenções, mas antes o significado objetivo das práticas reiteradas”.

                        Neste âmbito, havendo que reconhecer a necessidade de uma interpretação prudente da sobredita disposição legal, também importa ter presente que não pode ser considerado pelo intérprete um “pensamento legislativo” que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo ainda presumir-se que o legislador soube expressar o seu pensamento em termos adequados e que consagrou as soluções mais acertadas – art. 9.º, n.ºs 2 e 3, C. Civil.

                        Incontornavelmente, a lei estipula que no assédio não tem de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja “efeito” do comportamento adotado pelo “assediante”.

                        No entanto, quanto aos precisos contornos desta exigência, duas observações se impõem.

                        Em primeiro lugar, uma vez que a esfera de proteção da norma se circunscreve, como vimos, a comportamentos que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos, não pode deixar de notar-se que é dificilmente configurável a existência de (verdadeiras) situações de assédio moral que - no plano da vontade do agente - não imponham concluir que ele, pelo menos, representou as consequências imediatas da sua conduta, conformando-se com elas.

                        Por outro lado, para referir que a circunstância de o legislador ter prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências imediatas de determinado comportamento não obsta à afirmação de que o assédio moral, em qualquer das suas modalidades, tem em regra associado um objetivo final “ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável” (v.g. a discriminação, a marginalização/estigmatização ou neutralização do trabalhador, atingir a sua auto-estima ou, no tocante ao “assédio estratégico”, os objetivos específicos supra expostos)”.

                   No mesmo sentido o Ac. de 26/5/2015, in www.dgsi.pt (relator Cons. Leones Dantas)

                        Mesmo adoptando esta posição, de tomar seriamente em conta já que provém do nosso mais alto Tribunal, a factualidade demonstrada não permite concluir nem pelo elemento volitivo por parte do Réu – objectivo, nem pelas consequências previstas no nº 1 do artº 29º do CT- efeito. A factualidade assente é insusceptível de configurar uma situação de mobbing.
                        Além de que, e isto seria sempre decisivo para a (não) atribuição de qualquer indemnização, sempre haveria que constatar que não se provou que da actuação do Réu, traduzida nos citados factos 99 a 103, tivesse resultado qualquer tipo de danos de natureza moral.

                        E para se poder falar de indemnização por danos não patrimoniais  importa que estejam preenchidos um certo número de requisitos, entre os quais o da existência de um facto ilícito, a imputação do facto ao lesante e verificação de um dano- P. Lima e A. Varela, Cod. Civil Anotado, 2ª edição, pag. 416, em anotação ao artº 483º, para onde remete, quanto aos pressupostos da obrigação de indemnizar, o artº 496º do Cod. Civil.
                        Pelo que também improcede este recurso.
                                                                       x

                        Decisão:

                        Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedentes ambas as apelações, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.

                        Custas dos recursos pelos respectivos apelantes.

                                                           Coimbra, 17/10/2017