Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4604/08.5TJCBR-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ISAÍAS PÁDUA
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
TÍTULO CAMBIÁRIO EXTINTO
DOCUMENTO QUIRÓGRAFO
Data do Acordão: 12/03/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA – JUÍZO DE EXECUÇÃO DE SOURE – JUIZ 2
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO
Legislação Nacional: ARTºS 12º E 17º DA LUCH; 703º, Nº 1, AL. C) DO NCPC.
Sumário: I- É à luz da lei vigente à data da sua constituição/emissão que, em princípio, se deve aferir da exequibilidade de um título.

II- Ainda que despidos da sua natureza cartular (vg. por extinção da obrigação cambiária), os títulos cambiários podem revestir-se de força de executiva, enquanto documentos particulares/quirógrafos, desde que tenham neles mencionada a relação causal subjacente à sua emissão ou o exequente a indique no requerimento executivo.

III- Assim, tendo o exequente (a favor de quem foram emitidos) indicado no requerimento executivo a relação causal subjacente à sua emissão, gozam de força executiva – enquanto documentos particulares quirógrafos - os cheques que apresentados a pagamento foram devolvidos com fundamento no seu bloqueamento pelo titular da conta/seu sacador.

Decisão Texto Integral:









Acordam neste Tribunal da Relação de Coimbra

I- Relatório


1. Através dos autos que correm atualmente no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra – Juízo de Execução de Soure -, a exequente, A..., instaurou (em 16/12/2008) execução para pagamento de quantia certa contra os executados O..., Lda. e C..., todos melhor identificados nos autos, visando obter o pagamento coercivo da quantia de € 8.587,96 (sendo €6.452,44 a título de capital, €2.111,52 a título de juros de mora já vencidos, e €24,00 a título de taxa de justiça devida com a presente execução).

Execução essa que fundamentou nos seguintes termos alegatórios:

« A exequente foi sócia na empresa A..., Lda, até Agosto de 2007, tendo mutuário à referida empresa o valor de €10.000,00, perante a sua não liquidação, foi efectuada dacção em pagamento, tendo-lhe sido entregue o crédito ora reclamado sob os executados. (doc. 1 e 2)

A 1º Executada é pessoa colectiva e comercializa relógios, ouro e outros materiais preciosos.

O 2º Executado interveio na relação comercial enquanto garante do pagamento da quantia, numa verdadeira assunção de divida.

No âmbito da sua actividade comercial, a empresa cedente do crédito á ora exequente forneceu ao 1º executado as mercadorias que este encomendou e recebeu, todas no valor de €6.000,00.

Para pagamento dessas mercadorias foram emitidos vários cheques, que aquando da sua apresentação ao banco foram devolvidos pelo Banco de Portugal por falta de provisão. Perante tais devoluções e alguma relutância em efectuar o pagamento, foram emitidos novos cheques, desta vez pelo 2º executado, que assumiu assim pessoal e comercialmente o pagamento da quantia em divida.

Emitiu assim o 2º executado os seguintes cheques:

- cheque nº ..., sacado sobre o Banco C..., com data de 06-07-2005

e no valor de € 1 000. (doc. 3)

- cheque nº ..., sacado sobre o Banco C..., com data de 06-08-2005

e no valor de € 1 000. (doc. 4)

- cheque nº ..., sacado sobre o Banco C..., com data de 06-09-2005

e no valor de € 1 000. (doc. 5)

- cheque nº ..., sacado sobre o Banco C..., com data de 06-10-2005

e no valor de € 1 000. (doc. 6)

- cheque nº ..., sacado sobre o Banco C..., com data de 06-11-2005

e no valor de € 1 000. (doc. 7)

- cheque nº ..., sacado sobre o Banco C..., com data de 06-12-2005

e no valor de € 1 000. (doc. 8)

No entanto tais cheques foram também devolvidos, pelos mesmos motivos dos anteriores.

Resultaram de tais devoluções despesas bancárias que são da responsabilidade dos executados, visto terem sido os mesmos a dar-lhes causa, despesas que se cifram no valor de €452,44.

Sobre tais valores vencem-se juros que calculados tendo-se em conta as taxas legais correspondentes e previstas para cada período, e que até á presente data (12-12-2008). Perfazemos valor de €2.111,52.

Tais cheques devem-se considerar admissíveis como títulos executivos pois "tem-se entendido que prescrita a obrigação cartular constante de um cheque, esse título de crédito poderá continuar a valer como título executivo, desta vez enquanto escrito particular consubstanciando a obrigação subjacente, nos termos do art. 46, nº 1, al. c) do Código de Processo Civil.” »

2. Por despacho datado de 21/08/2013 (referência ...), foi a 1ª. executada (O..., Ldª) julgada parte ilegítima e, em consequência, indeferiu-se liminarmente o requerimento executivo no que à mesma concerne, tendo, assim, e nos termos do aí ordenado, a execução prosseguido os seus termos apenas contra o 2º. executado C...

3. Na sequência de despacho judicial (de 18/12/2018), foi a exequente convidada a concretizar quais os cheques dados à execução que foram devolvidos por bloqueio de conta e aqueles que o foram por falta de provisão, o que a mesma veio fazer (fls. 27 destes autos físicos) nos seguintes termos:

            ...

4. Por despacho (liminar) de 29/03/2019 a sra. juíza a quo decidiu indeferir liminarmente a execução (requerimento executivo) no que concerne aos 5 primeiros cheques - com o fundamento de os mesmos, enquanto documentos particulares, não se encontrarem revestidos de força executiva -, ordenando, em consequência, que a execução prosseguisse os seus ulteriores trâmites apenas quanto ao 6º. e último cheque acima identificado.

5. Inconformada com esse despacho decisório a exequente dele apelou, tendo concluído as alegações desse seu recurso nos seguintes termos:

...

6. Contra-alegou o executado C..., pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do julgado, o fez depois de concluir as suas contra-alegações nos seguintes termos:

...

6. Cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.


II- Fundamentação

A) De facto.

1. O tribunal a quo deu como provado os seguintes factos:

Os seis cheques dados à execução são:

1) o cheque nº ..., datado de 06-07-2005, que foi devolvido em 08-07-2005 por conta bloqueada (cfr. Doc. nº 1, junto com o Requerimento Executivo);

2) o cheque nº ..., datado de 06-08-2005,que foi devolvido em 23-11-2005 por conta bloqueada e em 04-10-2006 por conta bloqueada (cfr. Doc. nº 2, junto com o Requerimento Executivo);

3) o cheque nº ..., datado de 06-09-2005, que foi devolvido em 04-04-2006 por conta bloqueada (cfr. Doc. nº 3, junto com o Requerimento Executivo);

4) o cheque nº ..., datado de 06-10-2005, que foi devolvido em 04-05-2006 por conta bloqueada (cfr. Doc. nº 4, junto com o Requerimento Executivo);

5) o cheque nº ..., datado de 06-11-2005, devolvido em 05-12-2005 por conta bloqueado (cfr. Doc. nº 5, junto com o Requerimento Executivo);

6) e o cheque nº ..., datado de 06-12-2005, devolvido em 09-11-2005 por falta de provisão (cfr. Doc. nº 6, junto com o Requerimento Executivo).

2. Para além desses, devem ter-se como assentes os factos que se deixaram descritos no Relatório que antecede, sendo que no que concerne aos cheques deve considerar-se como assente toda a realidade factual descrita no ponto 3. desse Relatório e bem assim todo o demais teor desses cheques que aqui se dá por reproduzido (os quais foram extraídos e resultam do teor das peças processuais e documentais que integram estes autos de recurso ou dos autos principais de execução, por via de consulta do processo eletrónico).

B) De direito.

Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se fixa e delimita o objeto dos recursos, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs. 635º, nº. 4, 639º, nº. 1, 608º, nº. 2, e 852º do CPC).

Ora, calcorreando as conclusões das alegações do recurso da exequente/apelante verifica-se que a única questão que aqui nos cumpre apreciar traduz-se em saber se estão ou não os 5 (cinco) cheques em relação aos quais foi indeferida liminarmente a execução (requerimento executivo) dotados/revestidos de força executiva?

O tribunal a quo entendeu que não.

Para o efeito, e em síntese, aduziu (nem sempre de forma, e salvo sempre o devido respeito, que não se nos afigura muito clara) os seguintes tópicos argumentativos:

Começou por convocar para o efeito o acordão de uniformização de jurisprudência do STJ nº. 3/2016, de 10/11/2015 (publicado no DR, 1ª. Serie, de 22/01/2016), citando as seguintes passagens insertas a fls. 217 e 218 da sua fundamentação “A revogação, neste contexto (do cheque), deve ser interpretada como uma instrução unilateral para não pagamento de um cheque que tenha sido emitido em beneficio de – ou endossado a – terceiro. O cheque, uma vez revogado, deixa de ser cheque e é destituído nas suas virtualidades jurídicas: em rigor, ao revogar a ordem incorporada no cheque o sacador está a proibir o seu pagamento. (…) Quer isto dizer que o débito emergente da obrigação subjacente permanece incólume, pelo que se é verdade que a obrigação cambiária se extingue de modo indevido, a verdade é que a relação subjacente, que tem por objecto o direito de crédito da autora cuja falta de liquidação consubstancia o concreto prejuízo patrimonial, subsiste in totum.

Considerou que um cheque não pago por conta bloqueada tem o mesmo significado que revogação, e que “deve ser equiparado ao cheque não pago por não ter sido apresentado dentro do prazo de validade.”

A partir daí concluiu que os aludidos 5 cheques dados à execução ao serem “devolvidos por conta bloqueada, deixaram de valer como títulos cambiários”, não podendo, assim, valer como títulos executivos, deixando o seu portador “de possuir qualquer direito cambiário em relação à sacadora/emitente do cheque ou contra o subscritor/avalista, já que essas obrigações cambiárias de garantia de pagamento dos cheques extinguiram-se (cfr. artºs. 12 e 17 da LUCh.)

Logo, não podendo a exequente “sufragar-se dos cinco cheques como títulos cambiários” e não podendo os mesmos “valer como cheques, também não podem ser tidos como meros quirógrafos”, e “isso porque se os cinco referidos cheques não chegam a possuir força executiva, como títulos de crédito, também não poderão revestir a executoriedade como quirógrafo nos termos da alínea c) do artº. 703, nº. 1, do CPC.”

Por fim, ainda concluiu que os referidos documentos (os 5 cheques) não podem valer como reconhecimento de dívidas, por não preencherem os requisitos externos mencionados na al. b) do artº. 703º, nº. 1, do CPC.

Em suma, a tribunal a quo justificou aquele sua decisão de indeferir liminarmente a execução no que concerne os ditos 5 cheques, com o facto de os mesmos não possuírem força executória como títulos de crédito e, por isso, também, não poderem valer como quirógrafos, e ainda por não serrem dotados de força executiva por via da al. b) do artº. 703º”, ao contrário do que sucedeu com o 6º cheque (em relação ao qual a execução prosseguiu), “que foi devolvido por falta de provisão.”

Posição essa que é sufragada pelo executado C... com a amplitude dos argumentos aduzidos nas conclusões das suas contra-alegações ao recurso que acima se deixaram transcritas, e da qual discorda a exequente, defendendo a executoriedade de tais cheques, como documentos quirógrafos, nos termos que constam das conclusões das suas alegações de recurso que supra se deixaram igualmente transcritas.

Apreciemos, pois.

Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da ação executiva (artº. 45º, nº. 1, do revogado CPC de 61 – em vigor à data da instauração da ação executiva - e artº. 10º, nº. 5, do nCPC).

No campo dos títulos executivos vigora, entre nós, o princípio da legalidade/tipicidade, segundo o qual só pode servir de base a um processo de execução documento a que seja legalmente atribuída força executiva.

Assim, e a esse propósito, o atual Código de Processo Civil (aprovado pela Lei nº. 41/2013, de 26/06, e entrado em vigor, nos termos do seu artº. 8º dessa lei, em 01/09/2013), sob a epígrafe “espécies de títulos executivos”, dispõe, no seu artº. 703º, nº. 1, que à “execução apenas podem servir de base:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.

2- (…)”.(sublinhado e negrito nossos)

Constituía entendimento dominante que a exequibilidade de um título deve ser aferida pela lei vigente ao tempo da propositura da respetiva ação (cfr., entre outros, a Abrantes Geraldes, in “Títulos Executivos”, Revista da Faculdade de Direito da UNL, A Reforma da Acção Executiva, Ano IV, nº 7, 2003, pág. 47” e Ac. do STJ de 15/2/2002, in “Rec. Agravo nº 3054/02, 1ª. sec., Sumários, 12/2002”).

Entretanto, o tribunal constitucional, através do acordão nº. 408/2015, de 23/2015 (publicado no DR, I série, nº. 2015, de 14/10/2015), veio declarar, “com força com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força o artigo 46º, nº. 1, alínea c), do Código de Processo Civil, de 1961, constante dos artigos 703º, do Código de Processo Civil, e 6º., nº. 3, da Lei nº. 41/2013, de 26 de junho, por violação do princípio da proteção da confiança (artigo 2º. da Constituição.

Ora, extrai-se dessa doutrina fixada pelo TC (e reforçada daquilo que decorre da sua fundamentação), em homenagem ao princípio da constitucional da proteção da confiança, que o momento a atender para aferir da exequibilidade de um título deve ser aquele em que o mesmo foi emitido.

Sendo assim, e tendo os cheques em causa dados à execução sido emitidos no ano de 2005 (pelo menos é essa a data que neles consta, sem que tenha aqui sido questionada), é à luz da lei então em vigor que deverá ser apreciada a sua força executiva – e na pior das hipóteses seria sempre à data da instauração da execução, que neste caso ocorreu em 16/12/2008) -, sendo, pois, nessa medida, inaplicável, ao contrário do que fez o tribunal a quo, ao caso que nos foi submetido a apreciação, o atual CPC (e tal como ressalta, aliás, já ressaltava também do expresso no artº. 6º, nº. 3, daquela citada Lei nº. 41/2013, de 26/06, que o aprovou), sendo que, adiante-se, no caso, a solução final a que irá chegar-se não divergiria, em nossa opinião, na hipótese de se optar diretamente pela aplicação do nCPC.

Desse modo, dada a data em que foram emitidos os aludidos cheques e a que se reportam os presentes autos (e em último caso a própria ação executiva), a referida apreciação (da sua exequibilidade) deverá ser feita à luz do revogado CPC 61, na versão então em vigor (e à qual nos referiremos adiante, sempre que nada se diga em contrário).

Diploma esse que, sob a epígrafe “espécies de títulos executivos”, dispunha então no seu artº. 46º, nº. 1 (na redação que lhe foi então – no que concerne à sua al. b) – lhe foi introduzida pelo DL nº. 38/2003 de 08/03), que:

a) As sentenças condenatórias;

b) Os documentos elaborados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;

c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;

d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.” (sublinhado nosso)

Em passant, diga-se, que no confronto do citado artº. 46º (vg. al. c) do nº. 1 do CPC 61) com o também citado artº. 703º (vg. al. c) do nº. 1 do nCPC), verifica-se que enquanto o legislador do CPC de 61 ampliou a o elenco dos títulos executivos, já o legislador do nPC restringiu, no que concerne aos documentos particulares, esse elenco dos títulos executivos.

Conforme decorre do relatório do preâmbulo do DL nº 329-A/95 de 12/12 (pioneiro da introdução de tal reforma, que introduziu ao CPC de 61), o legislador justificou então tal ampliação do elenco dos títulos executivos com a ideia de “contribuir significativamente para a diminuição do número de acções declaratórias de condenação propostas, evitando-se a desnecessária propositura de acções tendentes a reconhecer um direito do credor sobre o qual não recai verdadeira controvérsia, visando apenas facultar ao autor o, até agora, indispensável título executivo judicial”.

Legislador esse que decidiu, assim, sacrificar o valor de uma maior segurança jurídica aos valores de maior eficácia e celeridade das relações jurídicas.

Já o legislador do nCPC - e como decorre a exposição de motivos da Proposta de Lei 113/XII, que deu origem à Lei nº. 41/2013 de 26/06 que o veio aprovar - justificou essa referida redução/restrição invocando razões contraditórias daquelas que o anterior legislador havia aduzido para proceder à referida ampliação do elenco do títulos executivos baseados em documentos particulares, pois que apontou razões de interesse público para retirar força executiva aos documentos referidos no artº. 46º nº. 1 al. c) do anterior CPC, visando impedir, com tal, o risco de proliferação de ações executivas injustas, já concretizado no “aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório”, privilegiando, assim, a segurança jurídica.

Posto isto, avancemos.

O título executivo – que, como se sabe, não se confunde necessariamente com a causa de pedir -, enquanto documento certificativo da obrigação exequenda, assume, assim, uma função delimitadora (por ele se determinando o fim e os limites, objetivos e subjetivos), probatória e constitutiva. Todavia, não se confundido com a causa de pedir e nem sendo conceitos necessariamente coincidentes, costuma-se, porém, ainda afirmar que, como pressuposto processual específico da ação é executiva, o título é, grosso modo, uma condição e suficiente da mesma.

A exequente deu à execução 6 cheques, como títulos executivos, sendo que entre eles se encontram os 5 cheques aqui em causa, em relação aos quais foi indeferido liminarmente a execução /requerimento executivo.

É sabido que os cheques se encontram entre os documentos (extrajudiciais) que a lei reveste no artº. 46º, nº. 1 al. c), de força executiva. Desde logo, na sua função natural de documentos cartulares ou cambiários, ou seja, enquanto títulos de crédito de natureza cambiária, e podendo agora (naquilo que constitui hoje entendimento claramente dominante da nossa doutrina e jurisprudência, embora com alguma vozes discordantes, e cuja problemática adiante analisaremos) sê-lo ainda, em determinadas condições, enquanto documento particular ou quirógrafo (cfr. artº. 46, nº. 1 al. c), e, por todos, o prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º., Coimbra Editora, 1999, pág. 90” e in “A Acção Executiva, 5ª ed., Coimbra Editora, pág. 59”, e Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª ed., Almedina, pág. 35”).

Quando o cheque se apresenta à execução na sua veste cambiária ou cartular (preenchendo todos os requisitos que nessa qualidade o permitem executar), como título executivo, é considerado como um título de crédito próprio, porém, se é ali apresentado despido dessa veste cambiária, ou seja, apenas como documento particular, é considerado como um título de crédito impróprio (cfr., por todos, o Ac. do STJ, de 12/09/2019, proc. 125/ 16. 0T8VLF-A.C1.S1, disponível, em www.dgasi.pt).

Numa visão funcional, mas não estritamente rigorosa, diremos que o cheque surge-nos como um meio de pagamento privilegiado (que permite dispensar direcamente o recurso ao numerário.

Numa linguagem comum, pode dizer-se que o cheque configura uma ordem dada por uma pessoa (sacador) a um banco (sacado), para que pague, ao primeiro ou a terceira pessoa, determinada quantia nele inscrita, e por conta dos fundos disponíveis nesse banco.

Numa definição mais jurídica e completa, que se apresenta consensual, e que resulta de uma leitura articulada dos artigos 1º. e 2º. da Lei Uniforme sobre Cheques (doravante designada por LUC), pode-se dizer que o cheque é um título cambiário de crédito, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstrato, contendo uma ordem incondicionada dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, no sentido de pagar à vista a soma ou a quantia nele inscrita (cfr., por todos, F. Correia e A. Caeiro, in “RDE, 1978, pág. 457”).

Tal como ressalta da leitura do artº. 3º da LUC, na base da emissão de um cheque estão fundamentalmente duas relações jurídicas distintas: uma relação de provisão e um contrato ou convenção de cheque.

Podemos dizer que a relação de provisão se caracteriza pela disponibilização a favor do emitente de certos fundos que se conservam no banco, ou seja, essa relação pressupõe a existência, junto do banco, de fundos de que o sacador ou o emitente possa dispor, e que pode traduzir-se sob as mais diversas formas, tais como da existência de um depósito, de uma abertura de crédito, de uma conta corrente, de um desconto, etc..

O contrato ou convenção de cheque traduz-se num acordo através do qual o banco acede, comprometendo-se ao seu pagamento, a que o seu cliente (titular de um direito de crédito sobre a provisão) mobilize os fundos que estão à sua disposição, por meio da emissão de cheques.

A provisão surge, assim, não apenas como um requisito interno típico do cheque, mas também como um pressuposto do seu normal desempenho, já que, fundamentalmente, o mesmo surge funcionalmente, como já referimos, como um meio de pagamento. Na verdade, quando o apresentador do cheque se dirige ao banco para proceder à cobrança do mesmo deve existir provisão, ou seja, o banco deve assegurar o direito de crédito do sacador, disponibilizando para o efeito os fundos necessários ao pagamento do cheque.

Todavia, a falta de provisão não torna o cheque inválido (cfr. artº. 3º - fine - da LUC), muito embora, como é sabido, essa irregularidade possa fazer incorrer o seu sacador em responsabilidade criminal ou/e civil (como salvaguarda, além do mais, da tutela da confiança na circulação dos títulos – cambiários -, em geral, e da proteção da boa fé do seu adquirente, em particular).

Daí que se diga que a relação de provisão surja, nuclearmente, como uma condição económica do cheque, e não mais do que isso.

Contudo, não basta a existência de uma relação de provisão, para que o cheque possa ser pago, sendo necessário algo mais para que o banco fique obrigado ao seu pagamento. E esse “algo mais” é nada mais nada menos a existência de um contrato ou convenção de cheque de que acima falámos.

Contrato esse que, como resulta da noção já acima exarada, se traduz num acordo pelo qual o banco, vinculando-se ao respetivo pagamento, acede a que o cliente (titular da provisão) mobilize os fundos à sua disposição, através da emissão de cheques.

Sem esse acordo o cheque continua também a ser válido (cfr. artº. 3º - fine - da LUC), enquanto título, mas sem ele o banco não fica obrigado ao seu pagamento. E daí dizer-se que enquanto a relação de provisão aparece como uma condição económica do cheque, já o referido contrato de cheque surge, agora, como uma condição jurídica do mesmo, pois que é ele que dá juridicidade àquela relação de provisão, uma vez que só com ele, repete-se, o banco fica vinculado a pagar o cheque.

Trata-se, assim, de um contrato que se caracteriza, além do mais, por ser autónomo (que portanto não se confunde com a relação de provisão, pois pode estabelecer-se esta relação sem que necessariamente se convencione a utilização de cheques), que assenta também nos princípios da boa fé e da tutela da confiança, que se situa dentro do universo dos negócios bancários, que é bilateral ou sinalagmático (por estabelecer um conjunto de direitos e deveres recíprocos para as partes que o outorgam), sendo a sua celebração feita frequentemente de forma tácita, e que se consubstancia mediante a requisição pelo cliente de um ou mais livros de cheques (ou mesmo através de simples cheques avulsos) e com a entrega deles pelo banco (donde, dada a frequente ausência de negociações preliminares, haver também quem o caracterize como sendo um contrato de adesão).

Sendo, como supra deixámos exarado, um contrato bilateral/sinalagmático, do contrato de cheque emergem, assim, direitos e deveres recíprocos para as partes que o celebram.

No que concerne ao cliente/sacador, pode dizer-se que o principal direito que adquire pela celebração de tal contrato traduz-se, como naturalmente resulta do que atrás se deixou expresso, na possibilidade que passou a ter de emitir cheques sobre os fundos de que dispõe, sabendo que o banco ficou vinculado a pagá-los, ou seja, ficou com o direito de mobilizar os fundos existentes à sua disposição no banco, através da emissão de cheques.

No que concerne aos deveres, o cliente/sacador ficou com tal contrato obrigado, para além de ter fundos disponíveis e suficientes para pagar os cheques emitidos, a verificar regulamente o estado da sua conta, e a zelar pela sua boa guarda, ordem e conservação da sua caderneta de cheques, e bem assim ainda, no caso do seu extravio ou perda, a avisar imediatamente o banco. Resulta, assim, de tal um especial dever de vigilância e zelo que onera o cliente, e que, no fundo, se traduz numa prestação de facto, que deverá ser cumprida pontualmente.

Quanto ao banco, e no que concerne aos seus direitos, o principal é o de lançar em conta o pagamento dos cheques.

No que concerne aos deveres, há que distinguir entre os principais e os laterais:

Entre os primeiros ressalta, desde logo, o dever do pagamento dos cheques emitidos pelo cliente sacador (especialmente daqueles que tenham provisão), dispensando-nos, por desnecessário para o caso, de falar aqui dos segundos. (Vide, sobre a problemática que acabamos de abordar, entre muitos outros, Ac. da RC de 19/12/2007, proc. 5975/04.8TBLRA.C1, disponível in dgsi.pt/jtrc; Sofia Galvão, in “Contrato de Cheque, Lex, Lisboa 1992, págs. 20 e ss.”; Paulo Olavo da Cunha, in “Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, 2009, págs. 91/92 e 441 e ss.”; José Maria Pires, in “O Direito Bancário, 2º Vol., pág. 333 e ss”; Ac. do STJ de 9/11/2000, in “CJ, Acs. do STJ, Ano VIII, T3 – 108” e Ac. da RLx de 28/4/2005, in “CJ, Ano XXX, T2 – 114”).

É no âmbito desse contrato de convenção de cheque, que se enquadra o direito conferido, pelo artº. 32º da LUC, ao titular da conta (enquanto sacador) de revogar o cheque por si entre si emitido, embora tal só produza efeitos (impondo-se ao banco sacado) – tal como vem sendo prevalecentemente entendido - depois de decorrido o prazo legal estatuído para a sua apresentação a pagamento.

Importa ainda reter que o cheque, não obstante estar invariavelmente representado por um impresso normalizado fornecido pelo banco (módulo), a lei (LUC) não exige que o cheque revista forma especial, muito embora não prescinda de enumerar (no artº. 1º.) os requisitos essenciais que deva conter, sob pena de na falta de algum deles o título (documento) não produzir efeitos como cheque (artº. 2º, e ressalvadas as exceções ali previstas), e que são os seguintes:

- Inserção da palavra cheque (expressa na língua empregue para a redação do título);

- Mandato puro e simples de pagar uma certa quantia determinada (ou seja, menção inequívoca da ordem de pagamento sobre a quantia certa, a pagar);

- A indicação do nome do sacado (que terá necessariamente de ser uma instituição de crédito - vg. um banco);

- Indicação da data e do lugar onde o cheque é passado; e

- Indicação de quem passa o cheque (o sacador).

Por fim, importa ainda atentar que o cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias, devendo esse prazo contar-se do dia indicado no cheque como data da sua emissão (cfr. do artº 29, §§ 1º e 4º, da LUC). O que constitui, tal com vem sendo dominantemente entendido, uma verdadeira condição de ação cambiária, e daí que se venha considerando ser tal apresentação tempestiva do cheque a pagamento como um verdadeiro requisito de exequibilidade do mesmo.

Pois bem, tendo presentes tais considerações que se deixaram expendidas, avancemos, agora, decisivamente para a resposta da questão acima colocada.

Observados os aludidos documentos (os 5 cheques aqui em causa) dados à execução como título executivo verificamos (na sua essência, e naquilo que mais releva):

Que todos eles se revestem de um impresso normalizado fornecido pelo banco, e tendo inserido a palavra cheque.

Que todos eles foram sacados sobre o banco C...

Que todos eles se mostram assinados, no lugar do sacador, pelo executado C...

Que todos eles se apresentam sem a indicação do nome do beneficiário.

Que todos eles indicam uma quantia a pagar pelo banco.

Que o 1º. cheque (nº. ...), com data (de emissão) de 06-07-2005, foi devolvido em 08-07-2005 por conta bloqueada;

Que o 2º. cheque (nº. ...), com data (de emissão) de 06-08-2005, foi devolvido em 23-11-2005 por conta bloqueada e novamente em 04-10-2006 por conta bloqueada;

Que o 3º. cheque ( nº. ...), com data (de emissão) de 06-09-2005, foi devolvido em 26-09-2005 por falta de provisão e novamente em 04-04-2006 por conta bloqueada;

Que o 4º. cheque (nº. ...), com data (de emissão) de 06-10-2005, foi devolvido em 23-11-2005 por conta bloqueada e novamente em 04-05-2006 por conta bloqueada;

Que o 5º. cheque nº. ...), com data (de emissão) de 06-11-2005, foi devolvido em 24-10-2005 por falta de provisão e novamente em 05-12-2005 por conta bloqueada.

Do confronto de tais factos extrai-se:

Que estamos perante cheques ao portador, dado terem sido emitidos sem a indicação do nome do beneficiário (artº. 5º da LUC), o que significa que os mesmos eram pagáveis, por simples apresentação, e que a sua posse é título suficiente para legitimação de quem se apresentasse a cobrá-los, o que aconteceu, in casu, como a exequente (cfr. por todos, Abel Pereira Delgado, in “Lei Uniforme Sobre Cheques, 5ª ed., Livraria Petrony, nota de pág. 113.”).

Que nenhum desses cheques foi pago quando foi apresentado a pagamento no banco.

Que todos eles foram devolvidos por conta bloqueada, sendo que dois deles (o 3º e 5º) já antes o haviam sido também, quando apresentados a pagamento, por falta de provisão.

Que todos eles foram apresentados a pagamento depois de decorrido o prazo de legal de 8 dias a contar da data emissão (artº. 29º da LU), com exceção do último (o 5º) que da 1ª. vez, em que foi devolvido por falta de provisão, o foi antes da data da emissão nele aposta, que, deles logo, lhes retira força executiva, enquanto documentos cambiários/cartulares.

Que quando a presente ação executiva foi instaurada já há muito havia decorrido o prazo de 6 mesmos sobre as datas das suas apresentações a pagamento, encontrando-se, por via disso, a respetiva obrigação cambiária prescrita (artº. 52º da LUC), como, aliás, a própria exequente reconhece no final do seu requerimento executivo, e daí que tenha apresentados esses cheques à execução enquanto documentos particulares ou quirógrafos, à luz do disposto no artº . 46, nº 1 al. c), do CPC 61.

Portanto, face ao que se deixou expendido, é patente que os referidos cheques não estão dotados de força executiva, enquanto títulos cambiários ou cartulares, ou seja, e como títulos de créditos próprios.

E questão que se coloca é se o poderão estar (revestidos(dotados de força executiva) enquanto documentos particulares, ou seja, como meros quirógrafos, e à luz daquele normativo legal?

A esse propósito, surgiram então duas grandes correntes de opinião:

a) Uma, no sentido de que a letra, livrança ou cheque que não reúnam condições para valer como título de crédito, não podem ser constitutivos ou certificativos de uma obrigação, logo, não podem servir de título executivo.

Em defesa dessa oposição, argumenta-se, em síntese, que as livranças, letras e cheques já eram títulos executivos antes da reforma processual de 1995/96, pelo que nunca esteve na mente nem nos propósitos do legislador alterar a LULL e LUC, nem bulir no regime aí consagrado, ou sequer modificar os requisitos de exequibilidade desses títulos, pelo que em tais casos não podem significar a declaração de constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias (cfr., por ex., Acs. do STJ de 29/2/2000, CJ, Ano VIII, T1 -124; de 16/10/01, CJ, Ano IX, T2 - 89; de 20/11/03, CJ, Ano XI, T3 - 154; de 18/10/07, disponíveis em www dgsi.pt, e Ac. da RC de 6/2/01, CJ, Ano XXVI, T1 - 28 ).

b) – Outra, partindo da ampliação dos títulos executivos resultante da nova redação do artº. 46 alínea c) do CPC 61, defendendo que extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, mantém a sua natureza de título executivo, por se tratar de documento particular assinado pelo devedor, mas com duas variantes:

i) - Desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo (cfr., por ex., Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva, pág.54”; Amâncio Ferreira, in “Curso de Processo de Execução, 2005, 8ª. ed., Almedina, págs. 33/36; Acs. do STJ de 18/01/2001, in “CJ, Acs. do STJ, Ano IX, T1 – 71”; Ac. do STJ de 29/1/2002, in “CJ, Acs. do STJ, Ano X, TI – 64”; Ac. do STJ de 11/5/1999, in “CJ, Acs. do STJ, Ano VII, T2 – 88”; Acs do STJ do de 30/10/03, de 16/12/04 e Acs da RC de 21/11/06 e de 28/10/08, 19/5/ 2009, estes todos disponíveis em www.dgsi.pt,

ii) – Independentemente da invocação da relação subjacente, por o título implicar o reconhecimento unilateral de uma dívida. É que a emissão de um cheque, para além de traduzir uma ordem de pagamento, constitui também o reconhecimento de uma obrigação pecuniária, convocando a aplicação do artº. 458º do CC. (cfr., por ex., Abrantes Geraldes, in “Títulos Executivos”, Themis ano IV, nº. 7, pág. 62, Ac. do STJ de 11/5/99, CJ. Ano VII, T2 - 88; Ac. STJ de 25/9/07, Ac. RP de 11/1/07, de 7/10/08, disponíveis em www.dgsi.pt).

Por ser aquela que se nos afigura ter maior consistência argumentativa, vimos aderindo àquela primeira corrente, na sua 1ª. variante, que defende que extinta a obrigação cambiária, o cheque vale como quirógrafo, enquanto documento particular, desde que nele se mencione a causa da relação causal subjacente à sua emissão ou que a mesma seja alegada no requerimento executivo. Posição essa que hoje se mostra claramente prevalecente entre nós, e que se vem consolidando no nosso mais alto tribunal (cfr, por ex., Acs. do STJ de 12/02/2019, proc. 125/16.0T8VLF-A.C1.S1; de 19/02/2019, proc. 3503/16.1T8VIS-A.C1.S1, de 05/07/2018, proc. 1634/07.8TBVNG-A.P1.S1; e de 24/05/2011, de 07/07/2010 e de 28/04/2009, disponíveis em www dgsi.pt/jstj), e qual, diga-se, veio a ser acolhida pelo legislador do nCPC, com a redação plasmada no acima citado artº. 703º, nº. 1 al. c).

Sendo assim, e não constando a sua indicação em nenhum dos aludidos 5 cheques dados à execução, será que relação causal/fundamental subjacente (à sua emissão) foi indicada no requerimento executivo?

Calcorreando esse requerimento dele ressalta a alegação de que os referidos cheques foram emitidos pelo 2º. executado (C...) por ter assumido “pessoal e comercialmente o pagamento da quantia dívida” pela sociedade 1ª. executada O..., Lda., (mais tarde julgada parte ilegítima, como vimos), e cujos contornos antes descreveu, o que configura uma assunção da dívida por parte daquele primeiro em relação à dívida que esta última havia contraído e cuja credora era já então a exequente, no sequência da cessão de créditos que a sua credora originária lhe fizera (cfr. artº 595º, nº. 1, do CC).

Verifica-se, assim, que no requerimento executivo foi pela exequente alegada a relação causal (contrato de assunção de dívida) que esteve subjacente à emissão, pelo ora executado C..., dos aludidos cheques.

Defendeu-se no despacho recorrido (no que se é secundado pelo executado) que tendo os referidos cheques sido devolvidos (não tendo sido pagos) devido ao facto de a respetiva conta ter sido bloqueada pelo seu titular (emitente dos cheque), não poderiam os mesmos valer como documentos quirógrafos, e como tal revestir-se de força executiva.

Os fundamentos aduzidos para o efeito foram aqueles que supra se deixaram exarados.

Porém, salvo o devido respeito, discordamos da conclusão a que ali chegou o tribunal a quo, e pelo seguinte:

Importa, começar por considerar que o Ac. UJ do STJ nº. 3/2016 (cujos extratos da fundamentação ali citados não constam da sua decisão final), foi proferido no âmbito de uma ação declarativa, de responsabilidade civil por factos ilícitos, que o beneficiário dos cheques ali identificados instaurou contra o banco sacado visando responsabilizá-lo pelos danos patrimoniais alegadamente por si sofridos e deles ser indemnizado (correspondentes, segundo ele, aos montantes neles titulados), com o fundamento de o mesmo ter aceite (injustificadamente) o pedido de revogação desses cheques formulado pelo seu sacador (e como tal se recusado a pagá-los), quando se encontrava ainda a decorrer o prazo legal fixado para o efeito pelo artº. 29º da LUCh para o seu pagamento (e no decurso do qual foram os apresentados a pagamento), e não obstante a conta não dispor na altura dessa apresentação de fundos bastantes para proceder ao seu pagamento. E perante essa situação discutia-se ali se dano do beneficiário daqueles cheques deveria corresponder, de imediato, ao não recebimento do montante aposto em tais cheques ou se, pelo contrário, teria esse seu beneficiário de fazer prova de todos os requisitos a que alude o artº. 483º do C. Civil, e designadamente do concreto dano invocado, para obter o ressarcimento reclamado? E foi neste último sentido que apontou a doutrina fixada na decisão final desse acordão.

É nesse contexto que devem interpretadas as afirmações exaradas nesse acordão e que foram citadas pelo tribunal a quo, no despacho recorrido.

Mesmo admitindo que o conceito de cheque “bloqueado” deve ser equiparado como conceito de cheque “revogado” e aos seus efeitos (cfr. artº. 32º. do LUC) – embora essa equiparação não se mostre de todo incontroversa, havendo mesmo quem a considere, no que concerne aos seus efeitos jurídicos, equiparável à conta desprovida ou à retirada de fundos, conforme nos dá conta, com a jurisprudência aí citada neste sentido, Abel Pereira Delgado, in “Ob. cit., pág. 63”, anote-se que no próprio despacho recorrido, a nosso ver, um tanto em contradição com o antes e depois afirmado e as próprias conclusões extraídas, se afirma queo cheque não pago por conta bloqueada, tem o mesmo significado que revogação, e que “deve ser equiparado ao cheque não pago por não ter sido apresentado dentro do prazo de validade” -, tal apenas se reflete e atingirá o cheque enquanto título de crédito próprio ou puro, isto é, na sua função cambiária, ou seja, enquanto documento cartular. É neste sentido, aliás, que terá, e salvo melhor opinião, de ser interpretada a afirmação feita no citado Ac. UJ do STJ de que “ o cheque, uma vez revogado, deixa de ser cheque e é destituído nas suas virtualidades jurídicas”. O que, a nosso ver, é ainda mais reforçado, quando, logo de seguida, ali se afirma que em rigor, ao revogar a ordem incorporada no cheque o sacador está a proibir o seu pagamento.” E mais ainda quando, mais à frente se afirma “(…) Quer isto dizer que o débito emergente da obrigação subjacente permanece incólume, pelo que se é verdade que a obrigação cambiária se extingue de modo indevido, a verdade é que a relação subjacente, que tem por objecto o direito de crédito da autora cuja falta de liquidação consubstancia o concreto prejuízo patrimonial, subsiste in totum. (sublinhado nosso)

E a mesma resposta se deve dar àqueles que, numa interpretação mais rigorosa, entendem que sendo a ordem de pagamento um dos requisitos de validade dos cheques (relembre-se que o cheque deve conter, nos termos do artº. 1º., nº. 2, da LUC, “o mandato puro e simples de pagar um quantia determinada”), e sendo essa ordem posteriormente revogada – anote-se que in casu essa ordem ou mandato constava dos títulos cambiários/cheques quanto foram emitidos e entregues – pelo sacador, proibindo com tal ordem ao banco o seu pagamento, os cheques perdem um dos seus requisitos essenciais, deixando de produzir os efeitos como cheques, nos termos do estatuído no artº. 2º da LUC. Mas essa sua perda de produção de efeitos apenas ocorrerá, mesmo que se cadira a esse tese, enquanto títulos cartulares, que consubstanciam em si uma obrigação cambiária, e não mais do que isso.

Como se afirma no acordão do STJ de 05/07/2018, proc. 1634/07.8TBVNG-A.P1.S1 (que acima citámos), “podem constituir títulos executivos (como meros quirógrafos, ou seja, como simples documentos particulares assinados pelo devedor, desde que mencionem a obrigação causal subjacente), os títulos cambiários que não observem os requisitos definidos na LU.”

Nessas circunstâncias, e cimo já resulta do que acima deixámos expendido, a extinção a obrigação cambiária não implica (como afirma, o prof. A. Varela, in “Manual de Processo Civil, pág. 74”) a extinção da obrigação fundamental subjacente à emissão do título que originou aquela, deixando esse título de ser então constitutivo da relação cambiário para passar a valer como título certificativo daquele relação obrigacional subjacente. Ou seja, nessas circunstâncias, e como também se afirma no Ac. do STJ de 12/02/2019, proc. 125/16.0T8VLF-A.C1.S1 (supra igualmente citado), tais títulos perdem a sua natureza de títulos de crédito cambiários, passando a constituir meros documentos particulares quirógrafos (extracartualres) da dívida causal ou relação substantiva que está na base da sua emissão, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente.

Em suma, e para concluir, em face de tudo o exposto, embora não revestidos de força de força executiva cambiária (como títulos de créditos próprios ou puros), e porque no requerimento executivo foi indicada a relação causal subjacente à sua emissão (encontrando-nos ainda no domínio das relações imediatas – isto para quem entenda constituir tal um requisito essencial), os 5 (cinco) sobreditos cheques dados à execução, encontram-se, porém, à luz do estatuído no artº. 46º, nº. 1 al. c), do CPCde 61 (na versão acima citada), revestidos/dotados de força executiva enquanto documentos particulares quirógrafos (assumindo, nessa condição, a veste, como vulgarmente são considerados, de títulos de crédito impróprios).

Termos, pois, em se decide julgar procedente o recurso, revogando o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, recebendo o requerimento executivo quanto aos tais cinco sobreditos cheques, ordene o prosseguimento da execução (contra o referido executado), com base nos mesmos, nos termos da tramitação legalmente prevista.


III- Decisão

Assim, em face do exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, revogando-se, em consequência, o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, recebendo o requerimento executivo quanto aos cinco sobreditos cheques, ordene o prosseguimento da execução, com base nos mesmos, nos termos da tramitação legalmente prevista.

Custas pelo executado/contra-alegante no recurso (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do CPC).


***

Sumário

I- É à luz da lei vigente à data da sua constituição/emissão que, em princípio, se deve aferir da exequibilidade de um título.

II- Ainda que despidos da sua natureza cartular (vg. por extinção da obrigação cambiária), os títulos cambiários podem revestir-se de força de executiva, enquanto documentos particulares/quirógrafos, desde que tenham neles mencionada a relação causal subjacente à sua emissão ou o exequente a indique no requerimento executivo.

III- Assim, tendo o exequente (a favor de quem foram emitidos) indicado no requerimento executivo a relação causal subjacente à sua emissão, gozam de força executiva – enquanto documentos particulares quirógrafos - os cheques que apresentados a pagamento foram devolvidos com fundamento no seu bloqueamento pelo titular da conta/seu sacador



Coimbra, 2019/12/03