Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
768/21.0T8VIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
PERDA TOTAL
PRIVAÇÃO DO USO
Data do Acordão: 03/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGO 41.º DO DECRETO-LEI N.º 291/2007, DE 21-08 E ARTIGOS 562.º E 566.º, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A indemnização pela perda total do veículo tem como medida o respectivo valor venal.
II – Em caso de paralisação do tractor e do semi-reboque, em consequência de acidente de viação, é devida indemnização pela paralisação dos dois veículos.

III – Em caso de perda total, é devida indemnização por privação de uso do veículo até ao momento em que seja satisfeita ao lesado indemnização correspondente.

Decisão Texto Integral:

I – Relatório  

1. F... Unipessoal Lda., com sede em ..., intentou acção declarativa contra C... Plc sucursal em Portugal, com sede em ..., pedindo a condenação da ré no pagamento do total de 60.496,89 € (35.000 pela perda do veículo pesado + 8000 pela perda total do semirreboque + 12.177,12 pela paralisação de ambos os veículos + 5319,77 pela perda da carga, mais o lucro visado com a mesma) e juros desde a citação até integral pagamento, mais indemnização a título de privação do uso, no valor mínimo diário (fora os domingos) de 253,69 €, para cada um dos 2 veículos, desde 22.1.2021 (em que declinou a responsabilidade pelo acidente) até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos, acrescidos de juros de mora, a liquidar em execução de sentença.

Tudo como consequência de acidente de viação que se ficou a dever a culpa exclusiva de uma condutora de veículo seguro na ré. 

Contestou a seguradora ré, dizendo desconhecer os termos em que ocorreu o acidente, bem como os prejuízos sofridos pela autora, mas pugnando por ter sido a sua segurada a ser embatida na sua mão de trânsito, sendo que o atraso na peritagem não lhe é imputável e que a autora nunca esteve a aguardar pela reparação mas sim pelo ressarcimento pecuniário, tanto que nunca solicitou veículo de substituição.

*

A final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, pelo que condenou a R. no pagamento à A. das seguintes quantias:

1- 13.000 €, a título de perda total do veículo articulado (tractor e semi-reboque);

2- 2.500 €, a título de paralisação do veículo;

3- 5.319,77 €, a título de perda da carga transportada;

4- juros, à taxa legal, sobre cada uma das referidas quantias, desde a citação quanto às quantias mencionadas em 1 e 3, e desde a data desta decisão quanto ao demais, referido em 2, sempre até integral pagamento;

e absolveu a R. de tudo o mais contra ela pedido.

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2. A A. recorreu, concluindo que:

I. Responsabilidade ilícita e culposa pelo acidente

(… conclusões sobre matéria agora indiscutida).

II. Perda total dos seus veículos ... (trator) e semirreboque ...

3ª Veículos que foram declarados como totalmente perdidos (não reparáveis) em 12-01-2021 pela R seguradora em consequência do acidente.

4ª Em caso de perda total, o valor venal do veículo há-de corresponder ao valor de substituição antes do acidente. Ou seja, um valor suficiente e necessário que permita ao lesado adquirir outro bem do mesmo valor económico e uso concreto equivalente ao bem danificado (artigo 41º do DL 291/2007, de 21/08 e 562º e 566º do CC).

5ª A decisão recorrida fixou o valor que proposto pela R seguradora, € 9.500,00 para a ... e € 3.500,00 para o semirreboque ... para a recorrente poder adquirir outros veículos do mesmo género em substituição destes.

6ª Está provado que o veículo de ... foi objeto de reparações ao motor e incorporação de peças de substituição entre julho de 2018 a setembro de 2020 no valor de € 34.055,00 (pontos 46 a 52 dos factos provados).

7ª Está provado também que o semirreboque ..., em agosto de 2020, foi objeto de reparação (reforço e pinturas de chassi e substituição de madeiras) no valor de € 3.933.61 e levou umas lonas novas no valor de € 984,00, que soma uma despesa de € 4.917,61.

8ª Estas despesas realizadas nestes veículos diferenciam-nos de outros veículos semelhantes à venda no mercado e como tal não poderão deixar de ser contabilizadas para efeito de apuramento do seu valor venal e comercial.

9ª Só a indemnização peticionada pela autora (€ 35.000 pela perda do ... e € 8.000,00 pela perda do semirreboque), contida dentro dos limites que se tiveram como provados (artigo 566º, 3 do CC), lhe permitirá adquirir no vasto mercado de automóveis usados, veículos da mesma marca, tipologia, antiguidade e estado de conservação e funcionamento idênticos aos veículos sinistrados.

III. Um veículo articulado ou um conjunto de veículos [reboque (matrícula ...-NA- ...) e semirreboque (matrícula L-.........)] material e juridicamente autónomos;

10ª A respeito da paralisação e privação do uso destes veículos, a recorrente alegou que se deveria considerar a privação de dois e não de um só veículo uma vez que cada um deles pode produzir rendimentos separadamente.

11ª Na decisão recorrida entendeu-se que a autora apenas sofreu privação do uso de um veículo articulado mesmo que os dois veículos estejam sem utilização, não havendo lugar a uma indemnização em duplicado.

12ª Esta questão foi apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 18-11-2004, relatado pelo senhor Juiz Conselheiro Lucas Coelho, onde se decidiu o seguinte:

(… transcrição de texto do acórdão).

13ª Mesmo que o artigo 111º, 3 do Código da Estrada ficcione que o conjunto de veículos é equiparado a veículo único fá-lo apenas no âmbito restrito da circulação deles.

Tal ficção legal já não vale para o caso da paralisação destes veículos por força do embate

de que a condutora segurada na R ilicitamente deu causa.

14ª Tal entendimento não foi acolhido pela decisão recorrida contrariando assim a referida jurisprudência seguida pelo STJ.

IV. Quanto à paralisação dos veículos da autora entre a data do acidente e a data em que eles foram considerados como totalmente perdidos pela R seguradora

15ª A decisão recorrida atendendo às deslocações e à quantidade dos produtos comercializados, que se provaram e a juízos equitativos, fixou o valor de € 2.500,00 mensais para tal entre o dia do acidente e o da declaração da perda dos veículos.

16ª Peticionou aqui a autora o valor de € 12.177,12, tendo em conta o valor diário (€253,69) estabelecido pela APS e ANTRAM para a paralisação de veículos pesados de

mercadorias internacionais e o número de dias de tal paralisação (21+27 = 48).

17ª O valor mensal que foi arbitrado é escasso pois se o dividirmos por 48 dias (fora os domingos) (dado que a autora transporta e comercializa os seus produtos também aos sábados) obtém-se um resultado diário € 52,08, muito aquém do valor constante nas referidas tabelas.

18ª (… transcrição de texto de acórdão) (V. Ac. da RC de 06-02-2018).

19ª Assim, ponderado o exposto, entendemos que, em juízo de equidade, nos termos do artigo 566º, nº 3 do Código Civil, será de arbitrar pela paralisação diária dos veículos tal valor por cada um deles, o que, no caso, tendo em conta aqueles dias de paralisação (48 dias) e aquele valor diário (253,69) referido nas tabelas, nos dá aquele valor peticionado de € 12.177,12.

V. Quanto à privação uso dos veículos entre a data em que R declinou a responsabilidade pelo acidente até à disponibilização da indemnização do valor dos veículos

20ªFicou provado que a autora utilizava a ... e o semirreboque para transportar batata e cebola que compra em Espanha na terça, quinta e sexta-feira, comportando cada carga 25 toneladas, para, depois de embalar e pesar no seu armazém em ... (...), a transportar e vender no mercado abastecedor do ..., na segunda e quarta-feira.

21ª Ora em face desta factualidade provada, verificado o dano, não sendo possível quantifica-lo, podia e devia ter considerado o valor diário da tabela referida pela autora como um valor referencial a considerar no juízo de equidade a fazer nos termos do nº 3 do artigo 566º do CC.

22ª Pediu aqui a autora a título de privação de uso dos seus veículos uma indemnização no valor diário (fora os domingos) de € 253,69 para cada um dos veículos desde a data 22-01-2021 (em que a R declinou a responsabilidade pelo acidente) até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos.

23ª A decisão recorrida entendeu que (… transcrição de texto da sentença).

24ª Porém, constitui entendimento pacífico que, no caso de perda total do veículo, operando-se uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro, a privação do uso subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente, pois só neste momento é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que o substitua.

25ª (… transcrição de texto de acórdão) (Ac. STJ de 15/11/2011, proc. 6472/06.2TBSTB-E1.S1, Rel. Moreira Alves, in www.dgsi.pt).

26ª Ora a R seguradora por carta de 22-01-2021 declarou que não assumia qualquer responsabilidade pelo acidente uma vez que a condutora do veículo segurado dele não era culpada – Doc. 24 junto à petição inicial e artigos 84,88 e 89 deste articulado.

27ª E como tal, e até hoje, não disponibilizou à A o equivalente em dinheiro daquela perda total dos seus veículos.

28ª Assim, autora não esteve nem está à espera pela contabilização dos prejuízos.

Apesar de ter reclamado uma reparação provisória do sinistro em 23-12-2020 - doc. 24., intentou esta ação em 23-02-2021. É sobre a R seguradora que recai o dever de reparar os danos que até à data não fez para mitigar os prejuízos deste acidente, devendo por pois arcar com as consequências do deixar “arrastar esta situação para ver no que dá”.

29ª Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e como tal revogar-se a decisão recorrida, proferindo-se uma outra que condene a R seguradora a indemnizar a autora pelo valor dos prejuízos sofridos com a perda total dos seus dois veículos pesados (€ 35.000 para a ... e € 8.000 para semirreboque), com a paralisação destes desde a data do acidente até à declaração da perda total destes (€ 12.177,12), e ainda com a privação do seu uso desde esta última data até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos (no valor diário de € 253,69 para cada um deles), por si peticionados, e a liquidar em execução de sentença, se necessário, assim se repondo a acostumada Justiça

3. A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

II – Factos Provados

 

-petição:

1 No dia 09-12-2020, por volta das 8,30 h, na EN ..., no lugar e localidade de ..., na União de freguesias ... e ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação entre o veículo automóvel ligeiro de passageiros ...-AF-..., marca ..., conduzido por AA, proprietária do mesmo, e o veículo pesado de mercadorias ...-NA-..., marca ..., que acoplava o semi-reboque L-........., marca ..., carregado, propriedade da Autora e conduzido pelo seu gerente, BB, consubstanciado num embate entre ambos os veículos, tendo o primeiro deles invadido parcialmente a metade da faixa de rodagem por onde seguia o pesado, que viu alterada a sua trajectória.

2 O veículo pesado ... que trazia atrelado o semirreboque L-......... (...), carregado, com quantidade não apurada de cebolas e batatas, no dia e hora referida, seguia nesta via, no sentido .../... e em sentido contrário, .../..., seguia o ligeiro ..., que transpôs a sua metade da faixa de rodagem.

5 No sentido .../..., a hemifaixa de rodagem tem uma curva para o lado direito, no sentido contrário, .../..., tal curva, sendo que num e noutro sentido os condutores têm uma visibilidade em relação trânsito que se faz em sentido contrário num raio de 50 metros.

7 A ... circulava na metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, muito próximo da berma desta via.

11 A condutora do ... embateu na parte frontal esquerda do pesado.

14 O embate dá-se na hemifaixa adstrita à ....

16 Em consequência do embate, a ... perdeu a direção (o eixo das rodas dianteiras recuou cerca de 20 cm) e seguiu involuntariamente para o seu lado esquerdo.

17 A ... após embate apresentava danos no lado esquerdo.

19 Na sequência da colisão, foi solicitada a presença da G.N.R. que tomou nota da ocorrência.

20 E elaborou a participação do sinistro e croqui cujo conteúdo se dá por reproduzido.

36 A responsabilidade civil por danos causados pela circulação do veículo ... encontrava-se transferida para a ré C..., até ao montante de € 1.000.000,00 por acidente e danos materiais deste, ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice ..., válido até 08-10-2021.

38 A Autora dedica-se ao comércio e produção de frutas, hortícolas e batatas, entre outros.

39 A Autora utiliza a ... e o semirreboque como meio de transporte para estes produtos.

40 Desde o dia o dia do acidente, a ... e o semirreboque L-......... deixaram de ter condições para circular.

41 A R, depois de proceder à vistoria da ..., considerou que a mesma não era passível de reparação, mas sim de perda total fixando a esta um valor de € 9.500,00 e de € 700,00 pelo valor do salvado.

42 Em relação ao semirreboque ..., depois de proceder à vistoria deste, também considerou que o mesmo não era passível de reparação, mas sim de perda total fixando a este semirreboque um valor de € 3.500,00 e de € 105,00 pelo valor do salvado.

46 A ... à data do acidente encontrava-se em funcionamento.

47 A ... em 04-07-2018 foi objeto duma reparação na oficina PM Truck de ... no motor no valor de € 14.628,69.

48 Em outubro de 2018, foi reparada na mesma oficina ao motor (radiador e nova revisão) no valor de € 1405,09.

49 Em janeiro de 2020, foi reparada naquela oficina no motor (injetores) no valor de € 6,515,32 (3664,29 + 2851,03).

50 Em fevereiro de 2020, a A adquiriu peças novas para este veículo na D... (caixa de velocidades completa) no valor de € 4.489,50.

51 Em fevereiro de 2020, adquiriu a esta empresa mais peças no motor no valor de € 2.460.00.

52 Em setembro de 2020, a ... levou nova reparação geral na oficina F... (cabine e diferencial) no valor de € 4.556,40.

54 A ... tinha um valor que, em concreto, não foi possível fixar, mas de cerca de € 9.500,00.

55 O semirreboque ... à data do acidente estava em funcionamento.

56 Tinha sido reparado na oficina L..., ... (reforço e pintura de chassi e substituição das madeiras) em agosto de 2020 no valor de € 3.933,61.

57 Foram colocadas lonas novas na V..., ..., no valor € 984,00.

59 O semi-reboque tinha um valor que, em concreto, não foi possível apurar, mas de cerca de € 3.500,00.

60 A ré não forneceu à autora veículos sucedâneos.

63 A Autora compra a granel batatas e cebolas na Espanha, embala-as e pesa-las no seu armazém em ... e comercializa-as no mercado abastecedor do ... (...).

64 Utilizando a ... e o semirreboque para o transporte destes produtos, na segunda e quarta feira desloca-se neles ao mercado abastecedor para comercializar estes bens de consumo.

65 Na terça, quinta, sexta e sábado desloca-se neles para e da Espanha onde compra as batatas e e cebolas a granel para a sua comercialização em Portugal.

69 Cada carga em Espanha de cebolas e de batatas com cerca de 25 toneladas a um preço médio de € 0,14 por kg (0,12 batatas e 0,16 cebolas) perfaz um valor médio de € 3500,00 cada.

70 A que acresce custos de transporte, de mão-de-obra de embalagem e peso no seu armazém, em montante que não foi possível apurar.

71 Comercializando por semana duas cargas, a um preço que não foi possível fixar, a autora obtém um lucro líquido que igualmente não foi possível apurar.

73 A Autora recebeu notícia da perda total dos veículos a 5 de janeiro de 2021 para o reboque e em 12 de janeiro de 2021, para a ....

91 Em consequência do acidente as batatas e cebolas ficaram estragados (esmagados e amaçados).

92 Inviabilizando o seu comércio para consumo.

94 A carga de cebolas e batatas que transportava no semirreboque tinha um valor de valor de € 5319.77.

*

-Contestação:

17 A ... e o semi-reboque são propriedade da Autora.

18 E eram, na ocasião, conduzidos por BB.

19 Que o fazia valendo-se do direito de ter constituído uma “sociedade unipessoal” para poder imputar-lhe despesas da actividade comercial a que, pessoalmente e no seu único interesse, se dedica.

22 O ... e respectivo semi-reboque foram levados para local escolhido pela Autora, sem qualquer intervenção, muito menos determinação da Ré.

23 quando esta aí pretendeu peritá-los, a partir do dia 16/12/2020 (Quarta-Feira seguinte).

24 Não só o veículo não se encontrava completamente desmontado nas suas partes danificadas (o que limitava a perícia aos danos visíveis)

25 Como a oficina ainda não obtivera preços para as peças e componentes que teriam de ser substituídas ou reparadas, se viesse a concluir-se pela viabilidade da reparação.

26 A Autora entendeu solicitar de uma outra oficina uma outra estimativa para a reparação.

28 A peritagem só veio a fica concluída no início de Janeiro de 2021.

33 A autora nunca solicitou da Ré a disponibilização de um “veículo de substituição”.

*

Factos não provados

-petição:

(…)

46 A ... à data do acidente encontrava-se em bom estado de conservação e de funcionamento.

54 Em virtude do seu bom estado (mecânica), a ... tinha um valor nunca inferior a € 35.000,00.

55 O semirreboque ... à data do acidente também estava bem conservado e em bom estado de funcionamento.

59 Em virtude do seu bom estado e das reparações aludidas no ... um valor nunca inferior a € 8.000,00.

70 (…) que perfaz um valor de € 1500,00 (cada carga).

71 Comercializando (…) a um preço médio de 0,24 por kg, obtém um lucro líquido médio de € 2000,00 (em cada carga obtém lucro líquido de 1000,00) (25 toneladas X 0,24 = € 6000,00 - custo da mercadoria € 3500,00 - custos de transporte e embalagem = 1500,00 = € 1000,00).

*

 

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Contabilização dos prejuízos a indemnizar pela R.

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“ii – perda dos veículos

Relativamente a esta matéria, os sujeitos processuais estão de acordo quanto à circunstância de ambos os veículos da autora – tractor e semi-reboque – terem ficado inutilizados, o que corresponde ao conceito de perda total, devendo a proprietária ser indemnizada recebendo o valor dos mesmos, pois que, como refere o nº 1 do art.º 566º do código civil, “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural (…) não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor“. Os factos provados dão nota de que, por via do embate, os veículos da autora não puderam ser reparados, sendo que valiam, respectivamente, € 9.500,00 e € 3.500,00, o camião e o reboque.

Danos comprovados, e igualmente se tendo provado a sua directa conexão com o acidente, a decisão final incorporará, necessariamente, a condenação da ré no pagamento deste item.

iii – paralisação dos veículos

Pede a autora a quantia de € 12.177,12 pela paralisação de “ambos os veículos”, tractor e semi-reboque, o que ocorreu, como se provou, a partir do dia do acidente, tendo a perda total – situação que aqui mereceu a concordância da autora – sido declarada a 5 de Janeiro de 2021, quase um mês após o acidente. Não se provou qual o prejuízo concretamente sofrido pela autora por via da referida paralisação.

Como tem entendido a jurisprudência, tais factos, ainda que parcos, são suficientes para definir que ocorre um dano. Ouçamos a Relação de Lisboa: “A mera privação do uso de um bem determina a prova perfunctória ou de primeira aparência da verificação de um dano”. E conclui: “Para se eximir a indemnizar, cabe ao réu demonstrar que nenhum dano se verificou” (2 Acórdão de 4-11-2021, …no processo 4261/19.3T8Lrs.). Num segundo momento, e em consonância com o disposto no nº 3 do art.º 566º do código civil, decidiu o nosso mais alto Tribunal que “Demonstrado o dano que advém da privação do uso do veículo, na falta de quantificação objectiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respectiva compensação” (3 Acórdão de 28 de Setembro de 2021, …no processo 6250/18.6T8Gmr.). Importa, assim, recorrer a juízos equitativos para fixar o valor a atribuir a este título.  

Considerando os meios que a autora emprega, como um veículo pesado, a quantidade de deslocações a que se dedica, e as quantidades, de várias toneladas, que movimenta, afigura-se-me que dificilmente retirará, da sua actividade, menos de € 2.500,00 mensais. Assim será, então, fixada a quantia a atribuir pelo período de paralisação em causa.

(…)

v – privação do uso

Pede ainda a autora, a título de “privação do uso dos referidos veículos”, uma quantia que seria obtida pela contabilização de um valor diário de € 253,69 por cada veículo, e a apurar desde a data “em que (a seguradora) declinou a responsabilidade pelo acidente até à disponibilização (da indemnização) a liquidar em execução de sentença”.

Primeira questão, o definir de uma indemnização por uma multiplicação de um valor diário pelo número de dias, leva a que a referida quantia se concretize “dependendo a liquidação da obrigação de simples cálculo aritmético“, como refere o nº 6 do art.º 704º do código de processo civil, pelo que não há lugar, por absoluta desnecessidade, à instauração de um incidente de liquidação. Realizar uma das quatro operações aritméticas básicas é suficiente, não se torna necessário, para o efeito, ouvir testemunhas nem consultar documentos.

Segunda questão, a autora – independentemente de, na presente, se ter “facilitado”, recuperando a terminologia empregue na petição, para considerar dois veículos – possui, unicamente, um veículo; um veículo articulado, composto por um tractor e por um semi-reboque, que é um reboque cuja parte dianteira assenta sobre o veículo tractor. E, se o primeiro deles, se define como sendo um veículo que exerce força de tracção, não transportando carga útil, o segundo caracteriza-se por não se mover pelos seus próprios meios. Assim, há a considerar unicamente a privação do uso de um veículo, o que ocorre quando ambos estão sem utilização, ou quando tal unicamente se verifica com um deles – mas não há lugar a considerar uma indemnização em duplicado.

De seguida, a definição de uma quantia diária, como consta das tabelas a que a autora faz referência, utilizadas pelos comerciantes de veículos e pelas seguradoras, para negociações extrajudiciais ou para regulação de conflitos entre associados, é um método incompatível com a decisão judicial, que se baseia – enquanto estas questões forem submetidas a julgamento – no apurar de factos provados, e não na aplicação de tabelas consoante as características do veículo em apreço. Não tem a jurisprudência dado aplicação a tais tabelas, antes tendo sustentado, quase que unanimemente, o entendimento qui referido pela Relação de Lisboa: “A privação do uso da viatura sinistrada constitui dano patrimonial ressarcível, calculável, se necessário, de acordo com a equidade” (4 Acórdão de 22 de Outubro de 2020, …no processo 2430/16.7T8Lrs.)

Por último, uma vez definido que o veículo da autora não pode ser reparado, não há lugar a uma indemnização por ele restar inutilizado. Como entendeu a Relação de Coimbra, “sendo exclusiva a responsabilidade do obrigado à indemnização, o termo final da contabilização do dano da privação do uso corresponde ao momento em que é disponibilizada a indemnização devida” (5 Acórdão de 7 de Setembro de 2021, … no processo 1022/20.0T8Lra.).

Assim, não há qualquer conteúdo útil a definir por referência a este pedido.”.

A A. discorda pelas razões que aponta nas suas conclusões de recurso. Vejamos, então, as três questões controvertidas.

2.1. Quanto ao prejuízo perda dos veículos.

A recorrente defende que só a indemnização peticionada pela autora (35.000 € pela perda do ... e 8.000 € pela perda do semirreboque), lhe permitirá adquirir no vasto mercado de automóveis usados, veículos da mesma marca, tipologia, antiguidade e estado de conservação e funcionamento idênticos aos veículos sinistrados, nos termos do art. 566º, 3, do CC, até porque em caso de perda total, o valor venal do veículo há-de corresponder ao valor de substituição antes do acidente. Ou seja, um valor suficiente e necessário que permita ao lesado adquirir outro bem do mesmo valor económico e uso concreto equivalente ao bem danificado (art. 41º do DL 291/2007, de 21.8). Ademais, está provado que o veículo de ... foi objeto de reparações ao motor e incorporação de peças de substituição entre Julho de 2018 a Setembro de 2020 no valor de 34.055 € (pontos 46 a 52 dos factos provados) e que o semirreboque ..., em Agosto de 2020, foi objeto de reparação (reforço e pinturas de chassi e substituição de madeiras) no valor de 3.933.61 € e levou umas lonas novas no valor de 984 €, que soma uma despesa de 4.917,61 €. Assim, estas despesas realizadas nestes veículos diferenciam-nos de outros veículos semelhantes à venda no mercado e como tal não poderão deixar de ser contabilizadas para efeito de apuramento do seu valor venal e comercial (conclusões de recurso 3ª a 9ª). Esta dupla argumentação é de rejeitar.

Quanto à 2ª parte, deve dizer-se, como justamente assinala a recorrida, que a consideração das reparações como factor de valorização de um veículo automóvel são, por via de regra, irrelevantes, como também redundaria num contrassenso, pois, por conceito e definição, as reparações visam a conservação do veículo, repondo-lhe as características perdidas ou diminuídas, não propriamente a sua valorização. E, inclusivamente, até se poderia chegar a um resultado absurdo, pois, quanto mais frequentes e mais dispendiosas as reparações a que um veículo fosse sujeito, maior seria o seu valor no mercado dos usados, que, inclusivamente, poderia até ultrapassar o valor de um veículo novo ! O que se nos afigura ser inaceitável.

Quanto à 1ª parte, é inescapável o que resulta da matéria provada, sob 54. e 59., atrás enumerada: 9.500 € o valor do tractor e 3.500 € o do semi-reboque. E também, indirectamente o que resulta da matéria não provada, alegada pela A., sob os factos 46., 54., 55., e 59., acima elencados; a ... à data do acidente encontrava-se em bom estado de conservação e de funcionamento; em virtude do seu bom estado (mecânica), a ... tinha um valor nunca inferior a 35.000 €; o semirreboque ... à data do acidente também estava bem conservado e em bom estado de funcionamento; em virtude do seu bom estado e das reparações aludidas no ... um valor nunca inferior a 8.000 €.

Não procede, pois, esta parte do recurso.

2.2. Relativamente ao prejuízo da paralisação dos veículos.

Por um lado, a recorrente defende que se deve considerar a privação de dois e não de um só veículo uma vez que cada um deles pode produzir rendimentos separadamente. Por outro lado, quanto à paralisação dos veículos da A. entre a data do acidente e a data em que eles foram considerados como totalmente perdidos pela R. seguradora o valor a indemnizar deve ser o peticionado de 12.177,12 €, num juízo de equidade, tendo em conta o valor diário de 253,69 €, estabelecido pela APS e ANTRAM para a paralisação de veículos pesados de mercadorias internacionais e o número de 48 dias de tal paralisação (27 para o tractor e 21 para o reboque), já que o valor mensal que foi arbitrado é escasso pois se o dividirmos por 48 dias (fora os domingos, dado que a A. transporta e comercializa os seus produtos também aos sábados) obtém-se um resultado diário 52,08 €, muito aquém do valor constante nas referidas tabelas (cfr. conclusões de recurso 10ª a 19ª).

A A. na sua p.i. tinha começado por calcular os seus prejuízos, tendo por base um lucro líquido médio semanal de 2.000 €, em 9.000 € para o tractor (27 dias = 4,5 semanas x 2.000 €) e 6.000 € para o reboque (21 dias = 3 semanas x 2.000 €), no valor global de 15.000 €. Mas logo de seguida, inesperadamente, acolheu-se aos valores estabelecidos pela APS e ANTRAM para chegar aos valores individuais de 6.849,63 € para o tractor (27 dias x 253,69 €) e 5.327,49 € (21 dias x 253,69 €), num total de 12.177,12 €, que foi o valor que acabou, um pouco incompreensivelmente, por peticionar e agora, de novo, reclama.     

Ora, no fim, por não se provou qual o prejuízo concretamente sofrido pela A., por via da referida paralisação, designadamente aquele apontado prejuízo de 15.000 €, como decorre dos factos provados 69. a 71., e, indirectamente, dos não provados 70. e 71.

Mas com recurso à equidade a sentença reclamada fixou o valor em 2.500 €. Pugnando a recorrente, com recurso à equidade, pelo valor que reclamava inicialmente e nele insiste, com base no que emerge do acordo estabelecido entre a APS (Associação Portuguesa de Seguros) e a ANTRAM (Associação Nacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias). Enquanto que a recorrida contrapõe que a A. não é, confessadamente, associada da ANTRAM, e nem sequer cuidou de trazer aos autos o acordo daquela com a APS que pretendia e pretende tomar como referencial. E que tendo alegado que o conjunto de veículos transportaria duas vezes por semana, para venda, mercadorias com o preço de custo de 3.500 € por carga (art. 71º da p.i.), o que se traduzira, portanto, num volume de negócios mensal de 28.000 € (3.500 € x 2 x 4 semanas), então os 2.500 € arbitrados na sentença correspondem a uma margem de lucro de 9% sobre o custo das mercadorias adquiridas e transportadas, líquida de encargos e impostos,1Quando, em 2020, a rendibilidade das microempresas de comércio por grosso de produtos alimentares foi de apenas 3,8% (sobre os capitais próprios) e de 5,9% (sobre os activos) – vd. https://www.bportugal.pt/page/quadros-do-setor –, quando não mesmo mais, pois, do mês inteiro que decorreu entre o acidente e a informação da perda total, alguns dias deveram-se à própria A., cuja oficina por si escolhida atrasou a peritagem dos veículos, para o que também concorreu ela própria, que entendeu solicitar a uma outra oficina uma outra estimativa de reparação, conforme factos provados 22. a 28. da contestação.2Se o período de privação de uso a ressarcir for, não de todo um mês, mas apenas de 3 semanas, a margem líquida pressuposta para a A. já passará a 12% [2.500 € /(3.500 € x 2 x 3 semanas)].

Como atrás se disse os 3.500 € de preço de custo por carga não se provaram – facto não provado 71. -, tão-pouco se provando a margem de lucro da A. – facto provado 71.-, pelo que as contas apresentadas pela recorrida, assentes em conjecturas e indicadores de rendibilidade média das microempresas (sobre capitais próprios e activos), dificilmente podem ser aceites.

Averiguemos, então, se o acordo APS - ANTRAM pode ser considerado para, através da equidade, fixar um valor indemnizatório. E avançamos já que não, por várias razões.    

Constata-se, em primeiro lugar, que a A. não demonstrou nos autos os termos do alegado acordo entre a ANTRAM e a APS. Efectivamente, prova documental sobre tal acordo, pela A., é zero. Desconhecem-se, pois, quais os termos desse acordo e tabelas com valores pecuniários.

Em segundo lugar, a A. não demonstrou ser associada da ANTRAM, caso em que o acordo vigente ao tempo do acidente lhe seria directamente aplicável. Aliás até confessou não ser associada da ANTRAM (cfr. art. 77º, da p.i.).

Em terceiro lugar, sendo certo que para nós um tal acordo, desde que demonstrado nos autos depois de sujeito ao devido contraditório, seria relevante para a fixação da indemnização por privação do uso, era necessário conhecê-lo em toda a sua extensão, pois só assim se conseguiria alcançar a justiça do caso concreto.

Em quarto lugar, para decidir com recurso à equidade não se pode considerar elementos cujos contornos e enquadramento se desconhecem por completo. Isso já seria uma justiça discricionária, em que tanto faz que seja “mais” como “menos”.

Tudo isto para dizer que A. não desenvolveu qualquer esforço probatório no sentido de demonstrar a existência de um acordo e quais os seus termos relevantes para servirem de referência à fixação da indemnização com recurso à equidade. Tal demonstração estava perfeitamente ao alcance da A. pelo que não há qualquer justificação para ser considerado como referência o valor de 253,69 € por cada dia de privação do uso do veículo.

Mas se não pode ser considerado tal valor, algum tem de ser levado em conta, sendo indiscutível que a A. utilizava o veículo em transportes nacionais e internacionais, designadamente para Espanha.

À míngua de quaisquer outros elementos, temos que nos socorrer dos parâmetros que a jurisprudência tem fixado em situações algo semelhantes, pois a ponderação prudencial inerente à equidade também é sensível ao estabelecimento de critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade (art. 8º, nº 3, do CC).

Ora, no caso de veículos pesados de transporte nacional e internacional, a indemnização tem tendência a não ser inferior a 100 € por cada dia de paralisação. Como exemplo paradigmático e merecedor de ser seguido como referência, encontramos o Ac. desta Rel. de Coimbra de 6.2.2018, Proc.189/16.7T8CDN, em www.dgsi.pt, disponível na página www.dgsi.pt, onde se exarou que:

Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil. “

(…)

Efetivamente, concordando que, no caso em apreço, não serão de aplicar, “tout court”, os valores previstos na tabela da ANTRAM para efeitos de compensar a paralisação dos veículos dos respectivos associados, já consideramos que nada obsta (veja-se entendimento semelhante, embora que respeitando aos custos de aluguer no mercado de “rent-a-car”, no Acórdão desta Relação, de 16/12/2009) a que se pondere os € 250,00/dia, previstos em tal tabela como mero referencial a considerar no juízo de equidade a fazer nos termos do artº nº 3 do art. 566º do CC.”.

Neste seguimento, neste acórdão arbitrou-se pela paralisação diária de um veículo pesado de mercadorias, que realizava transportes nacionais e internacionais, o valor de 100 € por cada dia útil de imobilização, sendo certo que se refere precisamente a factos ocorridos no ano de 2015, tal como sucedeu, com a fixação de idêntico montante, no Ac. da Rel. Guimarães, de 27.2.2020, Proc.272/18.4T8VPA, disponível no mesmo site, e também referente a factos ocorridos em 2015.

Tendo como lanterna este valor, não pode olvidar-se que no nosso caso os factos reportam-se a 2020. Assim, temos como adequado, équo e justo o valor de 120 € diários.

O acidente ocorreu em 9.12.2020 e a A. recebeu a notícia da perda total dos veículos a 5.1.2021 para o reboque e em 12.1.2021, para a ... (facto 73.). Portanto 21 e 27 dias de paralisação, respectivamente, pois aos Sábados também a A. fazia transportes (facto 65.), num total de 48 dias. Porém, alguns dias de paralisação deveram-se à própria A., cuja oficina por si escolhida atrasou a peritagem dos veículos, para o que também concorreu ela própria, que entendeu solicitar a uma outra oficina uma outra estimativa de reparação, conforme factos provados 22. a 28. da contestação. Que não sabemos em concreto, mas período que julgamos equilibrado em 8 dias. Temos, portanto, um período total de 40 dias de paralisação. Daí que, a indemnização global deve ser fixada em 4.800 € (40 x 120 €) e não apenas em 2.500 €.

Salvo se considerarmos, não dois veículos, tractor e semirreboque, mas apenas um veículo, como defende a recorrida, por o tractor e o semirreboque serem sempre usados em conjunto, como unicamente um veículo articulado, além de que no acordo entre a ANTRAM e a APS se prever que no caso de um conjunto rodoviário, composto por um camião e um reboque,  as importâncias a pagar pela paralisação serão calculadas com base na totalidade do peso bruto do conjunto, independentemente do veículo sobre o qual os danos incidam. Argumentação esta que é de rejeitar.

Desde logo sobre o acordo entre a ANTRAM e a APS já referimos que é desconhecido nos autos, porque a recorrida também não cuidou de o trazer, pelo que fica arredada qualquer analogia.

Por outro lado, entendemos estar em jogo dois veículos, ou um conjunto de veículos (reboque e semirreboque) material e juridicamente autónomos. Na realidade, cada um deles pode produzir rendimentos separadamente, porque podem ser utilizados separadamente um sem o outro. Ou seja, possuindo cada um dos elementos do conjunto de veículos uma utilidade económica de exploração comercial própria e autónoma, bem se compreende que a paralisação de qualquer deles deva relevar também autonomamente como fonte de danos.

E juridicamente é de acompanhar a jurisprudência do STJ, indicada pela recorrente, no Ac. de 18.11.2004, Proc.04B312, onde se decidiu o seguinte:

1 - Os veículos que integram um «conjunto de veículos» são material e juridicamente autónomos.

2 - Resultando de despiste e colisões do automóvel segurado na ré, exclusivamente imputáveis a facto do seu condutor, danos materiais no tractor e no semi-reboque da autora que rodavam em sentido oposto, incluindo a paralisação temporária de um e do outro, deve a seguradora indemnizar cumulativamente os danos das paralisações dos dois veículos e não apenas de uma única paralisação do conjunto unitariamente considerado.”.

Com efeito, a ... (tractor) que atrelava o semirreboque enquanto tais não são um veículo único, mas sim um conjunto de veículos (arts. 110º, nº 2, 111º, nº 2, do Código da Estrada). Tanto assim, que estão sujeitos a matrícula (art. 117º, nº 1, do CE), e à consequente emissão de livrete (art. 118º, nº 1) quer o trator quer o semirreboque. E quer o trator quer o semirreboque estão obrigados a seguro obrigatório (art. 150º, 1 do CE) como garantia da responsabilidade civil por danos emergentes da sua circulação. Mesmo que o art. 111º, nº 3, do CE ficcione que o conjunto de veículos é equiparado a veículo único fá-lo apenas no âmbito restrito da circulação deles. Tal ficção legal já não vale para o caso da paralisação destes veículos, quando entramos no âmbito dos danos a ressarcir resultantes dessa sua paralisação.

Por conseguinte o aludido entendimento da apelada não pode ser acolhido. Sendo, por isso, de atribuir à A. a indemnização que atrás fixámos.

2.3. No respeitante ao prejuízo da privação do uso.

A A. entende ter direito, a título de privação de uso dos seus veículos, a uma indemnização no valor diário (fora os domingos) de 253,69 €, segundo acordo APS – ANTRAM, para cada um dos veículos, desde a data de 22.1.2021 (em que a R declinou a responsabilidade pelo acidente) até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos, pois no caso de perda total do veículo, operando-se uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro, a privação do uso subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente, pois só neste momento é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que o substitua. Certo que até hoje a R. não disponibilizou à A. o equivalente em dinheiro daquela perda total dos seus veículos (cfr. conclusões de recurso 20ª a 28ª). Enquanto a apelada objecta que tendo os veículos ficado em perda total a A. não se encontra desde então a aguardar a reparação dos mesmos, mas antes o pagamento da correspondente indemnização, cuja inobservância por si é legalmente sancionada com o vencimento de juros moratórios, razão pela qual o ressarcimento pela privação do uso só é devido até à data em que a R. deu a conhecer à A. a perda efetiva do veículo. Em todo o caso, jamais se justificaria que a A. fosse ressarcida, a este título, em conformidade com o acordo entre a ANTRAM e a APS, pois, o que ali consta a este propósito é que em caso de perda total do veículo, o período de imobilização será contado desde a data do acidente ou da data de receção da participação na empresa de seguros até à data em que a empresa de seguros comunique ao associado da ANTRAM a situação de perda total.

Não se subscreve a posição da sentença recorrida e da recorrida seguradora.

A R. seguradora por carta de 22.1.2021 declarou que não assumia qualquer responsabilidade pelo acidente – doc. 25 junto à p.i. Por isso, até hoje, não disponibilizou à A. o equivalente em dinheiro à perda total dos seus veículos (e pelo qual vai ser condenada).

Porém, segue-se o e entendimento jurisprudencial que no caso de perda total do veículo, operando-se uma indemnização ou restituição por equivalente, traduzida na entrega de uma quantia em dinheiro, a privação do uso subsiste até ao momento em que ao lesado seja satisfeita a indemnização correspondente, pois só neste momento é que o lesado ficará habilitado a adquirir um veículo que o substitua.

Como se refere no Ac. do STJ de 21.4.2005, Proc.03B2246, no indicado sítio, também indicado pela recorrente: ... o específico dano da privação do uso do veículo destruído subsiste, com autonomia indemnizatória, até que o lesado seja ressarcido, nomeadamente, por mero equivalente (em dinheiro) da perda total.

Apenas a partir desse momento, deixa de poder falar-se de privação do uso do veículo posto que reconstituída – por equivalente - a situação que existiria se não fosse o facto do lesante e a perda do automóvel (artºs 562º e 566º do CC).”.

No mesmo sentido, o Ac. do STJ de 15.11.2011, Proc.6472/06.2TBSTB-E1., no mesmo sítio, que textua o seguinte: “Mas, a destruição e perda total do veículo e a correspondente obrigação de indemnizar o A. em dinheiro, não contende com a obrigação de indemnizar pela privação do uso.

É que essa privação mantém-se enquanto o responsável não reparar o veículo, quando for caso disso, ou não indemnizar o lesado, pelo respectivo valor …”.

Na verdade, só com a reparação ou com a indemnização cessará o dano e, por isso, só nessa altura pode deixar de falar-se em privação do uso.

Ora em face da factualidade provada, designadamente que a A. utilizava a ... e o semirreboque para transportar batata e cebola que compra em Espanha na terça, quinta e sexta-feira, comportando cada carga 25 toneladas, para, depois de embalar e pesar no seu armazém em ... (...), a transportar e vender no mercado abastecedor do ..., na segunda e quarta-feira, ficou a mesma privada de uso dos seus veículos desde a aludida data de 22.1.2021 até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição destes veículos.

Recaindo, por isso, sobre a R. seguradora o dever de reparar todos os danos o que até à data não fez para mitigar os prejuízos deste acidente (art. 562º do CC).

Verificado o dano, pretendia e pretende a A. obter o valor diário da tabela APS – ANTRAM, no valor de 253,69 €, a liquidar em execução de sentença (vide conclusão de recurso 29ª). Sobre a mencionada tabela e acordo APS – ANTRAM, já dissemos antes que não pode ser considerado.

Resta, pois, condenar a R. a pagar à A. o valor que se liquidar em sentença, como peticionado por esta, dentro do limite máximo pedido.

3. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

(…)

IV –Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, assim se revogando parcialmente a sentença recorrida, e, em consequência, modifica-se a parte 2- do segmento decisório, fixando-se o valor indemnizatório em 4.800 €, e condenando-se, ainda, a R. a pagar à A., desde 22.1.2021, o valor que se liquidar em sentença, a título de privação do uso, até à disponibilização do equivalente pecuniário necessário para a substituição dos veículos da A.    

*

Custas por A. e R., na proporção dos respectivos vencimentos/decaimentos.

*

                                                                       Coimbra, 8.3.2022

                                                                       Moreira do Carmo

                                                                       Fonte Ramos

                                                                       Alberto Ruço