Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
20/19.1T9PNH.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALEXANDRA GUINÉ
Descritores: CRIME DE PECULATO DE USO
PERDA DE MANDATO
MANDATO A PERDER
Data do Acordão: 07/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO CENTRAL CÍVEL E CRIMINAL DA GUARDA - JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO ARGUIDO E CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Legislação Nacional: ARTIGOS 30.º, N.º 4, E 117.º, N.º 3, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 21.º E 29.º DA LEI N.º 34/87, DE 16 DE JULHO/CRIMES DA RESPONSABILIDADE DE TITULARES DE CARGOS POLÍTICOS
Sumário: I - A perda de mandato não viola o n.º 4 do artigo 30.º da Lei Fundamental, porquanto o âmbito de aplicação deste se há-de ter como limitado pelo referido n.º 3 do artigo 117.º. 5 da CRP.

II - O mandato a perder reporta-se à data da condenação, podendo, pois, reportar-se a mandato diferente que não o exercido à data da prática dos factos.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª secção, do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. Nos autos de processo comum coletivo a correr os seus termos sob o n.º 20/19.1T9PNH … por Acórdão datado de 09.01.2025, foi decidido:

a) Absolver o arguido … pela prática, em autoria material e na forma tentada, de três (3) crimes de peculato, previstos e punidos pelo art.º 20.º, n.º 1 e art.º 3.º, alínea i), da Lei n.º 34/87 de 26 de Julho;

b) Absolver o arguido … pela prática, em autoria material e na forma tentada, de quatro (4) crimes de peculato de uso, previsto e punido, art.º 21.º, n.º 1 e art.º 3, alínea i), da Lei n.º 34/87 de 26 de julho;

c) Condenar o arguido …, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de peculato de uso, previsto e punido art.º 21.º, n.º 1 e art.º 3, alínea i), da Lei n.º 34/87, de 26 de julho, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de 12,00 €, no valor global de 720,00 €;

d) Não declarar a perda de mandato exercido atualmente pelo arguido … como Presidente da Câmara …, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 29.º, alínea f), da Lei 34/87, de 16 de julho;

e) Não declarar a perda a favor do Estado do montante de 45.270,22 €.

2. Inconformado recorreu o arguido extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões:

«A)Existe lapso / erro de julgamento nos fatos considerados provados nos pontos 9, 10 e 11 e nas alíneas g) e h) dos fatos não provados, o que impõe a reanálise de tal matéria de fato e alteração da mesma em conformidade.

B)De todos estes elementos conjugados, dúvidas não podem restar que a reunião aludida ocorreu na manhã do dia 04 de dezembro de 2018, data da ocorrência do Conselho Nacional e jamais foi afirmado que tenha tido lugar no dia 03, como interpretou o Acórdão recorrido.

C) Perante todos estes dados, concatenados, a matéria de fato assente e provada deverá ser a seguinte:

C1) No dia 4 de Dezembro de 2018, de manhã, o arguido reuniu com o deputado …, da Comissão de Saúde da Assembleia da República, a fim de tratar da prestação de cuidados de saúde no Concelho ..., nomeadamente para a resolução dos problemas dos Serviços de Radiologia para o Centro de Saúde ...;

C2) No dia 4 de Dezembro de 2018, de tarde, o arguido reuniu, também, com o Presidente da Junta de Freguesia ..., …, a fim de agilizarem e programarem eventos realizados, em parceria, entre tal Junta de Freguesia e o Município ..., na área social, nomeadamente, em relação aos idosos de ambos os territórios;

D)Impõe-se a alteração da matéria de facto e a conclusão de que no dia 03/12/2018, o arguido deslocou-se de ... a Lisboa, não só para no dia 04, à noite, participar no Conselho Nacional do ..., mas também para, no mesmo dia 04, tratar de assuntos do Município ..., na Comissão de Saúde da Assembleia da República e reunir com o Presidente junta de ....

E) A conduta do arguido, objeto de condenação no Acórdão recorrido, não deve ser considerada criminalmente relevante e a decisão proferida não se mostra conforme a Lei e a Constituição da República Portuguesa;

F) Ao contrário da decisão constante do Acórdão recorrido, impõe-se reconhecer e aceitar que é do interesse do respetivo Município que o seu Presidente partícipe nas reuniões do Conselho Nacional, ao qual pertencia, por inerência e tão só por ser Presidente de Câmara.

G)Consequentemente, é ao Presidente de Câmara, detentor de tal qualidade, que compete fazer um juízo de oportunidade de participar em tais reuniões, na qualidade de Presidente de Câmara e no interesse do Município que representa.

H) …

I) Objetivamente, não se mostra preenchido o tipo legal de crime pelo qual vem condenado. Salvo melhor opinião, a conduta do arguido, plenamente convicto de que lhe assistia o direito de se deslocar ao Conselho Nacional, onde participa, enquanto, Presidente de Câmara e apenas nessa qualidade e por ter tal qualidade, não pode ter dignidade Penal.

J) Quando muito, caso se entenda que existe uma errada compreensão de tal direito, o que traduziria um erro administrativo, apenas deveria repor o custo de tal viagem, entre Lisboa e Setúbal.

K) Subjetivamente, atenta a plena convicção do arguido, de a sua conduta se conformar com a lei, falta, de forma manifesta o elemento subjetivo para a incriminação de um crime necessariamente doloso.

O arguido explicou, de forma absolutamente coerente e credível, o arguido agiu plenamente convicto de lhe assistir tal direito. Essa convicção tem acolhimento legal e Constitucional. Os partidos políticos são, constitucionalmente, associações de interesse público.

Os seus estatutos têm dignidade normativa. A sua inerência, enquanto Presidente de Câmara no respetivo Conselho Nacional permitem-lhe, salvo melhor entendimento, o uso da viatura, para o efeito.

L) A interpretação e aplicação das normas constantes do Acórdão recorrido, a aplicação do artigo 8º do decreto lei 170/2008, conjugado com o artigo 5º, nº 1 alínea j) dos Estatuto dos eleitos Locais - Lei n.º 29/87, de 30 de Junho (que diz que os eleitos locais têm direito a uso da viatura quando ao serviço e em representação da autarquia) violam os princípios constitucionais da necessidade e proporcionalidade, constantes dos artigos 18º da CRP, o princípio estruturante do Estado de Direito Democrático ( artigos 1º e 2º da CRP), a relevância constitucional das autarquias locas e dos partidos políticos (artigos 114º e 235º da CRP).

M)A interpretação e aplicação do artigo 21º da Lei 34/87, de 16/07, tal como decorre do Acórdão recorrido, também se mostra em violação do princípio constitucional do Estado de Direito Democrático e da separação de poderes, previsto nos artigos 2º, 114º e 235º, nº1 e 2 da CRP.

N)O Acórdão recorrido viola as normas constantes do artigo 21º da Lei 34/87, de 16/07, artigo 8º do decreto lei 170/2008, conjugado com o artigo 5º, nº 1 alínea j) dos Estatuto dos eleitos Locais e a interpretação e aplicação destes normativos pelo Acórdão recorrido não se mostra conforme os princípios da necessidade e proporcionalidade, dos princípios do Estado de Direito Democrático e da Separação de Poderes, constantes do artigos 2º e 18º da CRP e, ainda, com as normas constitucionais que tutelam os partidos políticos (artigo 114º da CRP) e das autarquias locais (artigo 235º, nº1 e 2 da CRP)

…».

3. Inconformado recorreu o Ministério Público extraindo da motivação do recurso as seguintes Conclusões:

«1.ª Nos presentes autos, o Douto Tribunal a quo decidiu condenar o arguido … numa pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de 12,00EUR (doze Euros), no valor global de 720,00EUR (setecentos e vinte Euros), pela prática de um crime de peculato de uso, p.p. pelo artigo 21.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16-07, e decidiu não declarar a perda de mandato exercido atualmente pelo arguido … como Presidente da Câmara Municipal ..., nos termos e para os efeitos do artigo 29.º, alínea f), da Lei 34/87, de 16-07.

2.ª Não se conformou o Ministério Público com o Douto Acórdão a quo porquanto: porquanto:

i. a medida da pena aplicada ao arguido não respeita o preceituado no artigo 71.º do Código Penal, designadamente a mesma não se mostra adequada e proporcional aos factos ilícitos praticados pelo arguido; e, ii. a declaração de perda de mandato é uma pena acessória aplicada a titular de cargo político de natureza eletiva, tal como decorre do preceituado no artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16-07.

3.ª No caso em apreço, o grau de ilicitude dos factos é mediano – “atenta a indiferença denotada pelos bens jurídicos violados, pois que o arguido não se inibiu de usar para fins alheios, em proveito próprio, o veículo que lhe foi entregue apenas para usar no âmbito e exercício das suas funções, enquanto Presidente da Câmara” -, o grau de culpa do  arguido é igualmente mediano – “revelada numa actuação desconforme ao dever ser jurídico, quando lhe era exigível um comportamento de acordo com o direito” -, bem como é mediano o grau de violação dos deveres impostos ao arguido – “que descurou completamente a legislação em vigor quanto ao uso a dar ao património do Estado, violando o seu dever de fidelidade e transparência que o seu cargo exige”, embora, o dolo seja direto; acresce ainda que o arguido não reconheceu, em momento algum, o desvalor da sua ação, não se mostrando arrependido da sua prática.

4.ª O arguido … não tem antecedentes criminais e encontra-se inserido familiar, social e familiarmente na comunidade onde vive.

5.ª Ora, considerando que o crime de peculato de uso, p.p. pelo artigo 21.º, n.º 1, Lei n.º 34/87, de 16-07, tem como o limite mínimo da pena de multa 10 (dez) dias e como limite máximo 240 (duzentos e quarenta) dias, e que esta é a primeira condenação do arguido por crime desta natureza, entende-se que a pena de multa se deve situar na medida média da pena, pelo que será adequada a aplicação ao arguido de uma pena de multa de 120 (cento e vinte) dias.

7.ª No que concerne à determinação do quantitativo diário da pena de multa, aduziu-se igualmente no aresto supra referido que “Nos termos do artº 47º nº2 do CP, ‘Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5€ e 500 €, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.’ Convém ter presente que a taxa diária de multa deve ser fixada de modo a representar um sacrifício para o condenado, pois só assim poderá ser sentida como uma verdadeira pena. (…) Tendo em conta o que vem de se expor face aos critérios estabelecidos no artº 47º nº2 do CP, e a matéria de facto provada sob o ponto 36 dos factos provados, tem-se por adequado e proporcional fixar antes uma taxa diária de 40 (quarenta) € para o arguido AA, a qual ainda se afigura comportável nos rendimentos disponíveis do arguido, ainda que tal acarrete em si algum sacrifício que se considera adequado e razoável às finalidades da pena.”

8.ª Deste modo, considerando o supra aduzido, o preceituado no artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal, atendendo a que o mesmo deve ser fixado entre 5,00EUR (cinco Euros) e 500,00EUR (quinhentos Euros), em função da situação económico-financeira do arguido e dos seus encargos pessoais, entende o Ministério Público que o mais adequado seria a fixação de um quantitativo diário de 24,00EUR (vinte e quatro Euros) o que equivaleria a cerca de 1% do seu rendimento mensal, o que corresponderia a uma pena de multa no valor global de 2.880,00EUR (dois mil oitocentos e oitenta Euros).

9.ª Por fim, a declaração de perda de mandato é um imperativo legal, nos termos do consagrado no artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16-07, e tal como se aduziu, e bem, no Douto Acórdão a quo, e ainda no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, supra citado: “Na verdade, a perda do mandato apresenta-se como uma característica historicamente ligada, de forma indissolúvel, ao próprio conceito de crime de responsabilidade [neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., pp. 85 e 86: «Tendo em conta a densificação histórica do conceito, é possível defini-lo com recurso às seguintes características: […] existe uma conexão entre esta responsabilidade criminal e a responsabilidade política, transformando-se a censura criminal necessariamente numa censura política (com a consequente demissão ou destituição como pena necessária)»].

Assim sendo, porque a perda do mandato é inerente à própria ideia de condenação em crime de responsabilidade, não repugna aceitar que ela se configure, in casu, como efeito automático da condenação. Por isso, o artigo 120.º, n.º 3, ao remeter para a lei a determinação dos efeitos da condenação em tal espécie de crimes não podia deixar de ter em vista a perda do mandato, tendo o acrescento efetuado em 1989 sido introduzido apenas com a intenção de dissipar quaisquer dúvidas que, porventura, existissem.”

10.ª Ora, considerando que a factualidade descrita, ocorreu entre 3 e 4 de dezembro de 2018, mas só foi conhecida a 13-02-2019 – pouco mais de um mês após a sua prática -, que o inquérito foi concluído a 25- 06-2023 – com a dedução de Despacho de Acusação -, que o arguido requereu a abertura da fase de instrução a 15-09-2023, cujo despacho de pronúncia foi proferido a 21-02-2024, e que a fase de julgamento teve início a 22-04-2024 e terminou a 9-01-2025, com a prolação do Douto Acórdão que subjaz ao presente Recurso, nunca seria possível que a declaração de perda de mandato repercutisse no mandato em que os factos ocorreram, ou seja, no quadriénio de 2017-2021.

11.ª Nessa sequência, aceitar-se que a perda de mandato teria de ocorrer durante o período do mandato autárquico a que respeitam os factos praticados pelo arguido seria esvaziar-se totalmente o sentido e propósito do artigo 29.º da Lei n.º 34/87, de 16-07, uma vez que, saliente-se, o referido preceito legal “não pode ser interpretado de forma restrita ao mandato temporal em que o crime foi cometido, sob pena de se retirar utilidade à previsão legal” (in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 24-10-2024, supra citado).

12.ª “Na verdade, o que se afigura resultar do texto da norma é que foi intenção do legislador atribuir como efeito de à condenação de titular de cargo político de natureza electiva condenado por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções, a perda do respectivo mandato , que se afigura ter de ser o mandato exercido por aquele.

Restringir a referência a respectivo mandato, ao mandato temporal, em que o crime foi cometido, seria na prática e na maior parte dos casos, retirar utilidade à norma, pois que bastaria que o crime fosse cometido nos últimos meses ou até ano de mandato para que esgotado este, a decisão penal proferida perdesse objecto.

E permitiria afinal aquilo que o legislador pretendia evitar, o exercício de cargo político por titular condenado por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções.” (in Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 24-10-2024, supra citado).

…».

4. Em resposta, ao recurso do Ministério Público, arguido conclui nos seguintes termos:

5. Em resposta, ao recurso do arguido, o Ministério Público conclui nos seguintes termos:

6. Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer escrevendo, em síntese, o seguinte:

«O recurso interposto pelo arguido deverá, pois, ser considerado totalmente improcedente, pois não existe erro de julgamento nem de subsunção jurídica dos factos;

A posição sustentada no Acórdão recorrido, de que o mandato a perder se reporta à data da prática dos factos, não constitui posição maioritária dos tribunais superiores nem do Tribunal Constitucional.

A pena de multa aplicada ao arguido deverá ser fixada de acordo com o sustentado pelo Ministério Público em sede de recurso».

7. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido exercido o contraditório.

8. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.


II–FUNDAMENTAÇÃO

1. …

No caso em apreço são as seguintes as questões a resolver:

1. Sindicância da matéria de facto;

2. Enquadramento jurídico;

3. Consequências jurídico-penais:

3.1- Dosimetria da pena de multa

- Dias de multa;

- Taxa diária

3.2. Aplicação da pena acessória de perda de mandato.

            2. Acórdão recorrido (transcrito na parte ora relevante)

«1. De facto

1.1. Factos provados

Da acusação

1.º O arguido exerce o cargo de presidente da Câmara Municipal … desde 2013;

2.º Em 29 de Dezembro de 2017, foi celebrado contrato de aluguer, por ajuste directo, pelo valor de 37.892,05 € acrescido de IVA, com a empresa …, Lda. respeitante ao veículo da marca BMW, …, para utilização da presidência do Município …;

3.º O referido contrato foi adjudicado por despacho n.º 2.../2017 proferido pelo arguido, na qualidade de presidente da Câmara Municipal;

4.º O aluguer da viatura identificada em 2.º destinava-se à utilização por parte do arguido, na qualidade de presidente da Câmara Municipal …, quando em serviço da autarquia, e a quilometragem realizada no veículo não era registada nem controlada, ao contrário das restantes viaturas da Câmara Municipal;

5.º No dia 17 de Abril de 2018, o arguido deslocou-se no veículo identificado em 2.º, entre o hotel … e o Hospital …, ambos situados em Lisboa, onde foi realizar exames médicos/consultas médicas;

6.º No dia 14 de Maio de 2018, o arguido deslocou-se no veículo referido em 2.º, entre o hotel … e o Hospital …, ambos situados em Lisboa, onde foi realizar exames/consultas médicas;

7.º No dia 22 de Janeiro de 2019, o arguido deslocou-se entre a sede da empresa “…” e o Estádio Municipal …, ambos situados em Braga, onde assistiu ao jogo de futebol entre o S.L. e Benfica e o F. C. do Porto;

8.º No dia 21 de Fevereiro de 2019, o arguido deslocou-se no veículo referido em 2.º, entre ... e Lisboa, onde assistiu ao jogo de futebol entre o S.L e Benfica e o Galatsaray, no Estádio da Luz;

9.º No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido deslocou-se no veículo identificado em 2.º, entre a ... e Lisboa, para estar presente no Conselho Nacional do ..., que ocorreu em Setúbal, entre os dias 4 e 5 de Dezembro de 2018;

10.º Para se deslocar ao Conselho Nacional do ..., no dia 3 de Dezembro de.2018, o arguido passou no pórtico de ..., pelas 18h35m, e pelo pórtico Torres Novas-Alverca PV pelas 21h27m;

11.º No dia 4 de Dezembro de 2018, pelas 20h08m, o arguido passou no pórtico entre Coina/Setúbal, e no dia 5 de Dezembro de 2018, passou no pórtico Setúbal/Coina PV, pelas 00h32m, pela Ponte 25 de Abril, pelas 00h43m, pelo pórtico de Alverca PV às 12:04 horas, passando pelo pórtico Condeixa/C às 13h09m, e no pórtico Chãs Tavares/Ratoeira Poente pelas 14h21m;

12.º O veículo referido em 2.º tinha associado um identificador da Via Verde, para passagem nos pórticos das autoestradas sem que fosse necessário parar, estando o pagamento associado a conta bancária titulada pelo Município …, o qual registou a viagem mencionada em 9.º, 10.º e 11.º;

13.º Na viagem descrita em 9.º, 10.º, 11.º e 12.º, o arguido passou em todos os pórticos, fazendo registar, no identificador da Via Verde do Município …, a viagem de interesse pessoal que fez, permitindo que o valor a pagar pela utilização da autoestrada fosse registado e pago através da conta bancária da Câmara Municipal …;

14.º Por deliberação em reunião ordinária da Câmara Municipal …, realizada em 19 de Outubro de 2017, o arguido, na qualidade de Presidente Câmara, foi autorizado a utilizar o cartão de crédito com o número …, associado à conta bancária com o IBAN PT50 …, titulada pelo Município, sediada na Banco 1..., para pagamento de despesas no exercício de funções, desde o início de 2017 até Outubro de 2021, com um plafond fixo máximo no valor de 5.000,00 € por mês, conforme norma de controlo interno do município;

15.º O referido cartão destinava-se a ser utilizado pelo arguido em despesas associadas ao exercício de funções, como restauração e deslocações, e outras despesas pontuais, em Portugal e no estrangeiro;

16.º Após a realização da despesa, o arguido devia entregar as facturas correspondentes, com identificação do número de identificação fiscal do Município, por forma a documentar e registar contabilisticamente as mesmas;

17.º As despesas efectuadas com o cartão do Município relativamente às deslocações em representação do mesmo, deviam ser entregues na contabilidade para ficarem registadas contabilisticamente e para regularizar o débito bancário realizado;

18.º No dia 24 de Janeiro de 2020, foi utilizado o cartão de crédito identificado em 14.º, e efectuada uma despesa no valor de 8,16 € referente à subscrição do serviço “Netflix”;

19.º No dia 17 de Dezembro de 2019, foi utilizado o cartão de crédito identificado em 14.º, e efectuada uma despesa no valor de 8,08 € referente à subscrição do serviço “Netflix”;

20.º No dia 23 de Janeiro de 2020, o arguido deslocou-se a Madrid para marcar presença num evento em representação do Município …, efectuou despesas com o cartão de crédito referido em 14.º, e posteriormente submeteu um boletim de itinerário referente a essa deslocação para obter reembolso a título de ajudas de custo, e recebeu a quantia de 120,31 €;

21.º O arguido sabia que a viatura identificada em 2.º apenas lhe estava acessível por força da lei, em razão e por causa do cargo de Presidente da Câmara Municipal, que só o podia utilizar em representação do Município, e que ao utilizá-lo nas circunstâncias descritas de 9.º a 13.º, em proveito próprio, sem que para tal estivesse autorizado, lesava os interesses públicos do Município … e do Estado, o que quis e conseguiu;

22.º O arguido sabia que o identificador da Via Verde instalado no veículo identificado em 2.ºestava registado e associado a conta bancária do Município … e que só devia usá-lo quando se deslocasse em autoestradas em representação do mesmo, e que ao accioná-lo nas viagens de interesse pessoal que realizou nas circunstâncias descritas de 9.º a 13.º, em proveito próprio, sem que para tal estivesse autorizado, lesava os interesses públicos do Município …, causando o corresponde prejuízo patrimonial ao município, o que quis e conseguiu;

23.º O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei nas circunstâncias descritas de 9.º a 13.º;

Da contestação (na parte fáctica não coincidente com a acusação)

24.º Na ocasião mencionada em 7.º, o arguido deslocou-se na viatura de …, legal representante da empresa “A...”;

25.º Os valores de 8,16 € e 8,08 € relativos à subscrição do serviço da “Netflix” referem-se a eventos programados e definidos pelo Município … e que envolviam a passagem de filmes da referida plataforma “Netflix”;

26.º O arguido repôs junto do Município os valores de 8,16 € e 8,08 €;

27.º Na ocasião mencionada em 20.º, o arguido pagou com o cartão de crédito do Município … a despesa com a sua estadia no hotel;

28.º Existiu erro dos serviços administrativos no processamento das ajudas de custos referentes ao Boletim de Itinerário relativo à ocasião mencionada em 20.º;

29.º O arguido, no preenchimento do referido Boletim de Itinerário colocou um asterisco, dando nota, no verso da referida folha, para “não processar a despesa de estadia. Foi paga com o cartão de crédito da CM”;

30.º Os serviços administrativos deviam ter feito o processamento das ajudas de custo à razão de 70 % quanto ao dia 23 de Janeiro de 2020, e de 30% relativamente ao dia 24 de Janeiro de 2020;

31.º Os serviços administrativos processaram as ajudas de custo do arguido, em ambos os dias, a 70%, recebendo este um valor a mais de 26,80 €;

32.º O arguido deveria ter recebido a quantia de 93,51 €, mas recebeu a quantia de 120,31 €;

33.º O arguido repôs junto do Município … o valor de 26,80 €;

Mais resultou da audiência de discussão e julgamento

34.º O arguido reside com a sua esposa, de 45 anos, e com a sua filha, de 20 anos, em casa própria;

35.º O arguido é licenciado em administração geral e autárquica;

36.º O arguido iniciou a sua actividade profissional em 1996, como funcionário autárquico na Câmara Municipal …, exercendo as funções de assistente administrativo, durante dois anos;

37.º Posteriormente, transferiu-se para a Câmara Municipal de …, onde foi nomeado para o gabinete da presidência, como adjunto, e, ao mesmo tempo, fazia parte da Assembleia Municipal …, e era líder da bancada do ...;

38.º Permaneceu na Câmara Municipal de … 2001 como adjunto do presidente;

39.º De 2001 até 2004, o arguido foi líder da Comissão Distrital do ..., e foi adjunto do presidente da Câmara Municipal de …;

40.º Entre 2004 e 2013 foi vereador do ... na Câmara Municipal de …;

41.º Actualmente o arguido cumpre o 3.º mandato como presidente da Câmara Municipal de …;

42.º O arguido aufere mensalmente o salário liquido de 2.400,00 €;

43.º A esposa do arguido aufere o salário líquido de 900,00 €;

44.º Segundo declaração do IRS, os rendimentos ilíquidos do agregado são 65.765,74€ por ano;

45.º As despesas principais são 420,00 € por mês, relativos ao pagamento de empréstimo bancário relativos à casa em que habita (contraído em 2003 pelo período de 30 anos) e 250,00 € mês relativamente a despesas de alojamento e propinas da filha (estudante na Universidade ...);

46.º O arguido, além da sua actividade profissional como presidente da Câmara Municipal de …, exerce os seguintes cargos:

i. Membro do Conselho de Administração da ..., – Vice- presidente da Associação Intermunicipal de... (...);

ii. Presidente da Associação ...;

iii. Vice-presidente da Associação ...;

iv. Membro da Comissão Politica Nacional do ...

47.º Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.


*

1.2. Factos não provados

Da acusação

a) Em 7.º, o arguido deslocou-se no veículo identificado em 2.º até ao Estádio Municipal de …;

b) Em 8.º, o arguido deslocou-se no veículo referido em 2.º até ao Estádio da Luz;

c) Em 18.º e 19.º, foi o arguido quem subscreveu o serviço “Netflix”;

d) Ao utilizar o cartão de crédito do Município para pagamento de serviços para satisfação de interesses particulares do arguido, actuou este com o propósito concretizado de apropriar de fazer seus e utilizar em proveito próprio os valores associados aos pagamentos que realizou, aproveitando-se da sua condição de presidente da câmara que lhe permitiam acesso e controlo sobre o destino de tais quantias, que usou como se de património seu se tratasse, nas circunstâncias descritas de 18.º, e 19.º;

e) O arguido ao preencher e apresentar os boletins itinerários com o fito de receber ajudas de custo, depois de ter pago as despesas apresentadas com o cartão de crédito que estava na sua posse, fê-lo com intenção de obter um beneficio patrimonial que sabia que não tinha direito, sabendo que com essa sua actuação provocava o correspondente prejuízo ao município e ao Estado, nas circunstâncias descritas de 20.º;

f) O arguido pretendeu obter para si benefício económico, que alcançou, sabendo que não tinha direito ao mesmo, agindo com o propósito concretizado de causar um empobrecimento injustificado, actuando contra os interesses públicos do Município e do Estado nas circunstâncias descritas de 18.º, 19.º e 20.º;

Da contestação (na parte fáctica não coincidente com a acusação)

g) No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido reuniu com o deputado … da Comissão de Saúde da Assembleia da República, a fim de tratar da prestação de cuidados de saúde no Concelho ..., nomeadamente para a resolução dos problemas dos Serviços de Radiologia para o Centro de Saúde de …;

h) No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido reuniu, também, com o Presidente da Junta de Freguesia ..., …, a fim de agilizarem e programarem eventos realizados, em parceria, entre tal Junta de Freguesia e o Município de …, na área social, nomeadamente, em relação aos idosos de ambos os territórios;

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1.3. Motivação da matéria de facto

O tribunal fundou a sua convicção na conjugação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugados com as regras da experiência.

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Em face do que se expôs supra em conjugação com os demais elementos constantes nos autos já referidos, formou o tribunal a sua convicção nos exactos termos vertidos na factualidade considerada como provada.

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No que concerne à factualidade considerada como não provada nos pontos a) e b), tal deveu-se a não se ter produzido prova bastante para a sustentar, …

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2. De Direito

2.1. Enquadramento jurídico-penal dos factos

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O arguido vem acusado da pratica de crimes de peculato e de peculato de uso, previstos e punidos, respectivamente, pelos art.º 20.º e 21.º, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, que consagra o regime jurídico de responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos, tendo por objecto “os crimes da responsabilidade que titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos” (art.º 1 do mencionado diploma).

Por sua vez, o art.º 2.º do referido diploma dispõe que “[c]onsideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres.”.

O art.º 3.º do diploma, identifica quais os cargos políticos a considerar para efeito da lei em questão, sendo relevante para o que se discute nos presentes autos, a alínea f) do n.º 1 que a alude a “membro de órgão representativo de autarquia local;”.

São órgãos representativos do município a assembleia municipal e a câmara municipal (cf. art.º 5.º, n.º 2, da Lei 75/2013, de 12 de Setembro). A câmara municipal é constituída por um presidente e por vereadores, um dos quais designado vice-presidente, e o órgão executivo colegial do município, é eleito pelos cidadãos eleitores recenseados na sua área, sendo que a eleição da câmara municipal é simultânea com a da assembleia municipal, salvo no caso de eleição intercalar (cf. art.º 56.º, da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro). O Presidente da Câmara Municipal é o primeiro candidato da lista mais votada ou, no caso de vacatura do cargo, o que se lhe seguir na respectiva lista, e o seu mandato é de quatro anos (cf. art.º 57.º, n.º 1 e art.º 75.º, ambos da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro). Mais refere o art.º 35.º da Lei 75/2013, de 12 de Setembro, que:

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Do crime de peculato

O crime de peculato, encontra-se previsto no art.º 20.º da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, e dispõe:

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Os bens jurídicos protegidos pela incriminação são integridade/probidade no exercício de funções de titulares de cargos políticos, quando esse exercício está directamente relacionado com direito patrimoniais do Estado – aqui se incluindo a propriedade de bens públicos e a posse legítima de bens particulares, quando os seus bens estão na posse legitima do Estado, e são usados para fins alheios aos que se destinam – ou seja, o seu património.

Daqui ressalva a ideia de fidelidade no exercício das funções, tendo a incriminação o propósito de garantir o adequado, imparcial e transparente exercício de funções e de património público ou privado, neste se na posse do Estado ou acessível por causa das suas funções. A relevância da incriminação está precisamente no facto de o Estado demonstrar que tem condições para que a comunidade confie na sua actuação e dos respectivos organismos públicos (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa. 2010. p. 815 e 816).

O crime em questão distingue-se do furto e do abuso de confiança, pela especial qualidade do agente – titular de cargo político – e pelo abuso do exercício de funções decorrentes do cargo ou pela violação dos seus deveres funcionais (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa. 2010. p. 816).

O tipo objectivo do art.º 20.º, n.º 1 preenche-se quando o titular do cargo politico, no exercício das suas funções, ilicitamente se apropria – seja em proveito próprio ou de outra pessoa –de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel que lhe tenha sido entregue, ou que esteja na sua posse, ou que que seja acessível por causa das suas funções. Já o n.º 2 consiste em o infractor onerar de qualquer forma quaisquer objectos do n.º 1.

Trata-se de um crime de dano, na medida em que exige a lesão dos bens jurídicos protegidos, e é um crime de resultado, pois a sua consumação depende da produção de um resultado que é apropriar-se ilicitamente de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel que lhe tenha sido entregue, ou que esteja na sua posse, ou que que seja acessível por causa das suas funções (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa. 2010. p. 817).

O objecto do crime é o dinheiro – incluindo moedas e notas com curso legal noutros países, valores incorporados em títulos de crédito (e aqui, seja por exemplo, um cheque (documento) ou a quantia nele titulada (dinheiro), ou direitos de crédito – ou qualquer outra coisa móvel (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa. 2010. p. 817 e 818).

Para a apropriação ser ilícita, o agente tem de fazer seu o bem que detinha – material ou juridicamente –, agindo como se fosse seu proprietário e não mero possuidor, e, em violação do seu dever de fidelidade. Assim, existem dois momentos relevantes: primeiro, o ilicito recebimento do dinheiro ou outra coisa móvel, com a obrigação de restituir a mesma coisa ou valor equivalente, ou de dar o destino determinado, e o segundo, a ilegítima apropriação dessa coisa móvel ou dinheiro. Ou seja, a apropriação é ilegítima quando não deriva de nenhum título aquisitivo do direito de propriedade.

Quanto ao elemento subjectivo, este preenche-se com qualquer das modalidade de dolo.

Volvendo ao caso dos autos, ficou demonstrado que o arguido, utilizando o cartão de crédito com o número ...68, associado à conta bancária associada ao IBAN  ...97, titulada pelo Município, efectuou duas despesas, respectivamente, no valor de 8,08 € e de 8,16 € referentes à subscrição do serviço “Netflix”.

Todavia, dos factos considerados como provados, resultou que as aludidas despesas com o serviço da “Netflix” se referem a eventos programados e definidos pelo Município de …, que envolveram a passagem de filmes da referida plataforma, sendo certo que o arguido repôs os mencionados valores de 8,16 € e 8,08 €.

Dos factos considerados como provados, resultou que no dia 23 de Janeiro de 2020, o arguido, se deslocou a Madrid, em representação do Município de …, e efectuou despesas com o cartão de crédito associado à conta bancária do Município, e depois submeteu um boletim de itinerário relativo a essa deslocação para ser reembolsado a título de ajudas de custo, e recebeu a quantia de 120,31 €. No entanto, ficou demonstrado que o arguido pagou a despesa da sua estadia no hotel com o cartão de crédito do Município de …, e que o valor que recebeu em excesso, e que já repôs, se deveu a um erro dos serviços administrativos no processamento das ajudas de custos referentes ao Boletim de Itinerário dessa viagem.

Por outra parte, não resultou provado que o arguido, quanto à subscrição do serviço da plataforma “Netflix” quisesse utilizar o cartão de crédito do Município para pagamento de serviços para satisfação de interesses seus particulares, e que tenha actuado com esse propósito concretizado de se apropriar e de fazer seus e utilizar em proveito próprio os valores associados aos pagamentos que realizou, aproveitando-se da sua condição de Presidente da Câmara que lhe permitiam acesso e controlo sobre o destino de tais quantias, que usou como se de património seu se tratasse.

Também não se provou que o arguido quis preencher e apresentar boletins itinerários relativos à viagem a Madrid com o propósito de receber ajudas de custo, depois de ter pago as despesas apresentadas com o cartão de crédito que estava na sua posse, nem que tivesse intenção de obter um beneficio patrimonial que sabia que não tinha direito, sabendo que com essa sua actuação provocava o correspondente prejuízo ao município e ao Estado.

Em face do exposto, e atendendo aos elementos objectivo e subjectivo que integram o crime de peculato, concluiu o tribunal que não se encontra preenchido nenhum dos três crimes de peculato imputados ao arguido em sede de decisão de pronúncia, por referências aos factos provados referidos em 18.º, 19.º, e 20.º, pelo que tem o arguido de ser absolvido dos mesmos.

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Do crime de peculato de uso

O art.º 21.º, da Lei 34/87, de 16 de Julho, dispõe:

Com relevância para o que cumpre apreciar, devemos ter em consideração os Estatutos do Partido ..., aprovados no ... Congresso, Lisboa, 23, 24 e 25 de Março de 2012.

Quanto aos requisitos e processo de admissão dos militantes, dispõe o art.º 5.º:

De acordo com o art.º 6.º, os militantes têm os seguintes direitos:

Quanto aos deveres dos militantes, refere o art.º 7:

O art.º 13.º enuncia quais são os órgãos nacionais do partido:

No que se refere ao Conselho Nacional, de acordo com o art.º 18.º, a sua competência é a seguinte:

De acordo com o art.º 19.º, o Conselho Nacional é composto da seguinte forma:

Por sua vez o art.º 16.º, n.º 2 refere: …

De considerar também o Regulamento Interno do Conselho Nacional do Partido ....

O art.º 2.º, n.º 1 que determina “”1. Nas reuniões do Conselho Nacional participam sem direito a voto: […] g) O primeiro militante eleito em cada Câmara Municipal; […]”.

No que concerne ao uso da palavra no Conselho Nacional, refere o art.º 10.º:

De acordo com os Estatutos do Partido ..., o Conselho Nacional é um dos órgãos nacionais do partido, e é o órgão responsável pelo desenvolvimento e execução da estratégia política do partido nos termos definidos em Congresso, e pela fiscalização política das actividades dos órgãos nacionais e regionais do partido.

Analisando as competências deste órgão, verifica-se que todas estão relacionadas com a actividade interna e os interesses do partido.

Quanto a quem pode estar presente, apenas quem é militante do partido pode participar, sendo esse o requisito determinante e não a circunstância de ter sido eleito par qualquer cargo politico. Por outra parte, o primeiro militante de cada Câmara Municipal pode participar no Conselho Nacional, mas nem dos estatutos do partido nem do regulamento interno do Conselho Nacional resulta que a sua participação seja obrigatória, tanto mais que nem sequer faz parte da composição do Conselho Nacional.

Em face desta análise, conclui-se que nas sessões do Conselho Nacional não se tratam assuntos relacionados com a actividade desempenhada por militantes com cargos políticos nem com as necessidades/problemas dos municípios em que os militantes exercem os seus mandatos, sendo este órgão alheio a essas matérias. Assim, a participação no conselho Nacional por militantes que sejam titulares de cargos políticos não é feita em representação do Município, mas apenas no interesse e com referência aos assuntos internos do partido.

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Os bens jurídicos protegidos com esta incriminação são a integridade (probidade) no exercício de funções de titulares de cargos políticos, quando esse exercício está directamente relacionado com direito patrimoniais do Estado – aqui se incluindo a propriedade de bens públicos e a posse legítima de bens particulares, quando os seus bens está na posse legitima do Estado, e são usados para fins alheios aos que se destinam – ou seja, o seu património. A tutela penal que se visa neste tipo de crime, contrariamente ao crime de peculato previsto no art.º 20.º do mesmo diploma legal, é relativa à protecção do interesse público da fidelidade dos titulares de cargos políticos, para garantir o adequado exercício das funções, havendo uma preponderância no que se refere ao património. O que se pune aqui é o uso para fins alheios àquele a que as coisas móveis de valor apreciável se destinam, ou mesmo o uso público distinto daquele a que o dinheiro público estava legalmente afectado (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa. 2010. p. 825).

O tipo objectivo do art.º 21.º, n.º 1 consiste em o titular de cargo politico fazer uso ou permitir a outrem que faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinam, de veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável, que lhe tenham sido entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções. Enquanto o n.º 2 consiste em o infractor dar a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afectado.

Trata-se de um crime de dano, na medida em que exige a lesão dos bens jurídicos protegidos, e é um crime de resultado.

O objecto do crime varia consoante a modalidade do peculato de uso em causa – veículos ou outras coisas móveis de valor apreciável (n.º 1) ou dinheiro público (n.º 2) –, mas são sempre coisas móveis. Quanto à modalidade do n.º 1, as coisas móveis, incluindo veículos, podem pertencer a património público ou privado, neste último caso desde que na posse legitima do Estado. O valor apreciável será por referência a um valor elevado, considerável.

Quanto ao que se deve entender por fazer uso ou permitir a outrem que faça uso, significa usar temporariamente ou permitir que outrem utilize temporariamente a coisa móvel – incluindo veículo – de valor apreciável, sem prejuízo da sua restituição/devolução no momento e lugar juridicamente devidos. No peculato de uso ”o agente não actua animo domini, antes apenas faz uso ou faculta o gozo ou fruição da coisa de valor apreciável a terceiro, permitindo-lhe que a use antes da sua atempada reposição/restituição” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, Lisboa. 2010. p. 827).

Quanto ao elemento subjectivo, qualquer das modalidades do tipo de ilícito em questão, admite o dolo.

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Nos autos ficou demonstrado que o arguido exerce funções como Presidente da Câmara Municipal de … desde 2013, e que em 2017 foi celebrado um contrato de aluguer de um veículo automóvel, com a empresa …, Lda. respeitante ao veículo da marca …, para utilização da presidência do município de …. O aludido contrato foi adjudicado por despacho n.º 2.../2017, e o veículo em questão destinava-se a ser utilizado pelo arguido quando em serviço da autarquia.

Mais ficou demonstrado que nos dias 17 de Abril de 2018, e no dia 14 de Maio de 2018, o arguido se deslocou no veiculo em apreço entre o hotel e o Hospital dos …, ambos situados em Lisboa, onde foi realizar exames/consultas médicas, mas resulta da decisão de pronúncia que o arguido não se deslocou a Lisboa de propósito com esse fim, mas antes para tratar de assuntos relativos ao Município, e que uma vez aí também se deslocou ao Hospital, que se localizava em Lisboa, pelo que, conforme já exposto na fundamentação de facto, o arguido não actuou com o objectivo de beneficiar da utilização do veículo do Município nem do identificador de via verde instalado no mesmo e associado à conta bancária do município, não se mostrando provado o respectivo elementos subjectivo.

Dos factos provados resultou que no dia 22 de Janeiro de 2019, o arguido deslocou-se entre a sede da empresa “…” e o Estádio ..., ambos situados em Braga, onde assistiu ao jogo de futebol entre o S.L. e Benfica e o F. C. do Porto, e que no dia 21 de Fevereiro de 2019, o arguido se deslocou no veículo referido em 2.º, entre a ... e Lisboa, onde assistiu ao jogo de futebol no Estádio da Luz, entre o S.L e Benfica e o Galatsaray.

Todavia, relativamente às deslocações aos estádios de futebol, não se provou que o arguido se deslocou no veículo do Município.

Em face do exposto, por referência aos factos vertidos em 5.º, 6.º, 7.º, e 8.º, não se mostram preenchidos os elementos objectivo e o subjectivo de 4 dos crimes de peculato de uso imputados ao arguido, pelo que tem o arguido de ser absolvido pela prática de 4 crimes de peculato de uso, previstos e punidos pelo art.º 21.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.

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No mais, dos factos considerados como provados, ficou demonstrado que no dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido se deslocou no veículo do Município, entre a ... e Lisboa, para estar presente no Conselho Nacional do ..., que ocorreu em Setúbal, entre os dias 4 e 5 de Dezembro de 2018. E, por outra parte, não se provou que no dia 3 de Dezembro de 2018 o arguido reuniu com o deputado …, na Assembleia da República, nem com o Presidente da Junta de Freguesia de …, …, a fim de tratar de assuntos do Município de ….

Assim, tal como referido em sede de fundamentação de facto, esta deslocação teve como único propósito a comparência do arguido no Conselho Nacional do Partido ..., que se realizou em Setúbal nos dias 4 e 5 de Dezembro de 2018, que, como se mencionou supra, é um dos órgãos nacionais do partido, e é responsável pelo desenvolvimento e execução da estratégia política do partido e pela fiscalização política das actividades dos órgãos nacionais e regionais do partido, ou seja, matérias apenas relacionadas com a actividade interna do partido.

No mais, da factualidade que ficou demonstrada resultou que o arguido sabia que a viatura em questão apenas podia ser utilizada em representação do Município, e que ao utilizá-lo, assim como, o respectivo identificador da via verde associado a conta bancária do Município de …, para se deslocar ao Conselho Nacional do seu partido, fazia-o em proveito próprio, sem que para tal estivesse autorizado, e lesava os interesses públicos do Município de … e do Estado, tendo agido de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei nas circunstâncias acima descritas.

Em sede de culpa, o arguido é imputável, agiu com liberdade de decisão, pois apesar de saber que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas, poder e dever adoptar condutas conformes ao direito, incorreu na prática do crime de detenção de arma proibida pelo qual vem acusado.

Não se verifica nos presentes autos qualquer causa de exculpação ou exclusão da culpa.

Conclui-se que se encontram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo da prática de 1 (um) crime de peculato de uso, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos art.º 21.º, n.º 1, da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, com perda de mandato, prevista no art.º 29.º, alínea f), da Lei n.º 34/87, de 26 de Julho, por referência aos factos provados nos pontos 9.º, 10.º 11.º, 12.º, 13.º.

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2.2. Das consequências jurídicas do crime

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2.2.1. Da escolha da pena

O crime de peculato de uso encontra-se tipificado no art.º 21.º, n.º 1 da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, sendo punido com pena de prisão de 1 mês até 2 anos ou com pena de multa de 10 dias até 240 dias.

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Uma vez que o crime em causa prevê, em alternativa, duas penas principais, é necessário, antes de mais, determinar a espécie de pena a aplicar, isto é, pena de prisão ou a pena de multa.

No caso dos autos, as exigências de prevenção geral são elevadas, porquanto constata- se um número relevante e crescente de verificação deste tipo de crime, e a danosidade e desconfiança que gera na comunidade quanto à actuação dos detentores de cargos políticos no exercício das suas funções e na gestão e uso que estes fazem do património do Estado e dos bens de particulares, quando na posse legítima do Estado, e são usados para fins alheios aos que se destinam. Tal prolifera na comunidade o sentimento de impunidade destes agentes – titulares de cargos políticos – e de frustração por parte de todos aqueles que adoptam comportamentos devidos, sendo premente a necessidade de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma em apreço.

As necessidades de prevenção especial são baixas, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais, e está familiar, social e profissionalmente inserido. Por outra parte, apesar de não ter assumido a totalidade dos factos, o arguido adoptou uma postura colaborante para com o tribunal e disponibilizou-se para responder aos esclarecimentos que lhe foram solicitados.

Atentas as considerações supra expostas, entende o tribunal que as condutas imputadas ao arguido não assumem gravidade suficiente para desencadear a aplicação de uma  pena de prisão, entendendo-se que a pena de multa ainda é apta para assegurar a tutela dos bens jurídicos protegidos com a incriminação em causa e afirmar a validade e eficácia das normas jurídico-penais, aprofundando a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos, e levar o arguido a conformar a sua conduta de acordo com os valores protegidos pelas normas jurídico-penais vigentes na nossa sociedade.

Assim, justifica-se a aplicação de uma pena de multa quanto ao crime de peculato de uso.

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2.2.2. Da determinação da medida da pena

Cumpre, agora, apurar a medida concreta da pena a que o arguido deverá ser sujeito, que é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, em conformidade com o disposto nos art.º 40.º, n.º 2, e art.º 71.º, ambos do Código Penal.

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Como supra referido, as exigências de prevenção geral são elevadas, porquanto constata-se um número relevante e crescente de verificação deste tipo de crime, e a danosidade e desconfiança que gera na comunidade quanto à actuação dos detentores de cargos políticos no exercício das suas funções e na gestão e uso que estes fazem do património do Estado e dos bens de particulares, quando na posse legítima do Estado, e são usados para fins alheios aos que se destinam. Tal prolifera na comunidade o sentimento de impunidade destes agentes – titulares de cargos políticos – e de frustração por parte de todos aqueles que adoptam comportamentos devidos, sendo premente a necessidade de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma em apreço..

As necessidades de prevenção especial são baixas, considerando que o arguido não tem antecedentes criminais, e está familiar, social e profissionalmente inserido. Por outra parte, apesar de não ter assumido a totalidade dos factos, o arguido adoptou uma postura colaborante para com o tribunal e disponibilizou-se para responder aos esclarecimentos que lhe foram solicitados.

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Tudo ponderado, atentas as necessidades de prevenção geral e especial sentidas no caso dos autos, bem assim a culpa do agente, nos termos acima expendidos, considera-se justo, adequado e proporcional condenar o arguido na pena de:

– 60 dias de multa, pela prática de 1 (um) crime de peculato de uso, na forma consumada, previsto e punido pelo art.º 21.º, n.º 1 da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho.

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Tendo sido aplicada pena de multa, agora, importa determinar o quantitativo diário da pena de multa aplicada aos crimes acima referidos.

De acordo com a factualidade considerada assente nos presentes autos, resultou como provado que o arguido é casado, reside em casa própria com a esposa e a filha. Aufere mensalmente o salário líquido de 2.400,00 €, e a sua esposa aufere o salário líquido de 900,00 € por mês. De acordo com a declaração do IRS, os rendimentos ilíquidos do agregado são 65.765,74 € por ano. Quanto às despesas principais, são 420,00 € por mês, relativos ao pagamento do empréstimo bancário relativo à casa onde reside, 250,00 € por mês com despesas de alojamento e propinas da filha (estudante na Universidade ...). O arguido ainda exerce funções de - Membro do Conselho de Administração da ..., de Vice-presidente da Associação Intermunicipal de... (...), de Presidente da Associação ...; de Vice-presidente da Associação ..., e Membro da Comissão Politica Nacional do ....

Ante o exposto, tenho por adequado fixar o montante diário em 12,00 €, o que perfaz o total: de 720,00 €, pela prática um crime de peculato de uso.

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III. Da perda de mandato

Preceitua o art.º 29.º, alínea f) da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, que “[i]mplica a perda do respectivo mandato a condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções dos seguintes titulares de cargo político: […] f) Membro de órgão representativo de autarquia local.”.

Dispõe o art.º 30.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa, que “[n]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.”. No entanto, tal previsão tem que ser conciliada com o disposto no art.º 117.º da Constituição da República Portuguesa, que se apresenta como uma norma especial relativamente à regra geral, e que preceitua que “[o]s titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções.” (n.º1), “ e que “[a] lei dispõe sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, as consequências do respectivo incumprimento, bem como sobre os respectivos direitos, regalias e imunidades.” (n.º 2), e, por fim, que “[a] lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato.” (n.º 3). Daqui resulta que a Constituição da República Portuguesa remete para a lei a determinação dos efeitos resultantes da condenação por crimes responsabilidade de titulares de cargos políticos.

O arguido foi condenado por um crime de um crime de peculato de uso, conforme supra exposto, por factos relativos ao ano de 2018. Por outra parte, resulta dos factos provados que o arguido cumpre actualmente o 3.º mandato como Presidente da Câmara Municipal ..., sendo do conhecimento geral que as últimas eleições autárquicas ocorreram no ano de 2021 (cf. https://www.sg.mai.gov.pt/AdministracaoEleitoral/EleicoesReferendos/HistoricoEleicoes/Pag inas/default.aspx?FirstOpen=1 ). E os presentes autos datam do ano de 2019. Do exposto resulta que o mandato que o arguido se encontrava a cumprir à data dos factos já cessou, estando a cumprir novo mandato.

Como referido, a perda de mandato, enquanto forma de responsabilização política do agente/arguido está indissociavelmente ligada à sua responsabilização criminal – que no caso dos autos está circunscrita a um período do ano de 2018 –, pelo que a verificar-se a perda de mandato, esta sempre teria de ser relativamente ao mandato em vigor/cumprimento à data dos factos, e já não quanto ao actual mandato, para o qual o arguido foi eleito nas últimas eleições autárquicas. Por esse motivo, não pode a perda de mandato ser agora declarada em relação ao mandato em vigor.

Em face do exposto, não se declara a perda de mandato».

***


3. Conhecimento do recurso

            Apreciemos as questões a decidir.

1. Da sindicância da matéria de facto

Insurge-se o arguido recorrente contra a decisão da matéria de facto, impugnando os fatos considerados provados nos pontos 9, 10 e 11 e nas alíneas g) e h) dos factos não provados, cujos teores são os seguintes:

(factos provados)

«9.º No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido deslocou-se no veículo identificado em 2.º, entre a ... e Lisboa, para estar presente no Conselho Nacional do ..., que ocorreu em Setúbal, entre os dias 4 e 5 de Dezembro de 2018»;

10.º Para se deslocar ao Conselho Nacional do ..., no dia 3 de Dezembro de.2018, o arguido passou no pórtico de ..., pelas 18h35m, e pelo pórtico Torres Novas-Alverca PV pelas 21h27m;

11.º No dia 4 de Dezembro de 2018, pelas 20h08m, o arguido passou no pórtico entre Coina/Setúbal, e no dia 5 de Dezembro de 2018, passou no pórtico Setúbal/Coina PV, pelas 00h32m, pela Ponte 25 de Abril, pelas 00h43m, pelo pórtico de Alverca PV às 12:04 horas, passando pelo pórtico Condeixa/C às 13h09m, e no pórtico Chãs Tavares/Ratoeira Poente pelas 14h21m;

(factos não provados)

g) No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido reuniu com o deputado … da Comissão de Saúde da Assembleia da República, a fim de tratar da prestação de cuidados de saúde no Concelho ..., nomeadamente para a resolução dos problemas dos Serviços de Radiologia para o Centro de Saúde ...;

h) No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido reuniu, também, com o Presidente da Junta de Freguesia ..., …, a fim de agilizarem e programarem eventos realizados, em parceria, entre tal Junta de Freguesia e o Município ..., na área social, nomeadamente, em relação aos idosos de ambos os territórios».

Consta do Acórdão recorrido que (o arguido):

«Confirmou que se deslocou no veículo do município, no dia 3 de Dezembro de 2018, para estar presente no Conselho Nacional do ..., que teve lugar em Setúbal, nos dias 4 e 5 de Dezembro de 2018, mas afirmou que teve uma reunião nesse dia (3 de Dezembro de 2018) de manhã, com a testemunha …, deputado, na Assembleia da República, e reiterou que achava que podia levar o veículo em questão para o Conselho Nacional. Referiu que só pode estar no Conselho Nacional por ser o primeiro eleito do Município ..., e só podia aí estar presente por ser o Presidente da Câmara de .... E tanto mais que foi em representação do Município ....

(…)

Quanto à testemunha …, deputado, prestou depoimento por escrito. Referiu que conhece o arguido, e que o tem como um autarca muito dinâmico, interventivo nos Conselhos Nacionais. Mencionou que no exercício das suas funções reuniu várias vezes com o arguido, e afirmou que no dia 3 de Dezembro de 2018 reuniu com o mesmo, na Assembleia da República, da parte da manhã, e que o agendamento terá sido feito de acordo com a agenda da testemunha. Acrescentou que na aludida reunião abordaram questões relacionadas com os recursos do Centro de Saúde ... e com o elevado índice de envelhecimento da população (cf. fls. 1219 e fls. 1222).

O depoimento escrito da aludida testemunha corrobora o depoimento do arguido, no entanto, não corresponde à verdade, pelo que o depoimento da testemunha não mereceu credibilidade».

Pese embora sem invocação expressa, a defesa recursiva enquadra-se na denominada impugnação ampla da matéria ao abrigo do n.º 3 ao do art.º 412.º do CPP.

 Examinada a prova especificada, constatamos, após audição das declarações prestadas pelo arguido em julgamento que afirmou que foi de véspera (o que bem se compreende, dada a distância entre ... e Lisboa), ou seja, no dia 3 e que no dia 4, teve reuniões com o deputado …, à tarde com  Presidente da Junta de ..., …, em ambos os casos, a fim de tratar de assuntos relacionados com o Concelho ..., e após deslocou-se Conselho Nacional do ....

Isto é, em sentido diverso ao que se fez constar do Acórdão recorrido, o arguido não afirmou que as reuniões com o deputado … e com  Presidente da Junta de …, … tiveram lugar no dia 03.04.2018.

Por seu turno, em declarações prestadas por escrito e juntas aos autos no dia 30.04.2024, o deputado … confirmou a existência de uma reunião, que à distância do tempo entretanto decorrido situa em 03.04.2018, realizada na parte da manhã na Assembleia da República, na qual foi abordada a questão da falta de médicos e de outros recursos humanos no Centro de Saúde ....

Tudo considerado, julgamos que a prova produzida impõe a alteração da factualidade provada nos seguintes termos:

- «9.º No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido deslocou-se no veículo identificado em 2.º, entre a ... e Lisboa, para estar presente em reuniões agendadas para o dia 04 de dezembro de 2018, com o deputado …, da Comissão de Saúde da Assembleia da República a fim de tratar da prestação de cuidados de saúde no Concelho ..., nomeadamente para a resolução dos problemas dos Serviços de Radiologia para o Centro de Saúde ...,  a fim de tratar de assuntos relacionados com o Concelho ...»;

- «10.º No dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido passou no pórtico de ..., pelas 18h35m, e pelo pórtico Torres Novas-Alverca PV pelas 21h27m»;

- «11.º No dia 4 de Dezembro de 2018, pelas 20h08m, o arguido no veículo identificado em 2.º, deslocou-se ao Conselho Nacional do ... que ocorreu em Setúbal, entre os dias 4 e 5 de Dezembro de 2018, passando no pórtico entre Coina/Setúbal, e no dia 5 de Dezembro de 2018, passou no pórtico Setúbal/Coina PV, pelas 00h32m, pela Ponte 25 de Abril, pelas 00h43m, pelo pórtico de Alverca PV às 12:04 horas, passando pelo pórtico Condeixa/C às 13h09m, e no pórtico Chãs Tavares/Ratoeira Poente pelas 14h21m».

Consequentemente, adita-se à factualidade provada que:

- «no dia 3 de Dezembro de 2018, o arguido deslocou-se no veículo identificado em 2.º, entre a ... e Lisboa, passando no pórtico de ..., pelas 18h35m, e pelo pórtico Torres Novas-Alverca PV pelas 21h27m,  para estar presente no Conselho Nacional do ..., que ocorreu em Setúbal».

Por outro lado, inversamente ao alegado no recurso não se impõe qualquer alteração à matéria de facto não provada sob as alíneas g) e h), pois não foi produzida qualquer prova no sentido de as reuniões aí referidas terem ocorrido no dia 3 de dezembro de 2018.

Aqui chegados, importa considerar o seguinte.

Tal como se escreve no Acórdão recorrido, após apreciação das normas aplicáveis, dos Estatutos do Partido ..., aprovados no ... Congresso, Lisboa, 23, 24 e 25 de Março de 2012, sob os art.ºs 5.º, 6.º, 7.º, 13.º, 18.º, 19.º, 16.º, n.º 2,  20.º, e do Regulamento Interno do Conselho Nacional do Partido ..., sob o art.º  2.º, n.º 1 al. g), e 10.º:

«De acordo com os Estatutos do Partido ..., o Conselho Nacional é um dos órgãos nacionais do partido, e é o órgão responsável pelo desenvolvimento e execução da estratégia política do partido nos termos definidos em Congresso, e pela fiscalização política das actividades dos órgãos nacionais e regionais do partido.

Analisando as competências deste órgão, verifica-se que todas estão relacionadas com a actividade interna e os interesses do partido.

Quanto a quem pode estar presente, apenas quem é militante do partido pode participar, sendo esse o requisito determinante e não a circunstância de ter sido eleito par qualquer cargo politico. Por outra parte, o primeiro militante de cada Câmara Municipal pode participar no Conselho Nacional, mas nem dos estatutos do partido nem do regulamento interno do Conselho Nacional resulta que a sua participação seja obrigatória, tanto mais que nem sequer faz parte da composição do Conselho Nacional.

Em face desta análise, conclui-se que nas sessões do Conselho Nacional não se tratam assuntos relacionados com a actividade desempenhada por militantes com cargos políticos nem com as necessidades/problemas dos municípios em que os militantes exercem os seus mandatos, sendo este órgão alheio a essas matérias. Assim, a participação no conselho Nacional por militantes que sejam titulares de cargos políticos não é feita em representação do Município, mas apenas no interesse e com referência aos assuntos internos do partido».

Como assim é, conclui-se que a viagem Lisboa - Setúbal – Lisboa foi efetuada pelo arguido no seu interesse pessoal, o mesmo não sucedendo no percurso ... – Lisboa e Lisboa – ..., dado que se provou a realização em Lisboa, no dia 04 de uma reunião no interesse da autarquia.

Ora, consta da factualidade provada que:

«- 13.º Na viagem descrita em 9.º, 10.º, 11.º e 12.º, o arguido passou em todos os pórticos, fazendo registar, no identificador da Via Verde do Município de …, a viagem de interesse pessoal que fez, permitindo que o valor a pagar pela utilização da autoestrada fosse registado e pago através da conta bancária da Câmara Municipal de …».

Face à alteração, nesta sede de recurso, à matéria de facto provada sob os pontos 9.º, 10.º e 11.º impõe-se, logicamente, e tendo presente o supra exposto  no que respeita às normas Estatutárias e Regulamentares referidas alterar a redação do ponto 13.º dos factos provados para os seguintes termos:

« - 13.º Na viagem descrita em 9.º, 10.º, 11.º e 12.º, o arguido passou em todos os pórticos, fazendo registar, no identificador da Via Verde do Município ..., incluindo a viagem de interesse pessoal que fez entre Lisboa – Setúbal - Lisboa, permitindo que o valor a pagar pela utilização da autoestrada fosse registado e pago através da conta bancária da Câmara Municipal ...».

E, bem assim, aditar à factualidade não provada que:

«- A viagem descrita em 9, 10, 11 e 12, na parte que não respeita ao percurso Lisboa – Setúbal foi realizada no interesse pessoal do arguido».

Consta, ainda, da factualidade provada sob os pontos 22.º e 23.º o seguinte:

«22.º O arguido sabia que o identificador da Via Verde instalado no veículo identificado em 2.º estava registado e associado a conta bancária do Município de … e que só devia usá-lo quando se deslocasse em autoestradas em representação do mesmo, e que ao accioná-lo nas viagens de interesse pessoal que realizou nas circunstâncias descritas de 9.º a 13.º, em proveito próprio, sem que para tal estivesse autorizado, lesava os interesses públicos do Município de …, causando o corresponde prejuízo patrimonial ao município, o que quis e conseguiu;

23.º O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei nas circunstâncias descritas de 9.º a 13.º».

Face à alteração da factualidade provada, impõe-se logicamente alterar os pontos 22.º e 23.º da factualidade provada para os seguintes termos:

«- 22.º.º O arguido sabia que o identificador da Via Verde instalado no veículo identificado em 2.º estava registado e associado a conta bancária do Município de … e que só devia usá-lo quando se deslocasse em autoestradas em representação do mesmo, e que ao accioná-lo nas viagens de interesse pessoal que realizou nas circunstâncias descritas em 13.º, entre Lisboa-Setúbal-Lisboa, em proveito próprio, sem que para tal estivesse autorizado, lesava os interesses públicos do Município de …, causando o corresponde prejuízo patrimonial ao município, o que quis e conseguiu;

- 23.º O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei nas circunstâncias descritas em 13.º, entre Lisboa-Setúbal-Lisboa ».

Esclareça-se, a propósito que alega o recorrente ter explicado de forma absolutamente coerente e credível, ter agido plenamente convicto de assistir o direito de comparecer ao Conselho Nacional na viatura em causa.

Nesta parte, a defesa recursiva não é suscetível de enquadramento nos termos do art.º 412.º n.º 3 do CPP por falta de especificação em conformidade com as alíneas a) e b).

Será, no entanto, que se verifica erro notório na apreciação da prova, vício este não invocado, mas que é de conhecimento oficioso?

Vejamos.

Existe erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, quando o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade e pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão.

Ora, perscrutado o Acórdão recorrido não se deteta vício na apreciação da prova de que um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dê conta, por o tribunal ter violado as regras da experiência ou ter efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

No nosso caso, provou-se sob o ponto 35.º que «O arguido é licenciado em administração geral e autárquica».

E, como dissemos, as viagens Lisboa – Setúbal – Lisboa foram realizadas pelo arguido em proveito próprio – e não no interesse, ao serviço, e em representação da autarquia, sem que para tal estivesse autorizado.

Não podia, portanto, o arguido deixar de estar ciente que, ao efetuar tal percurso, lesava os interesses públicos do Município de …, causando o corresponde prejuízo patrimonial ao município, o que quis e conseguiu, agindo de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que esta sua conduta era proibida por lei.

2. Do enquadramento jurídico

Apreciemos o enquadramento jurídico da factualidade provada (ora alterada).

Vejamos.

Dispõe o artigo 21º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho – que respeita aos Crimes da Responsabilidade de Titulares de Cargos Políticos - sob a epígrafe «Peculato de uso»:

«1 - O titular de cargo político que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso, para fins alheios àqueles a que se destinem, de coisa imóvel, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares, que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções é punido com prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.

2 - O titular de cargo político que der a dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afetado é punido com prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias».

Por economia processual remete-se para o acórdão recorrido, que analisa com detalhe e proficiência o tipo legal em apreço.

Apenas reforçando.

O crime de peculato de uso apresenta como elementos objetivos, nos termos do referido n.º 1 do art.º 21.º:

- 1) um titular de cargo político que fizer uso ou permitir que outra pessoa faça uso;

- 2) para fins alheios àqueles a que se destinem;

- 3) de coisa imóvel, de veículos ou de outras coisas móveis de valor apreciável, públicos ou particulares;

4) que lhe forem entregues, estiverem na sua posse ou lhe forem acessíveis em razão das suas funções.

E tem como elemento subjetivo, o dolo, em qualquer uma das suas formas (art.ºs 13.º e 14.º do Código Penal).

A intenção do agente não é a de fazer seu o bem, mas a de o usar temporariamente, ou de permitir o seu uso, tendo que existir ab initio a intenção de restituição, não contemplando como pressuposto para o seu preenchimento que a conduta se traduza em prejuízo.

«O bem jurídico visa a proteção do bom andamento, legalidade e transparência da administração através da repressão de abuso de cargo ou função por parte do titular de cargo político que, em razão das suas funções tenham a posse ou a disponibilidade do bem objeto do crime, assumindo ainda uma componente patrimonial pois visa ainda penalizar a sua utilização momentânea indevida (Conceição Ferreira da Cunha, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, pg. 705)»[1].

No nosso caso, resulta da factualidade provada ora alterada que o arguido, titular de um cargo político, utilizou para fins particulares, uma viatura adstrita à autarquia no percurso Lisboa – Setúbal – Lisboa, sabendo que a mesma lhe fora atribuída no exercício e só para o exercício das suas funções, usando-a em benefício próprio, agindo livre, voluntária e conscientemente ciente da ilicitude da sua conduta.

Alega o arguido que não se comprova ter sido a sua conduta «dolosa e intencional, mas antes na convicção de atuar no exercício de um direito que lhe assistia, o que afasta necessariamente um pressuposto da punição, que é a culpa, ou seja, o elemento subjetivo, nos termos do disposto nos artigos 13º e 14º e 17º do C. Penal, razão pela qual espera que o recurso, por si apresentado, mereça procedência».

Como vimos, provou-se que:

«- 23.º O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei nas circunstâncias descritas em 13.º, entre Lisboa-Setúbal-Lisboa ».

Tal como escreveu no seu Parecer a Digna Procuradora Geral Adjunta:

«Neste segmento, a invocação do disposto no art.º 17º remete para a atuação sem consciência da ilicitude. Mas poderia, nalguma circunstância, ser considerada não censurável a falta de consciência de ilicitude, no caso concreto?2

Por certo que não.

Como referido em Ac. do TRC de 08.09.2010 (Relator Des. Jorge Jacob) “1. A falta de consciência da ilicitude do facto, ou erro sobre a ilicitude, traduz a falta de consciência de uma proibição jurídica, não por referência ao conteúdo do tipo legal, mas por referência à capacidade de compreensão, pelo agente, da proibição da sua conduta.” (acessível em www.dgsi.pt)

E os autarcas estão vinculados ao cumprimento dos princípios plasmados no art.º 266º da C.R.P. e no art.º 4º da Lei 29/87 de 30.06 (estatuto eleitos locais), sendo de conhecimento público que estão obrigados, designadamente, a salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respetiva autarquia e a não patrocinar interesses particulares, mormente próprios, de qualquer natureza; estando também obrigados a respeitar os princípios gerais, mormente de prossecução do interesse público e intangibilidade das atribuições do Estado, fixados no Regime Jurídico das Autarquias Locais e no Código de Procedimento Administrativo (Lei 75/2013 de 12.09, mormente art.º 4º; DL 4/2015 de 07/01 e, anteriormente, DL 442/91 de 15/11).

Precisamente por este facto é que não podemos embarcar na crítica de violação do princípio de separação de poderes. Todos os poderes conhecem limites e a conduta ilícita traça uma linha muito nítida de intervenção legitimada dos tribunais, pois não só na separação, mas também no equilíbrio de poderes, reside a Democracia».

Tudo considerado, entendemos se encontram presentes os elementos objetivos e subjetivos do crime de um crime de Peculato de uso, previsto e punido nos termos do artigo 21º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho.

Resta apenas acrescentar que, na formação de tal conclusão não se deteta que tenham sido violadas os princípios constitucionais e as normas constitucionais e infra constitucionais invocados pelo arguido.

3. Das consequências jurídico-penais

Pugna o recorrente Ministério Público pelo aumento dos dias de multa fixados para 120 dias, bem como pela elevação da taxa diária para 24 euros, pretendendo que seja aplicada a pena de perda de mandato.

Vejamos.

3.1- Dosimetria da pena de multa

Não estando em causa a escolha da pena de multa (art.º 70.º do CP), importa considerar que esta pena, em conformidade com o n.º 1 do art.º 47.º do CP é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do art.º 71.º do mesmo diploma legal, a cada dia correspondendo uma taxa diária.

Vejamos, então, se como entende o recorrente Ministério Público, quer os dias de multa, quer a taxa diária devem ser elevados, ou se, inversamente, não merecem censura as medidas em que foram fixados.

3.1.1. Dias de multa

Nos termos do n.º 1 do art.º 71.º do CP, a determinação da medida da pena, «dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».

Efetivamente, de acordo com o art.40.º, n.º 1, do CP, a aplicação de penas (e de medidas de segurança) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.

Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na  tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico- penal (prevenção geral positiva ou de integração).

A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.

É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

Não obstante a pena visar fins preventivos, por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.º 40.º CP).

Na determinação da medida concreta da pena, deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 do art.º 71.º do CP

Tal como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 20.02.2019, proc. 1/16.7GTGRD.C1 (rel. Des. Orlando Gonçalves), disponível, como os demais a que nos referiremos no presente Acórdão, in www.dgsi.pt:

«Podemos agrupar, nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto».

Dito isto, vejamos das razões do recorrente no seu confronto com o decidido em primeira instância, levando em consideração, naturalmente, a alteração da matéria de facto a que procedemos neste Tribunal da Relação.

Entendemos ser necessário considerar, no âmbito dos «Fatores relativos à execução do facto», o percurso em causa – Lisboa-Setúbal-Lisboa.

A culpa é de intensidade média.

A inserção familiar e profissional atenua as exigências de prevenção especial.

A ausência de antecedentes criminais, nada mais é do que o esperado do comum cidadão.

Tudo ponderado, julgamos que se as razões de prevenção especial são baixas e as de prevenção geral são elevadas.

Relembre-se que, não obstante os fins de prevenção especial das penas criminais (designadamente de sentido pedagógico, ressocializador), estas têm como finalidade primordial restabelecer a confiança da coletividade na validade da norma violada, abalada pela prática do crime.

Nestes termos, entende-se que a pena de 60 dias de multa, não indo além da culpa, é adequada a dar satisfação às exigências de prevenção que no caso se fazem sentir.

Improcede, portanto, neste segmento, o recurso.

3.1.2 Taxa diária

Nos termos do n.º 2 do art.º 47.º do Código Penal, o quantitativo diário da multa é fixado entre € 5,00 e € 500,00 em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.

A dignificação da multa, enquanto verdadeira pena, um mal, medida punitiva e dissuasora, não se compadece com quantitativos miserabilistas, que o condenado acabe por sentir como uma quase absolvição, e não como um real e efetivo sacrifício.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 01.03.2007, no processo 1088/2007-9 (rel. Des. Ribeiro Cardoso):

«É que não se trata de intimidar por intimidar, mas sim de uma dissuasão (através do sofrimento ou privações que a pena naturalmente contém) humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir. E, no caso de infratores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial (Neste sentido, Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral – Questões Fundamentais, a pag.84».

Pese embora em obediência aos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, o quantitativo diário da multa deva ser doseado em termos tais sejam asseguradas as disponibilidades indispensáveis ao suporte das necessidades do condenado, não pode deixar de representar um real sacrifício para o condenado, sob pena de se estar a desacreditar esta pena, os tribunais e a própria justiça, gerando um sentimento de insegurança, de inutilidade e de impunidade[2].

Assim, «apenas em situações de pobreza ou indigência poderá o quantitativo diário da multa aproximar-se do limite mínimo legal de € 5,00, sob pena de ser violada a finalidade da punição e o princípio da igualdade»[3].

Dito isto.

No caso, na ponderação da taxa diária, atendeu o Tribunal recorrido que:

«o arguido é casado, reside em casa própria com a esposa e a filha. Aufere mensalmente o salário líquido de 2.400,00 €, e a sua esposa aufere o salário líquido de 900,00 € por mês. De acordo com a declaração do IRS, os rendimentos ilíquidos do agregado são 65.765,74 € por ano. Quanto às despesas principais, são 420,00 € por mês, relativos ao pagamento do empréstimo bancário relativo à casa onde reside, 250,00 € por mês com despesas de alojamento e propinas da filha (estudante na Universidade ...). O arguido ainda exerce funções de - Membro do Conselho de Administração da ..., de Vice-presidente da Associação Intermunicipal de... (...), de Presidente da Associação ...; de Vice-presidente da Associação ..., e Membro da Comissão Politica Nacional do ....

Neste Tribunal de Recurso entendemos que, face às condições económico-financeiras apresentadas, a fixação da taxa diária da pena de multa aplicada em 20 euros, permite assegurar a disponibilidade para as necessidades essenciais do condenado, sem deixar de representar um verdadeiro sacrifício necessário às finalidades da punição, procedendo, nesta parte, parcialmente o recurso do Ministério Público.

3.2. Aplicação da pena acessória de perda de mandato.

Insurge-se o recorrente Ministério Público contra o Acórdão recorrido na parte em que não declarou a perda de mandato do arguido.

Contrapõe o arguido que tal «aplicação automática das sanção acessória de perda de mandato, não deve proceder», pois, «não se conforma, nem com a justiça devida à situação concreta, nem com as normas e princípios constitucionais, máxime, artigo 30º nº 4 da Constituição da República Portuguesa».

No entender do Tribunal a quo «a perda de mandato, enquanto forma de responsabilização política do agente/arguido está indissociavelmente ligada à sua responsabilização criminal – que no caso dos autos está circunscrita a um período do ano de 2018 –, pelo que a verificar-se a perda de mandato, esta sempre teria de ser relativamente ao mandato em vigor/cumprimento à data dos factos, e já não quanto ao actual mandato, para o qual o arguido foi eleito nas últimas eleições autárquicas. Por esse motivo, não pode a perda de mandato ser agora declarada em relação ao mandato em vigor.

Vejamos.

Dispõe a Lei n.º 34/87, no seu art.º 19.º que «implica a perda do respetivo mandato a condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções» por titulares de cargos políticos, entre os quais se encontram os membros dos órgãos representativos das autarquias locais [alínea f).

É certo que, prescreve o n.º 4 do artigo 30.º da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) que «nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».

O Tribunal Constitucional tem tido oportunidade, em vários arestos, de se pronunciar sobre o sentido e alcance que vem dando a este preceito constitucional (cfr., v. g., Acórdãos n.º 165/86, n.º 282/86, n.º 255/87 e n.º 284/89), afirmando, em todos eles que a Constituição veda que de uma condenação penal possam resultar, automaticamente, ope legis, efeitos que envolvam a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos.

Sem prejuízo, no caso de crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, há que ter em conta que o artigo 117.º  da CRP ao estabelecer que:

«1. Os titulares de cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções.

2. A lei dispõe sobre os deveres, responsabilidades e incompatibilidades dos titulares de cargos políticos, as consequências do respectivo incumprimento, bem como sobre os respectivos direitos, regalias e imunidades.

3. A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato».

Ou seja, o art.º 117.º n.º 3 da CRP  permite a associação de efeitos como a destituição de cargo e a perda de mandato à prática do crime, independentemente da concreta pena principal ou de substituição a que tal prática dê lugar.

Tais efeitos resultam de uma ponderação legislativa específica que atende às particularidades dos chamados crimes de responsabilidade, permitindo a associação de efeitos como a perda de mandato à prática do crime, independentemente da concreta pena principal ou de substituição a que tal prática dê lugar.

Na verdade, a perda do mandato apresenta-se como uma característica historicamente ligada, de forma indissolúvel, ao próprio conceito de crime de responsabilidade [neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª ed., pp. 85 e 86: «Tendo em conta a densificação histórica do conceito, é possível defini-lo com recurso às seguintes características: […] existe uma conexão entre esta responsabilidade criminal e a responsabilidade política, transformando-se a censura criminal necessariamente numa censura política (com a consequente demissão ou destituição como pena necessária)»][4].

O n.º 3 do art.º 117.º da CRP, ao remeter para a lei a determinação dos efeitos resultantes da condenação em crime de responsabilidade, apresenta-se como norma especial relativamente à regra geral constante do artigo 30.º, n.º 4.

Consequentemente, a perda de mandato não viola o n.º 4 do artigo 30.º da Lei Fundamental, porquanto o âmbito de aplicação deste se há-de ter como limitado pelo referido n.º 3 do artigo 117.º.[5]

Relembremos que nos termos do n.º 3 do art.º 117.º da CRP:

«A lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respectivos efeitos, que podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato».

E, o que a lei prevê no artigo 29.º da citada Lei n.º 34/87, é que «implica a perda do respetivo mandato a condenação definitiva por crime de responsabilidade cometido no exercício das suas funções» por titulares de cargos políticos, entre os quais se encontram os membros dos órgãos representativos das autarquias locais [alínea f)].

Tal como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19.02.2025, no processo 156/17.3JAPRT (rel. Des. Cláudia Rodrigues), a expressão «perda do respetivo mandato» não pode «deixar de ser interpretada como uma directa referência estritamente pessoal da perda do mandado em relação ao próprio arguido (pois a lei estipula uma relação directa entre a pessoa do agente e a perda de qualquer mandato, na consideração de que na intenção legal está subjacente a ideia de que o arguido deixou de ser digno para o exercício das funções politicas) e não ao mandato a que disser respeito a data dos factos praticados.

Pelo que, não temos dúvidas que o mandato a perder, ou suscetível de ser arruinado, reporta-se à data da condenação».

Assim sendo, o mandato a perder reporta-se à data da condenação, podendo, pois, reportar-se a mandato diferente que não o relativo à data da prática dos factos.

«De resto, se assim não fosse, com o inexorável decurso do tempo e a simples ultrapassagem dos limites temporais do mandato relativo à prática dos factos, a pena acessória de perda do mandato deixava de ter qualquer utilidade operativa e não passava de uma miragem evanescente, ou antes uma mera proclamação vazia de conteúdo, acentuando ainda mais a descrença nas intuições jurídicas e judiciárias»[6].

Como assim é, determina-se a perda de mandato, procedendo, nesta parte, o recurso do Ministério Público.


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III. DISPOSITIVO

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Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

1. Julgar improcedente o recurso do arguido;

2. Julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público, e assim,

2.1 - Elevar a taxa diária do crime de peculato de uso  previsto e punido art.º 21.º, n.º 1 e art.º 3, alínea i), da Lei n.º 34/87, de 26 de Julho, pelo qual o arguido foi condenado para 20 € (vinte euros) , correspondendo, assim o valor global da multa a 1200 € (mil e duzentos euros);

2.2- Declarar a perda de mandato exercido atualmente pelo arguido AA como Presidente da Câmara de ..., nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 29.º, alínea f), da Lei 34/87, de 16 de Julho;

2.3 Manter no remanescente o Acórdão recorrido.


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(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela primeira signatária, sendo ainda revisto pelo segundo e pela terceira signatárias – art.º 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas eletrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do art.º 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09).

Coimbra, 08.06.2025

Alexandra Guiné (Juíza Desembargadora relatora)

Paulo Guerra (Juiz Desembargador 1.º adjunto)

Alcina Ribeiro (Juíza Desembargadora 2.ª adjunta)


[1] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 19.02.2025, no processo 1596/17.3JAPRT.P2(rel. Des. Cláudia Rodrigues)

[2]  - Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 13/7/95, in CJ, Tomo IV, pg. 48 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/11/02, in www.dgsi.pt.

[3] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 04.05.2016, no processo 246/14.4TACVL.C1 (rel. Des. Orlando Gonçalves)
[4]Vide a Decisão sumária  293/2025 citada no ACÓRDÃO Nº 527/2025 do Tribunal Constitucional, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20250527.html

[5] Assim, o Tribunal Constitucional, por exemplo no Acórdão n.º 274/90, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900274.html  apresentou a seguinte fundamentação:

«Todavia, e seja como for, no caso de crimes de responsabilidade de titulares de cargos políticos, há que ter em conta que o n.º 3 do artigo 120.º [atual artigo 117.º] da Constituição estabelecia já antes da revisão de 1989 que «a lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, bem como as sanções aplicáveis e os respetivos efeitos», ao que a última reforma constitucional acrescentou, in fine, que tais efeitos «podem incluir a destituição do cargo ou a perda do mandato».

Para o caso dos autos, e dadas as regras gerais sobre aplicação de leis no tempo, não pode ser tido em consideração este acrescento, resultante da revisão de 1989. Contudo, tal não significa que o artigo 30.º, n.º 4, não deva ser interpretado conjugadamente com o artigo 120.º, n.º 3, na sua anterior versão.

Ora, dessa interpretação conjugada parece resultar que esta última disposição constitucional, ao remeter para a lei a determinação dos efeitos resultantes da condenação em crime de responsabilidade, se apresenta como norma especial relativamente à regra geral constante do artigo 30.º, n.º 4».

[6] Tal como decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 19.02.2025, no processo 156/17.3JAPRT (rel. Des. Cláudia Rodrigues