Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1058/11.2TBCNT-C.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INSOLVÊNCIA
PESSOAL
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Data do Acordão: 07/11/2012
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 18.º;236.º; 237.º, ALÍNEA A); 238.º, Nº 1, ALÍNEA D), E Nº 2; 239.º, 2 E 4; 243.º, 1 245.º, N.º 1; 246.º, N.º 1237, ALÍNEA A) E 238, Nº 1, ALÍNEA D), E Nº 2 DO CIRE DO CIRE
Sumário: 1. São requisitos cumulativos do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante: o incumprimento de dever de apresentação à insolvência ou, não existindo tal dever, a ultrapassagem do prazo de seis meses após a verificação da situação de insolvência dos requerentes; o prejuízo para os credores; o conhecimento ou a obrigação de não ignorar, com culpa grave, a inexistência de perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

2. O prejuízo para os credores tem de ser concretamente comprovado por factos que o consubstanciem, e que não devem ser confundidos com o mero incremento do passivo em função da contagem dos juros. Por isso mesmo, não é sobre os ombros do devedor que impende qualquer prova de matéria negativa; é antes aos credores e ao administrador que incumbe a prova do facto positivo da ocorrência desse prejuízo.

3. Só o nexo de causalidade entre a demora na apresentação à insolvência para além do prazo estipulado na lei, ou independentemente do prazo, quando seja obrigatória - e, por via disso, na produção dos efeitos decorrentes do processo - e o agravamento da garantia patrimonial poderá ser eleito como impeditivo do benefício, à luz das exigências ínsitas na alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE. A factualidade apurada deve, por conseguinte, retratar essa particular relação causal.

4. Não é bastante, para tirar a ilação da comprovação do prejuízo para os credores, a mera constatação de acumulação de juros, ou tão pouco, o surgimento de mais passivo numa fase anterior ao momento em que, verificada a situação de insolvência, o devedor deva requerê-la.

5. Até ao momento em que se deva ter por confirmado o incumprimento generalizado - momento que baliza a situação de insolvência - pode haver aparecimento de novas obrigações, sem que esse prejuízo para os credores anteriores releve para o efeito da al.ª d) do nº 1 do art.º 238.

6. E se os devedores ainda dispõem de 6 meses para se apresentarem à insolvência, apenas o prejuízo que concretamente tenha advindo para os credores a partir desses 6 meses é que verdadeiramente deve ser apurado.

7. O agravamento do passivo ou a depreciação das garantias de algum dos vários créditos que se produzam subsequentemente ao esgotamento desse prazo é que podem constituir dano para os credores.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e mulher B... apresentaram-se no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede a requerer a respectiva insolvência pessoal e simultaneamente o incidente de exoneração do passivo restante, alegando o seguinte:

Que tendo casado entre si em 1991 constituíram em 2002 a sociedade C..., Lda, na qual passaram a deter duas quotas, uma de € 2.500,00 e outra de € 1.250,00, e a assumir funções de gerência; esta sociedade adquiriu aos respectivos proprietários um imóvel com o estabelecimento comercial de padaria e pastelaria que aí funcionava, sendo o primeiro através de um contrato de leasing imobiliário com a D..., celebrado em 2003, pelo valor de € 450.000,00, com um crédito da CGD, e o segundo por trespasse, pelo valor de € 200.000,00; por força de tais negócios e das prestações a pagar à CGD e aos trespassantes, logo ficaram com um encargo mensal global de cerca de € 9.000,00; desde o início da sua actividade que aquela sociedade sentiu dificuldades, que começaram a agudizar-se em 2006 e 2007, altura em que entrou em incumprimento com a Fazenda Nacional e a Segurança Social; em 2008 surgiram as primeiras execuções, realizando os Requerentes, como gerentes da aludida sociedade, diversos acordos com os credores; em 2009 a mesma sociedade viu as vendas descer a pique enquanto as dívidas cresciam; em Junho de 2011 esta sociedade deixou de pagar à Fazenda Nacional e à Segurança Social, apesar de em Abril do mesmo ano ter lançado uma proposta de trespasse aos antigos donos do prédio e estabelecimento, proposta que só veio a ser recusada em Agosto do mesmo ano; este facto levou os requerentes a cessar a laboração da empresa, apresentando à insolvência a referida sociedade em 29 de Agosto desse ano; no entanto, viram os Requerentes declarada a reversão contra si das dívidas à Fazenda Nacional e à Segurança Social, sendo certo que toda a sua actividade profissional girava em torno da dita sociedade e não auferiam quaisquer outros proventos, de forma que a sua única dívida verdadeiramente pessoal é a referente a um crédito à habitação no valor actual de € 8.906,55; no mais, por causa da sociedade, devem cerca de € 74.000 à CGD, € 82.000 à Segurança Social, € 25.000,00 às Fazenda Nacional, e € 115.000 aos senhorios E... e esposa, resumindo-se o seu activo à casa de morada que valerá € 60.000.

Invocando ainda as circunstâncias de se acharem desempregados, de não disporem de qualquer rendimento, de estarem dependentes da mãe da Requerente, de só terem dado como inevitável a insolvência em Agosto de 2011 com a frustração da hipótese de trespasse do estabelecimento supra referido, e de não terem culpa na sua insolvência por esta ter origem na insolvência da sociedade - a qual, por sua vez, teve origem na adversidade das condições do mercado - requerem a exoneração do passivo restante.

Pronunciando-se sobre este pedido, o Sr. Juiz teve por bem indeferi-lo liminarmente por inverificação dos pressupostos dos artigos 237, alínea a) e 238, nº 1, alínea d), e nº 2 do CIRE.

Irresignados, deste veredicto interpuseram os Requerentes recurso, admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.

Dispensados os vistos, cumpre decidir.

                                                                                 *

Na decisão recorrida foi dado como provada seguinte matéria:

Os requerentes apresentaram-se à insolvência por petição que deu entrada neste tribunal a 27/10/11, alegando ter naquela data dívidas acumuladas em valor superior a € 300.000,00.

Os requerentes desempenharam funções de sócios gerentes da sociedade C..., desde o ano de 2002.

Mais se apurou que a sociedade deixou de pagar as prestações referentes aos acordos celebrados com a Segurança Social e a Fazenda Pública em Junho de 2011 que deixou de pagar a renda devida à F....

Não obstante, estando apenas em apreço a decisão liminar de indeferir ou deferir o pedido de exoneração do passivo restante, deve ter-se por plausível, para este efeito, a prova da demais factualidade que vem alegada no requerimento inicial e acima se deixou relatada, e que não se evidencia ter sido objecto de impugnação pelos credores ou pelo administrador de insolvência, ouvidos ao abrigo do nº 2 do art.º 238 do CIRE.

                                                                               *

A apelação.

Os recorrentes terminam a respectiva alegação suscitando as seguintes questões:

A de saber se ocorreu a apresentação à insolvência dentro dos seis meses seguintes à verificação da situação respectiva (1º requisito da alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE);

Se não houve prejuízo para os credores com esse retardamento (2º requisito da mesma norma);

Se não se verifica o conhecimento ou ignorância indesculpável da inexistência de perspectiva séria de melhoria da situação económica dos requerentes (3º requisito da mesma norma).

Não foi apresentada qualquer contra-alegação.

Operando uma súmula da decisão recorrida, pode esquematizar-se o pensamento aí expresso do modo que segue:

Como os Requerentes deixaram de pagar a renda à F... em Abril de 2011, quando só se apresentaram à insolvência em 27 de Outubro do mesmo ano, desrespeitaram o limite legal de 6 meses, contado desde a verificação da insolvência, para o fazerem;

De qualquer forma, à luz do art.º 18, nº 3 do CIRE, presume-se, de modo inilidível, o conhecimento da insolvência, quando o devedor seja titular de uma empresa, pelo menos 3 meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações, devendo a insolvência ser requerida nos 60 dias subsequentes, conforme o nº 1 do mesmo artigo;

Além disso, a demora em requerer a insolvência acarretou prejuízo para os credores, uma vez que houve um incremento do passivo representado pelo vencimento dos juros inerentes à mora;

Por fim, nenhum argumento foi aduzido pelos requerentes no sentido de haver motivo sério que os levasse a pensar que a sua situação económica iria melhorar.

                                                                                 *

Sobre a inobservância do prazo para os Requerentes se apresentarem à insolvência.

A norma aqui tida em conta é a da alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE.

Segundo este preceito, o pedido de exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferido sempre que “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência, ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos 6 meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

Por outro lado, dispõe o art.º 18 do CIRE:

“1. O devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do art.º 3º, ou à data em que devesse conhecê-la.

2. Exceptuam-se do dever de apresentação à insolvência as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência.

3. Quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência pelos menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 20”.

Definindo o conceito da exoneração do passivo restante, o art.º 236 do CIRE prevê que se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos da disposições do presente capítulo.

De acordo com o art.º 245, nº 1, do mesmo diploma, a exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos não reclamados e verificados. Entretanto, excluiu a lei desta extinção as dívidas elencadas no nº 2 do artigo.

A exoneração do passivo restante depende da comprovação de um conjunto de requisitos, uns de natureza negativa, outros de índole positiva - cfr. os art.ºs 238, nº 1, 239, nºs 2 e 4, 243, nº1, e 246, nº 1, do CIRE - e traduz-se, na prática, num benefício que se aproxima de um autêntico perdão de dívidas atribuído ao insolvente em certas circunstâncias.

Não se podendo dizer que estamos perante uma medida excepcional, uma vez que qualquer insolvente dela pode aproveitar desde que observado o comportamento que dele se espera, é, porém, evidente, nos normativos apontados, que é apertado o crivo legal de deveres que impendem sobre aquele que se candidata à exoneração.

O extenso leque de exigências que recaem sobre o insolvente que se quer libertar do passivo restante mais não representa do que a concretização dos princípios da cooperação, lealdade, boa fé, e probidade, que subjazem à prolação de um verdadeiro juízo de mérito sobre a conduta por ele manifestada, quer anteriormente, quer subsequentemente à entrada do processo.

Efectivamente, a exoneração do passivo apresenta-se com o resultado da avaliação do comportamento ou linha de vida demonstrada pelo insolvente em função de determinadas coordenadas que se entendem fundamentais para a concessão do benefício, sendo que todas elas repousam numa ideia genérica de culpa (p. ex., a prestação de informações falsas sobre os seus dados económicos para a obtenção de crédito - alínea b) do nº 1 do art.º 238, ou a ocultação ou dissimulação de rendimentos auferidos - art.ºs 239, nº 4 e 243, nº 1, al.ª a)).

Tal avaliação também se destina a acautelar situações em que os credores possam ser envolvidos pelo incumprimento futuro do insolvente, designadamente quando este denote uma provável incapacidade em gerir prudentemente o seu património e de voltar a colocar em risco a garantia patrimonial das suas obrigações.

Como se escreve no Acórdão desta Relação de 27/09/2011, publicado pelo ITIJ, “aquele que sabe não estar integralmente exposto a todas as consequências desvaliosas de um risco decorrente do incumprimento contratual não interioriza os valores virtuosos – porque expressam valores eticamente relevantes – associados ao cumprimento das suas obrigações e, mais do que isso, não adopta, em muitos casos, uma atitude cautelosa e diligente na gestão da sua vida patrimonial, podendo interiorizar a perspectiva do incumprimento e de uma insolvência, a partir de determinado momento, como “custos”, ainda assim, suportáveis”.

Delineadas, deste modo, as directrizes a que, de um ponto de vista teleológico, obedece o instituto da exoneração do passivo restante, vejamos agora o quadro adjectivo em que ele funciona.

 

A pretensão de exoneração dos créditos sobre a insolvência a que se reportam os art.ºs 235 e seguintes do CIRE é objecto de um despacho liminar, cujo indeferimento se pauta pelo disposto no art.º 238, e de uma decisão final, esta proferida de harmonia com o art.º 244 do mesmo Código. Pode, além disso, depois de liminarmente admitida, ser antecipadamente recusada nas situações descritas nas três alíneas do nº 1 do art.º 243 do mesmo diploma.

Nas alíneas b), d) e e) do nº 1 do art.º 238 estão tipificados motivos de indeferimento liminar ligados a determinados comportamentos do devedor antes do início do processo de insolvência.

Entre eles figura o da não apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores e, sabendo ou não podendo ignorar com culpa grave não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica (alínea d)).

Ora, no caso que nos traz o vertente recurso, afigura-se-nos que a razão está do lado dos apelantes quando propugnam a tese segundo a qual, sendo três os segmentos da alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE, eles não se revelam totalmente configurados no acervo fáctico provado.

Efectivamente, são três as realidades cumulativamente abrangidas pela alínea em questão:

O incumprimento de dever de apresentação à insolvência ou, não existindo tal dever, a ultrapassagem do prazo de seis meses após a verificação da situação de insolvência dos Requerentes;

O prejuízo para os credores;

O conhecimento ou a obrigação de não ignorar, com culpa grave, a inexistência de perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

A resposta à questão de saber se existe ou não atraso na apresentação à insolvência implica, antes de mais, a determinação da data em que se deve ter por verificada essa mesma situação de insolvência.

Nos termos do disposto no artigo 3º, nº 1 do CIRE, “é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”

E “equipara-se à situação de insolvência actual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência” (artigo 3º, nº 4 do CIRE).

Ora, compulsada a matéria dada como provada e a demais que se mostra alegada na petição, afigura-se-nos que dela se não se pode retirar a omissão do dever de apresentação plasmada na lei como requisito negativo de deferimento liminar do benefício da exoneração do passivo restante.  

É que daí apenas se colhe que em Junho de 2011 a sociedade (de que os Requerentes eram sócios gerentes) deixou de pagar à Fazenda Nacional e à Segurança Social, sendo que em Abril desse ano já deixara de pagar a renda (do imóvel) à F....

Porém, concomitantemente, embora alegando a sua total dependência da actividade da dita sociedade, também referem os Requerentes que esta apenas viria a cessar a sua actividade em 31 de Julho de 2011 (art.º 64 do r.i.) e que só em final de Agosto de 2011 se gorou a negociação da retoma do estabelecimento pelos anteriores donos e trespassantes, os aludidos E... e esposa, com a qual os Requerentes encaravam a possibilidade de virem a pagar todo o passivo da empresa (art.ºs 47 a 50 do r.i).

Neste contexto, só nesta data é que verdadeira e razoavelmente os Requerentes terão admitido a sua própria insolvência, porquanto afirmam - e não há razões para disso duvidar - que esta seria consequência inelutável da insolvência da sociedade, a qual, entretanto, viria a ser já declarada.

Em conformidade, antes de Agosto de 2011 não se poderá ter por verificada a impossibilidade generalizada do cumprimento das obrigações vencidas, a que se alude no art.º 3 do CIRE.

Por outro lado, a decisão recorrida parece ter aplicado o prazo de 3 meses do art18, nº 3, do CIRE imediatamente sobre a data de Abril de 2011, em que se teria iniciado o incumprimento do contrato com a F..., chamando à colação o disposto nesse normativo exclusivamente com base no facto de os Requerentes terem desempenhado “funções de sócios-gerentes da sociedade C..., Lda, desde o ano de 2002”.

Fê-lo, todavia, sem fundamento.

Se não vejamos.

Em primeiro lugar, esta norma - o art.º 18 do CIRE - não se aplica às pessoas singulares não titulares de empresa (cfr. o nº 2).

Titulares de empresa são as pessoas singulares em que ocorre “indissociabilidade entre o produto ou serviço prestado e o próprio produtor ou prestador, envolvendo a reunião, no mesmo agente económico, dos factores de produção capital e trabalho”[1].

Ora os Requerentes não detiveram individualmente qualquer organização: foram meros sócios gerentes de uma sociedade.

Depois, a interpretação conjugada dos nºs 1 e 3 do artigo, no caso dos devedores titulares de empresas, impõe a obrigação de requerer insolvência num prazo de 60 dias a contar do conhecimento da respectiva situação, sendo que esse conhecimento se presume, iuris et iure, decorridos 3 meses.

Por isso, para tais devedores, o prazo de apresentação, nunca poderá ser o do nº 3, mas antes o do nº 1, acrescido do aludido no nº 3.

Realizada esta observação, há ainda que considerar que o prazo de 6 meses previsto na alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE é, em certo sentido, independente dos prazos consignados naquele art.º 18, nºs 1 e 3.

Uma vez que naquela alínea d) se ressalvam do prazo aí previsto os casos em que o “devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência” é evidente que, à face do nº 2 do art.º 18, serão só as pessoas singulares não titulares de empresas à data em que incorrem em insolvência que poderão encontrar-se em tal situação. Encontrando-se os Requerentes nesta categoria, torna-se patente que o único prazo atendível seria sempre o dos 6 meses da al.ª d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE.

Em suma, não se mostra preenchido o condicionalismo da 1ª parte da alínea.  

   

Sobre o prejuízo dos credores.

Também se escreveu na decisão recorrida que o atraso na apresentação à insolvência “causa necessária e directamente prejuízo aos credores em virtude do avolumar do passivo daí decorrente”.

Mas também aqui não tem razão.

Como tem sido jurisprudência ao que supomos dominante desta Relação[2], o simples avolumar do passivo naturalmente adveniente da mora na satisfação dos créditos sobre o devedor que resulta da sua tardia apresentação à insolvência não integra o chamado prejuízo para os credores, que é exigido na alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE.

Desde logo, se assim fosse, seria inútil que o legislador tivesse feito incluir esse requisito no condicionalismo da referida alínea. É que, na realidade, nunca deixaria de haver esse prejuízo para os credores com a demora na apresentação do devedor.

Além disso, a declaração de insolvência não impede hoje a contagem de juros a partir desse momento, nos termos dos art.ºs 48, nº 1, alínea b) e 91, nº 2 do CIRE.

Donde que o prejuízo para os credores tenha de ser concretamente comprovado por factos que o consubstanciem, e que não devem ser confundidos com o mero incremento do passivo em função da contagem dos juros. Por isso mesmo, não é sobre os ombros do devedor que impende qualquer prova de matéria negativa; é antes aos credores e ao administrador que incumbe a prova do facto positivo da ocorrência desse prejuízo.

Acompanhamos aqui o que, com particular acutilância, recentemente se expressou a este propósito no já aludido Acórdão deste Tribunal de 29/02/2012, proferido no p. 170/11.2TMGR.C.C1, disponível em www.dgsi.pt, e que agora não resistimos a transcrever:

“No caso em apreço, o único prejuízo que se pode chamar à liça é o avolumar do passivo decorrente da contagem de juros de mora. Será isso bastante para afirmar que um eventual atraso da recorrente na apresentação à insolvência causou prejuízo para os credores juridicamente relevante à face do disposto na alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE?

A jurisprudência acha-se dividida na concretização deste segmento da previsão da alínea d), do nº 1, do artigo 238º do CIRE.

Na verdade, entendem alguns, que constituem prejuízo para os efeitos deste normativo, os juros devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias […]. Numa posição intermédia, sustenta-se que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência é lícito presumir, com base em presunção natural, a existência de prejuízo para os credores […]. Ao invés, em nítida contraposição, sustentam outros, ainda que com argumentações não coincidentes, que os juros de mora devidos pelo atraso no cumprimento de obrigações pecuniárias não integram o prejuízo requerido pela previsão legal em análise […]. Desenha-se ainda uma outra posição no sentido de que todo e qualquer prejuízo decorrente do atraso à apresentação da insolvência é relevante, desde que se apure de modo efectivo, não podendo ser meramente presumido […].

Apreciemos tomando posição neste dissídio jurisprudencial.

(…).

Actualmente, ao invés do que sucedia no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência (artigo 151º, nº 1) e, anteriormente, no Código de Processo Civil (artigo 1196º do Código de Processo Civil), a declaração de insolvência não obsta à contagem de juros de mora, apenas sucedendo que tais créditos por juros de mora constituídos após a declaração de insolvência são havidos como créditos subordinados (artigo 48º, alínea b), do CIRE), o que implica que apenas serão solvidos depois de integralmente pagos os créditos com garantia real, os créditos privilegiados e os créditos comuns e pela ordem por que vêm legalmente identificados no artigo 48º, na proporção dos respectivos montantes, quanto aos que constem da mesma alínea, se a massa for insuficiente para o seu pagamento integral (artigo 177º, nº 1, do CIRE).

O atraso ou o retardamento no cumprimento da obrigação imputável ao devedor (presumindo-se a culpa, ex vi artigo 799º, nº 1, do Código Civil) constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor, sendo que na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (artigo 806º, nº 1, do Código Civil). A lei dispensa assim o credor de provar o prejuízo sofrido, ficcionando que o dano corresponde, em princípio, aos frutos civis (artigo 212º, nº 2, do Código Civil) que o capital em dívida era susceptível de produzir tendo em conta a taxa supletiva legal […], salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estabelecido um juro moratório diferente do legal (artigo 806º, nº 2, do Código Civil). Nos casos de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o credor pode ainda exigir uma indemnização suplementar desde que prove que a mora lhe causou danos de montante superior aos juros legalmente previstos (artigo 806º, nº 3, do Código Civil).

Na economia desta decisão, este excurso pelo regime da mora nas obrigações pecuniárias justifica-se para comprovar que a contagem de juros de mora é uma consequência necessária do atraso no cumprimento daquelas obrigações, sendo por isso uma realidade omnipresente no processo de insolvência. Dito de outro modo: face ao regime legal de sancionamento da mora no cumprimento das obrigações pecuniárias, o legislador do CIRE não podia deixar de saber que as situações de insolvência estão necessariamente associadas a casos em que se verifica a contagem de juros de mora.

Se assim é, como cremos que resulta demonstrado pelo que precede, qual o sentido a atribuir à causação de prejuízo para os credores com o atraso na apresentação à insolvência?

Se acaso o legislador pretendesse abarcar com tal previsão os prejuízos decorrentes da simples mora no cumprimento de obrigações pecuniárias, seria desnecessária a expressa alusão à causação de danos por força do atraso na apresentação à insolvência, bastando apenas que previsse o atraso na apresentação à insolvência para que tais danos fossem contemplados.

Neste quadro normativo, ao autonomizar a provocação de danos consequentes do retardamento na apresentação à insolvência, afigura-se-nos que o legislador terá tido em vista algo mais do que os simples juros advindos da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias.

Não por acaso, em sede de incidente de qualificação da insolvência, o legislador previu expressamente que “se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente” (artigo 186º, nº 5, do CIRE).

Tendo em conta a teleologia subjacente ao instituto de exoneração do passivo restante e a sua congruência com o incidente de qualificação da insolvência (assim se percebe o disposto na alínea e), do nº 1, do artigo 238º do CIRE), parece que a causação do prejuízo aos credores não se bastará com os juros decorrentes da mora no cumprimento de obrigações pecuniárias e antes visará a prática pelo devedor de actos que levem à dissipação do património ou à contracção de novas responsabilidades após a verificação da situação de insolvência.

Daí que também nos afastemos daqueles que sustentam que demonstrado o atraso na apresentação à insolvência, se presume judicialmente a causação de prejuízos aos credores, cabendo ao insolvente a alegação e prova de factos que ilidam aquela presunção.

E afastamo-nos desta orientação por duas razões.

Em primeiro lugar, porque embora invocando a utilização de uma presunção judicial para comprovação da causação de prejuízo aos credores, a orientação criticada, na prática, cria uma presunção legal iuris tantum ilidível por prova do contrário (artigo 350º, nº 2, do Código Civil), quando o resultado probatório obtido por presunção judicial é ilidível mediante simples contraprova (artigo 346º do Código Civil); isto é, para ilidir o resultado probatório obtido por presunção judicial não é necessário fazer prova do contrário, bastando apenas tornar duvidoso o resultado probatório obtido daquela forma.

Em segundo lugar, porque mesmo que se conceda na verificação dos requisitos para que opere a aludida presunção judicial, sempre ficará por demonstrar qual o prejuízo concreto causado com o atraso na apresentação (contagem de juros, contracção de novas dívidas, diminuição do activo?), o que na perspectiva que temos vindo a defender será insuficiente para o preenchimento da previsão legal interpretanda”.

Poderá perguntar-se: que factos em concreto podem então representar prejuízo para os credores?

Propendemos a interpretar o segmento da norma em análise no sentido da indispensabilidade da prova de factos concretos dos quais se possa concluir que a não iniciação do processo de insolvência no momento ou no prazo legalmente consignado acarretou para qualquer dos credores uma diminuição da garantia patrimonial, geral ou especial, seja pela depreciação ou supressão do activo que respondia pelo crédito, seja pela simples maior oneração dos bens que integravam tal garantia, desde que os actos prejudiciais tenham sido praticados depois do decurso daquele momento ou prazo de apresentação.

É certo que a contracção de novas dívidas agrava a garantia geral que é constituída pelo património do devedor (art.ºs 601 e 604 do CC), mais a mais quando essa garantia já era exígua antes do novo endividamento. E a criação de novas obrigações, se praticada com culpa grave, também obsta ao benefício, nos termos da al.ª e) do nº 1 do art.º 238 do CIRE.           

No entanto, estritamente para efeito da alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE, não são todos os prejuízos para os credores, anteriores ou imediatamente subsequentes ao momento da verificação de insolvência, que, de modo automático, impedem o devedor de obter o benefício da exoneração do passivo restante.

O devedor, quando não esteja obrigado a apresentar-se imediatamente, tem um prazo (de seis meses), durante o qual pode fazer reverter a sua situação.

O legislador admitiu que nos aludidos seis meses a fortuna do devedor se poderia alterar por influência dos mais diversos factores.

Daí que, na economia da alínea em causa, não seja o eventual agravamento do passivo nesse período que motiva o indeferimento do benefício.

Só o nexo de causalidade entre a demora na apresentação à insolvência para além do prazo estipulado na lei, ou independentemente do prazo, quando seja obrigatória - e, por via disso, na produção dos efeitos decorrentes do processo - e o agravamento da garantia patrimonial poderá ser eleito como impeditivo do benefício, à luz das exigências ínsitas na alínea d) do nº 1 do art.º 238 do CIRE.    

A factualidade apurada deve, por conseguinte, retratar essa particular relação causal.

Não é, deste modo, bastante, para tirar a ilação da comprovação do prejuízo para os credores - como o faz a decisão recorrida - a mera constatação de acumulação de juros, ou tão pouco, o surgimento de mais passivo numa fase anterior ao momento em que, verificada a situação de insolvência, o devedor deva requerê-la. E seguramente que até ao momento em que se deva ter por confirmado o incumprimento generalizado - momento que baliza a situação de insolvência - pode haver aparecimento de novas obrigações, sem que esse prejuízo para os credores anteriores releve para o efeito da al.ª d) do nº 1 do art.º 238.

E se os devedores ainda dispõem de 6 meses para se apresentarem à insolvência, parece que apenas o prejuízo que concretamente tenha advindo para os credores a partir desses 6 meses é que verdadeiramente deve ser apurado.

O agravamento do passivo ou a depreciação das garantias de algum dos vários créditos que se produzam subsequentemente ao esgotamento desse prazo é que podem constituir dano para os credores.

Só que nesse aspecto nenhum dado apreciável se detecta na factualidade provada ou, tão pouco, na alegada.

Não defluindo da factualidade alegada ou provada matéria que implique esse autêntico prejuízo para os credores provocado pela eventual demora no requerimento da insolvência, deveria esse requisito ser tido por não demonstrado.

Constata-se, por conseguinte, que, também neste particular, a razão estaria do lado dos recorrentes.

No que concerne ao terceiro segmento em apreço: a noção, ou ignorância com culpa grave, da inexistência de perspectiva de reversão da situação económica.

Sem embargo de se achar já excluída a aplicabilidade do disposto na alínea d) por força da ausência dos dois primeiros segmentos, não se deixará sem apreciação o que na decisão se asseverou sobre o terceiro desses segmentos.

Aí se escreveu que os Requerentes não alegaram motivo sério para pensar que a sua situação económica iria melhorar.

Também não tinham o ónus de o provar ou alegar. Não há qualquer presunção legal de que o devedor conhece a irreversibilidade da sua situação quando está obrigado a apresentar-se à insolvência. Aliás, os Requerentes, mesmo sem terem de o provar, alegam precisamente o contrário (cfr. os já aludidos art.ºs 47 a 50 do r.i.).

Pelo que, igualmente neste segmento, não é de sufragar a posição da decisão recorrida.

Pelo exposto, na procedência da apelação, revogam a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por outra que, deferindo liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, ordene o prosseguimento do incidente.

Custas pela massa insolvente.


Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins     


[1] Parece-nos que, para Luís C. Fernandes e J. Labareda, in CIRE Anotado, 2006, V. I, p. 82, será este o critério distintivo de empresa titulada por pessoa singular, à luz do conceito resultante do disposto no art.º 5º do CIRE.
[2]Podem citar-se, entre outros, os de 17.1.12, relatados por Francisco Caetano e Carlos Querido, e de 29.2.12, relatado por Carlos Gil, todos acessíveis em www.dgsi.pt.