Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/13.3TAVLF.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
FALSIFICAÇÃO INTELECTUAL
FALSAS DECLARAÇÕES A AUTORIDADE PÚBLICA
Data do Acordão: 12/18/2013
Votação: POR MAIORIA
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE CELORICO DA BEIRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA D), DO CP
Sumário: I - Para o preenchimento do tipo de falsificação na modalidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 256.º, do CP, tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações prestadas perante autoridade pública, esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.

II - Assim, não comete o referenciado crime quem presta, perante o notário, que as faz consignar em escritura de justificação, falsas declarações relativas à propriedade e posse de um prédio urbano.

Decisão Texto Integral: Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório
1. No âmbito do proc. n.º 18/13.3TAVLF, que corre termos pelo Tribunal Judicial de Celorico da Beira, em que figura como participante, entre outros, a ora assistente A... e como participadas B... , C... , D... e E... – instaurado na sequência da «denúncia» apresentada pela primeira contra as demais pela prática de um crime de falsas declarações perante oficial público - finda a fase de Inquérito, foi proferido despacho de arquivamento com o fundamento na declaração de inconstitucionalidade do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29.º, n.º 1 da CRP, levada a efeito pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, publicado no D.R., 2.ª Série, de 21.09.2012.

2. Não conformada com o dito arquivamento, requereu a participante a constituição como assistente e, bem assim, a abertura da fase de Instrução em ordem à pronúncia das identificadas arguidas pela prática, em autoria e comparticipação, de um crime de falsificação previsto nas alíneas d) e e), do n.º 1, do artigo 256º do Código Penal e punido pelo n.º 3 da mesma disposição legal.

3. Realizada a instrução, por decisão instrutória registada/depositada em 03.07.2013, foi proferido despacho de não pronúncia.

4. Inconformada com o assim decidido recorreu a assistente, extraíndo da respectiva motivação as seguintes conclusões:

1. A decisão instrutória de não pronúncia das arguidas merece censura, evidenciando erro notório de apreciação dos factos e da prova, sendo contrária às regras e normas do direito e aos ensinamentos da doutrina e jurisprudência consagradas e aplicáveis à falsificação em documento, juridicamente relevante.
2. O Juiz de instrução, tal como o evidencia a fundamentação vazada na decisão instrutória de não pronúncia, relevou apenas, tal como já o fizera o MºPº no inquérito, o itinerário da actividade delituosa das arguidas, até à realização da escritura pública notarial de justificação, de 16 de Fev. de 2009, como se as declarações falsas dos factos que na mesma escritura foram produzidas, tivessem, qual nado morto, perecido na mesma escritura, quando ao invés, a sua sobrevivência e vitalidade assumiu jurídica relevância para permitir modificar uma relação jurídica, desvalorizando a decisão instrutória que tais falsas declarações permitiram a modificação do registo predial de prédio urbano, único bem imóvel da herança indivisa aberta por óbito do marido da arguida B..., F... falecido em 18.05.1993, sito na ..., freguesia da Açoreira, concelho de Torre de Moncorvo, inscrito na matriz sob o artigo x..., conduzindo à presunção do direito de propriedade, como bem próprio da arguida B..., e a consequente alienação por esta a terceiros, em 03/07/2009, pelo preço e condições que bem entendeu, causando prejuízo aos interesses da herança e dos demais herdeiros.
3. É apodíctico, que as arguidas ao declararem nos termos que constam da referida escritura de justificação notarial, factos que bem sabiam não corresponderem à verdade, fizeram crer ao Notário em exercício de funções no Cartório Notarial que as declarações que prestavam eram verdadeiras, logrando assim, que fosse lavrada a escritura com tais declarações de modo a que, com base na presunção do direito de propriedade assim alcançado pela arguida, B..., pudesse ser feito, como foi, o registo do prédio a favor desta arguida, vendendo-o posteriormente a terceiros, pelo preço e condições que entendeu.
 4. Tendo todas as arguidas perfeita consciência da falsidade das suas declarações, bem sabendo que o prédio urbano referido na escritura notarial de 16 de Fevereiro de 2009, nunca foi doado à arguida B... no estado de solteira, sendo sim bem comum dela e de seu marido F... e por ambos construído de raiz, na constância do matrimónio do qual frutificaram 10 filhos, sendo bem comum do casal e por isso fazendo parte integrante da herança indivisa, aberta por óbito do mesmo marido, ocorrido em 18.05.1993.
5. As arguidas com a sua actuação, puseram em causa a credibilidade e segurança do tráfico jurídico probatório, tendo agido deliberada, livre e conscientemente em benefício e vantagem da arguida B..., e em prejuízo da herança indivisa e dos demais herdeiros, nos quais se inclui a assistente e ora recorrente.
6. Tendo sido aceite pelo tribunal de instrução, a matéria de facto, reconhecendo o Mº juiz ser a questão a dirimir apenas de Direito, atento o princípio da suficiência do processo penal, a mesma deve ser resolvida no foro penal e não civil, dado encontrarem-se preenchidos todos os elementos do tipo legal de crime de falsificação p. e p. pelo n.º 1, alínea d), e nº 3, do artigo 256º do C. Penal.
7. Não sendo despiciendo salientar, face à fundamentação vertida na decisão instrutória recorrida, que a declarada inconstitucionalidade proclamada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 379/2012, da norma do artigo 97º do Código de notariado, não branqueou, nem transformou em verdadeiras, as narrações ou declarações falsas inseridas em documento notarial, as quais continuam a ser falsas, pois não foi, obviamente, a mentira que foi declarada impune e inconstitucional.
8. A declarada inconstitucionalidade da norma do artigo 97º do Código do Notariado, não impede que a conduta das arguidas não deva continuar a ser analisada e valorada dentro do universo da ilicitude do crime de falsificação – já que não foi a mentira que foi declarada inconstitucional -, em ordem ao apuramento, que se impõe, se da conduta das arguidas não emergem ou concorrem, sérios indícios da mesma integrar a prática de outro crime enquadrável na actividade delituosa de falsificação, a merecer autónoma incriminação, pois que a decidida inconstitucionalidade não arrastou, nem determinou, como é óbvio, a impunidade automática e absoluta das falsas narrações inseridas em documento notarial, as quais constituem falsificação desde que sejam aptas a produzir uma alteração no mundo do Direito, alteração esta que intencional e indubitavelmente, ocorreu no caso concreto.
9. Importando acentuar que de documento falso se trata, quando não corresponde à realidade, seja na sua génese ou fabrico falso, seja na alteração de documento verdadeiro – falsificação material -, seja com a falsificação do conteúdo de documento, através da integração de declaração escrita não conforme à realidade – falsificação ideológica ou intelectual, na qual se enquadra a falsidade em documento.
10. Falsidade em documento, em que se integram os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante, ou seja narração de facto falso apta a permitir uma alteração no mundo do Direito, alteração que no caso concreto se verificou.
11. A alínea d), do n.º 1, do artigo 256º, do C. Penal, prevê a prática das chamadas “falsificações ideológicas”, as quais, tal como refere Helena Moniz in “Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial”, tomo II, Ed. Coimbra Editora, pág. 676, tornam o “documento inverídico”, nelas se integrando a falsidade em documento em que se presta uma narração de facto falso, juridicamente relevante.
12. Delineando-se a relevância jurídica da falsidade em documento “sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é, que abra ensejo à obtenção de um benefício” – sic – Ac. Rel. De Coimbra de 20.12.2011, Proc. 40/08.1TAPNH.C1, Relator Dr.ª Isabel Valongo in www.dgsi.pt/jtr, no qual se referem, no mesmo sentido, Helena Moniz, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, pág. 667 e a jurisprudência dos Acórdãos da Relação de Coimbra de 13.05.2009, Proc. 457/07.9TASCD.C1 (JusNet2903/2009), Relator Jorge Dias; de 07.02.2007, Proc. 1540/05.0TAAVR.C1 (JusNet300/2007), Relator Dr. Esteves Marques e Acórdão da Relação de Guimarães de 16.11.2009, Proc. 1289/06.7TAVCT.G1 (JusNet 7567/2009, Relator Drª Teresa Baltazar, in www.dgsi.pt.
13. Constituindo benefício ilegítimo toda a vantagem patrimonial ou não patrimonial que se obtenha do acto de falsificação ou do acto de utilização de documento falsificado, sendo o bem jurídico protegido pelo crime, a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, ou seja o valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados no n.º 3 do artigo 256º, do C. Penal – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, págs. 680 a 685.
14. Sempre que a declaração falsa inserida em documento, seja idónea a provar ou servir como meio de prova de facto juridicamente relevante, existe falsificação de documento, tal como incontornável e inequivocamente, se assiste no caso das declarações das arguidas inseridas na escritura notarial de 15 de Fevereiro de 2009, que foram aptas e relevantes, a fazer presumir juridicamente, o direito de propriedade exclusiva da arguida B..., sobre o prédio urbano, possibilitando o registo predial em seu nome e a posterior venda a terceiro pelo preço e condições que entendeu.
15. Contrariamente à fundamentação e sentido da decisão instrutória de não pronúncia das arguidas, os elementos de prova recolhidos, objectivamente valorados de acordo com juízos de normalidade e com as regras da experiência comum, sem perder de vista o seu devido e acertado enquadramento jurídico à luz, dos ensinamentos da consagrada doutrina e jurisprudência, apontam sim, como se julga ter sido demonstrado nestas alegações, para sentido decisório bem diferente, imposto pela existência de sério grau de probabilidade, da prática em autoria, pelas arguidas , do crime de falsificação e da muito provável sua condenação em julgamento.
16. A pronúncia das arguidas e a sua submissão a julgamento pela autoria do crime de falsificação, p. e p. pelo n.º 1, al. d) e n.º 3, do artigo 256º do Código Penal, apresenta-se como o único sentido decisório a aplicar, no caso concreto, satisfazendo o dever de administração de justiça penal contemplado no n.º 1 do artigo 9º do CPP, e no devido respeito e consonância com estas mesmas disposições jurídico-penais, regras e princípios de direito, que a decisão instrutória recorrida desconsiderou.

Termos em que,
Com o mui douto suprimento de V. Exªs, deve conceder-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão instrutória recorrida, devendo em consequência, as arguidas ser pronunciadas e sujeitas a julgamento.
Justiça

5. Por despacho exarado a fls. 180, veio o recurso a ser admitido, fixado o respectivo regime de subida e efeito.

6. Ao recurso respondeu a recorrida B..., concluindo:

I. O recurso interposto pela recorrente, ora apelante, não causou admiração, porquanto insiste em levar o presente processo até às últimas consequências, com o único intento de se vingar da aqui recorrida, sua mãe;
II. No entanto, a, aliás, douta sentença recorrida, excelentemente fundamentada, julgou com acerto, não podendo o pleito, conscienciosamente, ser resolvido de outra forma;
III. A única questão a dirimir nos presentes autos é de direito, consistindo sumariamente, em apurar se a conduta da recorrida é subsumível ao tipo legal de falsificação de documento, previsto e punido nos termos do artigo 256º, n.º 1, alínea d) e n.º 3, respectivamente, do Código Penal;
IV. A recorrente alega que a recorrida prestou declarações perante o Notário que sabia não corresponderem à verdade, intervindo na escritura de 16/02/2009, narrando factos juridicamente relevantes, de modo falso;
V. Concluindo que não fosse a declaração de inconstitucionalidade do artigo 97º do Código do Notariado, tal conduta faria incorrer a recorrida no crime de falsas declarações previsto e punido nos termos do artigo 360.º do Código Penal;
VI. Ao sucumbir a sua pretensão face à mencionada declaração de inconstitucionalidade, pugnou o recorrente, então, pela pronúncia da arguida pela prática do crime de falsificação de documento;
VII. Sustenta, assim, a recorrente que as declarações prestadas pela recorrida foram incorporadas em documento que permitiu produzir uma modificação na situação jurídica do prédio urbano, por via do processo de justificação;
VIII. Todavia, o documento em apreço, ou seja, a escritura pública de justificação notarial, não exibe qualquer aspecto susceptível de revelar falsidade material nem intelectual, pois não foi forjado ou alterado, nem apresenta uma desconformidade entre o que foi declarado e o que se encontra documentado;
IX. Quando muito, poder-se-ia considerar que é um documento regular que contém, eventualmente, uma declaração inverídica;
X. Entendimento, aliás, doutamente perfilhado na sentença ora em crise;
XI. Nesse sentido, vide também, a título meramente exemplificativo, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12/07/2011, no âmbito do processo n.º 1465/08.8TALRA.C1, disponível em www.dgsi.pt.;
XII. Ademais, atendendo a que o bem jurídico protegido pelo artigo 256.º do Código Penal é a confiança da sociedade no valor probatórios dos documentos que os outorgantes produziram perante o Notário mediante a prestação de declarações, entendemos que o mesmo não sofreu qualquer dano;
XIII. A escritura pública, enquanto documento autêntico, garante apenas a veracidade dos factos praticados pelo Notário e dos que são referidos com base nas suas percepções, que não os juízos pessoais do Notário ou os factos do foro íntimo dos outorgantes;
XIV. In casu, o documento (escritura pública) reproduz fielmente as declarações prestadas, mantendo na íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina;
XV. Sendo certo que, a declaração de inconstitucionalidade concernente ao artigo 97º do Código do Notariado, não implica, de per si, a subsunção deste tipo de comportamento ao crime de falsificação de documentos;
XVI. Criminalizando-se, assim, uma determinada conduta sob tipificação distinta, visando ultrapassar uma inconstitucionalidade orgânica;
XVII. Salvo melhor opinião, admitir a interpretação contrária seria fazer “tábua rasa” do princípio da proibição de integração de lacunas em Direito Penal com recurso a analogia, tal como decorre do n.º 3, do artigo 29º, da Constituição da República Portuguesa;
XVIII. Directamente aplicável nos termos do artigo 18º, n.º 1, da C.R.P., o que, desde já, a arguida invoca em sua defesa;
XIX. Salvo o devido respeito, que é muito, caberá ao legislador e não ao julgador rectificar a aludida situação;
XX. Face ao vindo de expor, mesmo a ser verdade o constante no requerimento de abertura de instrução, a conduta imputada à arguida seria, quando muito, moralmente censurável, não implicando, contudo, a intervenção da tutela penal;
XXI. Pelo que, s.m.o., extrai-se que inexistem indícios suficientes no sentido de resultar uma possibilidade razoável de, por força deles, vir a ser aplicada à arguida, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Termos em que deve confirmar-se a sentença recorrida, assim se fazendo, uma vez mais, serena e sã Justiça!

7. Também a recorrida E... respondeu ao recurso, concluindo:

A) O Douto Tribunal Constitucional, ao declarar a inconstitucionalidade da norma do art. 97º do C. Notariado quis na realidade transformar tal incriminação numa mera questão cível, ficando arredada a construção jurídica que a Assistente faz de que subjaz o crime de falsificação de documento.
B) O Douto Tribunal Recorrido fez uma correta leitura da declaração de inconstitucionalidade da norma do art. 97 do C. Notariado, afastando a incriminação das arguidas pelo art. 256º do C. Penal.
C) Não foram violadas quaisquer normas por parte do Douto tribunal recorrido.
Termos em que,
Deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a Douta Sentença Recorrida.
Assim acordando
V/S Ex.ªs Srs. Juízes Desembargadores estarão a fazer inteira Justiça.

8. Em resposta ao recurso [sem que, contudo, haja formulado conclusões], sustentou o Ministério Público a posição da recorrente, defendendo, em consequência, a procedência do recurso.

9. Igualmente a recorrida C... respondeu ao recurso, concluindo:

1. Pretende a Apelante imputar às arguidas, mormente à recorrida C..., fatos que indiciam suficientemente a prática do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º/1 d) CP:
2. Bem andou o Juiz de Instrução ao considerar que, em abstrato, a conduta das arguidas não é subsumível ao tipo legal de falsificação de documento, assim como não se vislumbra qualquer desrespeito pela segurança e credibilidade do tráfico jurídico probatório.
3. A recorrida C... foi a mesma testemunha na escritura de justificação, esgotando-se a atuação da mesma nas declarações prestadas e que integraram aquela, não podendo por isso ser avaliado qualquer comportamento, no que à mesma diz respeito, após a conclusão da mesma.
4. É inverídico que tais declarações incorporadas na escritura, em si mesmo consideradas, tenham permitido a modificação do registo predial, o que só operou mediante a apresentação da escritura (e restante documentação, findo o respetivo prazo de publicação) por parte da arguida B... (mãe da apelante), para registo.
5. Faz a Apelante alusão à falsificação ideológica ou intelectual, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 256ºdo CP, na qual se subsumiria a conduta das arguidas.
6. Em oposição ao alegado pela Apelante, e na esteira do defendido pelo Juiz de Instrução, na falsificação ideológica ou intelectual existe uma desconformidade entre a declaração prestada e a declaração, ainda que falsa, escrita e inserida no documento.
7. No mesmo sentido, Maia Gonçalves (Código Penal Português), 3.ª ed., Coimbra, 1977, 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há que resultar, em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está de harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)».
8. É o que sucede no caso em apreço, uma vez que, as arguidas, nomeadamente a ora recorrida, prestou declarações que, pese embora a mesma acreditasse que correspondiam à verdade, não o eram, mas foram enquanto tal integradas no documento, tratando-se por isso de uma “declaração de vontade falsa”.
9. Porque os fatos praticados pelas arguidas, mormente pela C..., não configuram o crime de falsificação de documento, e consequentemente, não se recolheram indícios suficientes da prática do crime de falsificação, p. e p. artigo 256º/1 d) CP, deve improceder o recurso, mantendo o douto despacho de não pronúncia das arguidas, nomeadamente da recorrida C....

Nestes termos e nos melhores de direito sempre com o douto suprimento de V/Ex.ªs deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Apelante A..., mantendo-se a decisão recorrida de não pronúncia das arguidas, nomeadamente da recorrida C...,
Assim fazendo V. Ex.ª (s) Justiça.

10. Remetidos os autos a este tribunal, a Exma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual, acompanhando a resposta, apresentada em 1.ª instância, pelo Ministério Público, se pronunciou no sentido de o recurso merecer provimento.

11. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP, não houve qualquer reacção por parte dos interessados.

12. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objecto do recurso
De harmonia com o disposto no n.º 1 do artigo 412.º do CPP e conforme jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito – [cf. acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19.10.1995, DR, I Série – A, de 28.12.1995].
No presente caso a questão «controvertida» traduz-se em saber se a conduta «imputada» às arguidas, traduzida na prestação de «falsas declarações» - concernentes ao facto de a primeira ser «dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, há mais de vinte anos, pelo facto de lhe ter sido doado verbalmente (…), doação nunca titulada por escritura pública (…) do prédio urbano» identificado nos autos - perante o notário e, - uma vez confimadas pelas demais arguidas -, por este feitas consignar na escritura de justificação de 16.02.2009 [cf. fls. 16/17], o que tornou possível o registo e subsequente venda do dito prédio pela primeira arguida a um terceiro, é susceptível de fazer incorrer as mesmas no crime de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea d) e n.º 3 do Código Penal.

2. A decisão recorrida
Ficou a constar da decisão recorrida [transcrição parcial]:
«I.
Declaro encerrada a instrução.
*
Uma vez encerrado o inquérito, veio o Ministério Público, a fls. 22 a 25, determinar o arquivamento dos autos, nos termos do n.º 1 do art.º 277.º do CPP, com base na jurisprudência do acórdão TC n.º 379/12, publicado na 2.ª série do DR, de 21.09, concluindo que os participados, assim, não cometeram os factos criminalmente puníveis.
*
Não se conformando com a decisão proferida, veio a ofendida A..., entretanto constituída Assistente, requerer a abertura de instrução, a fls. 33 a 38v, requerendo a pronúncia de B..., C..., D... e E..., por fortes e seguros indícios existirem de terem cometido, em autoria e comparticipação, um crime de falsificação, p. nas alíneas d) e e) do n.º 1 do art.º 256º do Código Penal e p. pelo n.º 3 do mesmo normativo.
Alega, para o efeito, que o MP não analisou nem averiguou com rigorosa objetividade e profundidade o exato alcance e enquadramento dos factos e a ilicitude da prática dos mesmos pelos participados que, na sua ótica, não se esgotam no apenas abstratamente considerado crime de falsas declarações perante oficial público, p. pelo art.º 97.º do Código do Notariado, julgado inconstitucional.
Na sua ótica, a declarada inconstitucionalidade da norma do art.º 97.º do Código do Notariado, não impõe que a conduta dos participados não possa ou não deva continuar a ser analisada e valorada criminalmente, na sua totalidade, em ordem a apurar se da mesma conduta não existem ou concorrem outros sérios indícios de a mesma integrar a prática de outro crime enquadrado no universo criminal da atividade delituosa de falsificação, a merecer autónoma incriminação.
Acrescentando que a circunstância de na participação se ter referido a tal crime não baliza a atividade do MP que é livre de proceder oficiosamente a todas as diligências indispensáveis à descoberta da verdade material.
*
Foi declarada aberta a instrução …
No decurso da mesma, procedeu-se à realização das diligências de prova requeridas.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância das formalidades legais.
*
(…)
Inexistem nulidades, ilegitimidades, ou outras exceções, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, e ao normal prosseguimento dos autos.
*
Cumpre proferir, nos termos do art.º 308.º do CPP, decisão instrutória.
Antes de prosseguirmos, importa esboçar um quadro geral do momento processual em que nos encontramos e da sua finalidade.
(…)
Com estes pressupostos e, assim, fixadas as diretrizes legais e doutrinárias que nos irão orientar na prolação da decisão instrutória, importa averiguar, no caso sub judicio, da existência de indícios suficientes para submeter ou não as arguidas B..., C..., D... e E... a julgamento.
*
Vejamos o que resulta dos presentes autos, elencando os elementos tidos em consideração juntos àqueles.
Assim, relevaram:
A. Na fase de Inquérito
· Participação de fls. 4 a 5v;
· Assento de casamento, de fls. 7 a 9;
· Assento de óbito, de fls. 10 a 11 e de nascimento, de fls. 12;
· Escritura denominada de “compra e venda”, de fls. 13/14;
· Escritura denominada de “justificação”, de fls. 15 a 17;
B. Na fase de instrução:
Inquirição das testemunhas G... , H... , I... , J... e L... .
*
IV.
Ora, em essência, a questão que nos é atribuída para dirimir é de Direito, qual seja, a de saber se, em abstrato, a conduta das arguidas explanada na participação e agora no requerimento de abertura da instrução, é também subsumível ao tipo legal de falsificação de documento.
Preceitua, como tipo base, o n.º 1 do art.º 256 do Código Penal que “quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar ou encobrir outro crime:
(…)
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;
e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores;
(…)
é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
E, sendo autêntico – como é o caso (vide art.º 363.º, n.º 2 do Código Civil) – “punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias.”
Incontornável para a resolução desta questão é o conceito de documento, o qual nos é oferecido pela alínea a) do art.º 255º do mesmo diploma legal.
Documento é “a declaração corporizada em escrito, (…) inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”
Assim, e conforme nos ensina Helena Moniz, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 676, “para efeitos de falsificação, é a declaração e não o objeto em que esta é incorporada que importa,” ou seja, “aquilo que constitui a falsificação de documentos é não a falsificação do documento enquanto objeto que incorpora uma declaração, mas a falsificação da declaração enquanto documento.”
A falsificação de documentos abrange quer a falsificação material, quer a falsificação ideológica. Na primeira “ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento”, enquanto que na segunda, “o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que é diferente do declarado, como o documento que, embora conforme com a declaração, incorpora um facto falso juridicamente relevante” – ibidem.
Ainda, com relevo para o caso em apreço, quanto à falsificação ideológica, diz aquela autora que “ou se trata de uma falsificação de documentos dispositivos em que o documento é diferente da declaração, ou se trata da falsificação de documentos narrativos, em que então o documento é diferente da realidade – isto é, os factos da realidade não são os mesmos factos que estão descritos no documento”.
Porém, nem todo o facto falso integra a falsificação de documentos; para que esta exista, é necessária a integração de “facto falso juridicamente relevante», ou seja, a integração de facto que crie, modifique ou altere uma relação jurídica.” – ibidem.
E é precisamente este ponto, conjugado com a específica noção penal de documento (diversa da civil) que deslindará o proverbial nó górdio em que se traduz a questão em apreço.
Alega a Assistente que a primeira arguida ( B...) casou no regime de comunhão geral de bens com F... em 24.01.1953, sendo o mesmo dissolvido por óbito deste em 18.05.1993, tendo dali resultado 10 filhos, dentre os quais a Assistente.
Mais alega que, desde a data do óbito até à presente, não se procedeu a partilha e divisão dos bens móveis ou imóveis, acrescentando que da herança fazia parte um prédio urbano sito na ..., freguesia da Açoreira, concelho de Moncorvo, inscrito na matriz sob o artigo x..., tendo sido surpreendida, em meados de julho de 2009, pela informação que lhe chegou de terceiros alheios à herança, de que a primeira arguida tinha vendido a uma empresa agrícola o mencionado prédio urbano, o que, na sua ótica, não poderia pois é bem comum do casal e, logo, pertencente à herança do mesmo.
Apurou, juntamente com o marido, que B... alienou o bem em causa por via de escritura à “Quinta dos Picos do Couto – Sociedade Agrícola e Comercial, Lda” tendo, para tal efeito, celebrado no mesmo Cartório Notarial de Celorico da Beira, em 16.02.2009, escritura de justificação, na qual, com as demais arguidas, proferiu declarações, falsas, de ser, com exclusão de outrem, há mais de 20 anos, dona e legítima possuidora do mencionado prédio urbano, por o haver adquirido no estado de viúva, através de doação verbal, o que atesta ser falso.
Conclui que tais declarações prestadas pelas arguidas foram incorporadas em documento que, por via delas, se tornou apto a produzir uma modificação na situação jurídica do prédio urbano, cuja propriedade permitiu justificar, o que, na sua ótica, configura uma falsificação intelectual do mesmo documento.
Todavia, discordamos do entendimento da Assistente nesse ponto uma vez que na falsificação intelectual se integram todas aquelas situações em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada.
Conforme nos esclarece a autora supra citada, ibidem, pág.s 678, “consistindo a falsidade em documento uma narração de facto falso (juridicamente relevante) coloca-se a questão de saber se não se pode considerar como uma falsidade em documento a simulação (ou mesmo a reserva mental). Na verdade, a simulação não constitui uma falsificação intelectual uma vez que não se verifica qualquer desconformidade entre o que foi declarado e o que está documentado (…). Aquilo que consta do documento é exatamente aquilo que as partes declararam. No entanto, na simulação (ou na reserva mental) ocorre uma declaração de vontade falsa.”
Como bem aponta a autora cujos ensinamentos vimos seguindo, de acordo com a atual redação do Código Penal, diversa da anterior è reforma de 1995, tal realidade já não é aqui contemplada; sê-lo-á, conforme bem atalha o Digno Magistrado do Ministério Público no seu despacho de arquivamento, e, nessa medida terá relevância, ao nível do Direito Civil – o que se entende, desde logo, atento o carácter subsidiário de intervenção do Direito Penal.
A falsa documentação indireta era prevista no anterior art.º 233.º, n.º 2 e tinha como ratio incriminar o conteúdo falso de documento, documento este – como é o caso de uma escritura – que tem especial força probatória, porque dotado de fé pública; com a reforma, tal incriminação desapareceu.
Nem, tão-pouco, se diga que com o caminho que ora trilhamos, a Assistente fique desfalcada nas suas garantias de defesa e por duas ordens de razão:
A primeira, que já supra apontámos, é a de que terá sempre o domínio do cível;
A segunda é que, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 371.º do Código Civil “os documentos autênticos (apenas) fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (…)”.
Portanto, o bem jurídico protegido pela norma do art.º 256.º, do Código Penal – a confiança da sociedade no valor probatório dos documentos, e em particular, que os outorgantes produziram perante o notário aquelas declarações – não sofreu qualquer dano: o documento reproduz fielmente o que se passou e mantém na íntegra a finalidade e o potencial probatório a que se destina.
Que é ética e moralmente censurável este tipo de comportamentos, é-o com certeza; no entanto, não é pela via deste tipo legal que o mesmo será punido nem compete aos Tribunais suprir deficiências do legislador.
Na esteira de Carlos Adérito Teixeira in Revista do CEJ, n.º 1, Almedina 2004, “para se realizar o estádio de pretensão à verdade que legitima uma acusação (ou pronúncia) importa que se estabeleça uma convicção de indiciação suficiente fundada numa elevada probabilidade de ter como resultado a condenação do arguido.”
Pelo exposto, o juízo ou convicção a estabelecer nesta fase há-de ser equivalente ao de julgamento, todavia, não se confundindo.
Assim sendo, por todo o exposto e, desde logo, entendendo-se, na esteira da avalizada doutrina, que não configura o crime de falsificação de documento a factualidade descrita pela Assistente e sendo o enquadramento jurídico-penal fator relevante a ter em conta numa eventual e posterior sentença, impõe-se proferir despacho de Não Pronúncia.
V.
Assim, nos termos dos art.ºs 307.º, n.º 1 e 308.º, n.º 1, ambos do CPP, decide-se:
Não pronunciar as arguidas supra identificadas pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. pelo art.º 256.º, n.º 1, alíneas d) e e) e p. pelo n.º 3 do Código Penal.
Notifique.
Custas pela Assistente que se fixam em 2 UC – art.º 515.º, n.º 1, alínea a) do CPP.
Oportunamente, proceda ao arquivamento dos autos».

3. Apreciação
Conforme referido em sede de delimitação do objecto do recurso a questão que surge como «controvertida» no âmbito dos autos, traduz-se em saber se incorre no crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, alínea d) e n.º 3 do Código Penal, quem, faltando à verdade, declara [caso da primeira arguida] ou confirma [caso das demais arguidas], perante o notário, o facto de ser «dona e legítima possuidora, com exclusão de outrem, há mais de vinte anos, pelo facto de lhe ter sido doado verbalmente (…), doação nunca titulada por escritura pública (…)» de prédio urbano - identificado nos autos - declarações por aquele feitas consignar na escritura de justificação lavrada a 16.02.2009, o que tornou possível o registo e subsequente venda do dito prédio pela primeira arguida a um terceiro.

Trata-se de matéria que, a nosso ver, não dispensa um excurso sobre o modo como, ao longo do tempo e actualmente, no domínio da legislação, tem vindo a ser «encarada».
Vejamos.
Sobre tais «falsas declarações», no âmbito do processo de justificação notarial, dispõe o artigo 97.º do Código do Notariado, aprovado pelo Decreto – Lei n.º 207/05, de 14 de Agosto:
«Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».
O Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 340/05, de 22 de Junho, contrariando, então, o juízo de inconstitucionalidade orgânica, formulado na decisão recorrida, do artigo 97º do Código do Notariado, procedendo a uma pormenorizada resenha da evolução legislativa verificada, deixou consignado:

 «O artigo 107º da versão originária do Código do Notariado aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47619, de 31 de Março de 1967, tinha o seguinte teor:
“Artigo 107º
(Advertência aos outorgantes)
Os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de terceiro, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura.”
Com o Decreto-Lei n.º 87/90, de 1 de Março, que procedeu a várias alterações ao Código do Notariado de 1967, o tipo legal de crime em causa passou a constar do artigo 106º e a ter a seguinte redacção:
“Artigo 106º
(Advertência aos outorgantes)
Os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura”.
Esta redacção foi transposta para o artigo 97º do actual Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto.
(…)
Finalmente, importa considerar a alteração que se traduz em o novo preceito – bem como o artigo 106º que o precedeu – ter passado a remeter para a pena prevista para o crime de “falsas declarações perante oficial público” – enquanto que o artigo 107º da versão originária do Código de 1967 remetia para a pena prevista para o crime de “falsidade” …
O Código Penal de 1886 (em vigor à data da edição do artigo 107º do Código do Notariado de 1967) continha, no Título III do Livro Segundo, um Capítulo VI – “Das falsidades”, onde se incriminavam as “declarações falsas” e que incluía as seguintes Secções: I – “Da falsidade de moeda, notas de bancos nacionais e de alguns títulos do Estado”; II – “Da falsidade de escritos”; III – “Da falsidade de selos, cunhos e marcas”; IV – “Disposição comum às secções antecedentes deste capítulo”; V – “Dos nomes, trajos, empregos e títulos supostos ou usurpados”; VI – “Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”.
O Código Penal de 1982 eliminou o Capítulo antes designado por “Das falsidades” e procedeu a uma rearrumação sistemática dos crimes que nelas se incluíam. Passou, então, a distinguir entre, por um lado, aqueles crimes que – tal como os de falsificação de documentos, moeda, peso e medidas – são considerados crimes contra valores e interesses da vida em sociedade (Capítulo II do Título IV) e, por outro, aqueles que são considerados “crimes contra a realização da justiça” e como tal incluídos no Título dos “crimes contra o Estado” (Capítulo III do Título V). Entre estes últimos encontram-se, por exemplo, a falsidade de depoimento ou declarações, a que corresponde o actual artigo 359º do Código Penal ou a falsidade de testemunho, prevista no artigo 360º do mesmo Código …».
Ainda a propósito do percurso do preceito que nos vem ocupando extracta-se do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 379/2012, de 12 de Julho:
«A remissão, na formulação originária, para o crime de falsidade, dado o caráter genérico da designação, já suscitava dúvida quanto à norma para que o artigo 107º do Código de Notariado reenviava, na determinação da pena aplicável. Fazia parte do Código Penal de 1886, como se viu, um capítulo intitulado “Das falsidades”. Desse capítulo constava uma secção (secção II), prevendo (artigo 216º) o crime de “falsificação de documentos autênticos ou que fazem prova plena”. O n.º 3 desta norma determinava a condenação de quem cometer falsificação «fazendo falsa declaração de qualquer facto, que os mesmos documentos tem por fim certificar e autenticar, ou que é essencial para a validade desses documentos». Integrada no mesmo capítulo, a secção VI dispunha sobre o “falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública”. Dela fazia parte o artigo 242.º, prevendo o crime de “falso testemunho em inquirição não contenciosa. Falsas declarações perante a autoridade”.
Esta dualidade de previsões, a do n.º 3 do artigo 216º e a do artigo 242º, espelhava normativamente a distinção entre falsificação (intelectual) de documentos e falsas declarações. A distinção reveste-se de extrema dificuldade, sobretudo quando, como é o caso, as falsas declarações são incorporadas em documento autêntico – cfr. Helena Moniz, O crime de falsificação de documentos. Da falsificação intelectual e da falsidade em documento, Coimbra 1993, 214. Para Maia Gonçalves (Código Penal Português, 3.ª ed., Coimbra, 1977, 380), «há falsidade intelectual quando o documento é genuíno; não foi alterado, mas, contudo, não traduz a verdade. A desconformidade há-de resultar em princípio, de uma desconformidade entre o documento e a declaração. Se o documento está de harmonia com a declaração, mas no entanto esta não está em harmonia com a realidade, não pode haver falsidade intelectual (…)». Beleza dos Santos também admitia a distinção, mas acabava por remeter para a norma (…) reguladora do concurso aparente de infracções (“Falsificação de documentos e falsas declarações à autoridade”, RLJ, ano 70º, 257).
Em face da dificuldade da distinção, não pode dizer-se que a jurisprudência emitida na vigência do Código Penal de 1886 tenha seguido um critério uniforme de aplicação. Assim, enquanto que o Acórdão do STJ, de 8 de outubro de 1969 (BMJ, 190.º, 239) pareceu adotar um critério idêntico ao proposto por Maia Gonçalves, ao decidir que «se o documento está de harmonia com a declaração, não existe falsidade (…)», já o Acórdão de 24 de janeiro de 1968, do mesmo Supremo Tribunal (BMJ, 173º, 179) dele se afastou, ao deixar lavrado: «Verifica-se o crime de falsificação de documento, na forma de falsificação intelectual, previsto no art. 216º do C.P., quando, com intenção de prejudicar, se fazem declarações falsas para serem exaradas em documento autêntico, sobre pontos que o mesmo tem por fim certificar ou autenticar».
Quanto à conexão destas previsões genéricas com o crime específico de falsas declarações em procedimento de justificação notarial, os antecedentes legislativos em nada contribuem para esclarecer a dúvida acima exposta, antes a adensam significativamente. Aquele procedimento foi criado pelo artigo 27º da Lei n.º 2049, de 6 de agosto de 1951, para permitir a inscrição de direitos no registo predial, por parte de quem, invocando-os, não pudesse deles fazer prova por documento bastante. Tal procedimento traduzia-se numa “declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas idóneas”, prestada perante a entidade administrativa competente. Pelo Decreto-Lei n.º 40.603, de 18 de maio de 1956, tal entidade passou a ser o notário. Tanto num diploma como no outro, o crime cometido por quem prestasse, neste procedimento, falsas declarações era identificado como “o crime previsto no § 5º do artigo 238º do Código Penal”. Esta norma dispunha assim: «O testemunho falso em matéria civil será punido com prisão maior de dois a oito anos».
É com o Código de Registo Predial, aprovado pelo Decreto-Lei nº 42565, de 8 de outubro de 1959, que as falsas declarações, no procedimento de justificação notarial, passaram a ser punidas com as penas aplicáveis ao “crime de falsidade” (artigo 276º). Por contraste com as incriminações anteriores, e pela própria formulação utilizada, é defensável o entendimento de que se quis retirar o tipo legal de crime do âmbito da secção do Código Penal que versava sobre “do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública” – a secção VI, que justamente abria com o artigo 238º - para o situar na secção II, que tratava “da falsificação de escritos”(…).
O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei nº 47.611, de 28 de março de 1965, remeteu a regulação desta matéria para o Código do Notariado, que veio a ser aprovado pelo Decreto-Lei 47.619, de 31 de março de 1967. Dele consta o artigo 107.º supra transcrito, o qual manteve as penas aplicáveis ao crime de falsidade.
Com o Código de Notariado, na versão aprovada pelo Decreto-Lei n.º 67/90, a incriminação passou (…) para o artigo 106.º. É com esta incriminação que surge a remissão para o “crime de falsas declarações perante oficial público”, mantida na versão em vigor.
Perante esta alteração é difícil sustentar (…) que a norma continuou a visar a punição do crime de falsificação intelectual de documento, constante, após a revisão de 1982, da alínea b) do n.º 1 do artigo 228.º, e hoje localizada no artigo 256º, n.º 1, alínea d), do Código Penal. Se a nova sistemática do Código Penal, nesta matéria, impunha o abandono da designação “crime de falsidade”, por ter desaparecido esta categoria genérica, de forma alguma aconselhava a nova designação, se a intenção fosse deixar substancialmente tudo como dantes. Na verdade, a fórmula “crime de falsas declarações perante oficial público” está patentemente mais próxima da que designa o crime de “falsas declarações perante a autoridade”, previsto e punido, anteriormente à citada revisão, no artigo 242º, e que passou a integrar um novo capítulo, referente aos “crimes contra a realização da justiça”, aí dando corpo a um segmento do artigo 402º. Esta norma, abandonando a distinção entre as inqurições contenciosas e não contenciosas, incriminava (também) o falso testemunho e as falsas declarações «perante tribunal ou funcionário competente para receber, como meio de prova, os seus depoimentos (…)». Tal funcionário, tratando-se de elaboração de uma escritura pública, só poderia ser, à época, uma autoridade ou um oficial público.»

Aresto, este, que acabou por julgar inconstitucional a norma do artigo 97.º do Código do Notariado, por violação do artigo 29º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
Constatada, assim, com referência à evolução legislativa traçada, a dificuldade na defesa de que a dita norma do Código do Notariado [artigo 97.º] continuou a contemplar a punição do crime de falsificação intelectual em documento, enfrentemos, agora, a perspectiva da assistente.
Sobre a problemática realça-se o «Parecer sobre tutela penal de falsas declarações e eventuais lacunas carecidas de intervenção legislativa em matéria de falsas declarações perante autoridade pública», de 10.03.2011, da autoria de Paulo Dá Mesquita, publicado na Revista do Ministério Público, n.º 134, pág. 79 e ss. [que, de acordo com a Nota Introdutória do autor, «… foi elaborado no âmbito da Procuradoria – Geral da República, em 2011, tendo sido remetido pelo então Procurador-Geral da República para o Ministério da Justiça a fim de ser ponderado em eventual reforma legislativa. De acordo com informação divulgada pelo Governo, este parecer terá sido equacionado com vista a iniciativa legislativa avulsa que posteriormente veio a ser integrada na revisão do Código Penal de 2013 e no novo artigo 348.º - A com a epígrafe Falsas declarações …»], no qual, a propósito, se refere:
«A problemática das falsas declarações perante oficial ou outro agente com funções públicas que fará constar de documento essas declarações pode ainda suscitar a questão do eventual enquadramento jurídico-penal no tipo de falsificação ou contrafacção de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, d) do Código Penal, que em regra se designa como falsidade intelectual…
(…)
Com efeito, pode considerar-se que as falsas declarações perante agente com funções públicas e que vai elaborar documento oficial baseado nessas declarações implica uma lesão do mesmo bem jurídico do tipo de falsificação, «a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental …». Valor que no tipo de falsificação se apresenta indissoluvelmente ligado às duas funções que o documento pode ter, a «função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana» e a «função de garantia», «pois cada autor [de] documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele num certo momento e local as expôs …».
De qualquer modo, independentemente da ênfase no bem jurídico, afigura-se-nos inequívoco que o princípio da tipicidade implica na ordem jurídico-penal um recorte da punibilidade pelo tipo (objectivo e subjectivo). Daí que se afigure essencial abordar a questão a partir das previsões legais e seu âmbito aferido em primeira linha à luz dos critérios gerais de interpretação.
No processo de revisão que culminou na alteração de 1995 do Código Penal, o presidente da comissão revisora, Professor FIGUEIREDO DIAS, ao identificar e apresentar o problema da integração da falsidade intelectual no tipo de falsificação, de forma inequívoca expôs a sua posição no sentido de que a alínea em causa «consagra uma situação anómala; confunde-se a falsificação com a falsidade intelectual», acrescentando ainda que «se se eliminar esta alínea, dever-se-á então indagar que falsidade intelectual haverá que consagrar no Código …»
Na discussão, o então Procurador – Geral da República CUNHA RODRIGUES pronunciou-se no sentido da «manutenção da alínea […] pois além de ter tradição é solução também acolhida em outros ordenamentos jurídicos (…). Na acta da reunião de 3 de Abril de 1990, relativamente aos outros membros da comissão revisora, apenas consta a verbalização da perspectiva de COSTA ANDRADE no sentido da eliminação do preceito, e que a «comissão acordou em manter a alínea até nova apreciação …». «Salientou, no entanto, o Senhor Professor FIGUEIREDO DIAS que a alínea não contempla qualquer falsificação de documento mas sim uma falsa declaração em documento regular. A ficar, tornar-se-á necessária uma interpretação restritiva, papel a desempenhar pela doutrina …».
Assentando o autor em que «não é típica a conduta do agente que faz declarações de um facto falso juridicamente irrelevante», prossegue o Autor «Integram-se no tipo de falsificação os casos em que o agente pratica um acto material determinante para o preenchimento ou registo no documento do facto falso juridicamente relevante (na modalidade de falsificação por força de falsidade intelectual relativa a declarações contrárias à verdade sobre factos juridicamente relevantes). Será esse o caso, por exemplo, da «integração no documento de uma declaração distinta daquela que foi prestada …»
Também se integrará na referida dimensão o fazer constar de facto falso por força do exercício de poderes próprios sobre a elaboração e redacção do documento, por exemplo a autoridade que dirige determinada diligência emite uma ordem para quem elabora o auto no sentido de que deve fazer constar do mesmo facto falso juridicamente relevante (…).
Falsidades consubstanciadas no exercício de um poder sobre os termos em que é elaborado o documento, «quando num documento existe divergência entre o que o documento relata e que de facto ocorreu, ou seja o documento mente …». Poder de conformação do documento de que não dispõe quem apenas presta declarações a uma entidade estadual por via de um dever jurídico …»
Afigura-se-nos teleologicamente infundado integrar no crime de falsificação a conduta de quem emite uma simples declaração verbal, sem ter o poder de emitir, elaborar ou determinar a emissão documento com informação sobres factos juridicamente relevantes, cujo relevo se apresenta reforçado pelo próprio documento …»
Isto é, quando relativamente ao que foi dito o agente apenas tem um domínio relativo ao poder da palavra sem capacidade para determinar a produção do documento não preenche o tipo de falsificação por falta do elemento objectivo relativo: fazer constar do documento facto juridicamente relevante.
Reportando-nos ao tema que suscitou a presente consulta, considera-se que na legislação portuguesa a tutela penal de declarações para efeitos de processo judiciário ou extra-judiciário que funcionário faz constar de documento com força pública se opera por eventuais tipos de falsas declarações e não de falsificação  …»
Daí que no caso do arguido que, por exemplo, presta falsas declarações sobre factos juridicamente relevantes e relativamente aos quais tem o dever de depor com verdade, ao que se sabe, nunca foi problematizada a eventual integração de um crime de falsificação por via de as mesmas constarem de auto com força de documento autêntico.
Em síntese, para se preencher o tipo de falsificação na modalidade de fazer constar do documento facto juridicamente relevante entende-se que tem de existir da parte do agente do crime, pelo menos, um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento (nomeadamente o que se disse em determinado evento). Ou seja, no caso da documentação por escrito de declarações perante autoridade esse domínio jurídico apenas é detido por quem ordena a redução a escrito e quem executa esse comando e não por quem apenas presta as declarações.
Ainda que se adopte uma ênfase (que no plano da interpretação do tipo objectivo nunca pode ser exclusivista) na função probatória do documento, a mesma cinge-se à sua força para a prova da ocorrência do evento documentado (que se disse) e não sobre a asserção (o que se disse), cuja força subsiste inalterada por via da documentação levada a cabo por terceiro.
(…)
Em termos sintéticos, não é a documentação do facto presenciado por agente estadual, que conforma os deveres dos particulares envolvidos (sejam de não atingir o património alheio ou de falar com verdade relativamente à sua identificação civil).»

Pensamento que, no seio de alguma conturbação doutrinária e jurisprudencial, temos por mais adequado atento o princípio da tipicidade, o qual se nos afigura não dispensar, utilizando as palavras do Autor, «um domínio (de facto ou de direito) sobre a produção do documento e não limitado ao facto reportado pelo documento» - que no caso não ocorreu -, sendo certo que o subsequente uso da escritura de justificação para o registo e venda do imóvel a terceiro, não faz incorrer o agente no crime de falsificação de documento da alínea e) – também convocada no requerimento de abertura da instrução - na medida em que não se trata de «documento a que se referem as alíneas anteriores».

De facto, fosse a conduta em causa posterior à entrada em vigor das alterações ao Código Penal, introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, por certo não estaríamos a discutir a questão em função do novo artigo 348.º - A - integrando, agora, a Secção I, do Capítulo II, do Título V, do Livro II do dito compêndio normativo com a epígrafe «Da resistência, desobediência e falsas declarações à autoridade pública» -, o qual sob a designação «Falsas declarações», dispõe:
«1 – Quem declarar ou atestar falsamente à autoridade pública ou a funcionário no exercício das suas funções identidade, estado ou outra qualidade a que a lei atribua efeitos jurídicos, próprios ou alheios, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
2 – Se as declarações se destinarem a ser exaradas em documento autêntico o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa» [destaques nossos].
Preceito que não podemos ler desligado do «Estudo» que vimos de citar – tendo até presente a respectiva «Nota Introdutória» -, em cuja conclusão 19. o Autor alerta para que «A ausência de tutela pública das falsas declarações perante autoridade pública afecta a autonomia intencional do Estado, nomeadamente, nas áreas dos registos, notariado, concursos públicos e múltiplos procedimentos sancionatórios»., aspecto, desde então [da entrada em vigor do sobredito preceito], concretamente no que tange à questão controversa, sanado.

Entende-se, pois, falecer, razão à recorrente.

III. Decisão

Termos em que acordam os juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.
Condena-se a recorrente em 3 [três] Ucs de taxa de justiça.

Coimbra, 18 de Dezembro de 2013

Maria José Nogueira - Relatora

(Isabel Valongo - Adjunta, com voto de vencida, do seguinte teor:
«Votei vencida, - embora reconheça mérito aos argumentos da tese vencedora -por entender que:
O crime de falsificação de documento, previsto no art. 256.º, do Código Penal, pune com pena de prisão até três anos ou com pena de multa:
1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime:
a) Fabricar ou elaborar documento falso, ou qualquer dos componentes destinados a corporizá-lo;
b) Falsificar ou alterar documento ou qualquer dos componentes que o integram;
c) Abusar da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento;
d) Fizer constar falsamente de documento ou de qualquer dos seus componentes facto juridicamente relevante;

e) Usar documento a que se referem as alíneas anteriores; ou
f) Por qualquer meio, facultar ou detiver documento falsificado ou contrafeito.

O agente é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias de multa, se os factos referidos no nº 1 disserem respeito a documento autêntico ou com igual força … nº 3 do preceito citado.
O art 255.º do CP, considera documento “a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta.”
A norma do art. 256º nº 1 do Cod. Penal indica como elemento do tipo subjectivo a intenção por parte do agente de "causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime”.
“Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem (patrimonial ou não patrimonial) que se obtenha através do acto de falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado” - Comentário Conimbricense do Código Penal Conimbricense, tomo II, pag. 685.
O bem jurídico tutelado/protegido pelo crime de falsificação de documentos é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, ou seja, o valor probatório dos documentos em geral e particularmente dos enunciados na sua “qualificativa” – nº 3 do preceito -, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II (1999), p. 680.
O dolo específico, traduzido na intenção do agente causar prejuízo a outra pessoa ou de obter para si um benefício ilegítimo, não altera o bem jurídico protegido pelo crime de falsificação, acima mencionado.
Como refere Helena Moniz «O facto de o agente ter de actuar com esta específica intenção não significa que se pretenda proteger outro bem jurídico que não seja o da credibilidade no tráfico jurídico-probatório. Não constitui objecto de protecção o património, tão pouco a confiança no conteúdo dos documentos ( S/S/ Cramer § 267 1), mas apenas a segurança e credibilidade no tráfico jurídico, em especial no que respeita aos meios de prova, em particular a prova documental.» - Cfr. Comentário Conimbricense do Código Pena", Tomo II, pág. 685.
De facto o crime de falsificação de documentos é um crime intencional, terminologia associada à existência de um dolo específico enquanto particular intenção do agente, definida pelo tipo, quando da realização do mesmo, para além da mera existência de um dolo genérico, como mero conhecimento e vontade de realização do tipo.
O crime de falsificação de documentos constitui um crime de perigo, ou seja, após a falsificação documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste: a confiança pública e a fé pública foram violadas, mas o bem jurídico protegido, o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório documental apenas foi colocado em perigo – ob cit. pag 681.
Trata-se de um crime de perigo abstracto, (o perigo não constitui elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador) pois como se alude no citado Comentário Conimbricense (p. 681) “…para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo (de violação do bem jurídico); basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico-criminal aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico – verifica-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico, uma punição do âmbito pré-delitual”.
É também considerado como um crime formal ou de mera actividade, não sendo necessário a produção de qualquer resultado, considerando os interesses que o tipo legal visa proteger. Mas se considerarmos a actividade do agente, isto é, o acto de falsificar o documento, podemos considerar que se trata de um crime material de resultado.
Assim, ao nível do tipo objectivo, o documento é falso quando não corresponde à realidade, como ocorre com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica).
Na falsificação intelectual, a declaração é conforme com a vontade, todavia contra a verdade dos factos – contra a vontade real – como ensina Helena Moniz (O Crime de Falsificação de Documentos, pág. 191) e ilustra com o seguinte exemplo: “A diz que quer vender o seu carro y, e quer mesmo vender 8 vontade real) e declara isso mesmo (e é o que mais tarde está escrito no documento) todavia, o carro não é dele. Ao dizer que vende o seu carro faz uma declaração de facto falso (juridicamente relevante – pois de outro modo não poderia vender o carro) em documento.”
Na falsidade em documento, integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso, juridicamente relevante, trata-se pois de uma narração de facto falso, sendo que a relevância jurídica desenha-se sempre que o facto inserto no documento produza uma alteração no mundo do Direito, isto é que abra ensejo à obtenção de um benefício (neste sentido vidé, Helena Moniz "Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pág. 667" e Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-05-2009, Processo: 457/07.9TASCD.C1 (JusNet 2903/2009), Relator: DR. JORGE DIAS e de 07-02-2007,Nº 1540/05.0TAAVR.C1 (JusNet 300/2007), Relator: DR. ESTEVES MARQUES, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-11-2009, Processo: 1289/06.7TAVCT.G1 (JusNet 7567/2009), Relator: TERESA BALTAZAR, in www.dgsi.pt).
Consequentemente, “a mentira" inserida no documento deve apresentar-se como relevante, sem o que não haverá falsificação, ou seja, é necessário que “a declaração corporizada em escrito...”, seja “... idónea para provar facto juridicamente relevante....”, como resulta do teor dos artigos 255º, al. a) e 256, nº 1 al. d) do C.Penal. Acórdão Rel Coimbra, de 2 Mar. 2011, Processo 909/09.6TALRA.C1 - Relator: CALVÁRIO ANTUNES.
Aponta-se como uma das fontes da al. d) do n.º 1 do preceito aponta-se o art § 271 do CP alemão. Trata-se de um preceito que só prevê, porém, ao contrário do nosso art. 256.º, a falsidade em documentos públicos.
Termos em que perante a prova indiciária apurada, entendo ser de proferir despacho de pronúncia».


Alberto Mira - Presidente, com voto de desempate